domingo, 17 de maio de 2020

Contos e Lendas do Brasil (Garganta do Inferno)


Na Serra do Itacolomi havia um grande e profundíssimo fojo* redondo e perpendicular, no meio do campo.

A boca, de cerca de três braças de diâmetro, era ornada de um cômoro* de pedras soltas e emaranhadas de matagal bravio, onde se aninhavam bandos de morcegos e corujas e servia de covil para jararacas e boiciningas*.

Sua profundidade ninguém ousava sondar, pois todos tinham medo de aproximar-se muito daquele medonho boqueirão a que chamavam a Garganta do Inferno.

Contava-se uma infinidade de estórias assustadoras a respeito daquela caverna. Dizia-se entre outras coisas que antigamente, no local onde mais tarde surgiu a caverna, vivia em um miserável ranchinho certa mulher muito velha e muito rica, de quem todos fugiam, pois era tida como bruxa.

Em virtude do pacto que ela fizera com o Demônio, recebendo de suas garras muitos poderes, nas noites de Sexta-Feira Santa, conseguiu ajuntar muito ouro e obteve o dom de viver cinco idades de homem, contanto que nunca deixasse de praticar malefícios e artes diabólicas.

Segundo se dizia, ela morava ali desde tempos imemoriais e não faltava quem asseverasse que a sua idade já alcançava a quinhentos anos. Mas uma noite a velha e o rancho sorveteram* debaixo da terra com pavoroso estrondo e, em seu lugar, no outro dia, lá estava aquela horrenda caverna. Em certos dias, ouviam-se nas suas profundezas bramidos, uivos e gemidos espantosos e a terra estremecia ao redor do buraco fumegante.

As velhas, quando tinham de passar por ali, faziam-no a toda pressa, rezando o Credo e benzendo-se. É que algumas delas, com seus próprios olhos, tinham visto o Diabo sair de lá na figura de um Dragão, no meio de uma fumarada e línguas de fogo. Os meninos não se atreviam a chegar muito perto, pois tinham como certo que lá morava uma serpente negra, com olhos de fogo.
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Esse buraco, na narrativa de Bernardo Guimarães, engoliu a heroína e ao longo dos anos que se seguiram fez desaparecerem burros incautos que por ali andavam, pastando o escasso capim que vicejava na itapanhoacanga*, sugerindo a ideia de que o Demo alimentasse o desejo de se fazer tropeiro.

Depois que um exorcista conseguiu entupir com orações esse trágico buraco, ninguém dirá que ele existiu outrora naquele lugar em que hoje se encontra o adro da igreja de Nossa Senhora dos Prazeres de Lavras Novas.
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Vocabulário
Boicininga – cobra mais conhecida por cascavel.
Cômoro – elevação de terreno não muito alta; outeiro, duna.
Fojo – remoinho de água, de lama, etc.
Itapanhoacanga – rocha rica em ferro, dura, bem consolidada, composta de fragmentos derivados de itabirito, hematita e de outros materiais ferruginosos, cimentados por limonita (que pode variar de 5% a mais que 95%).
Sorveteram – desapareceram, sumiram.

 
Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 13


MENSAGEM...
Glosando A. A. de Assis (Maringá/PR)


MOTE:
Se quereis ser minha imagem,
diz-nos Deus, eu Vos conclamo:
– Escutai minha mensagem,
e amai-vos como eu vos amo!


GLOSA:

SE QUEREIS SER MINHA IMAGEM,
ó meu filho predileto,
cuida que a tua passagem
seja cheinha de afeto!

Por amar-nos sem medidas,
DIZ-NOS DEUS, EU VOS CONCLAMO.
Com suas mentes unidas,
à paz do mundo, eu vos chamo!

É universal a linguagem
que fala de paz e amor:
– ESCUTAI MINHA MENSAGEM,
e vivei com mais ardor!

Nesta mensagem, vos digo,
e em altos brados eu clamo:
– Amai amigo e inimigo,
E AMAI-VOS COMO EU VOS AMO!
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MORADA NA TROVA
Glosando Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre/RS)

MOTE:
Pode o amor, banhado em sonhos,
construir morada nova,
nos braços sempre risonhos
dos quatro versos da trova.


GLOSA:
PODE O AMOR, BANHADO EM SONHOS,
renovar-se, reviver,
mudando os dias tristonhos,
num eterno renascer.

E, assim, feliz e faceiro,
CONSTRUIR MORADA NOVA,
e seus dotes de engenheiro,
na construção, pôr à prova.

Apressar dias tardonhos
e atirar-se com alegria,
NOS BRAÇOS SEMPRE RISONHOS
de ternura da poesia.

Essa morada bonita,
que a felicidade aprova,
tem a beleza infinita
DOS QUATRO VERSOS DA TROVA.
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ESCREVER...
Glosando Luiz Poeta
(Rio de Janeiro/RJ)

MOTE:
Só ouso fazer poesia
para quem já as conhece
quando seu ser irradia
esse calor que me aquece.


GLOSA:
SÓ OUSO FAZER POESIA
e dar asas à emoção,
porque me traz alegria,
me faz bem ao coração!

Sempre escrevo com carinho
PARA QUEM JÁ AS CONHECE
e cruzando o meu caminho,
com um sorriso, agradece!

Eu visualizo a utopia,
nesse instante tão bonito,
QUANDO SEU SER IRRADIA
e ilumina o infinito!

É bom escrever! Dá calma!
Escrever rejuvenesce,
e eu sinto, bem dentro da alma,
ESSE CALOR QUE ME AQUECE.
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AMOR E LUZ
Glosando Olavo Bilac
(Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918)

MOTE:
O amor que a teu lado levas
a que lugar te conduz,
que entras coberto de trevas
e sais coberto de luz?


GLOSA:
O AMOR QUE A TEU LADO LEVAS
é grande, é forte, é bonito,
com sua força, tu o elevas,
à potência de infinito!

Esse amor só de alegria
A QUE LUGAR TE CONDUZ,
se ele ilumina o teu dia
com as luzes que produz?

É com ele que tu enlevas
tudo e todos, de repente,
QUE ENTRAS COBERTO DE TREVAS
e sais bem mais reluzente!

É nesse amor abençoado,
que esqueces a tua cruz,
relembrando o teu passado,
E SAIS COBERTO DE LUZ!
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RISO TRISTE...
Glosando Vanda Fagundes Queiroz
(Curitiba/PR)

MOTE:
No sorrir, nem sempre existe
mensagem de bem estar.
Quanta vez, num riso triste,
nós choramos... sem chorar!

 

GLOSA:
NO SORRIR, NEM SEMPRE EXISTE
uma dose de alegria,
muitas vezes, nele, insiste
alojar-se a nostalgia!

Nem sempre ele nos transmite
MENSAGEM DE BEM ESTAR.
Muitas vezes, é um convite,
que a sorrir, nos faz chorar!

O mundo quase desiste
de encontrar felicidade!
QUANTA VEZ, NUM RISO TRISTE,
há muita fraternidade!

Nós sorrimos, sem sorrir...
Nós amamos, sem amar...
Nós partimos, sem partir...
NÓS CHORAMOS... SEM CHORAR!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Machado de Assis (História Comum)


… Caí na copa do chapéu de um homem que passava… Perdoe-me este começo; é um modo de ser épico. Entro em plena ação. Já o leitor sabe que caí, e caí na copa do chapéu de um homem que passava; resta dizer donde caí e por que caí.

Quanto à minha qualidade de alfinete, não é preciso insistir nela. Sou um simples alfinete vilão, modesto, não alfinete de adorno, mas de uso, desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chita, e as damas de sociedade os fichus*, ou as flores, ou isto, ou aquilo. Aparentemente vale pouco um alfinete; mas, na realidade, pode exceder ao próprio vestido. Não exemplifico; o papel é pouco, não há senão o espaço de contar a minha aventura.

Tinha-me comprado uma triste mucama. O dono do armarinho vendeu-me, com mais onze irmãos, uma dúzia, por não sei quantos réis - coisa de nada. Que destino! Uma triste mucama. Felicidade, — este é o seu nome — pegou no papel em que estávamos pregados, e meteu-o no baú. Não sei quanto tempo ali estive. Saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita que a mucama trazia ao pescoço. Como o lenço era novo, não fiquei grandemente desconsolado. E depois a mucama era asseada e estimada, vivia nos quartos das moças, era confidente dos seus namoros e arrufos; enfim, não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil.

Entre o peito da Felicidade e o recanto de uma mesa velha, que ela tinha na alcova, gastei uns cinco ou seis dias. De noite, era despregado e metido numa caixinha de papelão, ao canto da mesa. De manhã, ia da caixinha ao lenço. Monótono, é verdade, mas a vida dos alfinetes não é outra. Na véspera do dia em que se deu a minha aventura, ouvi falar de um baile no dia seguinte, em casa de um desembargador que fazia anos. As senhoras preparavam-se com esmero e afinco, cuidavam das rendas, sedas, luvas, flores, brilhantes, leques, sapatos; não se pensava em outra coisa senão no baile do desembargador. Bem quisera eu saber o que era um baile, e ir a ele, mas uma tal ambição podia nascer na cabeça de um alfinete, que não saía do lenço de uma triste mucama? — Certamente que não. O remédio era ficar em casa.

— Felicidade, diziam as moças, à noite, no quarto, dá cá o vestido. Felicidade, aperta o vestido. Felicidade, onde estão as outras meias?

— Que meias, nhanhã?

— As que estavam na cadeira…

— Ué, nhanhã! Estão aqui mesmo.

E Felicidade ia de um lado para outro, solícita, obediente, meiga, sorrindo a todas, abotoando uma, puxando as saias de outra, compondo a cauda desta, consertando o diadema daquela, tudo com um amor de mãe, tão feliz como se fossem suas filhas. E eu vendo tudo. O que me metia inveja eram os outros alfinetes. Quando os via ir da boca da mucama, que os tirava da toilette, para o corpo das moças, dizia comigo, que era bom ser alfinete de damas, e damas bonitas que iam a festas.

— Meninas, são horas!

— Lá vou, mamãe! disseram todas.

E foram, uma a uma, primeiro a mais velha, depois a mais moça, depois a do meio. Esta, por nome Clarinha, ficou arranjando uma rosa no peito, uma linda rosa; pregou-a e sorriu para a mucama.

— Hum! hum! resmungou esta. Seu Florêncio hoje fica de queixo caído…

Clarinha olhou para o espelho, e repetiu consigo a profecia da mucama. Digo isto, não só porque me pareceu vê-lo no sorriso da moça, como porque ela voltou-se pouco depois para a mucama, e respondeu sorrindo:

— Pode ser.

— Pode ser? Vai ficar mesmo.

— Clarinha, só se espera por você.

— Pronta, mamãe!

Tinha prendido a rosa, às pressas, e saiu.

Na sala estava a família, dois carros à porta. Desceram enfim, e Felicidade com elas, até a porta da rua. Clarinha foi com a mãe no segundo carro; no primeiro foi o pai com as outras duas filhas. Clarinha calçava as luvas, a mãe dizia que era tarde; entraram, mas, ao entrar caiu a rosa do peito da moça. Consternação desta; teima da mãe que era tarde, que não valia a pena gastar tempo em pregar a rosa outra vez. Mas Clarinha pedia que se demorasse um instante, um instante só, e diria à mucama que fosse buscar um alfinete.

— Não é preciso, sinhá! Aqui está um.

Um era eu. Que alegria a de Clarinha! Com que alvoroço me tomou entre os dedinhos, e me meteu entre os dentes, enquanto descalçava as luvas. Descalçou-as, pregou comigo a rosa, e o carro partiu. Lá me vou no peito de uma linda moça, prendendo uma bela rosa, com destino ao baile de um desembargador. Façam-me o favor de dizer se Bonaparte teve mais rápida ascensão. Não há dois minutos toda a minha prosperidade era o lenço pobre de uma pobre mucama. Agora, peito de moça bonita, vestido de seda, carro, baile, lacaio que abre a portinhola, cavalheiro que dá o braço à moça, que a leva escada acima. Uma escada suada de tapetes, lavada de luzes, aromada de flores… Ah! Enfim! Eis-me no meu lugar.

Estamos na terceira valsa. O par de Clarinha é o Dr. Florêncio, um rapaz bonito, bigode negro, que a aperta muito e anda à roda como um louco. Terminada a valsa, fomos passear os três, ele murmurando-lhe coisas meigas, ela arfando de cansaço e comoção, e eu fixo, teso, orgulhoso. Seguimos para a janela. O Dr. Florêncio declarou que era tempo de autorizá-lo a pedi-la.

— Não se vexe, não é preciso que me diga nada, basta que me aperte a mão.

Clarinha apertou-lhe a mão, ele levou-a à boca e beijou-a. Ela olhou assustada para dentro.

— Ninguém vê, continuou o Dr. Florêncio, amanhã mesmo escreverei a seu pai.

Conversaram ainda uns dez minutos, suspirando coisas deliciosas, com as mãos presas. O coração dela batia! Eu, que lhe ficava em cima, é que sentia as pancadas do pobre coração. Pudera! Noiva entre duas valsas. Afinal, como era mister voltar à sala, ele pediu-lhe um penhor, a rosa que trazia ao peito.

— Tome…

E despregando a rosa, deu-a ao namorado, atirando-me, com a maior indiferença, à rua… Caí na copa do chapéu de um homem que passava e…
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Vocabulário
Fichus – lenço usado para a cabeça ou para os ombros

Fonte:
Machado de Assis. Relíquias de Casa Velha. Publicação em 1906.

Saulo Gomes Thimóteo (Análise do conto de Machado de Assis: História Comum)


O enredo em si é o mais trivial possível, igual a seu protagonista: um alfinete foi comprado por uma mucama, por acaso, é ele quem prende uma rosa no vestido de uma moça e, quando está com o futuro noivo, ele é descartado. Mas os artifícios encontrados por Machado para singularizar essa história são de vária ordem.

Inicialmente deve-se observar o modo da sequência narrativa. A primeira frase do conto é a última, dando um tom cíclico, ou seja, o final já é conhecido logo no início (Algo parecido acontece nos inícios de “A cartomante” e de “A causa secreta”). E na sequência, no método machadiano da digressão e conversa com o leitor, o alfinete pede perdão pela sua tentativa de escrita épica e, agora que tem a atenção do leitor, irá contar sua história.

É pela perspectiva do narrador-protagonista que o enredo segue. E o fato de ser um alfinete (tão comum), mas ter ares grandiosos, faz com que se construa as peripécias todas. Começa com um suspiro por ser o alfinete de uma mucama (“Que destino!”), embora reconheça sua sorte de poder ouvir as conversas das moças da casa (“não era um destino principesco, mas também não era um destino ignóbil”). Dessa monotonia inicial, eis que se anuncia a sua aventura, que aos poucos o narrador vai tecendo – apesar de alfinetes não tecerem…

O foco em Clarinha, ao mesmo tempo que tem a função de criar o conflito do conto vai mostrando as trivialidades de uma família da época e dos bailes da corte dos finais do século XIX. Além disso, a relação das moças com Felicidade (com a pontada de ironia que há no nome da mucama) também traça um breve instantâneo da estrutura familiar durante o Império.

E então as duas histórias se unem, quando Felicidade dá o alfinete para prender a rosa. “Um era eu”. Comparando-se a Napoleão Bonaparte, mostra-se como ele se sente subir na vida, indo de um “lenço pobre de uma pobre mucama” até o baile, com todo seu luxo e esplendor, e que ele considerava o “seu lugar”.

Mas a roda da fortuna atinge todos os seres, mesmo os alfinetes, de modo que no clímax do conto, no encontro e promessa de noivado que o Dr. Florêncio dá a Clarinha (interessante o fato do nome da moça encontrar-se no diminutivo, para retratar a familiaridade, ao passo que o noivo possui o status de um título de doutor), com as batidas do coração tão fortes, ocorre a quebra de expectativas e o alfinete é jogado fora e cai no chapéu de um homem qualquer que passava.

Surge então, como encerramento, um segundo sentido para essa “História comum”. Não apenas por tratar-se de um objeto comum, mas também por ser a mesma história que tantas vezes se repete, em tantos contextos diferentes: quem se vê, de repente, cercado de luxo e riquezas, pode perder a tudo de maneira igualmente rápida. E tanto a subida quanto a queda não ocorrem, necessariamente por mérito ou erro próprio. Às vezes são só joguetes que outras mãos levam, põem e atiram fora…

E pronto!

Fonte:
http://www.umprofessorle.com.br/2018/12/20/historia-comum/

sábado, 16 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 268


Fernando Sabino (Hora de dormir)


- Por que não posso ficar vendo televisão?

- Porque você tem de dormir.

- Por quê?

- Porque está na hora, ora essa.

- Hora essa?

- Além do mais, isso não é programa para menino.

- Por quê?

- Porque é assunto de gente grande, que você não entende.

- Estou entendendo tudo.

- Mas não serve para você. É impróprio.

- Vai ter mulher pelada?

- Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que você tem colégio amanhã cedo.

- Todo dia eu tenho.

- Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso e vá dormir.

- Espera um pouquinho.

- Não espero não.

- Você vai ficar aí vendo e eu não vou.

- Fico vendo não, pode  desligar. Tenho horror de televisão. Vamos, obedeça a seu pai.

- Os outros meninos todos dormem tarde, só eu que durmo cedo.

- Não tenho nada que ver com os outros meninos: tenho que ver com meu filho. Já para a cama.

- Também eu vou para a cama e não durmo, pronto. Fico acordado a noite toda.

- Não comece com coisa não, que eu perco a paciência.

- Pode perder.

- Deixe de ser malcriado.

- Você mesmo que me criou.

- O quê? Isso é maneira de falar com seu pai?

- Falo como quiser, pronto.

- Não fique respondendo não: cale essa boca.

- Não calo. A boca é minha.

- Olha que eu ponho de castigo.

- Pode por.

- Venha cá! Se der mais um pio, vai levar umas palmadas. Quem é que anda lhe ensinando esses modos? Você está ficando é muito insolente.

- Ficando o quê?

- Atrevido, malcriado. Eu com sua idade já sabia obedecer. Quando é que eu teria coragem de responder a meu pai como você faz. Ele me descia o braço, não tinha conversa. Eu porque sou muito mole, você fica abusando... Quando ele falava está na hora  de  dormir, estava na hora de dormir.

- Naquele tempo não tinha televisão.

- Mas tinha outras coisas.

- Que outras coisas?

- Ora, deixe de  conversa. Vamos desligar esse negócio. Pronto, acabou-se. Agora é tratar de dormir.

- Chato.

- Como? Repete, para você ver o que acontece.

- Chato.

- Tome, para você aprender. E amanhã fica de castigo, está ouvindo? Para aprender a ter respeito a seu pai. E não adianta ficar aí chorando feito bobo. Venha cá.

- Amanhã eu não vou ao colégio.

- Vai sim senhor. E não adianta ficar fazendo essa carinha, não pense que me comove. Anda, venha cá.

- Você me bateu...

- Bati porque você mereceu. Já acabou, pare de chorar. Foi de leve, não doeu nem nada. Peça perdão a seu pai e vá dormir.

- Por que você é assim, meu filho? Só para me aborrecer. Sou tão bom para você, você não reconhece. Faço tudo que você me pede, os maiores sacrifícios. Todo dia trago para você uma coisa da rua. Trabalho o dia todo por sua causa mesmo, e quando chego em casa para descansar um pouco, você vem com essas coisas. Então é assim que se faz?
Então você não tem pena de seu pai? Vamos! Tome a bênção e  vá dormir.

- Papai.

- Que é?

- Me desculpe.

- Está desculpado. Deus o abençoe. Agora vai.

- Por que não posso ficar vendo televisão?

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972.

Baú de Trovas X


Nesta insípida rotina
do meu destino mesquinho,
só teu amor ilumina
as trevas do meu caminho!
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - –
Estou no inverno da vida
e o meu amor continua:
ainda tenho estendida
a mão que procura a tua…
ISABEL CHOLBY SANTOS
- - - - - –
Amar é bom, porque amando
tudo na vida seduz!
Não se vive reclamando
0 peso brando da cruz…
JOSÉ BRASIL
- - - - - -
O nauta afoito se esquiva
do perigo dos escolhos.
Por mais que em perigos viva,
não me esquivo dos teus olhos...
JOSUÉ MONTELLO
- - - - - -
Nesta receita pequena
meu coração satisfaço:
metro e meio de morena
salpicado de mormaço.
MARCUS MORAES
- - - - - –
Na minha boca o teu beijo,
no meu corpo, os teus abraços.
E o meu supremo desejo
de assim morrer nos teus braços!
MARIA LUIZA AMARAL
- - - - - -
Dos meus cantos de menina,
tão cheios de amenidade,
só resta a sombra divina
desta palavra: Saudade!
MARIA SUSETE MARTINS CABRAL
- - - - - -
Menina, formosa e louca,
que beija tudo que vê;
beije então a minha boca,
que ando louco por você!...
MÁRIO GOMES
- - - - - -
Quem, ante o deslumbramento
de uma noite enluarada,
não lembrou com sentimento
os beijos de sua amada?
MARIOMAR
- - - - - -
A mulher merece apreço
dos mais finos madrigais.
E é porque não a conheço
que a adoro cada vez mais.
MARTINS FONTES
- - - - - -
Do que amantes hão contado,
não se duvide, porque
olhares de namorado
veem coisas que ninguém vê!
MOREIRA CARDOSO
- - - - - -
De joelhos, eu te proponho,
com toda sinceridade:
— Tu me devolves o sonho,
eu te devolvo a saudade!
MURILLO DE SOUZA ARAÚJO
- - - - - –
Muito pior que o castigo
de ver meu sonho desfeito,
é saber que não consigo
arrancar-te do meu peito.
NAIR DE MEDEIROS
- - - - - -
Nas batalhas desta vida,
sempre saí vencedor.
Mas me venceste, querida,
com teu aliado — o amor...
NEWTON MARQUES DE AZEVEDO
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Meu amor, quando em teus braços
eu desfruto o     teu carinho,
sinto o amor em ternos laços
nos prender devagarinho.
NILZA COSTA
- - - - - -
O luto preto é vaidade
neste funeral de amor.
O meu luto é a saudade
e saudade não tem cor...
NOEL ROSA
- - - - - -
Existe quem não me estima,
porque falo muito em dor.
A dor é a única rima
que serve à palavra amor.
ORESTES BARBOSA
- - - - - -
Olhando uma bela joia
de resplendente fulgor,
pensei no valor da vida
na plenitude do amor,
ORÉSTIA THEREZINHA
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Pago pesados tributos
ao cofre dos desenganos:
amei-te cinco minutos,
sinto saudade há dez anos!
ORILO DANTAS
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O sol como um poeta risonho,
doirava o céu alto e escampo;
e nós, perdidos num sonho,
fomos a rir pelo campo.
PAULO SETÚBAL
- - - - - -
Não mostra o amor que irradia
o meu coração ao vê-la:
— como o céu, em pleno dia,
parece não ter estrela.
PAULO DE TARSO COSTÁBILE
- - - - - -
Em qualquer parte onde esteja,
eu somente vejo a ti:
— vendo-te, há dias, na igreja,
a própria igreja não vi...
PLÍNIO MOTA
- - - - - –
Dentro da trama indizível
das mais ternas emoções,
o amor é fio invisível
que entrelaça os corações.
RAYMUNDO TRAVASSOS ALVIM
- - - - - –
Se amar é mesmo pecado,
eu sei que sou pecador,
pois sempre tenho sonhado
em lhe beijar, meu amor.
RENATO HERVÉ
- - - - - -
A asa triste do teu lenço
me palpita tais degredos,
que sinto a vida em suspenso
pender do adeus dos teus dedos.
SANTINO GOMES DE MATOS
- - - - - -
É o amor, alma querida,
um filtro embriagador:
— Onde quer que exista vida,
haverá também amor!
SEBASTIÃO LASNEAU
- - - - - –
A dúvida que me assalta
é não saber — que ironia! —
se a você eu farei falta
como a mim você faria...
SIRLENE RIBEIRO
- - - - - -
0 beijo é a esmola que a boca
vive implorando nas ruas…
A minha boca é mendiga,
mas só quer esmolas tuas.
SYLVIO RANGEL
- - - - - -
Amando, ninguém se iluda
com palavras de esplendor:
— o beijo é linguagem muda,
subentendida no amor...
THÉRCIO DE OLIVEIRA

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva

Contos e Lendas do Brasil (João, O Vaqueiro que não Mentia)


lnzistia dois fazendeiros no sertão, casados. lntão, condo se encontraram dizia:

— lntão, cumo vai o seu vaqueiro?

— O meu vaqueiro vai bem.

(Sujeito safado, mentiroso, o outro dizia c’u patrão de João)

— Não, João, não. João é um homem. João não mente.

Ele dizia: — Mente.

— Mente? Bom.

— Um dia eu le mostro se João não mente.

Então, esse de lá tinha uma moça bonita, musculosa e coisa e tá. Saiu mais a filha, a mais bonita que tinha e aprontou-se pras banda da fazenda que trabalhava João. Foi pra lá e disse:

— Você vai saí lá e vai saí no pátio da casa de João e num vorte mais.

— Sim, sinhô.

A moça aprumou-se e danou-se no pátio.

João tava tirando a sela do cavalo, quando deu fé, viu a moça e parou. Disse:

— Aquela moça veio perdida. Eu vou botar ela em casa e num tiro a sela do cavalo aqui.

E quando ela chegou:

— Boa-tarde, João.

— Boa-tarde, moça. Que é que anda fazendo, anda perdida?

Disse: —Não.

— Num anda perdida?

— Não. Saí dali, que dei aqui nessa fazenda, pensando que era a fazenda do meu pai.

— Não. Você tá errada.

Disse: — Não, num estou errada, não.

— Então eu vou arrochar aqui a cia e vou ali ver uma sela pra montar no cavalo, pra botar você na sua casa.

Disse: — Vou nada

— Pruquê não vai? Eu num quero você aqui.

— Mais eu num vou.

Aí foi tomando logo a dereção de embocar na casa.

— Moça, num faça isso, não.

— O xente já tá feito. E eu num vou mais pra casa. Meu pai me mata c’uma pisa. Se eu hei de morrer c’uma surra, fico aqui.

— Nada, e coisa e tá.

E por finá ficou a moça.

Bom. João, quando era todo fim de semana, que ia pra casa do patrão parava o cavalo acolá, virava o cavalo nas duas mãos e seguia para casa do patrão.

Chegava lá e dizia:

— Bom-dia. patrão.

— Bom-dia, João.

— Cumo vai o nosso gado, cumo está o nosso boi Leição?

— Patrão, o nosso gado vai tudo em paz. O boi Leição ‘stá bem.

— Tá certo.

Pela continuação do tempo a moça deu pra vomitar, essas coisa e tá e aí desejou comer a urêia do boi Leição.

Ele disse:

— Moça, aquele boi, não tem jeito, não. Eu num faço uma coisa dessa.

E ela insistindo, insistindo, insistindo...

Ela diz:

— Nada e coisa e tá, tire a urêia, eu só quero comer a urêia.

Disse:

— Se é d’eu tirar a urêia do boi, eu mato o boi.

Matou o boi, fez carne de só, ela provou logo um pedaço especiá, mandou logo pro pai e haja...

João pensava o que havéra de fazer na vida. E quando foi no fim da semana, ele disse:

— O jeito qu’eu tenho é largar uma mentira pru’ meu patrão.

Ele lá (o pai da moça já tinha reunido jazibande, escrivão, testemunha, juiz de direito. tudo.

Aqui montou no cavalo. Tinha um pé de baraúna, cuma daqui acolá. Riscou o cavalo, quando chegou no pé da baraúna.

— Bom-dia, patrão.

Ele mesmo respondeu:

— Bom-dia, João.

— Cumo está o nosso gado, cumo vai o nosso boi Leição?

João dizia:

— Patrão, o nosso gado vai bem. O nosso boi Leição ... Saiu-lhe um berruga na urêia e eu fiz um curativo na urêia do boi e o boi morreu.

Aqui disse ele:

— Mais João mentir?

Virava prá trás, virava pra trás, sentava o cavalo na porta e virava de novo pra lá.

— Bom-dia, patrão.

— Bom-dia, João.

— Cumo está o nosso gado, cumo vai o nosso boi Leição?

— Patrão, o nosso gado vai bem. O nosso boi Leição... Eu fazendo uma ração num rochedo de muita pedra, muito arto, de mandacaru, o boi escapuliu, quebrou o pescoço...

Aqui, João pensava e dizia: — Mas eu mentir a meu patrão!

Virava pra trás e coisa e tá.

Quando ele fez umas quatro ou cinco vez, disse:

— Eu vou agora na casa do meu patrão contar essa história cumo foi.

Chegou lá, riscou o cavalo e disse:

— Bom-dia, patrão (O João).

— Bom-dia, João.

— Cumo vai o nosso gado, cumo está o nosso boi Leição? Ele disse:

O pobre de um vaqueiro
Que se vê no vasto sertão,
Vi umas bonitas forma
E umas delicadas feição,
Vi-me tão aperriado
Que matei o seu boi Leição.

– Home mais aí a musga bradou, e coisa e tá... Foi uma grande festa. Pegaram o João e a moça do fazendeiro lá casaram e foram viver.

E então a ‘posta feita é que se João mentisse, o home lá perdia a fazenda. E como de fato não mentiu, e ele perdeu a fazenda. João foi pra fazenda do que levantou o farso do sogro, foi pra fazenda do sogro e ficaram vivendo lá, vizinho.

Fonte:
Téo Brandão. Seis contos populares do Brasil. Maceió/AL: Universidade Federal de Alagoas, 1982.

Agatha Christie (Resenha de Livros) 10


O CAVALO AMARELO
The Pale Horse


Um sacerdote ancião é assassinado em um subúrbio de Londres. Um crime aparentemente comum. Porém, um papel escondido no sapato do morto desperta a atenção do inspetor Lejeune: uma lista com nomes de pessoas que aparentemente haviam morrido de causas naturais e outra relação de vítimas potenciais. A investigação o leva a Pale Horse, onde vivem três mulheres estranhas - uma espécie de reencarnação moderna das bruxas de Macbeth. Lá ele descobre uma organização criminosa que pratica crimes através de telepatia. Utilizando métodos pouco ortodoxos, Lejeune consegue desvendar uma das tramas mais surpreendentes de Agatha Christie.

Mark Easterbrook é um historiador inglês de vida pacata e sossegada, até um reverendo idoso morrer misteriosamente em uma noite de nevoeiro, intrigado pelo caso, ele, Ariadne Oliver e uma moça chamada Ginger, tentam resolver o mistério que paira na antiga pensão chamada o cavalo amarelo. Onde as pessoas são mortas por telepatia.
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A MALDIÇÃO DO ESPELHO
The Mirror Crack’d From Side To Side


A maldição do espelho parece se abater sobre Marina Gregg, linda estrela de cinema, quando ela decide comprar a antiga mansão vitoriana Gossington Hall. No novo lar, em vez da tranquilidade campestre que sonhou desfrutar ao lado do marido, a atriz se depara com uma série apavorante de sustos e assassinatos. A Maldição do Espelho é mais uma irresistível aventura de Miss Marple.
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OS RELÓGIOS
The Clocks


Um homem desconhecido é encontrado morto na casa de uma senhora cega. Na cena do crime, quatro relógios parados na mesma hora: quatro e treze. Sem qualquer pista do assassino ou da identidade da vítima, o detetive Colin Lamb, do Serviço Secreto inglês, pede ajuda a Hercule Poirot. Ao iniciar a investigação, o detetive afirma que o caso é muito simples, mas ele logo percebe que a solução não é tão óbvia, principalmente quando outros dois assassinatos são cometidos em circunstâncias misteriosas.
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MISTÉRIO NO CARIBE
A Caribbean Mystery


Os hóspedes do Goldem Palm Hotel, que passam as suas férias na ilha antilhana de Trinidad pensam que estão gozando das delícias de um verdadeiro paraíso, sem suspeitar que, de acordo com a tradição bíblica, nesse paraíso terrenal também se oculta uma serpente, na pessoa de um assassino que, depois de ter matado três vezes, já escolheu a sua quarta vítima entre os felizes veranistas. Porém o frio criminoso não podia imaginar era que seria descoberto graças à sagacidade extraordinária da mais inofensiva, pelo menos aparentemente, destes veranistas: uma velhinha solteirona, com um aspecto bondoso e tímido, Miss Marple, cuja vida passou no pequeno povoado de St. Mary Mead, onde aprendeu tudo o que era necessário sobre as virtudes e as paixões que constituem o miolo da natureza humana. Para desmascarar o assassino e chegar a tempo para salvar a última das suas vítimas, a famosa Miss Marple conta, esta vez, com a mais inesperada das ajudas.
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O CASO DO HOTEL BERTRAM
At Bertram’s Hotel


O luxuoso hotel Bertram é um dos poucos edifícios de Londres a conservar o charme da Inglaterra do início do século e, mesmo frequentado por duquesas e barões arruinados, ainda é um dos símbolos da aristocracia britânica. Quando Miss Jane Marple se hospeda no hotel Bertram, sua única intenção é recordar os bons tempos de sua juventude passados lá. O que a simpática velhinha de Saint Mary Mead não pode imaginar é que está para se envolver com uma série de crimes e roubos misteriosos: uma ameaça à reputação do tradicional hotel e à própria vida de Miss Marple.
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A TERCEIRA MOÇA
Third Girl


A jovem Norma Restarick visita o detetive Hercule Poirot para confessar um crime que acredita ter cometido, embora não tenha certeza. Porém, depois de fazer esta estranha declaração, a moça vai embora sem dar maiores explicações e achando Poirot “velho demais”. Instigado em sua curiosidade - e atingido em seu amor-próprio -, o grande detetive resolve fazer uma investigação que o levará por caminhos intrincados e sombrios. Afinal, quem é Norma? Uma doente mental ou apenas uma vítima inocente na teia que alguém teceu para destruí-la? Poirot não descarta qualquer possibilidade e, mais uma vez, consegue desvendar a trama sinistra para encontrar uma surpreendente resposta.
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NOITE SEM FIM
Endless Night


Lugares malditos, casas assombradas, mortos que se levantam das tumbas, amores funestos e pessoas que fazem pacto com o diabo são temas frequentes na literatura inglesa. Agatha Christie segue a tradição com esta história ambientada em uma grande mansão rural, erguida numa região marcada por uma antiga maldição: o Campo do Cigano. Sob o efeito do lugar, Michel Rogers fica fascinado ao conhecer a dominadora Ellie. No ardor da paixão, os dois resolvem erguer ali sua casa, sem dar atenção às advertências de uma cigana que os aconselha a se afastarem para evitar a desgraça. Mas a morte marca sua presença na figura de um assassino que parece sentir prazer em matar, atraído pelo abismo da Noite sem fim.
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UM PRESSENTIMENTO FUNESTO
By the Pricking of My Thumbs


Envolver-se em tramas perigosas é uma especialidade do casal de aventureiros Tommy e Tuppence Beresford. Desta vez, durante uma visita a um asilo de senhoras, Tuppence vê um quadro que retrata uma casa que não lhe parece totalmente estranha. Lá, também conhece uma anciã que lhe fala de um menino morto escondido em uma chaminé. Pouco tempo depois, a velha senhora abandona o asilo sem dar qualquer explicação. Disposta a descobrir o paradeiro dela, Tuppence decide encontrar a casa misteriosa e acaba deparando-se com um assassino perverso.
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NOITE DAS BRUXAS
Hallowe’en Party


A escritora de livros policiais Ariadne Oliver foi convidada para ir a Woodleigh Common, onde uma festa das bruxas (‘Halloween’) tinha sido organizada para alguns adolescentes, dentre os quais estava uma jovem conhecida por fazer revelações sobre assassinatos e intrigas. Mas quando a garota é encontrada morta dentro de uma tina com maçãs cortadas, Ariadne imagina quão grande teria sido a última revelação que a menina teria feito. Agora, qual dos convidados da festa queria mantê-la calada é uma questão para Hercule Poirot. Mas desmascarar este assassino não será nada fácil, ainda mais que ninguém em Woodleigh Common sequer acreditava que a jovem contadora de histórias tivesse sido assassinada.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 267


Cecy Barbosa Campos (Visão Praiana)


Sentada no degrau superior da escada de cimento que levava do calçadão à areia da praia, Marlise contemplava o mar, absorta na alternância das águas, ora azuis, ora verdes, mais claras ou mais escuras, conforme o brilho do sol que se projetava sobre elas.

O movimento contínuo que afastava as ondas, lançando-as no horizonte, era imediatamente seguido pelo retorno, quando elas estendiam seus braços de espuma sobre a areia parecendo querer abraçar os banhistas retardatários que naquele fim de tarde, comemoravam mais um dia de labuta com um refrescante mergulho.

Foi assim que Marlise o viu pela primeira vez; voltava correndo da água, com o corpo molhado e o cabelo, um pouco longo, respingando gotículas quando ele sacudia a cabeça. Ao passar por ela o rapaz notou que, descuidado com os movimentos que fazia, lançara-lhe água e com um sorriso um pouco sem graça, pediu-lhe desculpas por ter-lhe dado um banho involuntário. É claro que a moça aceitou as desculpas e quase agradeceu o acontecido.

Percebendo a receptividade da acolhida, o banhista sentou-se no mesmo degrau, ao lado dela, e entabularam uma animada conversa. Entretanto, após alguns minutos, alegando ter deixado seu terno, sapatos e pasta num bar em frente, o rapaz apressou-se na despedida e atravessou a rua sem pedir o telefone de Marlise nem deixar o seu, para que ela se comunicasse com ele.

Frustrada em sua expectativa, a moça ficou ali mais algum tempo e depois decidiu-se a voltar para o apartamento que dividia com duas amigas.

Lá chegando contou sobre o encontro que tivera com aquele "deus grego". Garantiu que, os breves momentos e as poucas palavras que trocaram tinham sido suficientes para que ela tivesse a certeza de que ele era o homem de sua vida, embora não tivesse indícios de que ela fosse a mulher da vida dele.

As amigas riram e fizeram muitas brincadeiras a respeito da sua timidez. Ela deveria ser mais ousada e, é claro, deveria ter imediatamente pedido o número do celular daquele homem maravilhoso.

A partir daquela tarde, Marlise passou a ir, quase diariamente, no mesmo horário, ao mesmo local da praia, sentando-se no mesmo degrau, fingindo fazer a sua contemplação do pôr do sol. Na verdade, agora ela observava os banhistas e os transeuntes que se aproximavam daquele bar onde ele dissera guardar suas roupas.

Depois de algumas semanas ela já vivia uma obsessão. A lembrança do rapaz, sacudindo seus cabelos molhados a perseguia e ele lhe aparecia até em sonhos. Prejudicava a sua concentração no trabalho e fizera dela uma companhia enfadonha até para as amigas que já estavam cansadas de ouvir falar num indivíduo que nunca aparecia e que elas brincavam ter sido uma visão!

Finalmente um dia, impetuosamente, Marlise tomou uma decisão. Após breves instantes sentada em seu posto de observação, levantou-se e, com passos firmes, dirigiu-se ao bar mencionado. Sentou-se a uma das mesas, pediu um suco e começou a examinar o ambiente. Naquele horário o local ainda estava relativamente vazio e foi fácil verificar que seu amado não estava entre os fregueses. De repente, seus olhos se encontraram com os de um dos garçons que, rapidamente, desviou o olhar. Em um segundo Marlise reconheceu o seu "deus" da praia, embora ele estivesse bem diferente do que lhe parecera anteriormente, com os cabelos para trás, fixados pelo gel.

Ela também fora reconhecida pois o garçom não manteve os seus olhos nos dela, possivelmente constrangido por ter tido a sua mentira descoberta.

Decepcionada, não pela ocupação do rapaz, mas pela intenção dele de aparentar uma situação diferente da realidade, Marlise tomou lentamente o suco enquanto pensava em sua própria imaturidade. Sorrindo para si mesma, sentiu-se parodiando Proust: ter ficado parada no tempo alimentando uma ilusão e sonhando com alguém que, afinal, nem era o seu tipo!

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia, Alba Pires Ferreira, Ilda Maria Costa Brasil (org.). Coletânea Enigmas. Porto Alegre/RS: Alternativa, 2012.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 15 - Educação


Entre os diversos fatores que levam à violência e ao caos social certamente encontra-se a falta da educação. Educação num sentido amplo, não apenas formal, relacionada ao ensino e aprendizagem. A educação que se espera tanto da família quanto da escola inclui o ensino do respeito à pessoa humana. Antes, os valores familiares supriam, de alguma forma, a falta da educação formal. E esta, quando havia, incluía aquele. Os professores eram respeitados e podiam transmitir respeito e dignidade aos seus alunos. Hoje, com o desprestígio do professor, a sociedade vem pagando um preço mais alto.

Onde o ensino é relegado
e as letras não têm valor,
há de pagar ao soldado
quem não paga ao professor.
Antônio de Oliveira - SP

Uma verdade patente,
que não tem contestação:
abrir ESCOLA é semente
que fecha muita prisão.
Milton Nunes Loureiro - RJ

Infelizmente, parece que vai bem longe a escola sonhada pelo trovador:

Naquela escola campestre
onde a meninada vai,
quem tem pai encontra um mestre,
quem não tem, encontra um pai!
Cezário Brandi Filho - MG

Cerca de 13 milhões de brasileiros não sabem ler e escrever. Este número representa 8,7% da população acima de quinze anos. O trovador exprime esta tristeza.
Não há maior desengano
ferindo nosso saber,
do que ouvir um ser humano
revelar: "Eu não sei ler."
Alcy Ribeiro Souto Maior - R]

Mas a educação deve ser um processo contínuo. Jamais saberemos tudo. O saber não tem limite.

Por mais que a gente conquiste
grande acervo de saber,
mais sábio é saber que existe
muito mais para aprender!
Vanda Fagundes Queiroz - PR

Como forma de educar
o mestre é aquele ser
que não cansa de ensinar
nem se cansa de aprender!...
Ademar Macedo - RN

Entretanto, quando a educação procura seguir apenas um currículo formal, generalizante, sem uma reflexão sobre os seus fins, preocupada apenas com o volume de informações técnicas, pode, ela própria, ser uma espécie de violência. Fato que contraria totalmente as proposições do educador Paulo Freire.

Violentar as consciências
a título de educar
é transformar as ciências
em armas para matar.
Petrônio Braz - MG

Instruir sem educar
é formação mutilada.
- Mas esta é a norma escolar
que, entretanto, é adotada.
Petrônio Braz - MG

Mas educar não deve incluir religiosidade, que é uma prática de foro íntimo, sendo o Estado brasileiro laico por força da sua Constituição.

Por respeito ao laicismo
que a liberdade defende,
não se ensina o catecismo
que só na Igreja se aprende.
Petrônio Braz - MG


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.

Contos e Lendas do Brasil (A Casa de Pedra)

Era naqueles velhos tempos coloniais em que paulistas e portugueses — estes apelidados emboabas — uns ao norte e outros ao sul, rasgavam a extensa província de Minas Gerais, à cata do ouro.

Em São João Del-Rei, emboabas e paulistas, cada qual de seu lado e por sua conta, se entregavam a mineração aurífera, sendo capitão-mor, na época, Diogo Mendes que, em companhia da filha e de Fernando, seu sobrinho e secretário, residia no local que é hoje o arraial de Matosinhos.

Entre os paulistas — segundo conta Bernardo Guimarães em seu livro “Maurício ou os Paulistas em São João Del-Rei” — havia um, de nome Gil, rapaz antes trabalhador, mas desprotegido da fortuna, que passou a enriquecer a olhos vistos, depois que foram para sua companhia um bugre, por ele salvo da morte após um sério conflito entre paulistas e aborígenes, chamado Irabuçu, e Judaíba, sua filha.

Propalava-se que Irabuçu sabia de uma fabulosa mina onde, diariamente, apanhava ouro aos punhados, para levar ao seu salvador. Um dos portugueses, pelos patrícios apelidado Minhoto, que votava a Gil ódio tremendo, entendeu de deitar as mãos ao velho índio, auferindo com isto dois proveitos: ficar senhor da mina, onde o selvagem o conduziria sob ameaça de morte, e fazer mal ao inimigo, estancando-lhe a fonte de riqueza.

Sem demora, tratou de por em execução o plano que havia traçado. Aliciou patrícios, que sitiaram o índio, quando uma tarde partia para a mina, mas este desapareceu como por encanto sob uma moita, de onde saiu, numa carreira fantástica, um enorme gato-do-mato, que pos os portugueses em debandada, julgando o índio transformado em animal.

Outras ciladas lhe preparou o Minhoto, mas em vão. Irabuçu, cercado no campo, sem possibilidade de escapar, quando todos o imaginavam seguro, desaparecia misteriosamente. Ninguém mais, então, queria saber de capturá-lo, julgando-o pactuar com o demônio. À vista disso, o Minhoto foi à casa do capitão-mor, a fim de, com a gente deste, destemida e bem municiada, aprisionar Irabuçu, repartindo entre ele, o capitão-mor e o secretário, o ouro recolhido da mina.

Recebeu-o Fernando, o qual, depois de o ouvir com interesse, fez-o ciente de que o ouro da mina seria todo de El-Rei, não cabendo a ele, Minhoto, um grão sequer. E sem reparar no desespero do patrício, que se julgava miseravelmente roubado, deu ordens para que lhe     trouxessem Irabuçu, a fim de que este revelasse o local da mina de onde saía o ouro, sem que a El-Rei fosse ter o devido quinto.

Preso Irabuçu e levado à presença do capitão-mor e sua gente, negou-se ele a fazer qualquer declaração a respeito, muito menos a levá-los à mina. Ameaçaram-no de suplícios horríveis e, por fim, de morte.     Nada o demovia de sua firme decisão.    Foi só ante a ameaça de torturarem sua filha Judaiba que Irabuçu aquiesceu.

Amarrado como uma fera, lá foi ele, o pobre velho, escoltado por seis portugueses, armados até os dentes, em direção ao fabuloso Sésamo.

Depois de penosa caminhada de léguas e léguas, feita com o propósito de despistá-los, porquanto a mina distava da povoação apenas alguns quilômetros, chegaram, por fim, ao cair da noite, em frente a uma grande furna muito alta, cujo interior...
*     *     *

Cedamos, porém, a pena a Bernardo Guimarães que vai, no seu estilo vigoroso, descrevê-la e narrar a trágica aventura dos portugueses e do índio no interior dessa furna conhecida hoje por Casa da Pedra e situada quase nas divisas de São João del-Rei com a histórica cidade de Tiradentes.
*     *     *

Irabuçu acendeu na fogueira o seu archote e foi entrando pela caverna. Os emboabas o acompanhavam de perto, benzendo-se e rezando quanta oração sabiam.
 
Para fora da lapa nada mais se via; a escuridão da noite, que começava a descer, a fumaça da fogueira tudo escondiam. Estavam segregados completamente da luz do céu, e franqueavam os lôbregos umbrais do reino das trevas.

Acompanhemo-los e vamos também admirar, à luz do archote de Irabuçu, as maravilhas dessa imensa e misteriosa gruta,
*     *     *

O pavimento é plano, liso, coberto de areia e de folhiço, como um solo de aluvião; os emboahas penetram com facilidade pela gruta a dentro. Logo à entrada, entre os brancos pilares da arcada imensa, que serve de pórtico aos outros, observa-se um curioso e estupendo fenômeno. Um enorme rochedo está como pendurado da abóbada, à semelhança de lustre colossal, colocado à entrada daquele templo subterrâneo. Mas o monstruoso lustre está envolto em crepe pardacento, suas luzes estão extintas, e é mister brandir o archote em volta dele para admirar-lhes as dimensões titânicas, e ver como se acha preso à cúpula por um ligamento proporcionalmente tão delgado, que faz estremecer. Está ali como a espada de Dâmocles, suspensa por um fio, aquela massa enorme de milhares de quintais, como ameaçando esmagar, pulverizar com sua queda, os imprudentes mortais que ousarem passar-lhe por baixo, para devassarem os mistérios daqueles áditos tenebrosos.

Mas Irabuçu e seus companheiros não estão ali para admirar semelhantes maravilhas; passam por debaixo do imenso candelabro sem prestar-lhe atenção, internam-se mais alguns passos, e acham-se no recinto de um vasto salão, amplo e circular, à maneira da nave de magnífica rotunda. Curvava-se sobre suas cabeças uma abóbada de pasmosa elevação, e de profunda que era, mal seria apercebida ao fraco clarão do archote, se não fora o cintilar das pedras úmidas, polidas e pontiagudas, de que estavam crivados o teto e as paredes da gruta.

À luz daquele archote demasiado escassa para alumiar tão vasto recinto, o interior da lapa, já de si mesmo curioso e surpreendente, tomava um aspecto solene e fantástico, que inspirava, a um tempo, pavor e assombro. Os muros e a abóbada pareciam cobertos de ornatos e esculturas caprichosas, de frisos, relevos, cornijas, colunas, nichos e volutas, em desordenada profusão.    Aqui via-se um altar mutilado; ali cavava-se no muro um trono em ruínas; além ressaltava da parede um magnífico púlpito; mais além um renque de colunas decepadas se estendiam a perder-se na escuridão. E tudo isso se revestia de brilhantes e variadas cores reverberando à luz do facho com reflexos de ouro e rubi, de esmeralda e safira, de topázio e ametista.

Era uma gruta de estalactites, curioso brinco, em que a natureza parece comprazer-se dando as mais singulares e caprichosas figuras a essas rochas formadas no côncavo das cavernas pela congelação de gotas de água infiltrada durante séculos através das fendas dos rochedos.

Além de tudo isso, uma multidão de cordas de grossura enorme descendo perpendicularmente da abóbada, em uma altura talvez de mais de vinte braças, vinham embeber-se no chão. Dir-se-iam cordões, que suspendiam imensas cortinas destinadas a velar os mistérios daquele estupendo e maravilhoso santuário. Eram raízes de árvores seculares, que, cravando-se pelas fendas da abóbada e achando em baixo o espaço vazio, alongavam-se até o solo, onde vinham beber a seiva, para alimentar a robusta e vicejante selva, que cobrindo o corixéu da gruta, balanceava lá em cima — a mais de cinquenta braças de altura — a coma verde-negra às auras livres do céu.

Em tudo se parecia aquele antro com o interior de um templo ciclópico, por onde roçara a asa estragadora dos séculos, ou passara a mão vandálica do bárbaro, destroçando e mutilando tudo.

A luz avermelhada do archote batendo nas miríades de pontas de estalactites, que incrustavam toda a abóbada, reverberando em chispas cintilantes, produzia o mais deslumbrante efeito.
*     *     *

Os portugueses não puderam conter um grito de surpresa e assombro, e estacaram por instantes, diante de tamanha maravilha.

— Que isto, Santo Deus!... — exclamavam uns. Tudo isso é ouro e pedraria!... é aqui!... estamos enfim na mina...

Outros, porém pensavam estar em um palácio de fadas, e acreditando que o bugre não era mais do que um formidável encantador, começaram a temer por sua sorte, receando ali ficarem encantados por todo o sempre.

Para se moverem, foi mister que Irabuçu os acordasse daquela estupefação. Já dois fachos se tinham consumido, e não havia um minuto a perder.
*     *     *

O índio avançou, contornando o vasto salão, como procurando entrada a outros aposentos. Viam-se, com efeito, em torno, aqui e acolá, grande número de fendas e arcadas de várias dimensões, e corredores que se perdiam na escuridão, e pareciam dar entrada a novos e vastíssimos compartimentos.    O bugre penetrou pelo mais espaçoso desses corredores seguido de perto pelos portugueses. Via-se de um lado, suspenso na muralha, um púlpito quase perfeito, de linda e grandiosa estrutura. Os emboabas cuidaram ver dentro dele um monge de joelhos e debruçado, com a fronte envolta em seu capuz. Já se ajoelhavam e persignavam, quando subitamente troou-lhes aos ouvidos uma voz horrível, antes um pavoroso mugido.

— Tapaçununga! — bradara Irabuçu com toda a força de seus pulmões. Os ecos das profundas cavidades reproduziram por largo tempo o grito estranho, em surdos e temerosos rugidos.

Imediatamente dois sanhudos e truculentos canguçus, rompendo das grutas interiores, passaram velozes como o raio por entre os portugueses, e desapareceram de novo na escuridão.

De susto ou abalroados, quase todos caíram por terra, e trêmulos, cobertos de suor gélido, não pensaram senão em encomendar a alma a Deus,

— Não tenham medo, meus brancos — disse Irabuçu, com um sorriso calmo e satânico; estes bichos moram aqui; são uns gatinhos que vigiam o ouro de Tupã; foi para tocá-los para fora que Irabuçu gritou.
 
Estas palavras, proferidas em tom de diabólica ironia, não eram muito próprias para tranquilizar os emboabas.

— Se temos de morrer sem falta — murmurou um, com voz desfalecida — é melhor morrermos aqui mesmo; daqui não dou nem mais um passo para diante.

— Se temos de morrer — replicou outro, um pouco mais animado — tanto faz morrer aqui como acolá; vamos companheiros!... Pelo que vejo, já estamos no inferno em corpo e alma, e tão inferno é aqui, como lá adiante.

O terror, tendo tocado ao seu cúmulo, converteu-se em coragem, como costuma acontecer, nessa coragem dos que se julgam irremissivelmente perdidos, e que se chama coragem do desespero.

Guiados pelo índio, os emboabas avançaram resolutamente através de um dédalo de furnas, corredores, escaninhos irregulares, em que se achava dividida gruta, à maneira de alvéolos de uma colmeia gigantesca. Esses diversos compartimentos eram separados entre si por grossas massas de estalactites, que pendendo do teto vinham quase tocar ao chão, como feixes de colunas carcomidas pela base, ou como os canudos de um órgão emborcado, e também por grandes camadas de estalagmites, que se erguiam do solo como restos de pilastras derruídas, ou de muros arruinados.

Já o terceiro facho estava prestes a extinguir-se, ainda eles não haviam chegado ao tão suspirado alvo de tamanhas fadigas e perigos.

— Ainda estará muito longe essa maldita mina? Bugre endiabrado!... — bradou um dos emboabas. — Olha, não vá nos faltar o lume!… Se ficarmos às escuras não sei como daqui nos havemos de safar...

— Ficaremos sepultados em vida debaixo destas catacumbas — acrescentou outro, — Voltemos, meus caros; isto não vai bem…

— É ali!... é ali!... — exclamou Irabuçu, apontando para uma solapa estreita, que se divisava a alguns passos de distância, na base de um enorme congesto de estalagmites, e pela qual mal poderia entrar um homem agachado.

— AIi... naquele buraco! Deus me defenda de lá entrar!... Ali só lagarto ou cobra...

Apenas um dos emboabas acabava de proferir estas palavras, desprega-se da abóbada e cai no meio deles uma jiboia enorme, de mais de braça de comprimento e grossa como a perna de um homem, fazendo um ruído surdo como corda que despenca do alto de um mastaréu, e, desdobrando-se rapidamente, correu a esconder-se nas trevas, entre as anfractuosidades dos rochedos, O medonho réptil, acordara sobressaltado pelo eco daquelas vozes estranhas e, deslumbrado pela luz, querendo fugir, se precipitara de uma alta cornija, onde estava a dormir tranquilamente. Os portugueses murmuravam a tremer a oração de São Bento, advogado contra animais venenosos, e perderam de novo o ânimo de avançar.

— Meu Deus! Meu Deus!... Que será de nós... — exclamavam; quase a chorar de medo. Se essa mina está na profundeza dos infernos, guardada por onças e serpentes, escusado é procurarmos lá ir. Voltemos, meus amigos!... Isto não está nada bem! Voltemos quanto antes! Irabuçu, meu velho, por piedade, tira-nos daqui para fora; deixemos isto para amanhã... Livra-nos deste inferno!

— Essa cobra não tem veneno — respondeu tranquilamente Irabuçu — aqui há muitas; é bom dar um tiro; elas fogem espantadas e não incomodam mais a gente,

— Pois vá! — disse um deles; e, sem refletir, trêmulo de impaciência, de frenesi e de terror, com mão convulsa engatilhou a escopeta e disparou o tiro.

O eco refrangido de gruta em gruta reboou como uma descarga atroadora; o ar agitou-se convulsionado; a chama do facho oscilou violentamente,    e as sombras, que ali estavam, dançaram pelas paredes como um grupo de duendes. Uma nuvem de morcegos e corujas subindo de todos os cantos revoavam em turbilhões, açoitando com as asas as faces daqueles hóspedes imprudentes, e acabaram por apagar completamente o facho, que ardia na mão de Irabuçu...

Acharam-se todos subitamente mergulhados na mais completa e profunda escuridão!...

Os ecos do tiro, prolongando-se ainda largo tempo em lúgubres mugidos pelas abóbadas soturnas, pareciam estar entoando um fúnebre "de profundis" sobre aqueles infelizes ainda vivos e já envoltos na escuridão dos túmulos.

— Acode-nos, Irabuçu... Só tu nos podes salvar!... Vem dar-nos a mão!...    Por piedade, vem livrar-nos deste inferno!...

Estas e outras exclamações faziam os míseros emboabas com voz tão suplicante e lastimosa, que cortaria o coração de outro qualquer que não fosse Irabuçu.

— Irabuçu aqui vai!... Acompanhem!… — respondeu uma voz sepulcral, que parecia romper das entranhas da terra.


— Irabuçu! Irabuçu! — bradavam ainda os míseros estorcendo-se nas ânsias do desespero.

Mas só lhes respondiam os ecos das cavernas subterrâneas remurmurando uns sons confusos e medonhos.

*     *     *

E dizem que, mais tarde um sábio dinamarquês procedia a estudos mineralógicos no interior da Casa da Pedra, quando foi dar, numa sala estreita profundamente escura, que a luz de um archote mal iluminava, com as ossadas muito brancas dos sete desgraçados, sobre as quais enormes serpentes deslizavam de manso...

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 266


Silmar Böhrer (Croniquinha) 1



Nos momentos de intimidade as minhas andanças são pelos caminhos do Ser. A gente sabe que as nossas veredas interiores são ricas, trilhamos tantas ideias, ideais, idealizações. Por isso o recolhimento pode ser mal que  vem para o bem. Nossos Eus são convivas que, tantas vezes, seguem com as suas idiossincrasias, dialogando, rindo, indagando, chorando, acostumados a esta vida de altos e baixos.

VIDA, VIVÊNCIAS, VIVERES.

VIVAMOS !

Fonte:
Crônica enviada pelo autor.

Arthur de Azevedo (O Sonho do Conselheiro)


O conselheiro Lapa era o chefe de família mais austero que naquele tempo havia no Rio de Janeiro. Funcionário de elevada categoria, nunca ninguém o viu por essas ruas senão de sobrecasaca preta e chapéu alto. Creio que foi por isso, e pelos óculos, uns óculos de aro de ouro, terrivelmente solenes, que o imperador lhe deu a carta de conselho, pois ninguém lhe conhecia outros méritos.

O conselheiro Lapa era casado e tinha uma filha, que passara dos vinte anos sem que nenhum rapaz a namorasse, não porque fosse feia ou antipática, vaidosa ou mal educada, mas porque ninguém se atrevia a levantar os olhos para a filha de um conselheiro tão grave e tão conspícuo.

Entretanto, um simples escriturário do Tesouro teve um dia a ventura de fazer falar o coração da moça.

Animado pelas intenções mais puras, e competentemente autorizado pela sua bela, o escriturário um dia fez provisão de coragem, subiu a escada do conselheiro, pediu para falar a sua excelência, e quando se viu diante daqueles óculos, sabe Deus como formulou, ou antes, balbuciou um pedido de casamento.

O conselheiro não se dignou responder; limitou-se a medir o insolente de alto a baixo, e a apontar-lhe a porta, dizendo-lhe secamente: - Não admito esses gracejos em minha casa! Rua!. .
    * * *

Este procedimento afligiu bastante os dois namorados, e fez naturalmente com que eles se apaixonassem deveras um pelo outro.

A menina teve tal desgosto, e deixou de alimentar-se durante tantos dias consecutivos que adoeceu gravemente.

A esposa do conselheiro, boa senhora, mas muito fraca, muito achacada de asma, esgotou diante do implacável marido todos os argumentos que acudiram ao seu coração de mãe; mas a melhor e mais eloquente advogada de Rosalina e Alberto, que assim se chamavam os namorados, foi a Teresa, uma bonita mulata que, em pequena, aos doze anos, tinha sido contratada para ama-seca de Rosalina, e ali se fizera mulher, sem ter querido nunca abandonar a casa, recusando até o casamento que lhe oferecera um português apatacado, dono da casa de pasto da esquina.

A Teresa tinha trinta e três anos, mas ninguém lhe daria mais de vinte e cinco.
* * *

Apesar de toda a sua austeridade, o nosso conselheiro há quinze anos que não perdia ocasião de fazer declarações de amor à agregada, e não perdia a esperança de que ela um dia cedesse.

A mulata resistia a todas as investidas libidinosas do amo; dizia-lhe que tomasse juízo, que respeitasse o seu lar doméstico, que a senhora e a menina podiam reparar, etc., e, naturalmente, o conselheiro andava em tudo isso com tanta manha e hipocrisia que ninguém suspeitava daquele trabalhinho de quinze anos.
* * *

A Teresa, que estimava deveras a Rosalina, lembrou-se (de que não se lembram as mulheres!) de utilizar em beneficio da menina os maus sentimentos do pai, e, um dia, fingindo-se cansada de tanta perseguição, concedeu ao conselheiro a entrevista que há tanto tempo solicitava.

Na madrugada seguinte, o austero pai de família, de robe de chambre e chinelos, mas sem óculos, entrou devagarinho no quarto da mulata, e esta, mal que o apanhou lá dentro, começou a gritar com todas as forças dos seus pulmões:

    - Sinhazinha! Sinhazinha! Parabéns! Parabéns!...

A velha, apesar de sua asma, e Rosalina saltaram imediatamente das camas, envolveram-se nas colchas, e foram ter, assustadas, ao quarto da Teresa, onde encontraram o conselheiro sem pinga de sangue.

- Parabéns, sinhazinha! - continuou a gritar a boa mulata. - O patrão teve um sonho tão esquisito, e ficou tão impressionado, que resolveu consentir no seu casamento com o Sr. Alberto! Ele veio acordar-me para eu levar a notícia à sinhazinha.

O conselheiro não teve o que dizer.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Aparecido Raimundo de Souza (Por Todas Essas Criaturas de um Dia)


SENHORAS E SENHORES, O NOSSO tema de hoje é sobre uma coisinha simples e insignificante, mas que, infelizmente, falta na maioria das pessoas (notadamente no coração), apesar delas se mostrarem conscientes quanto a sua real e verdadeira aplicação na praticidade do dia a dia.

Aproveitando estes ásperos momentos, em que o mundo inteiro se debruça, estarrecido, sobre as garras fulminantes de um vírus letal, e, até agora incontrolável, o coronavírus, ou Covid-19, nada melhor  que aproveitarmos a ocasião tão propícia para discorrermos sobre a  ‘SOLIDARIEDADE’ e a ‘CARIDADE’.

A primeira foi, há tempos passados, contemplada pelo brilhante pensamento de Thomas Fuller, escritor inglês  que viveu de 1608 a 1661. Ele asseverava que “a solidariedade deveria começar em casa e deixou isso bastante sedimentado em seu livro ‘Monsieur Ambivalence: A Post Literate Fable’ - mas que não deveria terminar lá”’.

Falando na mesma linguagem de Fuller, o francês Jean Baptiste Massilon aumentou  a sua  extensão, acrescentando que  “a porta entre nós e o céu não poderia ser aberta enquanto estivesse fechada a que fica entre nós e o próximo”. Entendam, amados, que as pessoas confundem, talvez por burrice, ou falta de conhecimento (o que dá no mesmo), SOLIDARIEDADE com CARIDADE.

Devemos observar, que ambas caminham juntas, lado a lado, de mãos dadas. Todavia, existe uma distância abissal entre elas. Além de patentearem posições diferentes, embora interligadas entre si, vejam que loucura, não obstante estarem unidas como se fossem irmãs siamesas, diferem, dando a entender, uma outra conotação semântica completamente oposta.

Neste diapasão, solidariedade é quando entre nós e eles, não existe, ou seja, quando há apenas o nós. Vejamos, agora, por segundo, a Caridade. Esta, por seu turno, como bem lecionava o humorista  Jaume Perich, era e continua sendo, até hoje, “a única virtude que, para se fazer  genuína e inquestionável, precisará que prevaleça sempre, aconteça o que acontecer, a  injustiça”.

Uma pequena parcela da sociedade, leva, à efeito, a solidariedade (ou o que ela acha ser solidariedade). Contudo, não a enuncia de modo sério, como deveria. Neste rodar dos trezentos e sessenta graus do carrossel, onde os cavalos continuam sendo os mesmos, ofertar esmolas dentro dos coletivos, ou comprar qualquer bugiganga de um vendedor que entra pela porta do meio, não deixará de ser um ato de solidariedade.

Esta postura se tornará vaga e divorciada de qualquer respingo do bom e mavioso  sentimento da reciprocidade plena. Como assim? Vamos tentar explicar. As pessoas, às vezes, se prestam a propiciarem “agrados” por meros descargos de consciências, levadas, pelos escrúpulos de acharem que, podendo ajudar, não deixariam passar batidos pequenos gestos humanitários.

Solidariedade, sabemos de cor e salteado, vai um pouco adiante. Se faz  pujante na animação e na simpatia interior, deixando fluir, um sorriso franco no rosto. E também engendramos entender que não há prazer em possuir algo e não compartilharmos com quem necessita. Caridade é “um exercício espiritual diário”. 

No pensar de Chico Xavier, que completou a sua teoria observando, com seu eterno sorriso brando, e a voz quase apagada: “quem pratica o bem, coloca em movimento as forças da alma. Quando os espíritos nos recomendam, com insistência, o declínio da caridade,  eles estão nos orientando no sentido de nossa própria evolução; não se trata apenas de uma indicação ética, mas de profundo significado filosófico”.

Dias atrás, recebemos em nosso whatsApp, a mensagem de uma participante de um grupo de amizades de repórteres e jornalistas, do qual fazemos parte, dando conta de que uma senhora de sessenta e seis anos, acometida pelos sintomas do Covi-19, precisou ser internada às pressas. Do trabalho, a senhorinha  seguiu direto para o isolamento.

Mãe de várias filhas, todas casadas, nenhuma delas (depois do caso ter vindo à tona), apareceu na empresa que ela trabalhava, para saber para onde a matriarca se internara, e a quantas andavam o seu quadro clínico. Os patrões,  mesmo caminho, sequer deram um telefonema para tomarem conhecimento do estado de sua funcionária; se as filhas e maridos precisavam de alguma coisa; tipo algum dinheiro; uma ajuda básica para enfrentarem os percalços vindouros...

Pasmem, senhoras e senhores. Uma palavra de carinho e conforto, ao menos isso, não veio à tona. A esse quadro poderíamos dar o nome, por parte dos patrões, de profunda falta de solidariedade, e, pelos familiares, maridos, sogras e vizinhos, de completo estado de abandono, ou pior: da falta de caridade.

Afinal de contas, sessenta e seis anos... Estranha ao nosso convívio, procuramos saber de seu paradeiro, levando um pouco de conforto às filhas, as crianças (netos da senhora), e a própria doente, ainda agora em quarentena. Com esta pequena iniciativa, a solidariedade e a caridade se fizeram benéficas e agregadas, num objetivo ímpar e sem pretensões de benesses futuras.

Não nos fizemos ausentes, nem viramos nossos olhos para uma responsabilidade que poderia ter sido menor, não fosse o desrespeito, ou a falta de solidariedade, que as criaturas não cultuam, por seus co-irmãos, ainda que em suas veias não corra o mesmo insumo que nos mantém vivos.

Nós, senhoras e senhores, não devemos ter prazer em possuir algo que não possamos compartilhar com nossos semelhantes. Se faz mister termos em mente as sábias palavras do sacerdote Salvadorenho Óscar Romero (quarto arcebispo metropolitano de San Salvador, capital de El Salvador, já falecido). “Nós, que temos voz devemos falar pelos que não têm”.

Solidariedade, pois, acima de qualquer coisa. Caridade sempre. Fazermos o bem sem olharmos à quem. Essa é a pequena e minúscula partícula da solidariedade e, de roldão, igualmente, da caridade, interligadas no mesmo amplexo. Em outras palavras, este deve ser o nosso ponto de partida positivista, nosso lema: quanto mais compartilharmos a solidariedade, mais teremos, ao nosso alcance, a caridade. E vice-versa. Afinal de contas, nenhum de nós, por mais dinheiro e posição que tenhamos,  nunca seremos uma ilha.

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