quinta-feira, 18 de junho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Baile a Caráter)


O Valadares foi convidado pelos amigos da faculdade, para ir a um baile a fantasias que seria realizado naquele final de semana, numa pequena cidade perto de onde morava. Da sua casa, até o evento, precisaria pegar a rodovia e andar uns duzentos quilômetros. Assim pensando, achou por bem usar uma fantasia diferente, algo que, a seu modo de pensar, abafaria os colegas, fazendo com que todos olhassem para ele com um misto de admiração e espanto, notadamente as garotas. Na sexta-feira, foi ao shopping e alugou, numa loja especializada, algo sensacional. Uma fantasia do demônio. No dia aprazado, se vestiu, ou melhor, se fantasiou de diabo, com rabo, chifre, tridente, capa preta e tudo o que  tinha direito o senhor das profundezas. Totalmente transformado, pegou seu carro por volta das dezoito horas e se pôs a caminho.

Como não conhecia bem o pequeno patrimônio onde a sua turma realizava o folguedo, e depois de rodar uns oitenta quilômetros, chegou a um cruzamento onde, além da BR principal, duas outras estradas  secundárias se abriam para diferentes direções.  Sem placas de indicação, assinalando onde se achava, ou por qual trilho se embrenhar, resolveu pegar a via de terra à direita. Menos de meio quilômetro, avistou, algumas luzes, certamente de residências.  À medida que se aproximava, frenteou com uma torre de antena de  transmissão de telefonia. Sorriu, faceiro. De repente, estava indo para o lugar certo, ou até já houvesse chegado. Deu de cara com uma comunidade pequena, onde se contava uma dúzia de casas ladeadas por uma única avenida principal toda paralelepipedeada. Parou o carro e resolveu pedir informações.

Aconteceu que, naquela hora, quase oito e pouco da noite, todos os  habitantes assistiam a missa de domingo, com exceção de alguns gatos pingados,  a maioria moradores sem teto que dormiam na pracinha e no coreto em frente a uma pequena paróquia. Valadares abordou uns três ou quatro casaiszinhos de namorados, entretanto, nenhum (talvez levados pela sua aparência macabra) soube, ou se prestou a indicar o vilarejo que buscava. Não lhe restou alternativa, se vendo obrigado a ingressar na igreja. De longe, enquanto caminhava para ela, percebeu que a peça religiosa estava superlotada. De fato, não se enganara. Nos sábados e domingos, o vigário costumava sair da rotina, se estendendo um pouco além, no sermão, visando, claro, o desfecho da liturgia, quando os coroinhas passariam as sacolas para a recolha das ofertas, que se tornavam gordas em face de um número de fiéis que se deslocavam de localidades às mais diversas, e também dos sítios e fazendas que abundavam àquelas redondezas.

Entretanto, o inesperado tomou forma gigantesca. Quando Valadares adentrou pela porta principal, com suas botas rangendo de modo esquisito, os presentes, ao olharem para trás, deram com a visão asselvajada da besta dos quintos em carne e osso. Literalmente o pacato culto religioso se transformou num “reboliço dos infernos”. Como num abrir e fechar de olhos, caiu sobre a paz acolhedora daquelas pessoas humildes, uma espécie de premonição, como se Deus tivesse anunciado o fim do mundo num Apocalipse  abrupto.

Por conta desse imprevisto, uma parte da igreja saiu correndo pelas laterais, outra fração quebrou os vidros e pulou pelas janelas. Uma terceira corrente de amedrontados se debandou para a sacristia, fugindo pelos fundos. Mesmo norte, as beatas e os acólitos, não esperaram para ver o que viria pela frente. Igualmente tomadas pôr idêntico pânico, e no mais completo desespero, derrubaram, no furdunço, uma imagem de São Jorge com seu cavalo e tudo o que estava sendo restaurado dentro da sacristia. A barafunda se fez tão forte e pesada, tão densa e sem noção, que o dragão que se via fustigado pela lança do santo guerreiro, tratou de dar no pé, voltando, às pressas, para os confins da Capadócia.  

Loucura total. Em questão de segundos, meio do pandemônio, restou o padre rezando e tremendo pior que caniço ao sabor da ventania, metido dentro da casinha do confessionário. “O diabo”, sem entender bulhufas, se aproximou do aterrorizado sacerdote.  O sujeito, coitado, sem saída, se urinando todo e, aos prantos, as mãos em atitude de prece  e, claro, não vendo escapatória para a sua desdita, olhou para o “capiroto”  e implorou:

- Não me leve não, seu Capeta! Pelo amor do Pai Eterno... Tenha piedade desta pobre e humilde alma. Todo mundo aqui, o senhor pode perguntar... Todo mundo aqui está de prova que eu sou o único que defende o senhor.          

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 295


Antonio Roberto de Paula (Mary Ingá)



Minha cidade ficou chique. Está falando inglês, espanhol, italiano e alemão. Meu povo está nas colunas sociais, bate pernas para o exterior, dirige carros importados e toma banhos de mar e de lojas. Minha cidade está se achando. Meu povo sabe receber como ninguém, tem etiqueta, abre as portas das mansões nos domínios da zona sul para a leva de emergentes.

Minha cidade tem pose e posse. Minha cidade está podendo. A moda de São Paulo, Nova York e Paris já desfila por aqui. Ternos italianos, sapatos de cromo alemão, cuecas francesas, camisetas e tênis de marca. Vestidos das passarelas também esvoaçam por aqui. Meu povo tem poder, influência e dinheiro.

Meu povo faz lipo, peeling e aplicações de botox. Está magro, bonito e esticado. Meu povo está sarado e elegante. Meu povo é fino, tem classe, anda ereto. Tem cartão de crédito para comprar e .se tratar. Minha cidade é quase Dallas, como a colunável dizia depois de surtos américo-megalomaníacos.

E como o meu povo está comendo bem! O povo da minha cidade come diversificado e sofisticado. Aqui ou em qualquer outra capital. Rapidinho. É só entrar no avião. Vupt e meu povo já chegou em outro céu forrado de arranha-céus para comer, beber, dormir, festejar. Como meu povo circula com desenvoltura!

Como é progressista o meu povo! Minha cidade agora está no circuito dos grandes eventos artísticos e culturais. Minha cidade tem casas de espetáculos para o meu povo se divertir, adquirir conhecimento, ficar intelectualizado. Já não existe distância entre o meu povo e o resto do mundo. Minha cidade é antenadíssima com o planeta. Minha cidade, que já não é tão minha, que já foi tão nossa, entrou no ritmo da globalização.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

Fernando Sabino (O Dia da Caça)

 
A caçada estava marcada para as 7 horas. Desde as 6, porém, Paulo e eu já estávamos  de  pé, aguardando a chegada de seu Chico Caçador.

- Seu Chico vai trazer as espingardas?

- Vai. E cachorro também.

- Cachorro? Para que cachorro?

Olhei com pena meu companheiro de aventura:

- Onde você já viu caçada sem cachorro, rapaz?

-  Ele disse que hoje vai ser só passarinho.

- Passarinho para ele é codorna, macuco, essas coisas...

Em pouco chegava seu Chico, todo animado:

-  Tudo  pronto, meninos?

De pronto só tínhamos o corpo. Seu Chico trazia atravessadas às costas duas espingardas  de caça e usava um gibão de couro, uma cartucheira, vinha todo fantasiado de caçador. Ao seu redor  saracoteava um cachorro: - O melhor perdigueiro destas redondezas.

Na varanda da fazenda, seu Chico se pôs a encher os cartuchos, meticulosamente, usando para isso uns aparelhinhos que trouxera, um saquinho de pólvora, outro de chumbo:

- Vai haver codorna no almoço para a família toda - dizia, entusiasmado.

Despedimo-nos comovidos da família e partimos através do  pasto.

Seu Chico, compenetrado, ia dando instruções, procurando impressionar:

- Parou, esticou o corpo, endureceu o rabo? Tá amarrado. É só esperar o bichinho voar e tacar fogo!

- Seu Chico, nós não vamos passar perto daquele touro, vamos?

- Aquele touro é uma vaca.

A vaca levantou a cabeça e ficou a olhar-nos, na expectativa.

- Por via das dúvidas, me dá aí essa espingarda.

Fomos passando com jeito perto da vaca.

- Bom-dia, disse  eu.

- Buu - respondeu ela.

Ao sopé do morro o cachorro se imobilizou.

- É agora! Me dá aqui a espingarda!

- Fiquem quietos – comandou seu Chico, num sussurro.

- Que foi, seu Chico? Não estou vendo nada...

        Alguma coisa deslizou como um rato por entre o capim rasteiro, levantou voo espadanando as asas.

- Fogo! Fogo!

Paulo atirou na codorna, eu atirei em seu Chico.

- Cuidado!

- Que bicho é esse?

Seu Chico suspirou, resignado:

- Era uma codorna. Não tem importância... Olha, quando atirar outra vez, vira o cano pro ar. O chumbo passou tinindo no meu ouvido.

No ar ficaram apenas duas fumacinhas. Fomos andando, seu Chico carregou  novamente  nossas  espingardas. Assim que o cachorro se imobilizava, ficávamos quietos, farejando ao redor, canos para o ar.

- Vira isso pra lá!

- Agora! Fogo!

Mal tínhamos tempo de ver uma coisa escura desaparecer no céu, como um disco voador.

- Assim também não vai, seu Chico. Não dá tempo...

- Me dá aqui essa espingarda. Deixa eu matar a primeira para mostrar como é que é.

Andamos o dia todo pelo pasto. Nada de caça.

- Nem ao menos uma codorninha – suspirava seu Chico, quando o sol começou a dobrar o céu.

- Tem dia que eu mato mais de quinze macucos.

Andando, subindo morro, saltando cerca, atravessando valas, pisando em barro, escorregando no capim. O estômago começou a doer.

- Seu Chico, o melhor é a gente desistir. Estamos com fome.

- Hoje no jantar vocês comem perdiz. Ou eu desisto de ser caçador.

Sua honra estava em jogo. A tarde avançava e seu Chico perscrutando o pasto, açulando o cachorro. Paulo, sentado  num  toco  – desistira de andar: tirara o sapato e coçava o dedão  do  pé. Resolvi também fazer uma parada para caçar  carrapatos.  Seu  Chico  desapareceu numa dobra do terreno. De repente, pum! pum! era o caçador solitário. Teria acertado desta vez? A vaca de novo. Vinha vindo pachorrentamente pela picada aberta por ela própria.

- Cuidado, Paulo! Preveni. - Olha a vaca.

Paulo se voltou para a vaca, que já ia passando ao largo:

- Buuu! fez com desprezo.

A vaca se deteve, voltou-se nos flancos e de súbito disparou num pesado galope em sua direção. Paulo deu um salto, abriu a correr, passou por mim como um raio:

- Foge! Foge!

Atrás de nós a terra estremecia e a vaca bufava, escavando o chão com as patas.

- Seu Chico! Socorro!

Em poucos minutos e aos saltos, escorregadelas, trambolhões, cruzamos o terreno que leváramos toda a manhã a conquistar. Já na porteira da fazenda, nos voltamos para ver a vaca, que ficara para trás, entretida com uma touceira de capim.

- Devo ter falado algum palavrão em língua de vaca.

Em pouco regressava seu Chico, cabisbaixo, desmoralizado, quase chorando:

- Errei até em anu.

Procuramos consolá-lo:

- Um dia é da caça e outro do caçador, seu Chico.

Deixou conosco as espingardas e foi-se pelo pasto mesmo, evitando a fazenda e o opróbrio aos olhos dos moradores. Paulo e eu  nos coçávamos, sentados no travão da cerca, quando ambos demos um grito:

- Epa! Que é aquilo?

- Você viu?

Uma caça, uma caça enorme! Um gigantesco galináceo que ao longe ganhava o morro em disparada, sumindo ali, surgindo lá uma cegonha?

- Cegonha nada! Uma avestruz!

Saímos como loucos em perseguição da avestruz. Nas fraldas do morro disparamos o primeiro tiro.

- Socorro! berrou a avestruz.

Deu um salto e abriu fuga com suas pernocas longas, morro acima. Ah, se seu Chico nos visse agora!

- Pum!

- Socorro!

E a ave pernalta fugia espavorida, escondendo-se na vegetação. Íamos no seu encalço, implacáveis.

Pum! - trovejava a espingarda.

- Não! Não! - implorava a avestruz na sua fuga, largando penas pelo caminho.

A noite veio surpreender-nos do outro lado do morro, já às portas  da  cidade. Voltamos  para a fazenda estropiados, roupas rasgadas, sapatos pesados de barro. Fomos recebidos  com alegre expectativa:

- E então? Caçaram alguma coisa?

— Com seu Chico, nem um passarinho. Mas depois que ele foi embora quase  apanhamos uma caça esplêndida, uma avestruz  deste tamanho...

O dono da fazenda pôs as mãos na cabeça:

- Minha siriema, que eu mandei vir da Argentina!

Imagine o susto da coitadinha!

Embarafustamo-nos pela cozinha, completamente derrotados.

- Que vamos ter hoje no jantar? perguntei à cozinheira.

- Galinha ao molho pardo.

- Já matou?

- Não.

Empunhei a espingarda com decisão e voltei-me para o galinheiro, mas Paulo cortou-me os passos:

- Não faça isso! O crime não compensa.

E propôs que na manhã seguinte saíssemos para caçar borboletas.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 294


Alaíde Lisboa (O Espelho, a Bota e a Rosa)


Era uma vez um rei que tinha uma filha muito bonita. Muitos príncipes queriam casar-se com aquela princesa tão bonita. Dentre os príncipes, três eram belos, bons e ricos.

O rei não sabia como escolher o melhor dos três para se casar com a filha. Resolveu, então propor aos príncipes que lhe trouxessem três presentes; e o príncipe que conseguisse trazer o presente de mais valor receberia a linda princesa em casamento.

Os três príncipes aceitaram a proposta do rei e partiram.

Na primeira encruzilhada, antes de tomarem rumo, combinaram que na mesma encruzilhada se encontrariam na volta de três meses depois.

O príncipe mais velho dirigiu-se a uma antiga cidade e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar um espelho mágico? Quem quer comprar um espelho mágico? Quem quer comprar um espelho mágico?

O príncipe aproximou-se do menino e perguntou:

—Qual o poder do espelho mágico?

O menino respondeu:

—O espelho mágico tem o poder de refletir tudo que se passa em qualquer parte do mundo.

O príncipe comprou o espelho e pensou:

— Com esse presente eu me casarei com a linda princesa.

O segundo príncipe dirigiu-se a outra antiga cidade e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar uma bota mágica? Quem quer comprar uma bota mágica? Quem quer comprar uma bota mágica?

O segundo príncipe aproximou-se do menino e perguntou:

— Qual é o poder da bota mágica?

O menino respondeu:

— A bota mágica tem o poder de levar a pessoa ao lugar que quiser na hora em que quiser.

O segundo príncipe comprou a bota e pensou:

— Com esse presente eu me casarei com a linda princesa.

O príncipe mais novo dirigiu-se a outra cidade, antiga também, e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar uma rosa mágica? Quem quer comprar uma rosa mágica? Quem quer comprar uma rosa mágica?

O príncipe mais novo aproximou-se do menino e perguntou:

— Qual é o poder da rosa mágica?

O menino respondeu:

— Essa rosa tem o poder de dar vida a quem estiver morrendo.

O príncipe mais novo comprou a rosa mágica e pensou:

— Com essa rosa mágica eu me casarei com a linda princesa.

No dia marcado, os três príncipes se encontraram na encruzilhada.

O príncipe mais velho mostrou aos outros o espelho mágico, e, como desejassem todos ver a princesa distante, o espelho refletiu, na mesma hora, no quarto do palácio, a princesa deitada, como se estivesse para morrer.

O segundo príncipe mostrou a bota que fazia viagens longas rapidamente e convidou os outros a irem com ele para o palácio. Num instante os três príncipes chegaram ao palácio do rei e rodearam a cama da linda princesa quase morta.

O príncipe mais novo aproximou do rosto da princesa a rosa mágica. Ao sentir o perfume, a princesa abriu os olhos, sentou-se e sorriu como se nunca estivesse perto da morte.

Tornou-se difícil escolher o príncipe que deveria casar-se com a princesa. Sem o espelho, sem a bota e sem a rosa, a linda princesa não viveria.

O pai deixou, então, que a filha mesma escolhesse de acordo com o seu coração. E ela escolheu o príncipe mais novo, o príncipe da rosa.

Mas havia também no palácio mais duas lindas princesinhas, sobrinhas do rei. A mais velha casou-se com o príncipe mais velho. A segunda casou-se com o segundo príncipe.

E foi linda a festa dos três casamentos.

Fonte:
Alaíde Lisboa de Oliveira. Histórias que ouvi contar. SP: Editora Peirópolis. Enviado por Leandro Bertoldo disponível em Árvore das Letras

Alaíde Lisboa (1904 – 2006)

Alaíde Lisboa de Oliveira nasce em Lambari, Minas Gerais, em 22 de abril de 1904, filha do farmacêutico João de Almeida Lisboa, político atuante e de Maria Rita Vilhena Lisboa.
Teve 13 irmãos.

Na década de 10, conclui os estudos básicos em Lambari, para continuar sua formação em Campanha (MG). Retorna a Lambari, onde leciona no curso primário.

Em 1924, com a eleição de seu pai a deputado federal, a família muda-se para o Rio de Janeiro, onde realiza estudos da reforma do ensino que lá se processava, solicitada pelo governo de Minas. Alaíde e seus irmãos, especialmente os poetas Henriqueta e José Carlos, passam a frequentar a cena cultural do Rio dos anos 20, que tinha na literatura uma forte alavanca.

Em 1934, em Belo Horizonte, Alaíde diploma-se no Curso Geral da Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico da Secretaria da Educação e Saúde Pública de MG, embrião do futuro curso superior de Pedagogia. Em 1936, casa-se com José Lourenço de Oliveira, advogado, professor e escritor, com quem teve quatro filhos. De 1937 a 1957, leciona língua portuguesa. 

O ano de 1938 marca a estreia na literatura infantil com as primeiras edições dos clássicos "A Bonequinha Preta" e "O Bonequinho Doce".  Em 1939 ela lança seu primeiro livro didático, “A Poesia no Curso Primário”, em co-autoria com Marieta Leite e Zilá Frota.

Durante a década de 1940, Alaíde Lisboa elege-se presidente da Associação dos Professores Públicos de Minas Gerais. Em 1947 eleita primeira suplente na Câmara Municipal de Belo Horizonte, assumindo o cargo em 1949, tornando-se a primeira mulher a exercer a vereança em Minas Gerais, apenas 17 anos após a conquista do voto feminino. Jornalista mais intensa desde 1948, à frente do Suplemento infanto-juvenil  “O Diário do Pequeno Polegar”, do jornal “O Diário”, de Belo Horizonte. Nessa época, lança a “Cartilha brasileira para adultos e adolescentes”.

Em 1951, leciona Didática na graduação da Faculdade de Filosofia, depois Faculdade de Educação da UFMG. Em 1954 lança “Cirandinha”. Em 1957 conclui o Doutorado em Didática na Fafich/UFMG, assume a direção do Colégio de Aplicação (cargo exercido até 1971) e lança “Mimi Fugiu” e “Meu Coração”, e “Sugestões para divulgação do ensino primário no Brasil”, pela UFMG, além de traduzir e adaptar “Simbad, o Marujo”, para a coleção “As Mil e Uma Noites”.

Em 1959, ela obtém o primeiro lugar em concurso público de cátedra da Universidade de Minas Gerais, e exerce a cátedra de Didática Geral e Especial na Faculdade de Filosofia, depois Faculdade de Educação da UFMG.

Na década de 1960, torna-se representante da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em Minas Gerais e integra o Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais. Em 1967 lança “Poesia na Escola” (antologia de poemas com orientação pedagógica), e em 1970 é homenageada pelo Colégio de Aplicação da UFMG, que tanta contribuição recebeu da mestra no período em que ela esteve à frente da instituição.

Em 1971, Alaíde organiza e coordena o Mestrado em Educação da UFMG, e lança o livro didático “Comunicação em Prosa e Verso”. Passa a lecionar Metodologia do Ensino Superior na pós-graduação das faculdades de Educação e Medicina da UFMG. Em 1975, ela assume o cargo de vice-diretora da Faculdade de Educação da UFMG. Em 1973, publica a tradução de “Invenção Dirigida – O Mecanismo Psicológico da Invenção”, de Edouard Claparède, pela Faculdade de Educação da UFMG em comemoração ao centenário do autor. Em 1976, sua atuação pública é reconhecida pela Câmara Municipal de Belo Horizonte, que concede à educadora o título de Cidadã Belo-Horizontina.

Em 1978, lança “Nova Didática”, e no ano seguinte recebe o título de Professora Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais.

Na década de 80 lança “Edmar – esse menino vai longe” (1981) e “Gato que te quero gato” (1988), literatura infanto-juvenil; e tem re-editados “Ensino de língua e literatura” (1983), “Meu Coração” (1984) e “O Livro Didático” (1986).

Sua extensa e produtiva atuação como escritora, pedagoga, jornalista e política é bastante reconhecida durante essa década. Foram muitas as homenagens e condecorações, entre elas a Medalha do Mérito Educacional, ofertada pela Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais (1984), a Medalha Helena Antipoff, pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (1985), a Medalha Santos Dumont, pelo Governo do Estado de Minas Gerais (1986) e a Medalha de Honra da Inconfidência Mineira, pelo Governo de Minas Gerais.

Em 1986, Alaíde é eleita membro da Academia Municipalista de Letras, e em 1988 da Academia Feminina Mineira de Letras.

Aos quase 90 anos, continua sua produção pedagógica. Em 1991, lança “Da alfabetização ao gosto pela leitura” pela Imprensa Oficial de Belo Horizonte. Em 1996 é a vez de “Impressões de Leitura”, vencedor do prêmio “Crítica e Interpretação” da União Brasileira de Escritores (1997), e “José Lourenço de Oliveira – Educador”.

Tanta atividade desperta mais homenagens: a Secretaria de Estado da Educação a homenageia com a Placa do Encontro Central de Alfabetização; o Governo de Minas, com a medalha “Centenário do Palácio da Liberdade”, a Fundação AMAE para Educação e Cultura, com a comenda “Lúcia Casassanta”; e a Federação das Indústrias de Minas Gerais, com a medalha “SESI 50 anos / Categoria Cultural”.

Em 1995 vem a consagração à sua atividade intelectual com a entrada para a Academia Mineira de Letras. São apenas quatro mulheres em quase 170 cadeiras, uma delas ocupada no passado por sua irmã, a poeta Henriqueta Lisboa.

Abre o novo milênio com o lançamento de seu livro de memórias: “Se bem me lembro...”, e recebe novas homenagens: a Medalha “Gustavo Capanema – Centenário”, pelo Governo de Minas Gerais, e a Medalha “Coronel Fulgêncio de Souza Santos”, Grau Prata, pela União do Pessoal da Policia Militar de Minas Gerais. Em 2001, a Editora Lê, de Belo Horizonte, lança novas edições de “A Bonequinha Preta”, “Ciranda”, “Cirandinha”, “Como se fosse gente”, “O Bonequinho Doce” e “Outras Fábulas”.

Em 2004, a Editora Peirópolis, de São Paulo, lança “Era uma vez um abacateiro” e “Histórias que ouvi contar”, textos selecionados do livro “Meu Coração”.

O centenário de Alaíde Lisboa vem sendo celebrado pelas mais diversas entidades, entre faculdades, escolas, bibliotecas, academias de letras e casas legislativas. Muitas delas, como a Faculdade de Educação da UFMG e a Academia Mineira de Letras, contaram com a atuação direta de Alaíde em sua vida institucional, enquanto outras se inspiraram em sua produção.

Falece em 4 de novembro de 2006, em Belo Horizonte com 102 anos.

Fonte:
http://alaidelisboa.fae.ufmg.br/conteudo.htm

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) V


MERCADO DE POESIA

Letras em púrpura
lírica destilada
em riso e pranto,
sabor de fruta fresca
e cheiro de folhas ao vento.
Sobre o balcão
os poemas são essências
de uma linguagem perdida
de tinta em silêncio.
Não pulsam,
mas ardem
enquanto o olho do poeta
no canto do mercado
parece um punhal de pedra
esperando o comprador.
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POEMA PARA CELEBRAR A VIDA
 

Nossa vida é apenas uma temporada
que brota por acaso no meio do sol.
Brincar de viver, de amar,
de gozar as cores da paisagem e a música do dia,
as ilusões de palavras ao vento,
é o nosso destino, é o nosso direito.

Suavemente vamos vivendo
se sabemos as regras deste jogo rápido e misterioso
sem preocupações de verdades ou de mentiras infinitas,
porque a felicidade só aparece uma vez,
quando sem notá-la beijamos uma boca adorada
ou apertamos a mão do melhor companheiro
antes que o frio da noite escura apague tudo
o que foi belo, amado, presente
e parecia eterno.
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POESIA, ARCO-ÍRIS DE SENTIMENTOS

A poesia pode umedecer nossa boca
e renovar a promessa do primeiro beijo.

Uma linda aquarela
com um arco-íris no horizonte,
a cor do alvorecer
ou as folhas das árvores
dançando com a brisa
aos olhos de um amante,
sem poesia não podem
produzir emoção.

O arco-íris da poesia
tem a condição com a qual
tudo ganha mais vida,
assim como as gotas de orvalho,
o sorriso da manhã
e o azulado da noite.
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TRABALHO DE POETA

Estou em uma selva de nervos.
Dizem que o estresse
vem do trabalho excessivo,
vem de dormir a manhã inteira
e de levantar-me ao meio dia
descansada e triunfante
para viver a palavra
que se detém em outros lábios.

Mas, não. O trabalho do poeta
embora seja como
um poço sem fundo,
é também como um tango
bem ou mal cantado
que padece nos círculos espaciais.

Minha dor não vem do trabalho:
ao contrário, meu trabalho
vem da dor, do verso de pedra
que faz explodir o horror
enquanto espero a vida
começar outra vez.
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UMA UTOPIA, A PAZ

A paz, o ideal romântico
pelo qual o ser humano faz a guerra,
é o bem em oposição ao ódio.

É uma utopia a paz,
porque o ser humano
é mais demônio do que anjo
e levamos dentro de nosso ser
o desejo do triunfo e da glória.

Não há vencedor sem vencido,
nem triunfo sem derrota.
O nobre não existe sem o vilão,
nem a verdade sem a imaginação.

Se a guerra, a tormenta e o ódio
são clamores de vingança e agonia,
a paz só chega com a liberdade,
o silêncio e a morte.

Enquanto os mortos descansam em sua paz,
os insaciáveis vencedores seguem seu caminho
em busca de outra avidez,
de mais sangue e de outra guerra.
- - - - - -
Fonte:
Poemas enviados pela poetisa.

Aparecido Raimundo de Souza (Público Seleto)


Rego Penteado da Silva Buscapé tocou a campainha e esperou que a moça loira de olhos verdes trajada elegantemente numa blusa laranja sem mangas e sainha azul, curtinha (que divisava através da porta envidraçada) se levantasse da mesinha da recepção e acorresse atendê-lo. Tímido até dizer chega, em face de ser zarolho de nascença, não sabia explicar como chegara até ali e, pior, onde arranjara uma boa dose de coragem para enfrentar a jovem que sorria, os dentes brancos e bonitos contrastando com uns lábios maravilhosos. Sem falar na mãozinha delicada indicando, mesureira, um lugar na poltrona enorme de couro vermelho vinho:

— Bom dia, cavalheiro. Meu nome é Flávia. Queira entrar e se acomodar, por gentileza.

Ele obedeceu um pouco desconcertado e sem graça. Mas se manteve firme. Não podia simplesmente dar meia volta e correr:

— Pois não, em que posso lhe ajudar?

— Dona Flávia, é sobre o anúncio.

— O senhor veio indicado por alguém?

— Sim.

— Por quem?

— Por mim mesmo.

Flávia voltou a sorrir com o mesmo entusiasmo de antes:

— Viu nossas chamadas nos jornais?

— Nem sabia que vocês haviam colocado!

— Tudo bem. Como chegou até aqui?

Rego Penteado da Silva Buscapé apertava as mãos, nervoso. Sua tremedeira pulava como um canguru desassossegado. Logo estaria suando frio:

— Ia passando e vi a tabuleta.

— A placa?

— Isso. A placa.

— Já conhece nossos serviços?

— Não, não conheço. Gostaria que a senhora...

— Senhorita...

— Desculpe, senhorita.

— Assim está melhor. Aceitaria uma água gelada, um café ou um suco?

— Os dois primeiros. Se não for incômodo.

— Será um prazer.

Flávia se enveredou por uma porta e, minutos depois, retornou com um copo d’água e uma xícara de café, numa bandeja de aço inoxidável quadrada. Rego Penteado da Silva Buscapé virou o líquido de uma só vez. Fez o mesmo com o café. Uma espécie de choque elétrico circulava por toda a espinha. Logo se transformaria em medo gritante:

— Como é seu nome?

— Rego Penteado da Silva Buscapé. Buscapé tudo escrito junto...

— Muito bem, seu Rego Penteado. Posso lhe chamar assim...?

— Prefiro Buscapé.

— O senhor aceita mais água, outro café?

— Não, senhorita. Estou satisfeito. Com relação a como me chamar, prefiro ser tratado como Buscapé, sem o tracinho separando o Busca do pé. É menos feio. E por tudo quanto é sagrado, esqueça o seu e o senhor.

— Seu Rego, o senhor... Você quer dizer que o Buscapé é pouco usual. Acertei?

— Penso diferente da senhorita. Diria que é horrível...

— Não. Não é! Apenas um pouquinho destacado ou divorciado dos sobrenomes habituais.

— Prefiro que a senhora... Que a senhorita me chame de Buscapé. Sem o tracinho separando o Busca do pé.

— Eu poderia optar?

— Para quem?

— Não entendi!

— A senhorita falou em apitar. Vai apitar para quem?

Flávia sorriu com vontade, se desfazendo inteira em seu momento mais deslumbrante e encantador. Fora isso, irradiava felicidade por todos os poros. Soletrou vagarosamente, letra por letra (O... PE... TE... A... ERRE), fazendo biquinho: — O... P... T... A... R...

— O que é isso?

— Optar significa escolher. Posso escolher?

— Escolher o quê?

— Entre lhe chamar de Rego, de Penteado ou só de Buscapé:

— Ah, claro. E como faria tal coisa?

— Simples. Chamarei o senhor... Você de Penteado. Não cairia ou não soaria mais elegante?

— A senhorita tem razão!

— Pois bem, seu Penteado. O senhor... Você já tem uma ideia pré-determinada do que ela vai vestir?

— Senhorita Flávia, ela quem?

— Ué! A sua noiva...

— Vocês não arranjam?

— Claro que arranjamos, porém o senhor... Você ou ela, ou os dois, terão que nos informar como será o modelo. Sugiro uma listinha básica... Olhe ao seu redor. Observe que temos um vasto mostruário a inteira disposição de sua futura esposa...

Penteado coçou a cabeça. O coração, dentro do peito, batia descompassado. O suor escorria e empapava a camisa. Nessas horas, seu olho torto criava uma espécie de morcego irrequieto sobrevoando seu medo com premonições apocalípticas. 

— Para mim a garota pode ser e vir de maneira bem simples. Não faço muita questão. O que importa é o recheio, o conteúdo...

— O senhor... Você é muito espirituoso. Quer uma noiva vestida simploriamente, porém com elegância e garbo. Leve em conta que toda prometida deseja ostentar pompa, luxúria, soberba, chamar, enfim, a atenção. E aqui, meu prezado, ela se sentirá uma rainha:

— Olhe, se ela pudesse vir sem nada... Eu adoraria...

Flávia se desmanchou de novo em sorrisos de alegria e felicidade. Via naquele cliente aparentemente besta e débil de espírito, um “pato” em potencial. Bateria a meta de vendas sem fazer esforço. Quando as outras duas vendedoras chegassem do almoço, ela estaria comemorando o sucesso:

— Qual a sua idade?

— Vinte e dois anos.

— E a sua eleita?

— Eleita? Que eleita?!

— Sua namorada.

— Acho que aí pela casa dos vinte.

— Bem, toda mulher nessa idade, seu Penteado... Gosta de casar de branco, de véu e grinalda, muitas flores no altar, daminhas carregando as alianças, uma porção de padrinhos no púlpito, latinhas vazias amarradas no para-choque traseiro do carro. Essas coisinhas bobas que deixam marcas profundas para o resto da vida. O senhor... Você não irá querer decepcionar sua amada no dia mais feliz de toda a sua vida. Aliás, seu... Aliás, Penteado, saiba, de antemão, que casar com elegância e glamour, é o sonho de todas nós.

— Entendo! Senhorita Flávia, o que eu quero saber, em resumo, é o seguinte: como é que vocês arranjam...?

— O senhor... Você pode sugerir, escolher, dar palpites desde o vestido aos sapatos...

— Sei, sei. E quanto à garota?

— Que garota?

— A que vocês vão providenciar para mim?

— Pois é como eu acabei de explicar. O senhor... Você escolhe ou os dois, em conjunto, e procuram chegar a um consenso.

Penteado permaneceu um tempo olhando para uma dezena de manequins ricamente vestimentados com belos e impecáveis trajes para um cerimonial acima de qualquer suspeita, expostos com elevada suntuosidade nos fundos da peça. A caolhice parecia ter se acentuado de forma mais densa e severa:

— Dúvidas?

— Acho que sim. Eu pensei que vocês arranjassem a noiva.

— Essa é a nossa obrigação. Arranjamos a noiva da cabeça aos pés. Basta que nos diga como quer que façamos...

— Eu? Dizer?!

— Perfeitamente. Quais as suas exigências, vamos colocar assim... Quais as suas exigências?

— Veja bem, senhorita Flávia. Como expliquei logo que entrei. Estou à procura de uma moça até vinte anos, que seja da minha altura e peso. Não me incomodo se morena ou loira. Gorda ou magra. Feia ou bonita. Católica ou adventista. Macumbeira ou sem religião. De preferência sem filhos, carinhosa, meiga, que me respeite, que não me traia e, acima de tudo, que me ame. Afinal, não sei se reparou, sou estrábico do olho direito.

Flávia quase teve um treco. Ficou boquiaberta. O sangue gelou:

— Senhor... Amigo Penteado. Desculpe. Acredito estar havendo um pequeno engano aqui...

— Como, engano? O que a senhorita quer me dizer com engano?

— O senhor... Você está procurando por uma namorada?

— O tempo todo...

Flávia sorriu. Desta vez, com certa tristeza. Seu possível “pato” acabava de voar para longe de seus objetivos da depenação e da “bateção” de meta para as vendas do mês.

— Seja franca, por gentileza.

— Nós não cuidamos desse assunto.

— A propaganda ali fora fala que vocês arranjam...

— Senhor, no nosso outdoor está escrito: “ARRANJAMOS NOIVAS”, ou seja, preparamos, aprontamos, vestimos, embelezamos, as meninas para a cerimônia...

— Então, dona...

— Pelo que entendi o senhor está à cata de uma agência de matrimônio. Aqui é uma casa especializada em noivas. Repetindo, seu Penteado, ela entra aqui e sai prontinha para os braços do altar e o aconchego do futuro marido.

Rego Penteado da Silva Buscapé saltou do sofá apavorado, envergonhado e muito nervoso. A negativa dela, com relação a seus objetivos, soou definitiva, caiu por sobre sua cabeça como um fardo pesado. Seu esqueleto tremia tanto que seria capaz de urinar do modo que estava.

— Perdão, senhorita, mil desculpas...

— Não por isso. Acontece. Desculpe não poder ajudá-lo. Boa sorte.

Flávia acompanhou a criatura de volta à porta. Ao se ver sozinha, teve um acesso incontrolável de choro. Desabafou aos soluços.

— Infeliz desgraçado! Boa sorte o raio que o parta. Torto dos infernos... Por certo mereço passar por isso. Devo ter feito besteira  na missa de Santo Antônio domingo passado.

Na calçada, por sua vez, os passos apressados, Rego Penteado da Silva Buscapé se pegou arrasado e destruído. Lembrou que não respondeu sequer ao “Volte sempre e felicidades” que lhe desejou cortesmente a bela loira de olhos verdes e sainha azul curtinha. Como costuma professar a galera antenada nas coisas da modernidade, o borra botas “vazou no trecho o mais rápido que seus pés permitiram”. Se não o fizesse, morreria mil vezes de vergonha, além da que acabara de viver e sentir na pele. Sem contar que logo se deixaria abater por uma deprimência triste e alquebrada, se aquilatando, em vista disso, mais infeliz e desafortunado que o estrábico Mesrour de Voltaire.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

domingo, 14 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 293


Arthur de Azevedo (O Meu Criado João)


No dia em que ele me apareceu, recomendado por uma senhora a quem me queixara da falta de um bom criado, fiz-lhe as perguntas usuais:

- Como se chama?

- João.

- É português?

- Não, senhor! Sou da Ilha da Madeira.

- Ora esta! Se é da Madeira, é português!

- Não, senhor: sou ilhéu.

- Bom! Quanto quer ganhar por mês?

- Contento-me com que o patrão me der, contanto que não seja menos de cinquenta mil-réis, casa e comida.

Fiquei com o João.

Nesse mesmo dia encontrei-o a lavar as mãos com o meu sabonete fino, que eu reservava, naturalmente, para o meu uso exclusivo.

- Que é isso? Você serve-se do meu sabonete?

- Não, senhor, não me estou servindo dele. Estou a lavá-lo, porque estava sujo de espuma.

A minha vontade foi mandá-lo embora, mas não o fiz.

Não o fiz e, dali a três dias, entrando em casa, encontrei em cacos, na cesta dos papéis inúteis, uma estatueta da Vênus de Milo, que era de gesso, pouco valia, mas eu estimava muito por ser uma reprodução muito fiel do famoso mármore do Louvre.

Fiquei furioso:

- Quem quebrou isto?

- Fui eu, sim senhor, mas não foi por querer - respondeu-me ele a rir-se.

- E você ainda por cima se ri!

- Ora, patrão! Já faltavam os dois braços à boneca!

Não o mandei embora.

Uma ocasião, os marinheiros de um dos nossos navios de guerra recolheram a bordo um pobre cão naufragado, exausto já de tanto lutar com as ondas.

Como já houvesse cão a bordo, e ninguém o quisesse, veio o animal para a terra, trazido por um oficial de Marinha que mo ofereceu.

Era um cão ordinário, mas inteligentíssimo. Os seus primitivos donos tinham-lhe ensinado umas tantas habilidades; ele comprazia-se em mostrar-nas, e ficava muito satisfeito, agitando vertiginosamente a cauda e pondo a língua de fora, quando eu lhas aplaudia, acariciando-lhe o pêlo. Era muito mais inteligente que o João.

Uma vez achavam-se reunidos em minha casa alguns amigos, e encantavam-nos as habilidades do cão, que estava presente.

O João ouvia calado, mas notava-se na sua fisionomia o desejo de intervir na conversa.

Afinal interveio:

- O patrão esqueceu-se de contar aos senhores a maior habilidade deste cão!

- Qual é? qual é? perguntaram todos em coro.

- Este cão que aqui estão vendo, senhores, sabe nadar!

Ao jantar, como ele nos viesse dizer, muito compungido, que na venda não havia nem mais uma pedrinha de gelo, para remédio, um dos rapazes exclamou, gracejando:

- Oh, senhor! Pois nessa venda não há nem do tal gelo em latas, que hoje se encontra em toda a parte?

O João disfarçou, saiu, e pouco depois voltou com esta notícia:

- O dono da venda diz que tinha, mas acabou-se.

- O quê?

- Gelo em latas.

Imaginem que risota!

Eu recomendara terminantemente ao meu criado não me deixasse dormir além das oito horas da manhã. Ele, porém, não tinha tido jamais ocasião de cumprir essa ordem, porque às sete já eu estava de pé.

Certa manhã, tendo-me deitado bastante tarde, acordei e, consultando o relógio, vi que eram já nove horas.

- Ó, João!

- Patrão?

- Pois não lhe tenho eu dito um milhão de vezes que não me deixe dormir além das oito horas?

O João sorriu - o mesmo sorriso de quando quebrou a Vênus de Milo - coçou a cabeça e respondeu:

- Eu vim acordar o patrão, vim...

- E então?

- Mas não acordei o patrão porque o patrão estava a dormir!

Mas a melhor foi esta: Uma noite em que lhe mandei oferecer cerveja às visitas, ele apareceu na sala com uma bandeja em que havia seis copos cheios e dois vazios.

- Para que esses copos vazios, João?

- É para alguém que não queira...

Dessa vez o pus no olho da rua!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

João do Rio (Laurinda Belfort)


Laurinda Belfort teve um sobressalto. O relógio de marfim, engastado discretamente no canto esquerdo do carro, marcava duas e cinco, e esse relógio, certo, incapaz de adiantamentos ou de atrasos, marcava sempre a hora precisa para que Laurinda Belfort pudesse regularizar com calma e tempo os múltiplos afazeres dos seus perfumados dias. Havia, pois, trinta e cinco minutos que o pobre Guilherme Guimarães a esperava, apaixonado e comum, numa casa solitária.

Laurinda recostou-se, hesitando entre a ideia de apressar o cocheiro e o desejo de lá não ir, de falhar mais uma vez Vinha-lhe o guloso apetite de deixar sem o seu corpo a absorvente entrevista. Mas, certamente, à noite teria a acompanha-la numa queixa muda e feroz, o olhar de Guilherme, ou no teatro ou no raout [*reunião mundana] da condessa de Souto; e, à proporção que se aproximava o carro, Laurinda sentia as mãos frias, uma vaga contrariedade, a esquisita negação de todo o corpo como a tem a gente antes de fazer um enorme sacrifício...

Ah! Francamente já enfarava [*entediava]. No primeiro dia, na manhã em que correra à primeira entrevista, teria chicoteado o cocheiro para andar depressa, para voar; nesta maldita quinta-feira vestira-se devagar, conversara durante o almoço como toda a sua vida fora um resultado de imitações, fora um acompanhamento de figurinos. Em criança, imitava os gestos pretensiosos de altas linhagens de algumas das colegas de Sion; em menina e moça a sua linha fora sempre copiada de alguns tipos de romance, e quando a mamã lhe fez notar a necessidade de casar para satisfazer todos os apetites de luxo, imediatamente casou, inaugurando aquela grande vida artificial e custosa, com as salas compostas segundo desenhos de decoristas [*decoradores] ingleses, os vestidos vindos de Paris e um ar de boneca social, que para sempre lhe tirara a ideia de amar alguém, além da sua prezadíssima pessoa. A grande vida um tempo fê-la mesmo esquecer quase o marido, porque era preciso passar o carnaval em Nice, estar no outono em Paris, passear os hotéis depravados do Cairo no inverno, dar opiniões sobre artistas e pintores, falar de viagens e manter o seu salão no Rio, o seu salão invejado, criticado, incomparável como Edmond Rostand, o campanilo de S. Marcos, a erosão inglesa do esporte e a graça parisiense. Fora nessa ocasião que tomara como dama de companhia uma velha inglesa esbelta, grande conhecedora de arte, que sabia versos de Morris de cor e se apaixonara pelos fados portugueses a ponto de acabar caissière [*empregada que trabalha na caixa] de hotel no Estoril. Laurinda tomou-a como quem consulta um pequeno Larousse, e as suas extraordinárias toilletes, os seus adereços, feitos no Vevert da rua da Paz, em que as pedras brasileiras tinham rebrilhos inéditos cravadas em brilhantes, eram desenhos da velha inglesa. Grande época aquela! Época de excessos, de conquista, de triunfo. O grave Belfort de vez enquanto pasmava.

— Pois que! Tu agora fumas?

— Com efeito, grelho uma cigarreta.

— Mas é grosseiro.

– É ultra fashion. Não sabes nada disso. És old style.[*fora de moda]

E montou um salão de banho, em que a água da piscina parecia descer de um enorme vitral representando avalanches de neve em montes, tudo quanto há de mais pré-rafaelita[1]. Todos os objetos e utensílios obedeciam ao motivo algas do fundo do mar.

Mas em breve, a vitória mundana fatigou-a. Era preciso mais alguma coisa. Uma Alice Verride, senhora entendida em adultérios mas da melhor sociedade disse-lhe um dia:

— Minha cara Laurinda, precisas de um homem.

— É boa. E meu marido?

— O marido não conta nunca, principalmente quando nos faz todas as vontades. Precisas de um homem que te preocupe, cuja paixão seja um piment para a tua vida, um ser violento. Nunca amaste?

– Oh! Não!

– Pois é chique, menina. Admira até que tu, tão conhecedora de Paris...

No dia seguinte, Laurinda acordou convencidíssima de que precisava de um amante. Sim! Ela, uma parisiense, que tinha como nenhuma outra a arte sutil da maquilagem, essa admirável estesia ateniense herdada por Paris, ela ainda não tinha um amante. Que atraso, que femme vieux jeu[*que mulher ultrapassada]! Decididamente retardava, retardava uns trinta anos pelo menos. E, quando apareceu ao almoço, com os olhos cernés [*cerrados], o gesto lasso, o lábio rubro, Laurinda olhou o paciente Belfort com um vago desprezo, tal qual as damas dos romances a que uma grande paixão sacode.

Ainda não tinha nenhuma. Mas viria a ter. Seria a última etapa de mundanismo e de puro sangue da sua já gloriosa carreira na alta sociedade, teria também o seu romance. E para realizar esse romance, entre muitos adoradores profissionais, o que já insistia de há muito era precisamente Guilherme. Que fazer? Torturada pela súplica de Guilherme o marido, ansiando pelo fato que lhe fosse pretexto para não ir — porque Laurinda, sem indagar de razões, sentia-se presa a esse dever, ao dever do amor. Afinal, sempre se decidira. Mais uma vez, Deus do céu! E lá ia sem compreender porque, para a casa à beira mar ouvir o marulhar do oceano e a voz do Guilherme!

Pobre Guilherme! Estava decerto à espera, torturando as pontas farpadas do bigode, chegara talvez cedo demais. Também não fazia outra coisa agora, passava a vida amando-a; e, ela, decididamente, enfastiava-se. Tudo quanto é demais, aborrece.

Fora levada àquilo por mundanice, por cabriolice da alma, como diria a sra. de Souza Castro, titular em decadência, hoje dama de companhia. De ver as outras damas amadas por homens discretos e bem vestidos, achara aquilo smart [*malicioso] e comprometedor, com um leve tom de crime consentido. Ir assim, no seu carro, no carro do seu marido, entregar-se à paixão do outro, do cavalheiro elegante, parecia-lhe uma nota essencial da moda, lembrava-lhe logo os romances de Paris, a psicologia passional das duquesas de alta linhagem, que às vezes tem dois, sem contar o esposo.

Era-lhe grata como se a sua existência fosse a última elegância esperada para faze-la ultra superior.

De resto custara, e muito até. Acostumada ao louvor das costureiras e dos íntimos, intimamente convencida de que onde fosse a admirariam, muito risonha e muito audaz, quem a visse naquela vertigem de diversões inventando o prazer e o “flerte”, não a julgaria no fundo tão profundamente temerosa das coisas positivas...

O pobre Guilherme vivera de platonismos longo tempo. Onde ela estivesse, ele lá se achava. Na rua dava-lhe cercos para lhe tirar o chapéu, curvar-se; em casa, valsando (depois de conversar com o marido, muito seu amigo), escorria-lhe no pescoço declarações de amor respeitoso. Era a sugestão, a tentação, a perdição... Ela ouvia-o, marcava-lhe o lugar da sua frisa para que ele comprasse uma poltrona fronteira, dizia-lhe com antecedência os bailes e os five-o-clock [*chá das cinco] que teriam a sua presença. Quando Guilherme falou do grande acorde, sentiu um desejo surdo de se negar. Então era fatalmente preciso? O desejo fora, entretanto, muito forte, entontecera-a. Ela, que tinha o nome nos jornais mundanos, no livro das costureiras e no lábio de toda a gente, quis ouvi-lo pronunciado ternamente por um homem elegante. A curiosidade aguçou-se. Como seria emocionante desmaiar, tal qual o pintam nas gravuras e nos romances! Seria antes de tudo high-life. Guilherme era chique.

Guilherme! que nome horrível! Mas, coitado, amava-a, estava sempre em toda a parte, tinha uma porção de roupas, andava à inglesa, trotando, com os braços meio abertos, repartia o cabelo ao meio como nos figurinos, e possuía um encanto inédito; limava as unhas, dava-lhe um brilho metálico, incrível, um lustro, que, quando movia os dedos, parecia ter nas pontas palhetas de nácar [*madrepérola]. Ah! as unhas desse Guilherme!

Quando o jovem afortunado lhe premia a mão, o contato envernizado daquelas unhas dava-lhe num arrepio a delícia de mais um ofertório à sua beleza tão aguda, tão clara, tão moderna e tão perturbadora. Fora talvez essa a única razão porque se entregara à sensualidade meio snob, meio cerebral, de se sentir despir por aqueles pedaços de um vermelho especial e lustroso, o contato daquelas unhas artificiais e extra-humanas. E nos passeios, nos banquetes, as luminosas unhas de Guilherme preocupavam-na como o olhar invejoso de uma amiga, o luxo de mais uma renda, a volúpia de uma joia, que se não pôde possuir senão à custa de um enorme sacrifício...

Fez concessões a princípio, foi só a trechos pouco frequentados conversar apenas, discutir os tenores da companhia lírica e as infâmias da sua roda. Mas, como de uma feita, ele, de mãos postas e joelhos em terra, sem se incomodar com a calça, rogasse a sua ida ao infalível ninho de amor, ela cedeu afinal, incapaz de resistir por mais tempo...

Nesse dia foi meia hora antes, e agora, ali no carro, indo outra vez, ainda tinha na memória a exasperação sensual da tarde intensa. Guilherme, outro, rouco, e aquelas unhas brilhantes, coralisadas, que envermelheciam mais, que se machucavam desfazendo tecidos, que tocavam frias à sua epiderme, luziam nas batistes [*tecido fino de cambraia] como carapaças de pequenos monstros estranhos, para acabar empalidecendo, fenecendo de perpassar pela sua carne como fica sem cor um rosto sempre votado à oração... Naquele momento, toda a sua alma vibrara de um prazer como nunca tivera, o prazer sutil de gozar e desfazer o artifício máximo do outro. Mas, desde então, ficara de gelo, esfriara, diante da pertinácia alvar daquela paixão.

Pobre homem! não se contentara! Antes pelo contrário, parecia furioso depois do primeiro dia. Pedia-lhe entrevistas a todas as horas, em todos os lugares, tinha sempre nos olhos uma queixa, e obrigara-a a dias certos! Ela, uma senhora afinal, achava aquilo brutal, uma violência de quem paga e que a reduzia, que a humilhava.

Não havia duvida amava-a. Mas isso, não era razão e plausível para tamanhos excessos. Certamente era gentil esperava-a sempre com o quarto florido. Mas, em a vendo, era sempre aquele beijo, o beijo infalível e a frase:

— Sempre vieste! como te amo, Laurinda, como eu te amo!

Uf! que banalidade! Era baboso, era de entorpecer. E, positivamente, estragar um dia por semana, roubar-se à admiração do próximo para ouvir aquele senhor soluçar queixas de amor, parecia até pouco sério. Depois, Guilherme nem sabia, nem tinha préstimo para vestir uma senhora. Os seus vestidos, complicados, com ligaduras difíceis e ousadias de corte, eram amarfanhados por ele, rasgados, e mesmo, num dia de frio, caindo do céu a umidade, diante do espelho, Laurinda suava de impaciência, tanto o idiota custava para lhe atacar o colete — já com as unhas quebradas; sem brilho de se roçarem e de a apertarem.

Antes de ir para essas sessões, Laurinda vestia-se lentamente com a dor de saber que se ia despir, demorava, imaginava afazeres, olhando o relógio. De repente, porém, quando já os ponteiros passavam da hora, não se continha. Mandava tocar à toda, corria ao rendez-vous [*encontro marcado] com a louca vontade de que ele não a esperasse mais. Porque ia então? Ora! porque ia! Por condescendência, por fraqueza, por não achar o meio sério de se livrar de vez.. E só então Laurinda lembrou que ia, naquele momento, para o suplício! Pegou do tubo acústico[2], soprou desesperada:

— Mais devagar, José!

Se aquele pobre Guilherme tivesse mais alguma novidade além das unhas! Mas — coitada dela! — era certo vê-lo ajoelhar, vê-lo dizer: —sempre vieste! mostrando as unhas polidas e brilhantes prestes ao sacrifício! Era infalível que teria um fato novo, que a beijaria como a beijava sempre nos olhos para lhe tirar a veloutine [*pó de arroz] do rosto, era fatal que arrebentaria o cordão do seu espartilho diante do “psyché”[*espelho de penteadeira] — que é como a alma do nosso físico... Ao menos, se o jovem feliz não a obrigasse a despir, conversasse apenas, tivesse, enfim, um aspecto novo — vá! Mas não. Havia de ser tal qual, inexoravelmente tal qual. Oh! era estúpido!

Um espasmo de raiva fê-la esticar os dedos coriscantes de anéis. Seria eterno aquilo? Não acabaria mais nunca? O monstro abusaria até o fim da sua posição de mulher honesta e fraca?

De repente o carro parou.

Deus! ia começar a tortura, o desespero! As janelas estariam abertas, era certo. O imbecil ainda acabava morando lá! Lentamente, como se levantasse o mundo, suspendeu o store [*cortina] de seda branca, e mais lentamente ainda ergueu os olhos tristes.

A casa estava totalmente fechada.

Hein? Seria possível? Ele, então — e de súbito o desespero sufocou-a — não a esperava mais? Acabara a paixão? Então, ele também estava farto, estava cansado? Oh! ela já enjoava, já aborrecia aquele cidadão que a perseguira dois anos! Mas então essas coisas acabavam assim com a porta fechada, na cara, na sua face! O grosseirão insultava-a a ela, a ela, Laurinda Belfort, esposa de Soares Belfort!

Abriu a portinhola. Saltou. No seu cérebro embaralhavam as ideias como se a afronta a ensandecesse. Em derredor, a rua deserta modorrava. No céu muito azul, de um azul muito claro, o sol vibrava, e do mar, que abria pelo espaço um outro céu, vinha a úmida aragem de um dia primaveril. Deu dois ou três passos, certificou-se rangendo os dentes de desespero.

Oh! era ela — para seu castigo, por ter querido ser boa, por ter pena do infeliz, era ela quem não se fazia receber! Oh! a vida! Quantas surpresas amargas!

Meteu-se outra vez no carro, bateu a portinhola.

Ah! não! nunca mais! estava acabado! O Sr. Guilherme queria o idiota? Tanto melhor! Só assim não perderia mais o tempo, ela que tinha tanto que fazer, que ainda não fora ao costureiro e tinha teatro à noite, jantar, um five-o-clock das Teixeira impreterivelmente às quatro e meia! Que bom! E o cretino a pensar que a humilhava, que a incomodava! A rua do Ouvidor devia estar esplêndida. Se ao menos ela, Laurinda Belfort, não estivesse muito mal! Sempre que vinha àquela horrível casa vinha tão sem gosto... O seu vestido era de rendas brancas, sobre um fundo de liberty verde gaio. Abriu o estojo do coufé, tirou um espelho, um pompon de pó de arroz, viu-se, achou-se bela com o seu chapéu que era uma rosa debruada de uma enorme pluma verde pálido. E, de fronte do espelho, a ideia de fugir à humilhação apuou-lhe [*torturou com pua] de novo o cérebro. Não havia dúvida. Nada de cenas que demonstrem amor. Apenas, ao encontrar o mariola— uma frase triste:

– Ah! meu amigo, foi-me impossível ir hoje!

Gozar a cara dele, negar a sua ida lá, e mesmo que ele dissesse não ter ido também mostrar um ar indiferente... Ah! Tortura-lo com uma indiferença calma, ignorante, com alguns bocejos, até tê-lo uma última vez e deixa-lo, abandona-lo, não ir mais — ela, ela, ela a vencedora! desprezar as suas unhas, o prazer mórbido de toca-las, as unhas... ah! canalha!

Então, sob essa impressão, Laurinda Belfort inclinou-se vivamente:

— José, para a cidade, depressa!

O carro tornou a rodar, enquanto, reclinada na almofada de seda, Laurinda torcendo os dedos, sentia, por mais que não quisesse sentir, a falta daquela hora infame, daquelas frases tolas, a falta daquelas unhas que lhe davam a renovação de uma sensação toda cerebral, para ao menos quebra-las mais uma vez morde-las, despreza-las. Instintivamente, na imensa confusão dos seus desejos, olhava os transeuntes com ânsia, a ver se o via, a ver se o encontrava, para parar o carro, Ou tocar à toda, ou cumprimenta-lo, ou fingir que não o via... Sabia lá! Mas para vê-lo um momento ao menos, o pobre diabo, com os seus bigodes e aquelas unhas da cor do nácar rosa... E nos seus olhos brotavam, de desespero e de desejo, lágrimas a fio, — por não ter tido, apenas naquele dia, o brinquedo de um pobre ente para torturar e espezinhar, o brinquedo aborrecido uma hora antes.
_________________________
Notas:
[1] Escola de pintura romântica da Inglaterra no século XIX, típica da Belle-Époque, cujos principais componentes foram o crítico John Ruskin e os pintores Dante Gabriel Rossetti, e Edward Burne Jones. No início foram combatidos pelos acadêmicos e conservadores, mas posteriormente consagrados.

[2] Objeto utilizado, nos automóveis antigos, para comunicação entre o passageiro e o motorista, separados por uma parede de vidro à prova de som.


Fonte:
João do Rio. Dentro da noite.

Concurso de Declamação Virtual para Curitiba e Região (Prazo 10 de Julho)


1) O Concurso de Declamação é regional: podem participar pessoas maiores de idade que morem em Curitiba ou região metropolitana (se o participante indicar alguém que possa ser seu representante e possa receber e entregar a Medalha, no caso de ganhar o primeiro lugar, pode morar em qualquer cidade do Brasil).

Inscrições de 11 de junho à 10 de julho/2020.

2) A participação é GRATUITA.

3) Para participar é preciso publicar um vídeo declamando ou lendo um poema de autoria de Isabel Furini no grupo do Facebook: “3º Concurso de Declamação Poetizar o Mundo”. https://www.facebook.com/groups/3457921040899409/

4) Cada poeta só poderá publicar um vídeo em português ou espanhol.

5) O video será publicado no grupo "3º Concurso de Declamação Poetiza ro Mundo (on-line) – Declamação de poemas de Isabel Furini", de 11 de junho à 10 de julho/2020.

6) O resultado será publicado nesse grupo até 25 de julho/2020.

7) Ao postar o video enviar e-mail confirmando a inscrição para: isabelfurini@hotmail.com. Escrever nome real e nome artístico (se tiver), telefone, endereço e 3 linhas de currículo.

8) O poema declamado deve ser de autoria de Isabel Furini. Não serão aceitos vídeos com poemas de outros autores.

9) Jurado o poeta trovador José Feldman, o ator e diretor Marco Antonio Garbellini, e a poeta Leny Mel.

10) O ganhador receberá Certificado online no mês de julho/2020. Só receberá a Medalha, "Melhor declamador/a 2020" - do Projeto Poetizar o Mundo, em evento cultural de 2021. Fica a critério dos jurados escolher 2º e 3º lugar que só receberão o Certificado pelo e-mail.

ESCLARECIMENTO: Os poemas estão no blog Literatura de Isabel Furini - http://isabelfurini.blogspot.com/

Fonte:
Revista Carlos Zemek – 10 de Junho