sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Estudo sobre a obra "A Abadia de Northanger", de Jane Austen

A Abadia de Northanger (Northanger Abbey) é um romance da escritora inglesa Jane Austen, publicado postumamente em dezembro de 1817, e escrito entre 1798 e 1799, inicialmente intitulado Susan. A obra descreve a vida social em Bath, que Jane Austen conhecera em 1797, e parodia os romances góticos, muito apreciados na época: sua heroína, a jovem Catherine Morland, que imagina suas aventuras sombrias em antigos castelos ou mosteiros de arquitetura gótica, acredita que pode viver um desses sonhos quando é convidada a permanecer na Abadia de Northanger. Um romance se desenvolve entre ela e Henry Tilney, o filho do proprietário do lugar.

O confronto das ideias românticas de Catherine e a realidade, durante suas discussões com Henry Tilney e Eleanor, a irmã dele, faz com que pouco ela ultrapasse a adolescência, o que pode ter transformado “Northanger Abbey” em um romance de aprendizagem.

Além das características estilísticas de Jane Austen (ironia, discurso indireto livre) e o aspecto de paródia da obra, há também a crítica aos romances góticos no tocante à sua influência na imaginação fértil de meninas jovens, assim como uma defesa incondicional dos romances em geral, que na época eram principalmente escritos por mulheres e considerados um gênero de segunda categoria.

Northanger Abbey fora o primeiro romance de Jane Austen que ficara totalmente pronto para a publicação após a finalização de sua redação, entre 1798 e 1799, segundo sua irmã Cassandra Austen. No entanto, ela também trabalha, em 1796, em First Impressions, a primeira versão de Orgulho e Preconceito. Quanto a razão e Sensibilidade, ela começa uma primeira versão em 1795, provavelmente um romance epistolar, conforme relatado pela tradição familiar e, portanto, bastante diferente da versão finalmente publicada.

Jane Austen, até por volta dos 23 ou 24 anos, morou na casa de sua família em Steventon, para onde fora após seu nascimento. Em 1797, faz uma viagem a Bath, uma importante cidade histórica. O romance fora intitulado inicialmente Susan, e alguns estudiosos viram aí uma referência ao conto para crianças, “Simple Susan”, escrita por Maria Edgeworth para sua coleção de contos de 1796, The Parent's Assistant.

Em 1802, a autora faz uma pequena correção, para evocar o romance de Maria Edgeworth, Belinda, lançado no ano anterior.

Anunciado como tendo sido redigido em 1816, fora, porém, totalmente concluído e pronto para ser publicado em 1803. Nesse ano, o editor londrino Benjamin Crosby comprara os direitos sobre o livro por dez libras esterlinas e anunciara a publicação, que não ocorreu. Seis anos depois, Jane – que então lhe escreve sob o pseudônimo de Mrs. Ashton Dennis – lhe pede pelo correio uma nova cópia do manuscrito, pois o primeiro se perdera, ameaçando entrar em contato com um novo editor caso ele nada fizesse. Crosby apenas responde que, nesse caso, ele iria enfrentar este editor e se mostra disposto a retroceder dos direitos pelo preço inicial de 10 libras. Na época, este montante parece alto demais para Jane Austen, não tendo ainda nada sido publicado.

Após a publicação de Emma, porém, em dezembro de 1815, a romancista resolve esta questão, por 10 libras, através de seu irmão Henry Austen. Ela prevê a publicação, em 1816, mudando o título para “Catherine” e escrevendo uma pequena nota, onde expressa seu espanto pela não publicação anterior por Crosby e o receio de que, "treze anos depois de sua conclusão", o romance tenha se tornado obsoleto.

Após a morte de Jane Austen, que ocorre em 18 de julho de 1817, seu irmão Henry Austen publica o romance, no final de dezembro de 1817 (a data de 1818, na página de título, resulta dos inúmeros desencontros e confusões acerca da publicação), e o título é mudado, provavelmente por Henry Austen, para Northanger Abbey. Talvez assim evocaria os romances góticos, em voga na época, apresentando castelos misteriosos.

No entanto, hoje se supõe que Jane Austen tenha abandonado o título original “Susan”, inspirado em The Parent's Assistant, já em 1809, após o surgimento de uma novela anônima com o mesmo nome. Sem dúvida com algum pesar, pois acabaria usando o nome da heroína de Maria Edgeworth, Susan, em Mansfield Park, onde é a irmã mais nova de Fanny Price, a heroína do romance.

A questão de quanto mudou o romance após o manuscrito vendido a Crosby fica sem resposta. No entanto, Brian Southam, um dos principais especialistas em crítica austeniana, acha que a autora pode ter feito mudanças significativas em seu trabalho em 1816, mas dificilmente está em concordância com outros especialistas, que defendem poucas modificações após 1803, por diversas passagens no texto que claramente se referem a eventos anteriores a esta data. E os muitos romances citados no texto, todos foram publicados antes de 1800, com exceção de duas referências a obras de Maria Edgeworth, publicada em 1800 e 1801.

A publicação em 1818 de Northanger Abbey e de Persuasion (Persuasão) é prefaciada por uma notificação biográfica do autor, escrita por Henry Austen e datada de 13 de dezembro de 1817, mais de 5 meses após a morte da irmã, essa observação teve grande importância mediante seu caráter hagiográfico: é a primeira homenagem calorosa para a mulher e escritora, trazendo a público informações sobre sua vida e seus últimos momentos, sua personalidade, seus gostos, sua leitura favorita, ou mesmo a forma como ela via suas obras.

É também a primeira apresentação de Jane Austen como autora e principalmente autora digna de inclusão em uma biblioteca, "ao lado de Fanny Burney (Madame DArblay)" e de “Maria Edgeworth”, ainda que sua reserva natural e suas dúvidas sobre o seu próprio talento a tenham levado a preservar o mais possível o seu anonimato. Este registro, este anonimato de elevação e a promoção do público, continuaram a ser os únicos dados biográficos disponíveis da autora por mais de cinquenta anos, até que foi publicada, em 1870, “A Memoir de Jane Austen”, primeira biografia escrita por seu sobrinho, James Edward Austen-Leigh.

ENREDO

O livro apresenta a personagem Catherine Morland, a quarta dos dez filhos de um clérigo de condições financeiras razoáveis, que mora em um vilarejo em Wiltshire. Catherine é descrita como uma jovem normal, sem grandes talentos e nada em especial que chame a atenção sobre si. Entre os 15 e 17 anos, lera todos os livros sobre heroínas que lhe fora possível, e isso era tudo o que conhecera da vida.

Mas, não havia ao seu redor nenhum jovem que lhe pudesse despertar a sensibilidade e a paixão, e nenhuma chance de transformar sua história de acordo com seus sonhos. O capítulo destaca, porém, que, quando se é fadada a ser uma heroína, o destino acaba intervindo, e Catherine é convidada a acompanhar o Sr. e a Sra. Allen, donos da mais valiosa propriedade local, em uma viagem para Bath, onde passarão um tempo para o tratamento da gota do Sr. Allen.

Em Bath, Catherine é introduzida na sociedade, e conhece o jovem Henry Tilney, por quem se interessa. Nesse entremeio, conhece Isabella Thorpe, que recebe a corte do irmão de Catherine, James, e que se torna sua amiga, e o jovem John Thorpe, irmão de Isabella, que se interessa por Catherine, sem ser correspondido.

Catherine aos poucos se apaixona por Henry Tilney, e aproxima-se da irmã dele, Eleanor, com quem faz amizade. Após conhecer o pai e o irmão de Henry, é convidada pela família Tiney para ficar um tempo em sua propriedade, a Abadia de Northanger. Antes de ir, toma conhecimento de que James deseja casar com Isabella, tendo ido pedir consentimento para os pais, mas percebe algum entrosamento entre Isabella e o irmão de Henry, Frederick.

Em Northanger, Catherine interessa-se pelos pretensos segredos da abadia, e é bem tratada pelo pai de Henry, o General Tilney. Catherine se impressiona tanto com a semelhança do lugar e o cenário de seus livros que acaba confundindo a realidade com a fantasia. Lá, recebe uma carta de James, relatando o fim do noivado com Isabella por conta do interesse dela por Frederick, e perde a consideração que tinha pela amiga.

Repentinamente, Catherine é induzida a sair da propriedade e voltar para casa, a pedido do General, que parece ter se aborrecido com ela, sem motivo aparente.

Em casa, após alguns dias, recebe a visita de Henry, que veio pedi-la em casamento, e esclarece que o pai a desconsiderara por sabê-la pobre. Anteriormente, o pai fora informado por John Thorpe que Catherine era abastada, daí o interesse que demonstrara, baseado em uma falsa expectativa. Ao saber a verdade, porém, o pai a desprezara. Henry não compartilha a mesma ideia do pai, e a pede em casamento, sendo aceito. Posteriormente, o general Tilney volta atrás, e tudo tem um final feliz.

Personagens

Catherine Morland: jovem e ingênua filha de um clérigo de Wiltshire, afeita a leituras góticas, que vai a Bath para ser introduzida na vida social. Ingênua e cheia de imaginação, vai aos poucos compreendendo o mundo que a rodeia.

Richard Morland: pai de Catherine.

Sra. Morland: mãe de Catherine.

Sr. Allen: proprietário vizinho dos Morland, um homem sensato e discreto, que vai a Bath para tratar de sua gota.

Sra. Allen: proprietária vizinha dos Morland, uma mulher comum, sem grandes atrativos, sem filhos, mas sendo afeiçoada a Catherine a leva para passar uns dias em Bath, e a ajuda a ser introduzida na sociedade.

Henry Tilney: pastor, sarcástico e inteligente, mas também simpático e bondoso, desperta o interesse de Catherine desde quando se conhecem. Bem educado, mas um tanto sarcástico, conduz Catherine para a percepção do mundo e das pessoas que a cercam.

Sra. Thorpe: antiga amiga de escola da Sra. Allen, reencontra-a quando visitam Bath. Mãe de Isabella e John.

Isabella Thorpe: jovem filha da Sra. Thorpe, irmã de John Thorpe, torna-se grande amiga de Catherine, e é cortejada pelo irmão dessa, James. Um tanto inconsequente, aceita a corte de Frederick Tilney, após saber que o casamento com James não a tornará tão abastada.

James Morland: irmão de Catherine, torna-se amigo de John Thorpe em Oxford, e é apaixonado pela irmã do amigo, Isabella.

John Thorpe: jovem irmão de Isabella, corteja Catherine. Rude e inconveniente, acredita e espalha a história de que Catherine é rica, sendo o motivo pelo qual o General Tilney cria a ideia errônea de sua fortuna.

Eleanor Tilney: sensível irmã de Henry, torna-se aos poucos amiga de Catherine. Discreta e reservada, contrasta com a expansividade de Isabella.

General Tilney: pai de Henry, Eleanor e Frederick, viúvo, apresenta grande consideração por Catherine, acreditando, porém, que ela é rica. Mais tarde, Catherine percebe que sua consideração era por interesse num casamento abastado para Henry.

Capitão Frederick Tilney: irmão de Henry e Eleanor, interessa-se por Isabella Thorpe, porém tem consciência de que seu pai jamais aceitará um casamento com uma mulher de condições inferiores.

INFLUÊNCIAS

Este romance teve, sem dúvida, a influência de Fanny Burney, romancista preferida de Jane Austen, mais marcadamente em Northanger Abbey. Como em Evelina (1778), a obra se passa em Bath; como em Cecilia (1782), o herói pertence a uma família aristocrática; mas certamente é a Camilla, escrito em 1796, que Jane Austen tinha conhecido antes da sua publicação, que Northanger Abbey mais deve.

Certamente é de Camilla Tyrold, heroína do romance, que Catherine Morland deve muitos de seus traços. Como a Camilla é tutelada pelo seu tio Sir Hugh Tyrold, Catherine é confiada aos cuidados da Sra. Allen, o que lhe renderia alguns problemas mais tarde. Por outro lado, é encontrado também em Camilla um mentor, como Henry Tilney para Catherine, na pessoa de Edgar Mandelbert, e uma bela jovem, Indiana, cujos defeitos naturais realçam as qualidades de Camilla, como ocorre com Isabella Thorpe e Catherine Morland.

A influência de Maria Edgeworth se observa também em Northanger Abbey, especialmente seu romance de 1801, Belinda. Mas é especialmente com sua coleção de contos de fadas para crianças, The Parent's Assistant, inspirado em fábulas francesas e contos árabes, que Maria Edgeworth está presente no romance de Jane Austen. Além de Belinda, em sua revisão de “Susan”, em 1802, a segunda edição foi enriquecida com novas histórias, da coleção de Maria Edgeworth.

No entanto, enquanto as obras de Fanny Burney e Maria Edgeworth se insinuam na trama do romance, dando-lhe o caráter de “romance de aprendizagem”, marcando a passagem da heroína para a fase adulta, é a Ann Radcliffe, e mais particularmente às suas obras “A Sicilian Romance, The Romance of the Forest e Les Mystères d'Udolphe”, que se deve o toque gótico que particulariza o romance. E é justamente a esses três livros que Henry Tilney faz alusão quando descreve as aventuras que esperam inevitavelmente os personagens de romances góticos.

Tais obras servem como exemplo para a análise da influência de Ann Radcliffe, Horace Walpole e outros autores: em vez de descrever, narrador onisciente, a sequência de eventos e as ações do "vilão" do romance, a situação é apresentada pela visão subjetiva, através dos olhos da heroína. Esta, isolada, rodeada por inimigos ou falsos amigos, refugia-se em um grande edifício (em geral um castelo gótico...) que, à luz do dia, oferece um abrigo dos perigos externos, mas, depois do anoitecer, torna-se estranho e hostil, evocando alguns desenhos fantásticos de Piranesi. Então, a heroína mostra suas qualidades de senhora, à meia-noite, na exploração das escuras passagens que levam aos lugares ignorados e secretos do castelo do tirano. Depois de uma busca completa dos terrores reprimidos, descobre finalmente um misterioso objeto – um punhal, retratos evocando segredos de família, ou algum baú gigantesco contendo talvez algum esqueleto – a verdadeira "chave" que explica e desvenda os mistérios do passado...

LEITURA


A leitura, especificamente a de romances, aparece como um tema importante, se não o tema principal, de Northanger Abbey, desempenhando várias funções: distração apaixonante, então um centro de interesse, ainda pouco desenvolvido por causa da reputação mal estabelecida dos romances. Também é um caminho iniciático, uma opção para as jovens mentes se abrirem ao mundo, ajudando na diferenciação gradativa entre realidade e ficção, como, por exemplo, reconhecer uma amizade real e não apenas aparente.

ROMANCE GÓTICO

Northanger Abbey é geralmente citado pelo tratamento de paródia que faz dos romances góticos, então um dos gêneros em voga, visando entreter o leitor com um prazer apavorante. Tal sentimento tem apoio no ambiente apresentado (um velho castelo, como o Le Château d'Otrante, ou uma velha abadia, situada em um local lúgubre), além de uma intriga dramática, fértil em reviravoltas (L'Orpheline du Rhin) e recorrendo frequentemente ao sobrenatural (The Necromancer); além destas características, personagens emblemáticas: o monge demoníaco (The Monk, The Midnight Bell), o sombrio e atormentado "vilão" que persegue a heroína (Montoni em Les Mystères d'Udolphe, ou o conde Manfred em Le Château d'Otrante. Tal heroína seria, por exemplo em Les Mystères d'Udolphe, a bela Emily St. Aubert, salva pelo herói Valancourt. Todos estes temas e esses personagens bem conhecidos dos contemporâneos de Jane Austen, constituem o quadro de Northanger Abbey.

De forma um tanto anedótica, Northanger Abbey estabelece uma antologia seletiva dos romances góticos da época. Isabella Thorpe, a amiga de Catherine Morland, revela uma lista relevante de sete "romances abomináveis" em seu pequeno caderno de anotações, lista que ela calorosamente recomenda à sua amiga Catherine. Os romances em questão foram formalmente identificados em 1927 por Michael Sadleir e reeditados em 1968 The Folio Society sob o título The Northanger Set of Jane Austen Horrid Novels. São eles:

The Midnight Bell (1798), de Francis Lathom;  The Castle of Wolfenbach (1793), de Mrs Eliza Parsons;  Clermont (1798), de Regina Maria Roche; The Mysterious Warning – que é chamado erroneamente de Mysterious Warnings por Isabella Thorpe (1795), de Mrs Eliza Parsons; The Necromancer; or, The Tale of the Black Forest (1794), de Karl Friedrich Kahlert ; The Orphan of the Rhine (1798), d'Eleanor Sleath; Horrid Mysteries (1796), de Karl Grosse

Esta lista é frequentemente citada, pois representa a quintessência da novela gótica mais assustadora, e a seleção foi feita por Jane Austen. É também uma lista dos melhores títulos do gênero da Minerva Press, fundada em 1790 por William Lane, cuja especialidade corresponde aos romances góticos "horríveis", destinado a um público feminino de classe média: de fato, seis dos sete romances citados foram publicados pela Minerva Press, sendo a única exceção The Midnight Bell.

ROMANCE DE APRENDIZAGEM

Northanger Abbey apresenta características de um romance de aprendizagem, em que o herói ou heroína passam da adolescência para a idade adulta seguindo um caminho de aprendizagem. Através dos eventos, decepções, da confiança traída, Catherine Morland descobre a realidade da vida, aprende a reconhecer a verdadeira amizade e a distinguir as armadilhas da aparência, aprendendo no final que a vida real não se processa de acordo com as convenções da literatura que ela tanto ama.

Em vários dos livros mencionados em Northanger Abbey, como Camilla e Cecilia, de Fanny Burney, Belinda, de Maria Edgeworth, ou The History of Sir Charles Grandison, de Richardson, apresenta-se igualmente o tema da perigosa entrada no mundo dos adultos de uma heroína vulnerável e inexperiente. Os romances góticos de Ann Radcliffe que servem de pano de fundo à Northanger Abbey – tais como Les Mystères d'Udolphe, The Romance of the Forest ou A Sicilian Romance usam recursos semelhantes, simplesmente amplificando os perigos que entravam o caminho da heroína para o mundo adulto. Não é tão fácil, porém, separar os aparentemente muito diferentes gêneros do romance gótico e dos romances de iniciação de Richardson e Fanny Burney.

Jane Austen se inspirou igualmente nos contos para crianças publicados por Maria Edgeworth em 1796, The Parent's Assistant, que ela apreciava pelo fato de prepararem as crianças para a realidade do mundo moderno, orientando-os para a economia de mercado, convidando-os a conhecer o verdadeiro valor das coisas, sem se ater apenas à sedução imediata (como no conto The Purple Jar). Austen apresenta a diversão e futilidade da Sra. Allen, de Isabella e até mesmo de Catherine, quando do cabelo que adorna sua cabeça, ou até mesmo a forma como Sra. Allen não deixa de notar a renda que decora o manto de sua amiga Sra. Thorpe, mostrando assim aos olhos do leitor o ridículo de elevar renda e musselina a uma posição de importância na ordem das coisas.

DEFESA DO ROMANCE E DOS ROMANCISTAS

Em várias ocasiões, as obras de Austen tomam a defesa dos romances. Tal defesa é particularmente evidente em Northanger Abbey, através dos diálogos de Catherine Morland e Henry Tilney, e ao longo da trama, especialmente no fim do capítulo V (Jane Austen utiliza os mesmos termos que, mais tarde, utilizaria Margaret Oliphant).

Os romances estavam, então, em grande voga, especialmente entre as mulheres, cuja educação progredira consideravelmente no decurso do século XVIII. Tais obras são localizadas entre a origem desta evolução, entre 1692 e o final do século XVIII, quando a maioria dos romances era escrito por autores femininos. A cultura masculina do fim do século XVIII, compreendendo Swift ou Pope, vê com maus olhos a intrusão do espírito feminino na literatura, e um fácil jogo de palavras permitia a esses autores igualar as mulheres "publicadas" com "mulheres públicas", significando prostitutas. Muito gradualmente, até o fim do século XVIII, o romance passa a ser mais valorizado, especialmente com Clara Reeves e seu livro The Progress of Romance (1785), e depois com Joanna Baillie e William Godwin, precisamente na época em que Austen escreveu Northanger Abbey (1797-1798). Dessa forma, a defesa dos romances é, com Jane Austen, um fundamento para romancistas, haja vista serem eles próprios, muitas vezes, a denegrir o gênero: Maria Edgeworth, ao apresentar o romance Belinda, prefere classificá-lo como um "conto moral".

Margaret Oliphant faz em 1882 a defesa do romance feminino face à "nobre poesia» dos homens", pois na época o romance não possuía a aura literária da poesia, gênero nobre por excelência. Além disso, Oliphant, mãe de cinco filhos, historiadora e ensaísta, observa em 1882 que, se a cultura britânica celebra homens famosos por serem a origem do fluxo da poesia nobre na virada dos séculos XVIII e XIX, "negligencia o surgimento repentino, na mesma época, de uma forma puramente feminina de gênio literário”.

LUGARES E MODOS DE VIDA

BATH


Os “Assembly Rooms”, planejados por John Wood em 1769, são um conjunto elegante de "Quartos de férias", localizado no coração da parte histórica de Bath, Somerset, Inglaterra e hoje estão abertos ao público como um local turístico.

Apesar do título Northanger Abbey, a ação do romance não se passa inteiramente na abadia, mas em Bath, onde Catherine Morland permanece a maior parte do tempo, só chegando à abadia posteriormente. Ao comprometer-se com a escrita de Susan, Jane Austen passara algumas semanas em Bath, com sua mãe e sua irmã Cassandra, no final do ano de 1797. Lá, hospedaram-se na casa do irmão da Sra. Austen e sua esposa, Sr. e Sra. Leigh-Perrot, que costumavam passar os meses de inverno numa alta moradia, com vista para o Vale do Avon. Jane Austen e Cassandra se instalam em Bath quando seu pai, no final de 1800, decidiu ir para lá após a aposentadoria. Sem dúvida, esta segunda estadia contribui para uma visão um pouco diferente de Bath em outro romance de Jane Austen, Persuasão.

Bath é uma cidade turística, mas seu desenvolvimento na época de Northanger Abbey foi amplamente baseado na visita, por motivos de saúde, de Ana da Grã-Bretanha (1665-1714), no Século XVIII. Também é desta época Richard "Beau" Nash (1674-1762), que logo se tornaria o mestre da moda. No final do século XVIII, no entanto, Bath já inicia seu declínio, por causa de "novos ricos" e da classe média que fora atraída pela sua reputação.

É justamente nesse contexto que os Allen, acompanhantes de Catherine, vêm se instalar, a princípio por seis semanas, em uma confortável casa de Great Pulteney Street, recém construída a leste do Avon, que o separa do centro de Bath. Em sua primeira saída para o mundo, Catherine se rende às Assembly Rooms de Bath, situadas em Bennet Street, ao norte da cidade, perto da majestosa praça The Circus. Lá, ela descobre a agitação mundana da cidade, vai ao Upper Rooms e percebe não ter nenhum par que a acompanhe à pista de dança. Mais tarde, nos Lower Rooms, ao sul da cidade, não longe dos Pump Rooms, ela finalmente dança com Henry Tilney. Os antigos Lower Rooms, localizados na área onde atualmente estão os Parade Gardens, foram destruídos por um incêndio em 1820.

A ABADIA DE NORTHANGER

Enquanto Bath está ligado ao desenrolar do enredo do romance, em grande parte é na Abadia de Northanger que a segunda parte do romance se desenvolve.

A Abadia de Northanger, propriedade da família Tilney, constitui para Catherine Morland a realização de um sonho: que quadro mais bonito se pode imaginar para um romance gótico do que a velha Abadia? Como sugerido por Eleanor a Catherine, a abadia fora um convento da época da Reforma Inglesa, adquirida por um antepassado de Tilney na Dissolução dos Mosteiros, no século XVII, e os seus nobres elementos estavam preservados quando Catherine Morland os conheceu[6]. Após a dissolução, na verdade, muitos conventos foram reformados pelos seus novos proprietários para se tornarem residências, e Jane Austen estava provavelmente familiarizada com abadias convertidas, como a Abadia de Lacock, em Wiltshire, que visitara quando fora para Bath, com sua família, em 1797.

Um dos argumentos usados por Brian Southam para sustentar a ideia de que Jane Austen mudara significativamente sua obra após 1803, e provavelmente em 1816, é vinculado à proximidade dos temas revelados entre Northanger Abbey e Sanditon, o último romance da autora, escrito, segundo ela, em 1817. Sanditon realmente desenvolve temas de um modernismo inesperado, evocando uma sociedade de consumo, onde o desenvolvimento imobiliário era pleno, e onde a especulação e o afluxo de turistas inflacionaram o mercado. Sem ir tão longe, Northanger Abbey aborda muitos aspectos modernos, nomeadamente através do general Tilney, grande amante das últimas tecnologias avançadas.

Para o desapontamento de Catherine, com efeito, a venerável Abadia de Northanger sofreu nas mãos de seu proprietário muitas mudanças tecnológicas com a função de "melhorias": a antiga e majestosa lareira esculpida, que esperava encontrar na sala de estar, foi substituído por um hall adaptado e sem fumaça, com um mecanismo inventado dois anos antes por Benjamin Thompson; as janelas, que o general afirmara terem sido preservadas em seu modelo gótico, ganharam amplas vidraças, com uma iluminação mais moderna, “a forma era gótica [...] – mas todas as vidraças eram tão grandes, tão claras, tão iluminadas! Para uma imaginação que ansiara por compartimentos minúsculos e pela mais pesada cantaria, por vidros pintados, sujeira e teias de aranha, a diferença era bastante penosa”.

O general Tilney adota o modernismo em outros domínios: cultiva frutos exóticos, em grandes estufas aquecidas, para que possam ser usados na mesa fora de temporada. Nas cozinhas, também há uma organização moderna, em detrimento do caráter antigo da casa. A busca sistemática de eficiência reflete que sua associação à aristocracia ganhara agora ideias do capitalismo.

Catherine Morland, em visita ao presbitério de Henry, em Woodston, redescobre os prazeres simples da vida campestre, longe da aristocrática Abadia de Northanger.

OPOSIÇÃO ENTRE RICOS E POBRES

De modo mais geral, Jane Austen opõe, em Northanger Abbey, o espírito modernista dos «melhoradores», na acepção dos verdadeiros valores tradicionais de Henry Tilney e Catherine Morland. Isso irá refletir no maior interesse pela vida em Woodston, aldeia cheia de vida, onde está o presbitério de Henry, em comparação com o moderno e frio conforto da Abadia de Northanger, renovada pelo general. O surgimento de uma rica aristocracia leva, em 1790, a uma correspondente privação dos habitantes do campo inglês: em particular o “Inclosure Acts”, de 1801, que interrompera a vida do mundo agrícola em muitas partes da Grã-Bretanha.

Contudo, esta questão do “Inclosure Acts” não fora a única a aquecer os espíritos da época: assim, em 1795, quatro anos antes de Jane Austen se dedicar a seu romance, uma má colheita oferecera a oportunidade de ricos fazendeiros e comerciantes de grãos aumentarem seus lucros, reduzindo ainda mais suas entregas de trigo, para elevar o preço do pão. Esta manobra especulativa, conhecida sob o nome de forestalling, que resultou na visível riqueza para alguns e na “fome” para outros, foi condenada por Lord Kenyon, Chefe da Justiça da Grã-Bretanha e dos países de Galles, como contrária ao direito consuetudinário.

Sobre esse pano de fundo é interpretada a oposição entre o general Tilney, rico proprietário de terras, amante da modernidade, mas egoísta e calculista, e seu filho, o clérigo benevolente de uma aldeia hospedada pela indústria dos seus habitantes, em uma paisagem viva e variada (que é designada, então, pela expressão well-connected landscape). Essas questões políticas são evocadas por Henry Tilney no fim do passeio à Beechen Cliff, quando a vista sobre a paisagem lhe dá a oportunidade de passar das florestas de carvalho para as cercas que os rodeiam (inclosure), para as terras da Coroa e, finalmente, para qualquer política em geral.

CASAMENTO

Henry Tilney pede a mão de Catherine a seus pais, sob grande surpresa. Se o casamento de amor triunfa em Northanger Abbey, com a união de Catherine e Henry, permitindo o de Eleanor e seu pretendente de longa data, este é o primeiro e independente do dinheiro, que parece ser o propulsor do casamento para os outros protagonistas da novela, em particular para o general Tilney, totalmente desprovido de romantismo e puramente mercenário sobre a abordagem do casamento. Apesar de muito rico, o dinheiro é o derradeiro desafio para ele: ele trata Catherine com polidez excessiva quando acredita que ela é rica, mas quando descobre através de John Thorpe que, na verdade, não teria nenhuma esperança de dote, um pânico real toma conta dele. O General Tilney também coloca suas ideias em aplicação por conta própria, desde que se casou com sua esposa sem amor, apenas pelo seu dinheiro.

Por seu lado, Isabella e John Thorpe também têm uma visão muito mercenária do casamento; isto é aparente no caso de Isabella e torna-se evidente com seu irmão, quando o percebemos com divagações financeiras inspiradas na situação de Catherine Morland.

UM ROMANCE POLICIAL A DESVENDAR

Destaca-se o caráter de "romance policial sem policial" (uma história de detetive sem um detetive) de Emma. Em menor grau, destaca-se essa mesma característica em Northanger Abbey. Na verdade, ele pode ser o objeto de uma releitura, considerando-se as pistas reveladas ao longo do romance.

Assim é o papel da família Thorpe e suas motivações, que permitem uma releitura mais bem-sucedida, considerando-se as fantasias de John Thorpe sobre a riqueza potencial de Catherine Morland, como sendo ela a única herdeira dos Allen. O interesse que ele manifesta, de maneira grosseira e sem grande disfarce, pela rica herdeira que imagina em Catherine, não é como o fruto de seus próprios pensamentos? Não é esse o interesse de sua irmã Isabella, e até de sua mãe?. Os jovens Thorpe, portanto, órfãos de pai, são pobres e sem dote em busca de um bom casamento para ambos. É realmente por uma feliz coincidência as três jovens Thorpe e sua mãe chegarem em Bath ao mesmo tempo que os Allen de Fullerton – ricos amigos da Sra. Thorpe e seus filhos – acompanhados de sua protegida Catherine? É coincidência que John Thorpe chega a Bath em companhia de seu amigo James Morland, que tanto falara de sua irmã Catherine e do interesse dos Allen para com ela, quando os Thorpe o receberam em Putney para o feriado de Natal? E até mesmo é por acaso que em primeiro lugar John Thorpe tenha feito amizade em Oxford com uma outra pessoa de Fullerton, James Morland? E como não poderia se deixar de notar com surpresa o interesse imediato que reflete a jovem Isabella para com Catherine e sua presença constante, ao longo de "oito ou nove dias" antes da chegada de seu irmão John?

Na primeira parte do romance, Isabella aparece, portanto, como uma formidável conspiradora, que não hesita em pôr em risco a felicidade de sua "amiga" Catherine, buscando constantemente deixá-la longe de Tilney, para o benefício de John, apesar de a fixação de Catherine por Henry lhe ser bem conhecida.

PARÓDIA

De todos os romances de Jane Austen, Northanger Abbey é aquele cujo aspecto de paródia é mais importante. A obra é sobretudo hoje conhecida pelo seu tratamento para com os romances góticos, e traz mais a vibrante zombaria paródica da adolescente Jane Austen do que os grandes romances realistas de sua maturidade, tais como Mansfield Park, Emma ou Persuasão.

Jane Austen parodia abertamente os romances góticos em três passagens específicas: Uma das passagens ocorre durante a primeira alegria violenta que toma conta de Catherine, quando ela compreende o que é capaz de viver numa abadia gótica, um ambiente ideal para uma aventura verdadeiramente romântica: então pensa em voz alta, evocando as suas expectativas neste lugar mágico, com seus longos corredores e paredes úmidas, sua capela em ruínas, e, talvez também, a chance de adentrar em alguma lenda do passado, ou mesmo "terríveis memórias da presença de alguma freira ferida no destino trágico".

Das palavras de Henry Tilney, neste momento, está a passagem que expõe Catherine, com um prazer lúdico, ante os "horrores" que provavelmente contém a antiga Abadia, casa isolada, enorme e cheia de trevas, que não podem ser atribuídas para o outro extremo da casa, “um retrato que exerce sobre você uma fascinação incompreensível, a tal ponto que não é possível desviar os olhos, ou uma porta que você vai descobrir, com um terror renovado, que não pode ser fechada". E Henry continua então, mediante o interesse de Catherine, a imaginar as aventuras que lhe trará a Abadia de Northanger, até o momento em que ela retorna para seu quarto após descobrir um manuscrito valioso nas entranhas da Abadia, “sua lâmpada de repente expira na tomada e deixa você na escuridão total”. Todas as aventuras imaginárias que podem reforçar a segurança de Catherine, e que aguardam terrores maravilhosos, assim como a descrição de Henry em todos os seus aspectos estão de acordo com a abordagem de Ann Radcliffe do romance gótico.

Ponto relevante, finalmente, das aventuras góticas, é a aplicação da teoria por Catherine. Após uma primeira busca, realizada à noite em seu quarto, que a pode levar a um resultado decepcionante, Catherine estabelece argumentos para provar que o general é maléfico, assassino de sua esposa, coisa que ela acredita ter adivinhado. Depois de submeter Eleanor a um fogo de perguntas sobre sua mãe, ela começa, então, uma exploração que leva aos apartamentos, claros e sem mistérios, da falecida. Suas suspeitas, quando são percebidas, recebem um verdadeiro sermão de Henry Tilney, que a surpreende no topo das escadas. Catherine, vermelha de vergonha, percebe que assimilou certos caracteres dos arquétipos dos romances que ela leu, e que perdeu qualquer espírito crítico, abandonando-se à imaginação mais extravagante.

JOGO DE PAPÉIS

O romance de Jane Austen segue maliciosamente conforme o cânone do romance gótico, através de cada um dos personagens, adequando-se às funções clássicas destes romances. Há, naturalmente, a própria heroína, Catherine Morland. Jane Austen mostra rapidamente, logo nas primeiras páginas, o mal que a garota assimila, pelo fato de aos seus quinze anos ser tão pouco preparada. Este é o centro do romance, através dos olhos do leitor, que vê a se desenrolar trama. Por sua parte, Henry Tilney encarna o herói cheio de mistério, que se empenhará em salvá-la.

Se o general Tilney é a transposição do "vilão" Montoni de Les Mystères d'Udolphe de Ann Radcliffe, papel que lhe é atribuído explicitamente por Catherine Morland, há também a figura do "raptor", que envolve a heroína, apesar de sua resistência; em Northanger Abbey esse personagem é John Thorpe, que leva Catherine contra a sua vontade em uma excursão distante, ao galope de seu cavalo. Sua irmã Isabella, por outro lado, aparece no papel de "falsa amiga", incluindo os reiterados protestos de amizade no início, abusando da credulidade da heroína.

No entanto, a fronteira entre as características góticas e a realidade às vezes é bastante teórica: foi observado que a única "evidência" que é oferecida da inocência do General Tilney é o seguinte argumento de Henry à Catherine: “Lembre-se de que somos ingleses, de que somos cristãos. (...) É possível que (tais atrocidades) sejam perpetradas e permaneçam ignoradas, num país como esse (...)?”. Tudo repousa sobre o fato de que Henry Tilney parece assumir o papel de “porta-voz de Jane Austen”. Também foi observado que a idade de Henry Tilney estava muito próxima à de Jane Austen, quando ela escreve o romance (tinha 24 anos em 1799).

IRONIA


Mais do que em seus outros romances - porque Northanger Abbey, obra da juventude de Austen, está mais próximo ao tom de Juvenilia - o bom humor e a ironia constante estão presentes no romance, mas atingem todos os da primeira fase. Assim, pode ser classificado rapidamente, como de um humor burlesco, inconsciente. Em outros momentos, as classificações são mais mordazes, indo para o tom de humor negro. Logo na primeira página, aprendemos, por exemplo, que a Sra. Morland teve três filhos antes do nascimento de Catherine: “Ela tivera três filhos antes do nascimento de Catherine, e em vez de morrer ao trazer esta última ao mundo, como seria de se esperar, seguiu vivendo – viveu para ter mais seis crianças”.

Da mesma forma, é com ironia que Jane Austen sublinha a ingenuidade de Catherine, quando acredita cegamente em sua amiga Isabella na ocasião em que ela expressa o amor por seu irmão, James Morland: “continuou Isabella, '(...) pensei que jamais tinha visto alguém tão bonito antes'. Aqui, Catherine reconheceu secretamente o poder do amor, pois, embora adorasse muitíssimo seu irmão, (...) nunca em sua vida o julgara bonito”.

A sabedoria e o conhecimento adquiridos por Catherine Morland na leitura dos romances góticos são também objeto de uma nota irônica da autora: “Bem versada na arte de esconder tesouros, não se esqueceu da possibilidade de que existissem revestimentos falsos nas gavetas, e tateou cada uma delas com ansioso zelo, em vão”.

Tanto a impaciência febril que demonstra Catherine, quanto seu enorme desejo de visitar Woodston, a aldeia onde se encontra o presbitério de Henry Tilney, ambos Jane Austen contrasta com o curso imprudente dos dias: “pois chegou, (a quarta-feira), exatamente quando se poderia esperar que chegasse”.

DISCURSO INDIRETO LIVRE


O primeiro dos grandes romances de Jane Austen, Northanger Abbey ao mesmo tempo é um romance de juventude, onde a autora ainda busca o seu estilo. Ela experimenta várias formas de narrativa, que às vezes se misturam, criando uma sensação de confusão ou perplexidade.

A. Walton Litz sublinha a impressão de que Jane Austen, na maioria das vezes, parece expressar sua opinião através da voz de Henry Tilney, e isso acontece na fala direta (intrusão do autor na narrativa), ou mesmo na ironia de Henry. A percepção do lugar do romance é afetada, de forma que o leitor a perceba como "chocante". Outras vezes, Jane Austen usa o que se tornaria uma das marcas de seu estilo, o discurso indireto livre: uma narrativa cuja característica é a não utilização do verbo introdutório ("falar", "dizer" ou "pensar"), apresentando livremente e sem intermediários os pensamentos dos personagens. Jane Austen faz, por exemplo, sua heroína Catherine Morland pensar em voz alta, durante suas voltas de frenética imaginação pela Abadia, em lugares escondidos e dramáticas sombras, entre a gótica extravagância que ela tanto aprecia: “O sangue de Catherine gelou com as pavorosas sugestões que emanaram naturalmente de tais palavras. Seria possível? Poderia o pai de Henry…? E contudo eram tanto os exemplos que justificavam até mesmo as mais negras suspeitas!”. Além disso, o discurso indireto livre permite frases incompletas e cortes, para explicar a emoção de Catherine, cujas ideias batem umas contra as outras. Esta forma de narrativa é emprestada das fábulas de Jean de la Fontaine, e foi introduzida, como recorda Margaret Anne Doody, na literatura inglesa por Fanny Burney e algumas outras mulheres escritoras no final do século XVIII.

O estilo indireto livre, pelo seu segmento, poderia ser visto como uma forma de ironia, na medida em que o autor pretenda aderir às palavras do personagem; por outro lado, também pode ser visto como um sinal de simpatia ou de empatia com o leitor. Esse tom irônico é evidente em Northanger Abbey, onde Jane Austen dá livre curso à imaginação juvenil de Catherine Morland.

ADAPTAÇÕES PARA A TELA


Embora tenha havido várias adaptações de rádio pela BBC desde 1949 e muitas adaptações teatrais, a primeira, por Miss Rosina Filippi, data de 1895, a mais recente em 2008, pela Dorset Corset Theatre Company, há apenas duas adaptações para a tela:

2018 : Orgulho e Paixão (novela). A personagem Cecília, interpretada por Anaju Dorigon, é inspirada no livro

2007 : Northanger Abbey, telefilme de Jon Jones para a ITV1, com Felicity Jones no papel de Catherine Morland e J.J. Feild no papel de Henry Tilney;

1986 : Northanger Abbey, filme de 88 min de Giles Foster, com Katharine Schlesinger no papel de Catherine Morland e Peter Firth no papel de Henry Tilney, estreando em 15 de fevereiro de 1987 pela BBC, na transmissão de Screen Two.

Fonte:
Wikipedia

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 429

 


Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando Três) Pra tudo há solução


Os dois homens,  o senhor Alceu e o senhor Moacir, conversam na porta do  galpão. O galpão é de propriedade do senhor Alceu, que aparentemente parece furioso.

Senhor Alceu:

— Só me responda uma pergunta, senhor Moacir

Senhor Moacir:

— Se estiver ao meu alcance...

Senhor Alceu:

— Estará, com certeza. O velho Euclides me deu a cunha. Seu Assis passou nos cobres o machado, seu Jânio foi na feira de domingo e trocou os quadros por batatas, cenouras, melancias e bananas.. Aquele baixotinho... Diabo, como era mesmo o nome dele?

Senhor Moacir:

— O Pero Vaz?

Senhor Alceu:

— Esse mesmo. Nome mais desgraçado!

Senhor Moacir:

— O que tem o senhor Pero Vaz?

Senhor Alceu:

— Vendeu a caminha onde dormia para meu filho Bisoião.

Senhor Moacir:

— E lhe deu o dinheiro, certamente?

Senhor Alceu:

— Não. Botou no bolso e deu linha à pipa. O Silvio, que parecia ser o mais responsável, fugiu pra Santos. O Fernando, sabino que só ele, anoiteceu e não amanheceu, o Paulo, outro sem vergonha, me deixou um coelho. Nem sei o que vou fazer com o pobre bichinho. E o Guimarães, quase bati nele. Deu uma rosa para minha esposa. Carinha safada, esse um... Afinal, nessa confusão toda, seu Moacir, quem me pagará o aluguel aqui do galpão que eu aluguei pra vocês?

Senhor Moacir:

— Seu Cristóvão.

Senhor Alceu:

— E posso saber com quê?

Senhor Moacir:

— Claro

Senhor Alceu:

— Então diga ai...

Senhor Moacir:

— Co’ lombo.    

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 12


Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) IV


CANSAÇO

No cansaço da noite, entre os cansaços,
tive um sonho esquisito e diferente,
pois, sonhei abraçado noutros braços,
entre os braços da noite, descontente.

Ante um sonho, outro sonho e, de repente,
eu me sinto algemado noutros laços,
como quem segue a vida loucamente,
controlando as pegadas de outros passos...

E, eu sonhando e sonhando pouco a pouco,
fui ficando no sonho quase louco
nessa louca paixão que não passou...

Se os teus beijos, neguei sem ter ressábios,
quero agora, pagá-los noutros lábios
esses beijos que a vida me negou!
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DELÍRIOS DA AURORA

Quando a aurora bem cedo abre a cortina,
ante os raios do Sol, o orvalho chora,
pestaneja no céu a luz divina
e resplende, na terra, a luz da aurora!

Basta o olhar dessa aurora peregrina,
passageira que, ao longe, o céu decora,
e, aos pouquinhos, dos braços da campina,
o silêncio da noite vai embora!

Sobre as copas de antigos arvoredos,
lindas aves revelam seus segredos,
dando vivas, à luz do Sol nascente...

E entre coros, canções, ressurge a vida,
despertando essa paz adormecida,
que adormece de novo ao sol poente!
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ILHA DE SANT'ANA

Tua origem, de fato, ninguém sabe,
mas nasceste das cinzas deste pó;
Ilha amada, em teu ventre, tudo cabe,
aos sussurros do velho Seridó!

Que teu nome, no tempo, não desabe,
nem te deixem viver assim tão só;
que o teu canto de amor nunca se acabe,
ante o olhar de Sant'Ana, nossa avó!

Sob as bênçãos de nossa padroeira,
e os arpejos de cada cachoeira,
que deságua nas terras deste chão...

Quando o rio, de verde se reveste,
tens a imagem mais pura do Nordeste,
e és a Ilha mais linda do sertão!
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MATIZES DA AURORA

Brindo e abraço, na aurora, outra alvorada,
todo dia, da porta do meu quarto,
no silêncio da velha madrugada,
ouço o choro da luz de um novo parto!

Esse raio de luz que eu não descarto,
no meu teto, depressa, faz morada...
Abro portas, janelas, não me farto,
não me canso do olhar da luz dourada!

E essa luz, em silêncio, a caminhar,
traz o brilho da aurora, em seu olhar,
apagando, da noite, a treva ardente...

E entre cantos, sussurro e mil respingos,
põe, nas luzes do orvalho e em ternos pingos,
os matizes da luz do Sol nascente!
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VIVA PLENAMENTE

Pelas trilhas tortuosas dos caminhos,
há empecilhos, bravatas e há temores...
Quanto sonho vencido entre os sozinhos,
quanta glória perdida entre os amores!

Nas angústias do mundo há mais espinhos
do que o cheiro da paz que tem nas flores...
Mas sem ódio e sem mágoa, em nossos ninhos,
nosso sonho de amor inibe as dores!

Deixo, em poucas palavras, meus apelos;
- Por que sempre guardar seus pesadelos
se a esperança cochila ao pé da porta.

Pode haver plenitude, em meio aos trapos;
A esperança não morre entre os farrapos
e viver plenamente, é o que me importa!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Carlos Eduardo Novaes (Aeroporto de Congonhas, uma, duas, várias vergonhas)


Ao ser inaugurado, em agosto de 1934, Congonhas era considerado um modelo de “obra aeroviária”. Como todo bom aeroporto que se preza, também ficava a alguns minutos da cidade. Cedo, porém, os executivos paulistas, sempre muito atarefados, começaram a reclamar que não podiam perder esses minutos entre a cidade e o aeroporto.

– O senhor compreende – queixou-se um executivo a uma autoridade da época – esse percurso nos rouba um precioso tempo. Será que não dá pra chegar a cidade um pouquinho mais para perto do aeroporto?

A autoridade fez um ar de indignação e exclamou que a proposta “era um absurdo”; mas como São Paulo não pode parar – e não pode parar nem pra pensar – não tomou nenhuma providência. A cidade então foi se aproximando, já ajudada pela população em geral, que desde o início se amarrou em fazer programa no aeroporto. Várias famílias inclusive venderam suas casas de campo e compraram outras em Congonhas para poderem passar um fim de semana mais tranquilo no aeroporto. A cidade continuou sorrateiramente se aproximando, se aproximando, pegou as autoridades distraídas e de repente fez o que os índios fazem com as diligências nos bangue-bangues americanos: cercou o aeroporto.

Hoje, os aviões sobem e descem passando a dois palmos dos telhados das casas e, enquanto outros locais da cidade exaltam suas pracinhas, igrejas, monumentos, lagos, residências, Congonhas se vangloria de ser o único bairro metropolitano em todo o mundo que possui um aeroporto internacional na esquina de suas ruas.

O Aeroporto de Congonhas é um digno exemplo do milagre brasileiro. É realmente um milagre que no local ainda não tenha havido um acidente de proporções supersônicas. O aeroporto está condenado desde o congresso brasileiro aeronáutico, realizado em 1958. Sua pista principal tem 1 mil 867 metros e não oferece os padrões de segurança necessários às operações com jatos. Para vocês terem uma ideia: um Boeing-727 necessita de 3 quilômetros de pista para aterrissar ou decolar. E não é muito raro se ver um avião, ao pousar, abrir os paraquedas, para não varar a pista e sair lá pela Avenida Rubem Berta. Ano passado, um turboélice errou nas contas, atravessou a pista e foi bater num poste na Avenida Jabaquara, causando o maior congestionamento no trânsito. A perícia demorou três horas para chegar (o que não é muito: para os carros demora duas horas) e entre outras coisas concluiu que a empresa deveria pagar uma multa ao Detran.

– Mas – indagou o funcionário da empresa – multa por quê?

– Por avanço de sinal, é claro – disse o perito. ­ Várias testemunhas afirmaram que o sinal estava fechado para o seu avião.

E o pior, meus amigos, é que as pistas de Congonhas não podem ser aumentadas, sob pena de se misturarem com as ruas. Já se pensou na solução dos viadutos. São Paulo seria a primeira cidade do mundo a ter uma pista de pouso em cima de um viaduto. Depois, porém, chegou-se à conclusão de que, pelo tamanho, seria muito oneroso: para satisfazer aos jumbos a pista do aeroporto teria que começar mais ou menos na Praça da República.

Vivendo anos debaixo do ruído permanente das aeronaves, os. moradores de Congonhas, aos poucos, foram modificando seus hábitos, seus costumes, seus encontros:

– Eu queria dar um pulinho aí para lhe ver – disse uma amiga da tia do Aristides, falando pelo telefone.

– Venha mesmo – respondeu a tia – que nós precisamos conversar.

– E qual é a melhor hora pra você? Ah, venha depois do Boeing das oito.

As janelas das casas, por exemplo, só tem a armação.

Os vidros foram dispensados em 1958, quando chegou o primeiro jato. Sempre que levantava voo, o jato quebrava todas as vidraças do bairro. Os espelhos, para não estilhaçarem, já são comprados aos cacos. As antenas de televisão são subterrâneas. Uma vez, um Lockheed calculou mal a descida e aterrissou com 11 antenas de televisão espetadas no bojo. Apesar de todas as precauções dos moradores, às vezes ocorrem certos imprevistos. Não faz muito tempo, um Jumbo passou tão baixo que arrastou as roupas que estavam estendidas num quintal. A dona da casa teve que ir reclamar no balcão da companhia:

– Boa tarde – disse ela – eu vim buscar minhas roupas que vieram nesse Jumbo que acabou de descer.

– Pois não – falou a recepcionista – qual é o número de sua mala?

– Não. Elas não estavam na mala.

– Não? – voltou a moça. – Estavam onde, então?

– Estavam no varal lá de casa.

Ninguém no bairro usa relógio. Todos se orientam pelos voos. Na casa da tia do Aristides a família acorda às 6h43m quando passa o Viscount prefixo PP-PTB; toma banho às l0h29m, na passagem do Boeing-747; almoça às 12h43m com o Caravelle. Aristides, que passou uns dias em Congonhas, ficou impressionado com a tarimba da tia. Um dia acordou e perguntou a ela como estava o tempo lá fora.

– Nublado.

– Mas como é que a senhora sabe, se nem olhou? Nem precisa. Tem um YS-11 há meia-hora roncando aqui em cima. Não há teto para descer.

Em Congonhas, entretanto, corre-se o risco de dormir na cama e acordar na poltrona de um DC-10. Uma vizinha da tia de Aristides conta que uma noite bateram na sua casa às quatro horas da manhã. Ela se levantou e quando abriu a porta deu de cara com um Boeing. Mais desagradável, porém, do que ver um Boeing entrando pela sala sem ser chamado são os problemas causados pela poluição sonora. São 300 decolagens ou aterrissagens por dia, o que dá em média um ronco de avião a cada quatro minutos. Como o ruído dos jatos alcança 140 decibéis – o ouvido humano suporta sem danos 85 – conclui-se que os moradores de Congonhas em matéria de barulho são vice-campeões mundiais. Só perdem mesmo para os moradores do Cabo Kennedy, onde os foguetes espaciais decolam a 180 decibéis. Segundo um trabalho da UNESCO, o maior consumo de algodão em todo o mundo é no bairro de Congonhas.

No Hospital do Servidor Público, próximo ao aeroporto, a primeira providência para com uma criança ao nascer é botar-lhe algodão nos ouvidos. Depois, então, corta-se o cordão umbilical. Aliás, é curioso como o resultado de uma pesquisa recente revelou que 90% dos meninos do bairro ao crescerem querem ser soldados. E por que isso?

– Pra poder servir nas baterias antiaéreas.

– E o pessoal aqui do bairro normalmente dorme bem? – perguntou o entrevistador.

– Dorme.

– Ninguém tem insônia?

– Às vezes. Um ou outro.

– E quando não se consegue dormir – voltou o en­trevistador – que é que vocês fazem? Contam carneirinhos?

– Não senhor. Contar carneirinho é coisa do passado.

– Também acho – concordou o entrevistador. ­Que fazem, então?

– Contamos aviões.

Há, contudo, casos excepcionais, como o do marido da tia do Aristides, um senhor de 92 anos (20 a mais que ela), cujas profundas olheiras impressionaram tanto a Aristides que ele foi perguntar à tia: “Ele está doente?”

– Não. É que não dorme desde 1958.

– E por quê?

– Não conseguiu se adaptar ao barulho dos jatos – explicou ela – estamos aqui desde 1930. O ruído dos aviões a pistão e turboélices ele não teve dificuldades em assimilar, mas com os jatos não conseguiu. Disse que já estava muito velho para se adaptar a um novo ronco.

Quando, porém, soube da chegada do primeiro super­sônico a Congonhas, o velho correu para a janela. E ficou maravilhado diante do silêncio com que o avião pousou… Voltou para dentro de casa aos berros: “Estou salvo, viva, viva, até que enfim inventaram um avião silencioso, agora poderei dormir, viva” – e comemorando abraçava a todos até ser interrompido bruscamente por um vigoroso estrondo que parecia estar rachando o céu. Parou lívido no meio da sala e perguntou:

– Que foi isso?

– O som do avião.

– Mas que avião? – perguntou o velho consultando os céus. – Não tem avião agora.

– Foi do que acabou de descer. Ele não é mais rápido que o som? Então. Com avião supersônico é assim mesmo. O som chega sempre com 10 minutos de atraso.

Mas afinal, perguntarão vocês, por que essa conversa toda sobre o aeroporto de São Paulo, se nós moramos no Rio? Porque parece que agora as coisas vão mudar. Reconhecendo que o ruído dos aviões vem criando graves problemas para os moradores de Congonhas, as autoridades resolveram interditar os voos das 22 às 6 horas da manhã, para que o pessoal possa dormir mais um pouco.

– Mas por que só em Congonhas? – perguntou um carioca. – E o pessoal da Ilha do Governador?

– Bem – respondeu um funcionário do DAC – o pessoal da Ilha tem que esperar. Afinal, não pode dormir todo mundo ao mesmo tempo.

E eu fico aqui pensando, irmãos, que isso, e muito mais que não contei, acontece exatamente na terra do pai da aviação. Como não estaríamos, então, se isso fosse apenas a terra de um primo da aviação?

Fonte:
Carlos Eduardo Novaes. O caos nosso de cada dia. Publicado em 1976.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 428

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 7 e 8


A PERFEITA SABEDORIA

A verdadeira sabedoria está nos livros não escritos, isto é, nas folhas de papel em branco, reunidas em volumes encadernados. É a conclusão de um bibliófilo que se tornou filósofo. Trocou os livros impressos, que lhe feriam a vista, por outros de imaculada brancura, e verificou que neles reside a essência do conhecimento.

Gostava de abri-los ao acaso e passar os dedos, suavemente, na superfície virgem. Nenhuma teoria falsa, nenhum erro habitava aquelas páginas. Pelo contrário: era como se o saber fora de discussão se aninhasse ali. O saber é branco, refletiu ele. As mentiras são coloridas, e as letras são a representação visual de sofismas ou enigmas carentes de interpretação.

Sua biblioteca se foi reduzindo, porque a imperfeição do papel era de certo modo um erro, e o nosso homem fugia dele. Às vezes não era defeito de fabricação, mas simples dobra ou sinal de unha deixado por alguém. O volume era condenado e, de redução em redução, a biblioteca se constituiu num só livro, que continha a verdade absoluta e suprema.

Folheá-lo seria risco imensurável, pois se acaso a página se rasgasse? Uma gota de café pingasse, ou a cinza do cigarro? Nunca mais o abriu.

O livro foi posto sob redoma. O sábio contemplava-o em êxtase. Dormia feliz, certo de que a sabedoria inefável estava a dois passos da cama, protegida.

O calor partiu o cristal da redoma, e ao retirar o livro dentre os estilhaços ele cortou a mão, que sangrou sobre o volume, conspurcando a perfeita sabedoria. Nunca mais foi feliz.
****************************************

A SALVAÇÃO DA PÁTRIA

No bar, os bêbados salvaram a pátria. Se os planos eram em forma de chope, a salvação fazia-se tranquila, e o superempréstimo internacional, garantido pela exploração intensiva da Manihot utilissima durante vinte anos, traria o desejado equilíbrio financeiro, social e humano.

Os argumentos revestidos de uísque suscitavam maior debate, diversificando-se de modo a abranger desde o resgate da dívida externa, mediante empréstimo compulsório de mil cruzeiros por cidadão, durante doze meses, até a redistribuição efetiva da renda nacional, fosse qual fosse o per capita, ficando cada brasileiro, daí por diante, pago e quite com o governo, sem direito a reclamar senão votos de boas-festas.

Uma sugestão à base de vodca foi repelida, porque exigia de cada cidadão três horas de serviço braçal pesado em usinas, abertura de estradas, construção de viadutos etc.

O garçom Foguinho, estimado por todos, sugeriu que, à vista de já raiar sanguínea e fresca a madrugada, a salvação da pátria fosse adiada para a noite seguinte. Todos aplaudiram o alvitre e, retirando-se cambaleantes, entraram em acordo, fosse qual fosse o plano a ser adotado. Foguinho foi incumbido de executá-lo, no mais alto posto da nação. Agradeceu a prova de confiança e jurou que, na eventualidade, tudo faria para o bem de todos.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Pedro Du Bois (Poemas Escolhidos) 8


ÁPICE

No ápice do sucesso
percebe o apagar
das luzes

reflete a escuridão
em que se aventura
longe do futuro

o tempo disponibilizado
no alargar da terra
ao largar a terra
no largo abraço de despedida

o ápice recontado
prepondera no corpo
estendido: nas cobertas
o frio esquecimento.
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APRENDENDO A VOLTAR

I


aprendo a voltar
e me perco
em recordações:

o passado
petrificado
em passos
o retorno
fechado
em acasos

aprendo ser a volta
o pior do encontro

o rasgo instantâneo
do corpo ao mistério.

XXIX

voltar é a representação gráfica
do naufrágio
e
a antevisão do encontro
não acontecido
ao acaso

nos cestos os ovos permanecem
estáticos em vidas
interiores

anteriormente
pensei desenhos
decompostos em traços
onde enredei
o sentido
da lembrança

a vida explode receptáculos
e retorna como sina.
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CERCAS

Fragilizo a cerca e com passos rápidos
encerro minha carreira: o esconderijo guarda
o medo ressentido no vento contra os vidros:
aguardo o tempo anunciado e do escuro
saio assustado buscando
na distância a cerca
onde me instalo: o vento geme a minha dor
desacostumada: o ar gira o grito desumano
em que perco as lembranças: fortifico
a cerca com incertezas: escondo a lágrima
e com o rosto seco saio ao relento:
ouço a voz do irrealizável: abro
a cerca ao farpado arame
e deposito a carne: encerro a vista
em lamentos: a tormenta se afasta.
****************************************

DEPOIS

Depois: irmanado em tanques
de tiros desajustados invado a obra
e retiro dos escombros o motivo
preso ao desafio de pazes descumpridas.

Declaro guerras aos insanos tímpanos
insistentes em músicas e letras no artifício
de transformar barro em coisa: coisificar
a pedra: estátuas acompanham a passagem
e me entregam com a falta de respeito: quieto
e saliente permito o passo da conquista.

Depois: interrompo a luz e me desfaço na poeira.
Exalo suspiros de vingança e ao perceber a falha
pego no ar a fragrância daquele corpo de mulher.
****************************************
NÃO

Não desgosto estar contigo
comigo o anzol pesca
o sol queima o mosquito
o mar avança suas ondas

teu sonho impenetrável
não me recebe e não sonho
no sono que me faz acordado

meu livro marca a folha ilegível
e na música – a minha – o tom
agudiza a lembrança: a solidão
contempla de forma amigável

estar contigo é aguardar
a hora – que me falta –
necessária ao corte da fruta
amadurecida: reter no copo
o líquido e esquecer o anzol
dentro d’água.
****************************************

VERGONHA

Rubro rosto
na vergonha
da palavra

o comprimido sobre a mesa
o copo d’água

rubra face
na vergonha
do encontro

comprimidos sobre a mesa
o copo d’água

lívida face no desencontro
sobre a mesa o copo vazio.
****************************************

outros poemas:
http://pedrodubois.blogspot.com.br


Fonte:
Poemas enviados pelo poeta

Monteiro Lobato (Gens ennuyeux*)


— QUERES IR? — indagou Lino, espichando-me um convite. Li: A Sociedade Científica, ahn, ahn... convida, ahn... a conferência versará sobre a História da Terra.

— É, A tese é "catitam vais"?

— Está-me apetecendo conhecê-los aos nossos sábios.

— Sábios — rosnei —, gens ennuyeux...

— Nem sempre — contraveio Lino. — O assunto é magnífico — e depois, que diabo!, uma penitenciazinha de vez em quando, por amor à ciência...

— Pois vamos — resolvi com intrepidez.

— Às oito, rua tal.

— Lá estarei sem falta.
••••••••

Ao assomarmos à porta já as cadeiras do grande salão se pintalgavam de graves sobrecasacas científicas, encimadas por carecas luzidias, em cujo espelho punha gangrenas de luz (perdão, Apolo!) a luz violácea do arco voltaico.

Entramos com religiosa compostura, pisando com passos humílimos o augusto piso do Pagode da Ciência.

No rosto do meu amigo vi uma leve expressão de terror sagrado. Os quíchuas, quando davam de chofre com o Eldorado, haviam de ficar assim...

Lino comovia-se deveras e foi balbuciante que cochichou:

— Sábios, hein?

Sentamo-nos devagarinho e pusemo-nos a olhar. Novas sobrecasacas chegavam, aos magotes de três e quatro, compenetradas, meditabundas. Eram novos sábios de variado estilo. Havia o estilo-fiambre: gente vermelha, com sangue à flor da pele em permanente congestão. O estilo-melado: gênero de importação alemã. O estilo-ball: queijos de Palmira com o vermelho substituído por um palor circular de cabelugens* ralas. O estilo-clorose: rapazes de peito cavo e barba a espontar ingenuamente, macilentos de tez, olhos de bezerro disentérico, em cujas meninas — meninas dos olhos — pareciam boiar hipotenusas de braços dados a binômios de Newton.

À nossa destra suava uma rubra apoplexia alemã, enchouriçada em sobrecasaca de debrum contemporânea do iguanodonte, cujas costuras cediam à pressão das enxúndias* comprimidas; sua mão gordita, recoberta de dourados pelinhos, alisava a grelha cor de fogo como quem alisa um gato de luxo.

Mais adiante, um amplo burguês, barbaçudo, verrugoso, bexiguento, fungava a suar. À sua frente, sorrindo com bondade em meio dum grupinho amigo, uma espécie de criatura do sexo neutro, acondicionada em alpaca, sem um só enfeite e cujos cabelos grisalhos se erguiam em ríspido pericote sob a copa acartolada dum chapéu masculino. Discutia Cuvier.

— É a doutora Mariote... — sussurrou-me o Lino. — Uma sábia sapientíssima!...

Mais além, um oculista de nomeada; depois, um pomólogo*; em seguida um filósofo, uma parteira, um charlata, um lente de geometria, um fisiopsicopatologista.

Nós, miserandos intrusos, vexados da nossa espessa ignorância a dois, comentávamos baixinho, com respeitosa deferência, as efígies hirsutas daqueles paredros* que davam de tu* a Minerva. Lino nem falava: ciciava tatibitate.

Aquela face da sociedade nos era de todo desconhecida. Tudo ali cheirava a novidade. O próprio ar nada tinha do ar comum das ruas: pairava nele um cheirinho sutil a raízes cúbicas.

À frente do salão havia uma comprida mesa em cujo centro o presidente da Sociedade — um rolete de homem cor de salame — cofiava os bigodinhos ruivos, bamboleando no ar pés que não alcançavam o chão. Ladeavam-no dois bonitos secretários a remexerem atas. Sobre a mesa, enfileirada, uma récua de bichos pré-históricos em miniatura — estegossauros, plesiossauros, iguanodontes e um mamutezinho que escancarava a goela vermelha num urro mudo.

— Dlin, dlin, dlin!... Está aberta a sessão — rosnou o presidencial salame.

O secretário mascou a ata — tá, tá, tá...

— Tem a palavra o conferencista.

Corre pela sala o bisbilho* da curiosidade. Galga a tribuna um homem. Roliço e pipote, tem a calva resplandecente, traz casaca, óculos e convicção profunda. Prepara os papéis, tosse. Novo psst! desliza pelo salão. Cai nele o silêncio curioso da expectativa.

— Minhas senhoras e meus senhores! Me parece que a outro e não a mim, que sou o mais modesto membro da Sociedade...

Entreolhamo-nos àquele me com piscadelas gramaticais, e entregamos nossos quatro ouvidos às palavras do Sábio. Após o exórdio da praxe, o orador veste o escafandro da observação, apoia-se no pau ferrado da crítica, encavalga na penca os nasóculos* da análise e, sem tir-te*, cai no mergulho do fundo sombrio das idades. Vai aos períodos eos examinar gneiss* e micaxistos*; mostra exemplares ao auditório, descreve-os com minúcia. Narra como vieram os primeiros vegetais — samambaiuçus enormes e molengos — e como à sombra deles foram surgindo bichinhos tontos, sem experiência da vida, admiradíssimos de verem casa tão grande posta a seres tão pequenos. Fala com a segurança de um feto arborescente, testemunha ocular daquilo, transfeito em sábio moderno. Diz e rediz. Vai e volta — porque o gneiss pra aqui, porque o gneiss pra lá, porque o gneiss, o gneiss, o gneiss...

Depois agarra os trilobitas, os amonitas e mói, remói, tremói, pulveriza os pobres bichinhos, digressiona, gesticula, sua: o amonita... porque o trilobita... não obstante o amonita... bita... nita... e nita e bita, lá borbota* ele ciência pura, híspida, hirsuta, inexorável, num fluxo que berra por tampões de percloreto de ferro.

O tempo corre, e da torneira aberta deflui caudaloso o jorro hermafrodita do palavreado greco-latino. O espelho da sua careca tremeluz de inspiração. Seu dedo pontifical coleia riscos explicatórios. E a linfa científica a jorrar, a jorrar durante quinze, trinta minutos, uma hora, hora e meia...

O esgoelado urro do mamutezinho já não é mais urro, sim bocejo formidoloso*. E não o único. Pela sala outros se escancaram, incoercíveis. A doutora reprime os seus com caretas. Algumas sobrecasacas cochilam. O burguês das verrugas resfolega com maior estrépito e mais bagas de suor na testa. E na tribuna a ciência a correr... a farragem* fóssil a desfilar inesgotável numa sarabanda* sem fim: porque o gneiss, o micaxisto... não obstante o bita, o nita... os conglomerados da Westfália, as superposições devonianas, a sedimentação terciária, tá, tá, tá, tá...

Nesse ponto penetrou na sala um delicioso casal, pisando de leve os passinhos de lã preventivos dos pssts. Ele, alto e elegante; ela, mimosa e feminina, tom exótico de teteia cara. Sentam-se. Ele abre os ouvidos. Ela espevita o lorgnon* e corre os olhos vivos de malícia irônica pela assembleia inteira: pousa-os por fim na figura salpiconesca do orador.

Lino segue-os.

— Que graciosos! — diz, furando-me as costelas a cotoveladas — repara na ironia daqueles dois diamantes negros. Pousam na careca do homem... alisam-na com bonomia malandra... agora descem, examinam o nariz... Riem-se os marotos — e da verruga talvez... Tentam arrancá-la... irritam-se... fogem da penca... examinam o feitio da sobrecasaca. Bom, deixaram em paz o homem... passeiam pela sala... dão com o chapéu da doutora Mariote... Como se riem perdidamente os moleques!

Enquanto os olhos do meu amigo estudam os maliciosos olhos da linda criatura, barafustam-se* os meus pela goela do mamutezinho que o dedo do sábio apontava naquele momento.

— ... e apareceu então — dizia ele — um animal de pelos duros e pretos, de presas recurvadas, cujo esqueleto foi encontrado na embocadura do Iena e se chamou mamute...

Lino arrancou-me de golpe às goelas do monstro e ao caçanje* do sábio.

— Vê como ela boceja com graça.

De fato, a petulante boquinha da moça escondia no leque um bocejo saciado; saciado e contagioso, porque logo em seguida o sociólogo escancarou o seu, o pomólogo lá no fundo abriu outro, e o alemão da nossa direita reprimiu um que prometia levar as lampas ao do mamute.

— Dez horas já! — espantou-se Lino, consultando o relógio. — Há esperanças de fim?

— Qual! — gemi. — Ele ainda está no megatério.

— E é comprido o megatério?

— Enorme. E tem vasta parentela. Só depois de descritos os gliptodontes, os megáceros, os rinoceros e as hienas é que há esperanças de entrarmos na terra do nosso avô pitecantropo. Coragem!

Às dez e mais inda o corrimento paleontológico continuava copioso, sem sintomas de exaustão. Sistemas sobre sistemas amontoavam-se, induções sobre induções, num mascar monótono de realejo elétrico. Nossas nádegas protestavam. Novos bocejos insolentes amiudavam exigências: queriam sair já e já, queriam passagem franca, bocas bem escancaradas — e nós lutávamos por conter-lhes a má-criação.

E o chafariz científico a despejar.

— Há esperanças — sussurrei para o Lino. — Já estamos no Homo sapiens.

— Bendito sejas, ó rei da criação!

Era verdade. O sábio penetrara no homem. Mais cinquenta minutos de seca e pingou o ponto, convidando a assistência a examinar de perto os fósseis amontoados sobre a mesa.

Estrepitaram palmas, e após o uf! de ressurreição encheu o recinto o sussurro do “à vontade”, das cadeiras recuadas, do frufrutar surdo dos capotes enfiados, dos espreguiçamentos risonhos.

— Que gostosura, um fim de seca!

A assistência aflui aos magotes* para junto à mesa a fim de examinar os bichos. Fomos na onda. Todos comentavam, queriam pegar, apalpar os fósseis, cheirá-los, prová-los.

Com um estegossauro de palmo e meio seguro pelo cangote, o sociólogo explicava ao pomólogo “de como pela restauração de Cuvier se tinha ali um elo da vasta cadeia da evolução que Darwin descobrira”.

Ao centro da mesa o conferencista desfazia-se em amabilidades de caixeiro, fragmentando sua ciência e distribuindo-a em pílulas.

— Olhe, doutor — dizia o filólogo —, olhe a baculite de transição de que falei.

E para outro sujeito:

— Já viu, doutor, o magnífico exemplar de hipurite que nos veio de Berlim?

Nisto ouvi ao meu lado um resfôlego adiposo; voltei-me: era o burguês das verrugas, com a toucinhenta consorte pelo braço, a examinar uma lasca de pedra azulega que de mão em mão viera ter às suas. O bicharoco olhava a pedra como quem olha talismã. Não resisti, atirei-lhe a esmo:

— É o gneiss.

O burguês encarou-me com o respeito devido a Quem Sabe e, virando-se para a mulher, repetiu gravemente:

— Este é o gneiss, Maricota.

Dona Maricota tomou-o nos dedos, examinou-o sob todas as faces e em seguida passou-o a uma sua amiga, gaguejando de geológica emoção:

— O gneiss, Nhanhã!

Na rua esfumada pela garoa, um friozinho de tiritar. De golas erguidas estugamos* o passo, enquanto íamos extraindo a moralidade da festa.

Ciência e Arte nasceram para viver juntas, porque Arte é harmonia e Ciência é verdade. Quando se divorciam, a verdade fica desarmônica e a harmonia falsa. Se este senhor sábio trouxesse pela mão direita a Ciência e pela esquerda a Arte, para fundi-las no momento de falar, que coisa esplêndida não faria de um tal tema! Trouxe uma só e por isso maçou-nos, empanturrou-nos a alma de coisas duras, indigeríveis, misturadas com mil pronomes fora dos mancais. Além disso...

Foi-nos impossível prosseguir na filosofia. Um carro passava estalando rumorosamente as pedras da rua. Dentro vinha a nossa diva.

— Ela...

— A Verdade e a Harmonia...

Nossas bocas emudeceram, porque a imaginação, tomando as rédeas nos dentes, nos levava a galope no encalço da teteia de olhos negros.
__________________________________
Vocabulário (fonte: Dicionário Houaiss)
Barafustam-se – esforçam-se.
Bisbilho – murmúrio, sussurro.
Borbota – jorra.
Cabelugens – cabeleiras.
Caçanje – português errado, mal falado.
Dar de tu - tutear, tratar intimamente, por “tu”.
Enxúndias – gorduras.
Estugamos – caminhamos rapidamente.
Farragem – conjunto de coisas dispostas sem ordem.
Formidoloso – pavoroso, imenso.
Gens ennuyeux – pessoas chatas.
Gneiss – tipo de rocha, de origem metamórfica, resultante da deformação de granitos.
Lorgnon – par de lunetas sobre o nariz, que se prende a um cabo lateral e se compõe de duas lentes adaptadas a uma armação sem hastes.
Magotes – ajuntamento de pessoas.
Micaxistos – rochas de origem metamórfica, onde os elementos essenciais são a mica e o quartzo.
Nasóculos – pincenê; óculos sem haste que se prende ao nariz por meio de uma mola.
Paredros – mentores.
Pomólogo – versado no estudo das árvores frutíferas.
Sarabanda – roda-viva.
Tir-te – tirar-te.


Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades mortas.1901.

66ª Feira do Livro de Porto Alegre TOTALMENTE VIRTUAL (4 a 15 de Novembro)


Criada por iniciativa dos livreiros e editores gaúchos com apoio do jornalista Say Marques, diretor-secretário do Diário de Notícias, a Feira do Livro de Porto Alegre foi inaugurada em 1955. O evento é considerado referência no país por seu caráter democrático e pela consistência do trabalho que desenvolve na área da formação de leitores e de mediadores da leitura, além de programação cultural 100% gratuita.

Ela é realizada desde sua primeira edição na Praça da Alfândega, Centro Histórico da capital gaúcha. A Feira na Praça é dividida em Área Geral, Área Internacional e Área Infantil e Juvenil. Centenas de escritores, ilustradores, contadores de histórias e outros profissionais participam do evento, que conta com sessões de autógrafos, mesas-redondas, oficinas, palestras e programações artísticas, entre outras atividades.

Alguns desses eventos são realizados no Memorial do Rio Grande do Sul, Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, Auditório da Livraria Paulinas, Auditório do Margs e Auditório da Inspetoria da Receita Federal. Em 2020, em função da pandemia, a Feira acontece, excepcionalmente, em ambiente virtual.

Em 2006, a Feira do Livro de Porto Alegre recebeu a medalha da Ordem do Mérito Cultural, concedida pela Presidência da República, que a reconheceu como um dos mais importantes eventos culturais do Brasil.Um ano antes, havia sido declarada bem do Patrimônio Cultural Imaterial do Estado e, em 2010, foi o primeiro bem registrado, pela Prefeitura de Porto Alegre, como integrante do Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial da cidade. 

A 66ª edição ocorre de 30 de outubro a 15 de novembro de 2020, por meio da plataforma on-line, preservando com inovação o maior evento cultural do Estado do Rio Grande do Sul.

As janelas do mundo abertas para a Praça

Em 2020, nossos espaços mudaram. Passamos a acompanhar a vida pelas formas de quadrados e retângulos, de janelas e telas. Criamos distâncias físicas mesmo nos aproximando emocional e coletivamente.

Nesse universo, a arte e o conhecimento ganham destaque em áreas como a música, o teatro, o cinema. E no formato criativo e herdeiro da tradição oral de contar histórias: o livro.

Na sua 66ª edição, a Feira do Livro de Porto Alegre realizará todos os seus eventos com transmissão on-line e gratuita, mantendo o caráter popular que a caracteriza. Da capital gaúcha para o Brasil e todos os lugares. E deseja, a partir de sua curadoria, abrir as janelas do mundo para debatermos alguns temas essenciais.

Num ano de incertezas, a aliança com o digital possibilita novos diálogos e novos modelos para o comércio de livros. Vamos falar e ler sobre literatura e liberdade de expressão, passando por diversidade, pandemia, sustentabilidade e ciência. Janelas, lives e livros: o mundo que está ao alcance do nosso olhar.

A programação da Feira e como acessar os eventos podem ser vistos na página:
https://www.feiradolivropoa.com.br/programacao/

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 427

 


Rubem Braga (Coisas Antigas)


Já tive muitas capas e infinitos guarda-chuvas, mas acabei me cansando de tê-los e perdê-los. Há anos vivo sem nenhum desses abrigos, e também, como toda gente, sem chapéu. Tenho apanhado muita chuva, dado muita corrida, me plantado debaixo de muita marquise, mas resistido. Como geralmente chove à tarde, mais de uma vez me coloquei sob a proteção espiritual dos irmãos Marinho, e fiz de O Globo meu paraguas de emergência.

Ontem, porém, choveu demais, e eu precisava ir a três pontos diferentes de meu bairro. Quando o moço de recados veio apanhar a crônica para o jornal, pedi-lhe que me comprasse um chapéu-de-chuva que não fosse vagabundo demais, mas também não muito caro. Ele me comprou um de pouco mais de trezentos cruzeiros, objeto que me parece bem digno da pequena classe média, a que pertenço (uma vez tive um delírio de grandeza em Roma e adquiri a mais fina e soberba umbrella da Via Condotti, Abandonou-me no primeiro bar em que entramos, não era coisa para mim).

Depois de cumprir meus afazeres voltei para casa, pendurei o guarda-chuva a um canto e me pus a contemplá-lo. Senti então uma certa simpatia por ele. Meu velho rancor contra guarda-chuvas cedeu lugar a um estranho carinho, e eu mesmo fiquei curioso de saber qual era a origem desse carinho.

Pensando bem, ele talvez derive do fato, creio que já notado por outras pessoas, de ser o guarda-chuva o objeto do mundo moderno mais infenso a mudanças. Sou apenas um quarentão, e praticamente nenhum objeto de minha infância existe mais em sua forma primitiva. De máquinas como telefone, automóvel, etc., nem é bom falar. Mil pequenos objetos de uso mudaram de forma, de cor, de material, em alguns casos, é verdade, para melhor, mas mudaram.

O guarda-chuva tem resistido. Suas irmãs, as sombrinhas, já se entregaram aos piores desregramentos futuristas e tanto abusaram que até caíram de moda. Ele permaneceu austero, negro, com seu cabo e suas invariáveis varetas. De junco fino ou pinho vulgar, de algodão ou de seda animal, pobre ou rico, ele se tem mantido digno.

Reparem que é um dos engenhos mais curiosos que o homem já inventou. Tem ao mesmo tempo algo de ridículo e algo de fúnebre, essa pequena barraca ambulante.

Já na minha infância era um objeto de ares antiquados, que parecia vindo de épocas remotas, e uma de suas características era ser muito usado em enterros. Por outro lado, esse grande acompanhador de defuntos sempre teve, apesar de seu feitio grave, o costume leviano de se perder, de sumir, de mudar de dono. Ele na verdade só é fiel a seus amigos cem por cento, que com ele saem todo dia, faça chuva ou faça sol, apesar dos motejos alheios, A estes, respeita. O freguês vulgar e ocasional, este o irrita, e ele se aproveita da primeira distração para fugir.

Nada disso, entretanto, lhe tira o ar honrado. Ali está ele, meio aberto, ainda molhado, choroso. Descansa com uma espécie de humildade ou paciência humana, Se tivesse liberdade de movimentos não duvido que iria para cima do telhado quentar sol, como fazem os urubus.

Entrou calmamente pela era atômica, e olha com ironia a arquitetura e os móveis chamados funcionais: ele já era funcional muito antes de se usar esse adjetivo, e tanto que a fantasia, a inquietação e a ânsia de variedade do homem não conseguiram modificá-lo em coisa alguma.

Não sei há quantos anos existe a Casa Loubet, na Rua Sete de Setembro. Também não sei se seus guarda-chuvas são melhores ou piores que os outros. São bons, meu pai os comprava lá, sempre que vinha ao Rio, herdei esse hábito.

Há um certo conforto íntimo em seguir um hábito paterno, uma certa segurança e uma certa doçura. Estou pensando agora se quando ficar um pouco mais velho não comprarei uma cadeira de balanço austríaca. É outra coisa antiga que tem resistido, embora muito discretamente. Os mobiliadores e decoradores modernos a ignoram, já se inventaram dela mil versões modificadas, mas ela ainda existe na sua graça e leveza original. É respeitável como um guarda-chuva me convém para resguardo da cabeça encanecida, e talvez o embalo de uma cadeira de balanço dê uma cadência mais sossegada aos meus pensamentos, e uma velha doçura familiar aos sonhos de senhor só.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Fabiano Wanderley (Baú de Trovas) 3


Ao homem, por Deus foi dado,
astúcia e simplicidade
e por isso, abençoado
com o dom da piedade.
- - - - - -
A paz que trago comigo
é fruto dos atos meus.
- O bem-estar que eu abrigo,
é coisa própria de Deus!
- - - - - -
A vida é uma promissória,
que tem Deus como avalista.
Porem, não tem moratória,
seu pagamento é à vista!
- - - - - -
Canta, canta, ó menestrel,
ante a lua a te acolher,
mais um tango de Gardel
que nos faz enternecer...
- - - - - -
Confirmando as suas lendas,
por capricho, o velho mar,
cobre as areias de rendas,
quando a praia vem beijar...
- - - - - -
É certo e pura verdade,
que se diz do casamento:
Que só se tem liberdade,
com um mal comportamento!
- - - - - -
É destino a um trovador,
ao ver seu amor disperso,
compartilhar toda dor,
com a pureza do seu verso!
- - - - - -
É quase que indescritível,
os sentimentos, o ardor,
de uma noite inesquecível,
num terno ninho de amor...
- - - - - -
Fim de tarde, um albatroz
faz de volta o seu caminho.
A penumbra o faz veloz;
urge o encontro com seu ninho...
- - - - - -
Nada detém tanto encanto,
nem tanta essência de amor,
qual o feito sacrossanto,
do desabrochar da flor!
- - - - - -
Natureza é ecologia,
é o éden dos passarinhos,
que levam toda a magia
para o abrigo dos seus ninhos.
- - - - - -
No campo, depois da lida,
ao plantar e ao ver crescer,
desponta um sonho de vida:
— A certeza de colher!
- - - - - –
No grande palco da vida,
desse enredo tão atroz,
em cada cena exibida,
há sempre um pouco de nós.
- - - - - -
No Manacá, por vaidade,
há um aroma em cada flor:
— Do roxo, exala a saudade,
do branco, essência de amor...
- - - - - -
Nos enche de dignidade,
ver o obreiro com seu malho,
revelar prosperidade,
com suor do seu trabalho!
- - - - - -
O beijo nos diz as lendas,
surgiu entre os querubins;
que, engalanados de rendas,
osculavam em seus festins...
- - - - - -
Onde houver desigualdade,
a injustiça se mantém,
dando ao rico a impunidade
e a sentença ao joão-ninguém!
- - - - - -
O pão representa a vida,
alimenta a humanidade;
seus sustento consolida
a paz para a eternidade!
- - - - - -
Para a grande caminhada,
obra e graça do Divino,
cada qual tem sua estrada,
o seu rumo, seu destino!
- - - - - -
Para aumentar meu desejo
de sentir uma ânsia louca,
por sentença, por um beijo,
faz-me escravo em tua boca...
- - - - - -
Quando à penumbra, acontece,
entre afagos meus e teus,
nosso amor nos enternece,
nos eleva diante a Deus!
- - - - - -
Quando a tarde prenuncia,
revoam os passarinhos
e levam toda a magia,
para o abrigo de seus ninhos.
- - - - - –
Quando o céu, na lua cheia,
expõe os encantos seus,
a serra se galhardeia,
por estar mais junto a Deus.
- - - - - -
Quem casa, soma os afetos,
diminui a liberdade,
divide bens e objetos,
multiplica a honestidade!
- - - - - -
Salve! ó Mãe! Virgem Maria,
abençoada por Deus.
Bendita luz, que me guia,
a que aclara os dias meus.
- - - - - -
Saudade é dor que se sente,
por quem, por qual, ou razão.
Um vazio que há na gente:
— Mistério de um coração!…
- - - - - -
Traz ao poeta, a magia,
a gaivota na amplidão...
Em seu canto: A poesia!
E no encanto: A inspiração!
- - - - - -
Varanda, és templo de amor,
palco de fiéis confissões.
Secretas todo o clamor,
das mais ardentes paixões!
- - - - - –
Vem, ó Trova! E faz seu ninho.
Traze em verso, essa emoção.
Faz do poeta um doce aninho
e lhe inspira o coração

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Contos e Lendas do Mundo (O Conto das Areias)


Num reino, distante das altas montanhas, nasceu um rio claro, transparente.

Fez uma longa viagem e, no decorrer de sua existência, percorreu países diferentes, sulcados por vales extensos e férteis.

Por fim, chegou diante das areias de um deserto imenso.

Ele tinha encontrado muitas dificuldades que sempre soubera ultrapassar.

Da rocha mais dura fizera seixos lisos e doces que cantavam com ele em sua rota.

Tentou atravessar este último obstáculo do seu jeito habitual. Grande foi sua surpresa quando percebeu que toda a arte e toda a ciência que possuía não tinham agora qualquer utilidade para ele.

Suas águas desapareciam nas areias tão rapidamente como ele as lançava.

Recomeçou, e recomeçou, durante tanto tempo que o desespero o invadiu. Mas ele continuava a lançar suas águas sobre a areia, no imenso silêncio do deserto.

Foi então que, do fundo da areia, se elevou o murmúrio de uma voz que segredou:

- O vento atravessa o deserto, e o rio pode fazer o mesmo.

O rio respondeu que era exatamente aquilo que se esforçava por fazer, e que estava exausto:

- Tudo o que consegui foi me perder um pouco mais a cada tentativa. E estou apenas na borda deste deserto.

E acrescentou:

- O vento pode voar, por isso pode atravessar o deserto.

- Continue a lançar-se com violência, como estava fazendo - disseram-lhe as areias - e não conseguirá atravessar. Desaparecerá ou se transformará em charco estagnado. Deve permitir que o vento o leve ao seu destino.

- Mas como posso fazer isso? - perguntou o rio.

- Aceite ser absorvido pelo vento - respondeu o murmúrio.

Esta ideia não lhe agradou nem um pouco. Além do mais, ele jamais tinha sido absorvido. Tinha medo de perder sua individualidade.

- E uma vez que tiver desaparecido, como recuperar minha identidade? Quando serei novamente um rio?

- O vento, o vento - murmuraram as areias - ele cumprirá sua função. Ele levanta as águas, as transporta por sobre o deserto, e as faz descer como chuva, e esta forma de novo um rio.

- Mas - foi o grito do rio - como saber se você diz a verdade?

- É assim - recomeçou a voz, do fundo das areias. - E se você não acredita, se transformará em lodaçal. Isso levará alguns anos. Mas, você sabe, um charco é muito diferente de um rio.

- Mas não posso continuar tal como sou agora? - implorou o rio.

- Não, é impossível - murmuraram as areias - você não pode conservar sua forma atual. Mas se o seu ser (sua parte essencial) for transportado, ele voltará a ser um rio.

- Mas - lamentou-se o rio - nem mesmo sei qual é a minha parte essencial.

Não vinha mais nenhuma voz do deserto, que tornou a fechar-se no horizonte.

Então, a voz das areias começou a ressoar na memória do rio.

Estranhas lembranças lhe faziam eco. Como se já alguma parte dele (mas qual?) tivesse sido levada pelo vento.

Parecia que se lembrava de que tudo aquilo devia acontecer-lhe, e que devia cumprir seu destino, mesmo que não tivesse a mínima vontade.

E o rio parou de resistir. Suas águas se elevaram em vapor nos braços acolhedores do vento, que aspirou delicadamente sua parte essencial. Ele as levou muito depressa, muito longe, e as ergueu muito alto, sobre os cimos, até o longínquo reino das montanhas, muito além do deserto.

Então, o rio tomou consciência de seu ser, onde ressoava o eco de uma voz, vinda das areias:

- Nós, as areias, conhecemos o caminho que se estende, dia após dia, desde o fim dos rios até o longínquo reino das montanhas.

Eis por que se diz: o rio da vida tem um caminho, e seu destino está inscrito nas areias.

Fonte:
Cuentos de Oriente para Niños de Occidente. Buenos Aires/Argentina: Editiones Dervish International, A. H. D. Halka, 1986.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 426

 


Carolina Ramos (Noite Inesquecível!)


Para a meia noite faltava apenas um quase. Até Papai Noel já marcava presença, para alegria da criançada e dos adultos, também.

A ceia, quentinha, completava a mesa que, arrumada com requinte, encantava olhos e despertava sentidos, fazendo crescer água à boca.

À espera dos retardatários, a porta permanecia entreaberta, prova temerária de que as mais sumárias normas de segurança eram esquecidas.

O troco da imprudência não se fez esperar. Um pontapé brusco (pode um pontapé deixar de ser brusco?!) escancarou-a.

Eram cinco. Cinco malfeitores armados até os dentes!

— Ninguém se mexa... é um assalto!

E ninguém se mexeu mesmo! O grupo assustado foi confinado num canto. Mulheres à beira do chilique. Crianças choramingando, corações batendo a mil.

Dois dos bandidos permaneceram na guarda, arma na mão. Os outros três apressaram-se em tirar a barriga da miséria.

Apetitoso, o peru, pele dourada e reluzente, logo ficou sem uma das coxas. A outra também logo se foi... assim como o peito branco, úmido e macio. Saboroso! A farofa, sequinha, esparramou-se, farta, sobre a toalha decorada com motivos natalinos.

Consumidas, em sequência rápida e desordenada, as iguarias desapareciam ante os olhos perplexos e os estômagos vazios da família ultrajada.

Não demorou muito e a impaciência se fez presente entre os dois larápios que empunhavam as armas. Daí os protestos;

— Ei... chega, né?... Agora é a nossa vez! Também somos gente!

Mas, o apetite dos três gulosos não estava saciado, ainda. Da gula, nascia a sede, E as garrafas de vinho passaram a ser abertas com entusiasmo crescente. Libações e brindes não tinham mais fim! O tim-tim das garrafas, emborcadas diretamente nas bocas ávidas, dispensando taças e copos, levaram ao desespero os que estavam no aguardo. Na hora do basta, a dupla faminta mudou a mira das armas para as cabeças dos comilões.

— Agora chega! Chega mesmo!!! Todo mundo pra trás... ou vai sobrar chumbo como sobremesa!

Aos trambolhões, os três gulosos foram passados para retaguarda, cedendo espaço aos dois companheiros, cujo apetite a espera aguçara.

Quando afinal, o champanhe assumiu o comando da situação, a guarda foi abrandada e a família, vítima do assalto, que observava sem interferências sentiu, numa troca furtiva de olhares, que a hora propícia era chegada. O mais valentão deu um salto, tomando a arma do bandido mais próximo.

— Agora sou eu quem diz chega! Todo o mundo de mãos para cima e a cara virada para a parede.

A ordem foi seguida, sem protestos. Quem falava era um Papai Noel, agora com jeito de cowboy, que esquecia as banhas artificiais e engrossava a voz num repente autoritário que não admitia desobediências.

Ninguém reagiu! Na verdade, os bandidos, já fartos, a custo mantinham-se a prumo, empunhando as armas que lhes pesavam nas mãos! Fácil dominá-los! Como também aos outros três, ainda de boca cheia, mais preocupados em encher os bandulhos, do que propriamente em se defenderem.

Algum tempo depois, um camburão carregou, sem reações, cinco figurões eufóricos, de línguas enroladas e pernas mais enroladas, ainda.

Tio Homero, sempre o mais calado da família, despiu as vestes noelinas, livrando-se da barba e dos enchimentos que lhe davam mais uns quilos. Foi aplaudido com veemência!!! Era agora outra pessoa! Digno da maior admiração! Mesmo sem os enchimentos, crescera aos olhos de todos, virou herói... para sempre!

A ceia de Natal, naquela inesquecível e quase trágica noite, aconteceu, sem mais problemas, lá na Pizzaria da esquina.

Isso mesmo: "acabou em pizza…" Aliás... como tanta coisa, por aí!.. .

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) V


Clausura

Poemas sem voz
trancados nas gavetas,
Pedaços de mim,
aprisionados
em gritos
sufocados.
Cada poema
sem ar, trancafiado,
é o meu próprio
assassinato!
****************************************

Confusão

Meus caminhos confundidos
em múltiplas encruzilhadas
foram todos roubados ou perdidos.
Fico parada sem ter para onde ir
com rainhas lembranças requentadas
e saudades não sei de quê.
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Explicação

Procurando motivos
para explicar a vida
não entendo as justificativas.
Não acho explicações adequadas
aos sofrimentos e dissabores
que atingem os homens
em seu estágio terreno.
A caminhada é árdua.
Valerá a pena?
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Naufrágio

O meu navio
não encontra porto
e, jogado ao léu pela corrente,
vai se perdendo
no meio da intempérie.
Sem destino vagueia
e de encontro à rocha indiferente
acaba destroçado
até que, à deriva,
fica perdido no fundo do oceano.
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Silêncio

O silêncio, pleno de sentidos,
ressoa eloquente.
Protesto, acusação,
completam o diálogo
ou representam a omissão.
O silêncio é resposta, é resistência
ou será renúncia?
É desafio,
com múltiplos significados?
O silêncio imposto
pela sociedade,
pela subalternidade,
pela desigualdade,
deixa marcas,
traumatismos delirantes,
vivências constantes.
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Tempo

O olhar embaçado
pela névoa do tempo
oculta as tristezas
que se tornam menores,
pouco a pouco
amenizadas.
As alegrias também esmaecem
e transformam-se
em situações corriqueiras.
É a vida que se esvai,
gota a gota,
devagarinho.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Versos perplexos. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Três) Morcego Cego


O TELEFONE TOCOU e Glorinha, a empregada, atarefada passando o café, gritou lá da cozinha para  que o Chico, motorista de seu patrão, o magnata das saborosas sardinhas Tuti, sentado  na sala,  fizesse a gentileza de ver quem era. Obediente, e  prestativo, o Chico foi:  

—  Alô, bom dia!

— Bom dia.

— Com quem falo?

— Quer falar com quem?

— Com o Tuti.

— O senhor Tuti não está.

— Sabe a que horas posso encontrá-lo?

— Glorinha me passou a informação que só depois das oito da noite.

— Quem é a Glorinha?

— A Glorinha é a empregada dele.

— E o  senhor, quem é?

— Não sou o senhor Tuti.

— Ok. Qual seu nome, por obséquio?

— Prefiro não me identificar. Não vejo necessidade.

— Estou propensa a acreditar que o senhor é o Tuti e está tentando me enganar. Acertei?

— Asseguro-lhe que não. Conhece o senhor Tuti?

— Não tive ainda o prazer.

— Acaso falou com ele alguma vez?

— Na verdade nunca tivemos nenhum contato. Esta é a primeira vez que ligo para a sua casa.

— Minha não,  a casa é dele. Se nunca falou com o senhor Tuti, como ousa afirmar que eu sou ele, se jamais conversou comigo?

— Tá vendo só? Na mosca. O senhor é o Tuti.

— Não, não sou.

—  Claro que é.

— Prove que sou o senhor Tuti.

— Repetirei o que o senhor acabou de dizer: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.

— E daí...?

— Se o senhor não fosse o Tuti  diria: “Como ousa afirmar que sou ele, se nunca conversou com o cara, ou com o sujeito?”. Ao contrário, o senhor foi categórico. O senhor disse com todas as letras: “Como ousa afirmar que sou ele se nunca conversou comigo?”.

— Basta. Não precisa repetir.

— E para completar ficou nervoso. Aliás, está nervoso. Uma prova insofismável de que é o próprio.

— Que próprio?

— O Tuti em carne e osso.

— Senhora, o senhor Tuti realmente saiu. Só depois das oito da noite...

— A que horas ele saiu?

— Não sei ao certo.

— Sabe dizer onde foi?

— A Glorinha  não me disse. Afinal de contas, a senhora é de onde? Deixe o nome e o número do telefone que farei o favor de anotar e repassar para a moça que trabalha aqui na residência dele.

— Vamos esclarecer uma coisinha?

—  Que coisinha?

— Não sou casada.

— E o que eu tenho a ver com o fato  da senhora não ser casada?

— Às pessoas casadas o senhor se dirige usando a tal da senhora. Às solteiras...

— Por acaso tenho bola de cristal?  

— Senhor...

— Também não sou senhor.  

— O tratamento diferenciado faz parte da educação, cavalheiro.  

— Não quero saber.  

— Seu Tuti, preste atenção. Eu...

— Senhora, quero dizer... Moça, não sou o senhor Tuti, por gentileza, não insista. Está começando a me tirar do sério.

— Sabia que é feio mentir?

— Quem está mentindo aqui?

— Só vejo uma pessoa berrando no meu ouvido.

— Berrando? Quem está berrando?

— O Tuti. Só pode ser o senhor. Pois bem, seu Tuti. Vamos ao que realmente nos interessa, ou seja, ao real motivo que ensejou o presente telefonema para a sua residência. O Senhor é o Tuti. Tuti de quê?

— Dona, não sou Tuti de nada.

— O senhor não tem sobrenome?

— Não vou responder. Aliás, não quero mais prolongar esta lenga-lenga. Passe bem.

— Pretende continuar insistindo na brincadeira? Fale sério!

— Por que não desliga e vai  até a esquina fumar um cigarro ou tomar um refrigerante bem geladinho no canudinho?

— Não fumo mais. Parei  faz  exatamente dois anos.  Refrigerante dá estrias. E o canudinho... Bem o canudinho...

— Esquece o canudinho. Tenha um bom dia.

— Calma, seu Tuti. Só confirme para mim o seu nome completo e seu endereço.

— Simpática, não sou o senhor Tuti. Ele saiu...

— Vamos supor que realmente o seu Tuti esteja ausente . O senhor, quem é?

— Um colega e um amigo.

— E esse colega e amigo não tem nome?

— Senhora, eu...

— Senhorita. Lembre-se: não sou casada.

— Que seja. Atendi ao telefone para fazer uma gentileza à Glorinha que está passando o café. Tenho mais o que fazer. Pela última e derradeira, tenha um bom dia.  

— Calma, calma. Percebo, por sua voz, que o senhor está muito nervoso.

— E não é para estar com você torrando meu saco?

— São quase dez horas da manhã. Estamos no horário comercial. Apenas tento fazer meu trabalho.

— Vamos colocar um ponto final nesta parlenda. Não sou o senhor Tuti. Ligue depois das oito da noite e se entenda com ele diretamente. Ou deixe seu nome e número. Ele lhe retornará a ligação.

— Insisto: quem é o senhor?

— Um colega e amigo do senhor Tuti.

— Colega e amigo do senhor Tuti em sua casa, assim tão cedo?

— Vim resolver um problema. Passei para pegar os documentos do carro dele. Coincidentemente, como a Glorinha está preparando um café, estou esperando pela bebida. Meu Deus, o que estou fazendo? Não tenho que lhe dar satisfações.

— Ora, seu Tuti, fique à vontade.

— Tuti é a sua mãe.

— Não me ofenda. Minha mãe se chama Umbelina. Umbelina sem o agá. E não tem Tuti.

— Vá para o inferno.

— Irei. Antes de me pôr a caminho, me diga seu nome todo. Tuti de quê?

— Querida, vá para o raio que a parta.

— Cavalheiro, colabore. Quero seu nome para constar aqui na minha ficha de atendimento ao cliente. Tenho que anotar o nome da pessoa com quem falei neste número.

—  Se lhe der meu nome me deixará em paz?

— Juro por tudo quanto é mais sagrado.

— Pois bem. Sou o Chico. Chico Média. Satisfeita?

Risos:

— O que foi agora? Qual a graça?

As hilaridades continuaram:

— Vou desligar...

— Então o senhor é o famoso Chico Média?

— Sou. Contudo, não tenho nada de famoso. Por que continua  gargalhando? Tenho cara de palhaço?

— Me lembrei de um fato curioso. Mamãe fala todo mês no senhor...

— Sua mãe? Ela não me conhece! Que patranha é essa agora?

— Se minha mãe não lhe conhecesse, não teria motivos para ficar uma arara. Uma arara. Principalmente quando o senhor chega...

— Deve haver algum engano neste falatório todo. Sua mãe nunca me viu nem mais gordo, nem mais magro. E eu... Eu nunca cheguei...

— Agora que declinou seu nome, tenho cá minhas dúvidas...

— Que dúvidas? Como sua mãe poderia me conhecer?

— Vou provar que o senhor a conhece. E a incomoda, literalmente, todos os meses.

— Eu a incomodo? Como? De que forma? Não sei quem é você, moça, que dirá a sua mãe, esta tal de dona Umbelina.

— Lembrando, para que não esqueça: sem o agá.

— Que diferença isto faz, com ou sem o agá?

— Seu Tuti —, quero dizer —, seu Chico, o senhor me faria um imenso favor?

— Favor, que favor?!

— Saia de uma vez por todas da vida da minha mãe. Quero dizer, desgarre da minha querida genitora. Todo mês o senhor a incomoda. Mamãe fica uma fera com a sua presença. Que droga, que coisa feia, seu Média... Digo, seu Chico...

Chico Média ia retrucar mas a engraçadinha se abriu novamente numa estrondosa chalaceação desligando o aparelho na cara dele.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

domingo, 1 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 425

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) JP, Granado e Schiavone


Se a gente juntasse alguns dos muitos casos engraçados ocorridos na história desta cidade, daria um livro delicioso. Outro dia, num papo com um pessoal meio da saudade, conversa-vai, conversa-vem, veio à lembrança um fato que vou recontar pra vocês, pedindo desculpas antecipadas aos três ilustres personagens da cena, dois deles em memória.

João Paulino estava mais ou menos na metade do seu primeiro mandato de prefeito – 1962, se me não engano. Na época, Ademar Schiavone era diretor administrativo e colunista social do “O Jornal de Maringá”, então comandado pelo velho e bom jornalista Ivens Lagoano Pacheco. Mas Schiavone era um colunista social guerreiro: além de fofoquear a vida dos clubes e as festas da cidade, gostava de falar também de política. Arrumou brigas históricas com os vereadores e muitas vezes irritou João Paulino com críticas azedas. Além disso, o “O Jornal” era costumeiramente provocador.

A prefeitura era onde depois funcionou a biblioteca pública, na esquina da Getúlio Vargas com a 15 de Novembro. De repente um funcionário entrou no gabinete do prefeito informando que “um jornalista desaforado havia subido com o carro no jardim em frente ao correio”, portanto a poucos metros do paço municipal. JP quis saber quem era o tal jornalista. Responderam que era um colunista social. O prefeito pensou logo no Schiavone, enrubesceu o rosto e ordenou: “Mandem prender o carro dele... agora”.

Deu o maior auê na praça. “Não foi por querer, foi um acidente, foi a direção que quebrou... Que negócio é esse de prender o carro?” – protestou o jornalista. Mas os guardas não quiseram saber de desculpas e levaram o Gordini para o Trânsito, com ameaça de levar também o dono, se ele não sossegasse.

Gordini?... Mas o Schiavone não tem Gordini; o carro dele é um fusquinha. Então deve ter havido um baita engano. João Paulino, já de bom humor, disse que queria apenas dar um susto no Schiavone, que vivia pegando no pé dele com artigos irreverentes. Mas... e se o dono fosse outro? Que jornalista tinha Gordini em Maringá?

Era o Pedro Granado, também na época prestigiado colunista social, da “Tribuna de Maringá” (do saudoso Manoel Tavares). Granado não tinha nada a ver com as broncas do Schiavone; ele aliás nem falava de política, estava pagando o pato inocentemente. Dera um problema na direção do veículo e ele realmente subiu no jardim, mas sem querer. E agora?

Agora quem estava mais chateado com o engano era o prefeito. Telefonou para o Trânsito e pediu que liberassem o Gordini. Em seguida telefonou para o Granado, explicou o mal-entendido e ambos acabaram dando boas risadas.

E o Schiavone? Deu também uma gargalhada. Anos depois virou amigão do João Paulino, que até o convocou para trabalhar na administração municipal como secretário.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 23-7-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Arquivo Spina 24 (Artur José Carreira)

 

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 3

 

Agostinho da Cruz
 
(Ponte da Barca, 1540 – 1619, Setúbal)

À COROA DE ESPINHOS


A que vindes, Senhor do Céu à terra,
Terra que sendo vossa vos enjeita,
E que tanto vos honra e vos respeita,
Que em não vos receber insiste e emperra?

Ah! Quanta ingratidão nela s’encerra!
Quão mal de vossa vinda se aproveita!
Pois se põe a tomar-vos conta estreita,
Mais brada contra vós, quanto mais erra.

E vós de vosso amor puro forçado
Os malditos espinhos lhe pisais,
Dos quais ainda sendo coroado,

A maldição antiga lhe trocais
Na bênção, que lhe dais crucificado,
Quando morto d’amor, d’amor matais.
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Padre Baltasar Estaço
 
(Évora, 1570 - 16??)

A CRISTO NA CRUZ


O bem que a tantos bens me convidava,
O qual desmereci, vós merecestes
Que a vida que por meu amor perdestes,
A vida me alcançou que eu desejava.

O mal que a tantos males me obrigava,
O qual não satisfiz, satisfizestes,
Que a morte que por meu amor sofrestes,
Da morte me livrou, que eu receava.

A vós Deus amoroso, a vós só amo,
De vós pratico, só, de vós escrevo,
Por vós a vida dou, e a morte quero,

Em vós fogo de amor, em vós me inflamo,
Pois que pago por vós o mal que devo,
E mereço por vós, o bem que espero
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D. Francisco Manoel de Melo
 
(Lisboa, 1608 – 1666)

SONETO

Eu que faço? Que sei? Que vou buscando?
Conto, lugar, ou tempo, a esta fraqueza?
Tenho eu mais que acusar, por mais firmeza,
Toda a vida, sem mais como, nem quando.

Se cuidando, Senhor, falando, obrando
Te ofenda minha ingrata natureza,
Nascer, viver, morrer, tudo é torpeza
Donde vou, donde venho, donde ando?

Tudo é culpa, ó bom Deus, não uma e uma
Descubro ante os teus olhos. Toda a vida
Se conte por delito, e por ofensa.

Mas que fora de nós, se esta, se alguma
Fora mais que uma gota a ser medida
Co’ largo mar de tua Graça imensa?
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Jerónimo Baía
 
(Coimbra, 1620/30-1688, Neiva)

FALANDO COM DEUS


Só vos conhece, amor, quem se conhece;
Só vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não vos ofende,
E só vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em vós floresce;
Só é senhor de si quem se vos rende;
Só sabe pretender quem vos pretende,
E só sobe por vós quem por vós desce.

Quem tudo por vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só vos pode amar o que vos sabe,
Só vos pode saber o que vos ama.
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Frei António das Chagas
 
(Vidigueira, 1631-1682, Torres Vedras)

SONETO

Deus pede hoje estrita conta do meu tempo
E eu vou, do meu tempo, dar-lhe conta.
Mas como dar, sem tempo, tanta conta
Eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado e não fiz conta.
Não quis, tendo tempo, fazer conta.
Hoje quero fazer conta e não há tempo.

Oh! Vós, que tendes tempo sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo em fazer conta.

Pois aqueles que sem conta gastam tempo,
Quando o tempo chegar de prestar conta,
Chorarão, como eu, se não der tempo.

Fonte:
Sammis Reachers (org.). Antologia de poesia cristã em língua portuguesa. e-book.

Carla Rejane Silva (Tristes lembranças)


Sentada nesse balanço, olhando para a imensidão...

Com meus pensamentos voando ao longe, sentindo uma brisa leve tocar minha face, sinto as lágrimas escorrerem molhando meu rosto.

As recordações vêm como num filme triste...

Me lembro: ao receber sua mensagem como fiquei feliz. Dizia que queria me ver naquela noite, me esperaria na praça onde trocamos nosso primeiro beijo.

Como uma criança, que acabara de ganhar o presente tão sonhado...

Saltitante me arrumo pra você. Coloco minha calça preferida, que fica coladinha em meu corpo, a blusa vermelha, batom quase do mesmo tom, meu perfume suave com cheirinho adocicado.

Prendo meus cabelos vermelhos...  

Me olho no espelho; estou pronta pra você. Vou ao encontro do meu amor. Uma felicidade contagiante invade meu ser, transbordando através dos meus olhos.

De longe vejo você e me aproximo...

Você pega minhas mãos entre as suas e me pede pra sentar. Tinha algo a me comunicar… meu coração dispara, quase saindo boca afora. Sinto suas mãos suadas, observo que você evita olhar pra mim.

Nesse momento antecipando...

Prevendo o que estava por vir, pressinto algo. Uma dor se forma em meu peito, penetra minha alma, meu coração como uma faca afiada. Então pedi que me dissesse o que estava acontecendo: - Fale por favor.

Com uma certa relutância...

Diz que ama outra pessoa. Que não sente mais nada por mim. Apenas uma imensa gratidão, quer apenas ser meu amigo. Por alguns instantes me sinto perdida, sem chão.

Mas com uma coragem assustadora...

Com aquele  nó na garganta. As lágrimas teimando em querer cair, ouço minha própria voz dizer seja feliz! Muito  feliz! Me levantei daquele banco da praça virei as costas pra você e disse adeus e fui embora.

Fui embora chorando...

Caminhando como um fantasma sem rumo. Uma vontade louca de gritar, minha alma naquele instante estava dilacerada, esmagada. Não por ter perdido você. Mas pela dor das promessas não cumpridas, pelas mentiras, e por ter sido covardemente traída.

Hoje sentada nesse balanço...

Olhando,  mas sem perceber a beleza  ao meu redor. Ainda um pouco machucada, ferida, mas com uma decisão tomada: – Eu vou esquecer você. Tirar você de vez da minha vida. Enterrar esse amor que sonhei, um sonho sonhado a dois, mas que terminou em enorme pesadelo.

Preciso te esquecer, preciso.

Fonte:
Carla Sonhadora