terça-feira, 1 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 1 –

 


Contos e Lendas do Mundo (Campo Mourão/PR: Lenda de Curibá e Jaricó Copaíba)

Há muito tempo atrás aconteceu um causo que virou a lenda de Curibá e Jaricó Copaíba.

Curibá era um homem simples; com um coração muito bom, porém ele não sabia fazer algumas coisas que seus companheiros faziam com facilidade, tipo jogar bola, caçar ou pescar.

Quando o grupo saía pra mata, a fim de caçar ou pescar, todos voltavam com suas sacolas cheias de peixes, e o pobre Curibá vinha sempre com as mãos abanando.

Por este motivo, todos faziam piadas com o seu nome:

- “Hey Curibá, vai pescar ou dar banho na minhoca?”...

- “Curibá é melhor comprar o peixe no mercado para ter o que comer.” E caiam na gargalhada.

Um dia, muito triste, Curibá foi pra mata, encostou-se no tronco de uma Copaibeira com muitos galhos, flores, repleta de sementes e ali começou a chorar. Suas lágrimas molharam as sementes e, de repente, de dentro de uma flor da majestosa Copaibeira surgiu um duende. Um homenzinho bem velhinho e simpático, com um chapéu verde-amarelo, uma longa barba fina que ia até o meio de sua barriga e um olhar amigo nos seus olhos.

- “Aló, alô, aló! Chamou! Chamou?! Chegou o duende Jaricó! - Vim aqui para saber o motivo de tanta tristeza meu rapaz. Sei que é uma boa pessoa, não maltrata ninguém, ajuda quem precisa, então por qual motivo chora tanto?

Curibá contou ao Jaricó o motivo de sua tristeza, das zombarias que faziam com ele, e o duende então lhe disse em tom solene:

-Eu, Duende Jaricó Copaíba, vou deixar pra você, todos os dias, oito minhocas mágicas bem aqui neste buraco do tronco da Copaibeira, que vai fazer você pescar quantos peixes quiser. Só exijo uma coisa: leve pra casa só os peixes que precisar, mas se sobrar faça doação pro orfanato!

Assim Curibá fez. Todos os dias pescava bastante e fazia o que Jaricó havia pedido.

Este belo gesto tornou Curibá uma pessoa muita querida por todos, e as brincadeiras de mau gosto acabaram. Porém, seu cunhado, João Tarrafa, morria de inveja com o sucesso de Curibá. Um dia resolveu segui-lo e descobriu o segredo das minhocas mágicas. Por ser invejoso, resolveu roubá-las.

Quando Curibá foi até o buraco da Copaibeira e não encontrou as iscas, ficou desesperado e chamou por Jaricó. Ouviu a voz do duende que dizia de maneira bem forte:

- Oh Curibá, mesmo sem iscas corra até o rio e jogue o anzol. Vamos lá rapaz. Tenha Fé!

Assim fez. Depois de um tempo sentiu que algo havia mordido o seu anzol. Pensou que fosse um peixe muito grande.

Curibá lutou muito até que conseguiu tirá-lo da água e teve uma grande surpresa ao ver que não era um peixe e sim uma grande minhoca com a cara de João Tarrafa, que gritava e pedia pra sair dali.

Então Curibá escutou novamente a voz do duende Jaricó:

- Curibá, isto é um castigo pro seu cunhado João Tarrafa, pelo que ele te fez. Enquanto não pedir desculpas a você no laguinho do chafariz da praça, ele continuará uma minhoca, nojento e desprezado por todos.

Depois disso, Curibá voltou a pescar e dava sempre uma parte do que conseguia para as crianças do orfanato.

Seu cunhado, depois de pedir perdão em público por suas maldades, foi perdoado, mas passou a ser apelidado, pelo povo, de João Minhoca.

Ainda nos dias de hoje, quando se encontra uma minhoca perto da milagrosa Copaibeira,  a pessoa que a encontrou tem muita sorte na pescaria e sai dizendo, bem rimado:

- "Bendito peixe, aló, alô, aló.
Benditos amigos Curibá e Jaricó.
Vou levar um peixe p'ra mamãe,
Um p'ro irmãozinho e um p’ra vovó!"

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Copaíba é árvore símbolo de Campo Mourão, imune a corte. Trata-se de uma espécie nativa do Cerrado Mourãoense, com propriedades curativas em vários tipos de doenças, principalmente as da pele humana. Seu óleo medicinal era denominado 'bálsamo dos deuses' pelos Incas.

Fonte:
Claudia Novello Ribeiro. Lenda de Curibá e Jaricó Copaíba - Campo Mourão -http://wibajucm.blogspot.com/2015/07/a-lenda-de-curiba-e-jarico-copaiba.html

Manuel Bandeira (Antologia Poética) 5


DESENCANTO


Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!
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DESESPERANÇA

Esta manhã tem a tristeza de um crepúsculo.
Como dói um pesar em cada pensamento!
Ah, que penosa lassidão em cada músculo...

O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento
Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia...
Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento.

Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.

Por onde alongue o meu olhar de moribundo,
Tudo a meus olhos toma um doloroso aspecto:
E erro assim repelido e estrangeiro no mundo.

Vejo nele a feição fria de um desafeto.
Temo a monotonia e apreendo a mudança.
Sinto que a minha vida é sem fim, sem objeto...

- Ah, como dói viver quando falta a esperança!
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EPÍGRAFE

Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugia e como um furacão,

Turvou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó -
Ah, que dor!
Magoado e só,
- Só! - meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
- Esta pouca cinza fria.
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EPÍLOGO

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que só o motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando acabei- a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade...
E o meu tinha a morta morta-cor
Da senilidade e da amargura...
- O meu Carnaval sem nenhuma alegria!....

Fonte:
Manuel Bandeira. Poesia Completa e Prosa. 1967.

Lima Barreto (Adélia)


— A nossa filantropia moderna feita de elegância e exibições é das coisas mais inúteis e contraproducentes que se pode imaginar. Entre todas as pessoas do povo aqui, no Rio de Janeiro, há uma condenação geral para as raparigas que se casam, no dia de santa Isabel, e saem da Casa de Expostos. Isto se dá para uma casa semi-religiosa, que só visa, penso eu, não a felicidade terrena, mas o resgate de almas das garras do demônio. Agora, imagina tu o que de transtorno na vida de tantos entes não vão levar esses "dispensários", essas creches etc. que lhes amparam os primeiros anos de vida e, depois, os abandonam à sua sorte!... Antes a sala do banco da Misericórdia que receita remédios de uma cor única e cuja dieta só varia na inversão dos pratos... É sempre a mesma... Essa caridade é espúria e perversa... Antes deixar essa pobre gente entregue á sua sorte...

— És mau... E impossível que ela não aproveite muitos.

— Alguns, talvez; mas muitos, ela estraga e desvia do seu destino, que talvez fosse alto. Nelson legou Lady Hamilton à Inglaterra; e tu sabes quais foram os começos dela. Chegaria até isso se andasse em creches, dispensários?

— Não sei; mas não nos devemos guiar por exceções.

— É uma frase; mas vou contar-te uma história bem singela que espero não me interromperás. Prometes?

— Prometo.

— Vou contar.

— Conta lá.

O narrador fez uma pausa e encetou vagarosamente:

— Quando a portuguesa Gertrudes, que "vivia" com o italiano Giuseppe, um amolador ambulante, apresentou Adélia, sua filha, à sublimada competência do doutor Castrioto, do dispensário, a criança era só um olhar. As pernas lhe eram uns palitos, os braços descamados, esqueléticos, moviam-se nas convulsões de choro sinistramente. Com tais membros e o ventre ressequido e a boca umedecida de uma baba viscosa, a criança parecia premida por todas as forças universais, físicas e espirituais. O seu olhar, entretanto, era calmo. Era azul-turquesa, e doce, e vago. No meio da desgraça do seu corpo, a placidez do seu olhar tinha um tom zombeteiro. O doutor melhorou-a muito; mas, assim mesmo, até à puberdade, foi-lhe o corpo um frangalho e o olhar sempre o mesmo, a ver caravelas ao longe que a viessem buscar para países felizes. Depois de adolescente, porém, no fim das grandes concentrações íntimas, o brilho hialino das pupilas turvava-se, estremecia. Ninguém descobriu-lhe o olhar — quem repara no olhar de uma menina de estalagem?

Olham-se-lhe as formas, os quadris e os seios; ela não os tinha opulentos, contudo casou-se. O casamento realizou-se a pé e a garotada assoviou pelo caminho. A noiva com calma estúpida olhou-os. Por quê? Casava-se a pé; era ignóbil. O padrinho não lhe notou modificação sensível. Não chorara, não soluçara, não tremera; unicamente mudou num instante de olhar, que ficou duro e perverso. O primeiro ano de casamento fez-lhe bem. A intensa vida sexual arredondou-lhe as formas, disfarçou as arestas e as anfractuosidades — emprestou-lhe beleza. Demais, o ócio desse primeiro ano afinou-a, melhorou-a; mas sempre com aquele olhar fora do corpo e das coisas reais e palpáveis. No fim de dois anos de casada, o marido começou a tossir e a escarrar, a escarrar e a tossir. Não trabalhava mais. Adélia rogou, pediu, chorou. Andou por aqui e por ali. Encontrou alguém amável que a convidou:

— Vamos até lá, é perto.

— Ó... Não... "Ele"...

— "Ele"!... Vamos!... "Ele" não sabe; não pode mais. Vamos.

"Foi, e foi muitas vezes; mas sempre sem pesar, sem compreender bem o que fazia, à espera das caravelas sonhadas. Ia e voltava. O marido tossia e tomava remédios.

— Trouxeste?

— Sim; trouxe.

— Quem te deu?

— O doutor.

— Como ele é bom.

"Aos poucos, infiltravam-se-lhe gostos novos. Um sapato de abotoar, um chapéu de plumas, uma luva... Morreu o marido. O enterro foi fácil e o luto ficou-lhe bem. O seu olhar vago, fora dos homens e das coisas, atravessava o véu negro como um firmamento com uma única estrela no engaste de um céu de borrasca. Um ano depois corria confeitarias, à tarde; mas o seu olhar não pousava nunca nos espelhos e nas armações. Andava longe dela, longe daqueles lugares.

— Toma vermute?

— Sim.

— É melhor coquetel.

— É.

— Antes cerveja.

— Vá cerveja.

Não custou a embriagar-se um dia. Meteram-lhe num carro. Estava que nem uma pasta mole e desconjuntada.

— Que tem você?

— Nada, não vejo.

— Você por que não abre mais os olhos?

— Não posso, não vejo!

— Lá vão os Fenianos... Você não vê?

— Ouço a música.

Teve carros. Frequentou teatros e bailes duvidosos, mas seu olhar sempre saía deles, procurando coisas longínquas e indefinidas. Recebeu joias. Olhava-as. Tudo lhe interessou e nada disso amou. Parecia em viagem, a bordo. A mobília e a louça do paquete não lhe desagradavam; queria a riqueza, talvez; mas era só. Nada se acorrentava na sua alma. Correu cidades elegantes e as praias.

— Hoje, ao Leme.

— Sim, ao Leme.

A curva suave da praia e a imensa tristeza do oceano prendiam-na. Defronte do mar, animava-se; dizia coisas altas que passavam pelas cabeças das companheiras, cheias de mistério, como o voo longo de patos selvagens, à hora crepuscular.

Veio um ano que se examinou. Estava quase magra, quase esquálida. Foi-se fanando dai por diante. Diminuíram-se-lhe as joias e os vestidos. Morreu aos trinta e poucos anos como a criança que se fora: um frangalho de corpo e um olhar vago e doce, fora dela e das coisas. Que é que adiantou o dispensário?"

Calou-se o que narrava, e o outro só soube dizer:

— Vou-me embora... Até amanhã.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. 1920,

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 454

 


Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Oito) Língua presa

O autor é de Vila Velha/ES

 
O ESCRITÓRIO DO ADVOGADO ficava literalmene em frente ao prédio da delegacia de polícia.  Por esta razão, assim que o rapaz que acabara de entrar em sua sala trazido pela sua secretária, o causídico indicou gentilmente uma cadeira. Antes de se acomodar, o moço tirou da cabeça um boné ensebado e o colocou sobre a mesa cheia de papéis e processos:

—  Bom dia, meu jovem. Aceita  água gelada?

— Boum diua paura o seunhour taumbuém. Nãu, oubriugaudo. Seurei breuve.

—  Um cafezinho, ao menos?

—  Teunhu qui paugar?

—  Claro que não, meu amigo. É tudo por conta do nosso escritório.

—  Entãu eu auceitu um...

—  Quer comer alguma coisa? Temos bolo de laranja...

—  Se eu tiuver que paugar, preufiuro só o caufé...

O criminalista chamou a atendente pelo interfone e solicitou que trouxesse a bebida para dois:

—  Vamos ao seu caso, senhor... Como é mesmo seu nome?

—  Audeusgeusto Fumouso.

—  Pois não. Conte o que aconteceu?

— Meu aumiugo se meuteu nuuma encreunca e a pouliucia trouxe eule auqui paura a deuleugaucia.

—  Sabe dizer exatamente qual o motivo?

— Seugundo o pouliuciaul de plauntão, roubo de uma mouto. Mas já foui tudo deuviudamente esclaureucido.

—  Entendi. Mas ele, seu amigo, ainda continua detido?

—  Nãu. Doutour. Aucaubou de ser liubeurado. Eustá auté auli foura me espeuraundo.

A recepcionista entrou com a bandeja  e  serviu os dois homens em silêncio:

—  Senhor, açúcar ou adoçante?

—  Auçuucar, pour fauvour.

—  Não entendi, cavalheiro!

—  Aucho meulhour toumar puro meusmo...

Terminada esta  tarefa, a jovem acenou para os dois e retornou à recepção:

—  Bem, seu Adegesto...

—  Audeusgeusto...

—  Como se escreve, ou melhor, como se pronuncia? Adegesto ou Adeusgesto?

—  Audeusgeusto.

—  Ok. Seu Audeusgeusto, pelo que entendi, seu amigo não está mais detido ai na delegacia, correto?

—  Grauças à Deus, nãu.

— Confesso ao senhor que não entendi uma coisa. Como se chama, afinal, este seu amigo: Souto ou Solto?

—  Ourlaundo!

—  Mas o senhor disse à minha funcionária, ainda a pouco,  que seu amigo Souto foi... Solt... E...  

— ...Nãu, nãu diusse. Fui beum clauro com eula. Faulei  o seuguiunte: que o meu aumiugo Ourlaundo... De onde o senhour tiurou euste taul de Souto?

— Calma, vamos recapitular: o que o senhor falou, afinal, para minha subordinada quando ela o interpelou na recepção ai da delegacia?

—  Queu meu aumiugo Orlaundo esteuve, mas augoura nãu está mais...

—  Mais o quê?

—  La deuntro da deuleugaucia, com o doutour deuleugaudo.

—  Então ele foi realmente solto?

— Foui. Diaunte diusso eu vium auté auqui augraudecer, pois nãu vou mauis preuciusar de seus serviuços. Taumbém sauber se deuvo aulguma couisa coum reulaução a hounouraurios. Aufiunaul de countas a sua ausseussoura foi muito euducauda...

— Tudo bem, o  senhor não me deve nada. Apenas gostaria de um pequeno esclarecimento. Estou, ainda pra lá de confuso. Desculpe a insistência, seu Adeusgesto: seu amigo é o Souto?

— Nãu, doutour. Pour tudo quaunto é mais saugraudo. Meu noume é Audeusgeusto...  

— Realmente acho que não estamos conseguindo nos entender.  O Souto, ou melhor, o Orlando  veio preso e agora está solto?

—  Euste taul de Soulto nunca eusteuve preuso. Se nãu eusteuve preuso, jaumais poudeuria ter siudo soulto. O Ourlaundo sim... De preuso, passou a soulto... E soulto, pourtaunto, eule eustá augoura.

Risos:

— Por acaso isto é algum tipo de brincadeira?

— Nãu senhour. Clauro que nãu.

— Então?

— O Ourlaundo, coumo eu diusse, está soulto. Enteunde o que diugo? Eule augoura está souto. Fuoi aupenas um maul enteundiudo. Coumo poude ver, tudo se  feuz deuviudaumente esclaureuciudo. Miunha preusença auqui no seu euscriutóurio  se deuve  aupeunas paura vuer se eu lhe deuvo aulgum vaulour e, soubreutudo augraudeucer a sua iunterveunção e, clauro, a da sua aumaubilíssiuma beuldaude que fiuca  na meusinha da sua aunteusaula.

Para descomplicar a vida, ou melhor, a conversação e o entendimento entre seu cliente, o jurista ‘porta de cadeia’ procurou falar no mesmo linguajar dele:

— Iusto nous leuva a councluir que eule, o Ourlaundo  eustauva preuso e augoura grauças a Deus, foui soulto?

Audeusgeusto Fumoso, se sentindo imitado, e pior, zombado, perdeu as estribeiras. Fechou o semblante. Gritou, colérico:   

— O seinhour pour aucauso reusoulveu gouzar da miunha caura?

— De forma alguma, seu Adegesto. Por tudo quanto é sagrado. Longe de mim esta ideia absurda.

— Audeusgeusto. Meu nome é Audeusgeusto...

Em seguida se levantou da cadeira mais irritado e furioso. Passou a mão no boné ensebado, virou as costas e saiu definitivamente da sala.

Fonte:
Do livro “Comédias da vida na privada” – de Aparecido Raimundo de Souza, pela Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro.
Texto enviado pelo autor.

Edy Soares (Cristais Poéticos) V

A RODA DO MUNDO


Cada minúscula partícula é um dente
Da catraca que faz o mundo girar
Não por acaso nada é permanente,
Pois no ciclo do giro do mundo,
O que recicla não morre mais faz renovar.

Se semente latente ou germe, é vida,
Será um dia vivida quando enfim geminar;
Mas, sem alterar a grande roda do mundo.
Pois pó, sai do pó e ao pó voltará.
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DESALENTO

Quem vai nunca vai sozinho,
leva um pedaço da gente;
quem fica não fica inteiro;
pois, a alma fica doente.

Quem fica sente saudades,
o soluço sufoca o peito.
Quem chora apascenta a alma;
quem sorri, o faz com respeito.

Qual livro na prateleira
e conto que vai pra memória,
a saudade rasga o peito,
qual página que finda a história.

A lágrima, que lava os olhos,
não leva a dor de quem chora.
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ETERNO AMOR

Queima-me no peito, palpitante,
com os meus olhos chorando ao te ver,
um coração que por um instante,
ofegante, quase não quer bater.

Posso ver em teu doce semblante
que ainda não conseguiste esquecer,
ao entregar-te pra tantos amantes,
o grande amor que assisti fenecer.

Meu corpo ainda tremula e sua
quando te vejo andar pela rua.
Lábios lindos que me pertenceu.

Mas o tempo passou não tem jeito,
vais levar nosso amor em teu peito,
que pra sempre vou levar-te no meu,
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FLORES DO DESERTO

Deserto de flores magras
Que definham,
Que o sol castiga,
Pois falta água,
De sede murcham,
Mas são flores.

Deserto de crianças magras
Que definham,
Que o sistema castiga,
E falta água.
Ninguém as escuta,
Mas são crianças.

Flores que choram o chão,
Crianças que choram o pão,
Que despetalam,
Que o mundo condena.

São pequenas flores
Que ninguém colhe,
Que ninguém acolhe,
Mas precisam de amores
Por que... São flores!
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UM DIA APÓS O OUTRO

Há tempo de poesias,
De grandes amores.
Há tempo de flores
Que justificam a vida.

Há tempo de romances,
Descoberta de amores,
Entrega de flores
Pra pessoa querida.

E pra equilíbrio da saga,
Em tempos de drama,
Há que manter a chama
E curar as feridas,

Em poesia, romance ou drama,
Segue o seu curso, a vida.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.

Carina Bratt (Encantos de Sonhos não Enterrados)


Para todas as meninas que ainda vivem os arroubos do primeiro amor.


Três meses, hoje, que eu e ele nos separamos. Resolvemos comemorar a data indo a um shopping fazer um lanche na praça de alimentação e, para fechar a noite, com chave de ouro, assistir a um filme em cartaz numa das salas de exibição lá existentes. Ele queria ‘Sr. e Sra Smith’, com Brad Pitt e Angelina Jolie. O filme havia saído de cartaz trocentos anos atrás e, por algum motivo inexplicável, as salas de projeção estavam fazendo uma espécie de pescaria adoidada de um desses ‘baús de longas’. Sem opção ficamos com ‘Guerra dos Mundos’, com Tom Cruise e Dakota Fanning. Melhor que ‘Batman Begins’ e ‘Madagascar’.

Ele, o meu eterno amor, continua o mesmo, como o fiel da balança, a não ser pelo porte. Mais belo e ardente, elegante e solto. Perdeu uns quilinhos. Achei-o de rosto miúdo, olhos fundos — semblante um pouco triste e abatido, como se carregasse, nos ombros, sozinho, o peso pela culpa de nosso rompimento. De resto, continua autoritário, cheio de mágoas — guarda ainda rancores antigos, como se fossem a razão maior do seu existir. Fora isto, me vi invadida por uma solidão estranha, uma vontade de me aninhar em seus braços e chorar as incertezas que ainda fazem de meus dias um rosário interminável de suplícios eternos.

Este rapaz de trinta e oito anos se contrapondo aos meus 16 incompletos e consequentemente aos quase vinte e três de diferença de idade existentes entre nós, deixou uma lacuna muito grande quando me disse adeus. Criou um abismo intransponível e conseguiu botar meu coração em frangalhos. Afinal de contas foram quatro anos de convivência. Quatro anos não são quatro dias, e a história do nosso dia a dia não poderia morrer, ou não deveria ir por água abaixo, sem mais nem menos. Contudo, apesar dos pesares, foi. Aconteceu. Nossos mundos se desmoronaram e, agora, cada um tenta renascer dos escombros como pode, com as armas que cada um de nós dispõe ao alcance das mãos.

Talvez seja por esta razão que sinta a falta dele em tudo o que faço. O vazio que se formou ao meu redor clama pelo seu regresso imediato e eu me cobro por ter deixado que partisse sem brigas, sem mágoas, para que ficasse tudo em paz, sem dissabores, sem lutas desnecessárias, temendo (pelo menos da minha parte, na época) que não se fechassem as portas de um futuro, quem sabe, talvez?! atrelado ao ‘nunca mais’ atrás de si, e me virasse às costas, porventura, de modo definitivo.

Ele era, ou melhor, foi a minha ponte suspensa e sem idade para o futuro que me esperava do outro lado. Uma ponte comprida, tecida de pequenos fragmentos sobre caudaloso mar de águas escuras — onde o peso da idade para ele se insurgia para mim como um relógio do tempo disfarçando as horas que me restavam — com miçangas e tufos de algodão para enganar meu agora. E só fazem três meses. Noventa dias sem o seu calor quase materno, o beijo adocicado, o carinho de nossos corpos se procurando na cama, onde bastava um pouquinho de pequenos afagos para que o imensamente adormecido brotasse, no galope desenfreado dos prazeres acelerados.

E quando estávamos prestes a nos despedir, já fora do cinema, ele me pagou um Cappuccino com creme de leite. Odiei a bebida. Em compensação, o tempo que levei para sorver o conteúdo da xícara me permitiu ficar mais um bocadinho ao seu lado. Sentamos em uma mesa ao acaso, trocamos suspiros confidentes — ele chorou um pranto sentido (eu colocaria como um pranto de pronta entrega), e eu, por meu turno, disfarcei como pude, uma lágrima fujona e solitária, que não ensaiou bailar e, de repente, se viu fora de foco, como uma atriz iniciante nas coxias, medrosa de aparecer em cena para protagonizar o seu primeiro papel diante de uma multidão desconhecida.

Se eu pudesse ter um desejo realizado agora, seria o de vê-lo de volta, de mãos dadas comigo, nossos dedinhos entrelaçados em posição de perdão, enquanto violinos desenhando falas da ‘Fantasia e Fuga em Sol Menor’, de Bach, nos faria sentir a bela culminância de estarmos a sós, e de volta, exatamente ao ponto onde colocamos um final derradeiro em nossos destinos. Não queria que houvesse meios termos, nem que a nossa novela virasse capítulo de um folhetim esquecido.

Almejava, ainda, um mergulho sensível na piscina do adormecido, onde pudesse me sentar quando saísse da água, num balanço indo e vindo, incerto no azul, e sentisse ribombar as auras agridoces dos sons e, igualmente, gotejasse a velha paixão doentia pelos poros da epiderme, até que a coisa, como num passe de mágica, virasse unha e carne. Quem dera, ou quem sabe, no êxtase da arte, explodissem estrelas, reescrevendo a nossa história, como um prato cheio de letrinhas de sopa se derramando no regozijo da minha louca imaginação.

Papo sério. Acabou de verdade. Três meses se passaram. No fundo, estou me sentindo como uma daquelas alienígenas do ‘Guerra dos Mundos’ que substituímos em última hora, para não perdermos o bom humor e voltarmos, cada um para seu canto, de tromba virada, como um presente recebido sem papel de embrulho. O filme de Spielberg — olhando agora pelo lado bom — me fez ver o outro lado da moeda, ou seja, aquele canto sombrio que eu não queria encontrar jamais. No geral, me senti realmente como os invasores que lutaram tanto para conquistarem a terra e, afinal das contas, encontraram a morte.

Comigo foi exatamente igual, sem tirar nem por. Lutei tanto para conquistar o coração desta criatura e acabei derrotada por uma tal de Patrícia não sei das quantas. Cá entre nós: se pelo menos essa Pati (que não imagino como lhe seja o rosto) for melhor que eu, melhor em tudo, ou tão linda quanto a Dakota Fanning... Talvez eu voltasse a me sentir ou a me ver renovada, remoçada, mais segura de mim mesma, pronta para seguir em frente, de cabeça erguida, jogando o passado na lata de lixo — eu me sentiria viva, solta e bela — como a Anne Hathaway...

Fonte:
texto enviado pela autora.

domingo, 29 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 453

 


Fernando Sabino (Aspirador de pó)


Antes que eu lhe pergunte o que deseja, o gordinho começa a exibir-me uma aparelhagem complicada, ainda na porta da rua. São tubos que se ajustam, fio para ligar na tomada, escovinhas de sucção e outros apetrechos.

– Entre! – ordenei.

Ora, acontece que jamais prestei sentido na existência dos aspiradores de pó.

Por isso é que fui logo cometendo a imprudência de convidar o gordinho a exibir-se de uma vez no interior da sala. Na porta da rua venta e faz muito pó, disse-lhe ainda, tentando um trocadilho infeliz. Entramos os dois, para a tradicional peleja entre comprador e vendedor.

Vi o gordinho desdobrar-se, suando, estica o fio, não dá até a tomada, arrasta a cadeira um pouco para lá, não é isso mesmo? Ah, sim, com licença, quer limpar esse tapete?

É um tapete que arrasto comigo há anos, por todos os lugares em que venho morando. Já abafou meus passos em dias de inquietação, já recebeu alguns pulos meus de alegria, e manchas de café, de tempo, de poeira dos sapatos. Pois olhe só – em dois tempos o gordinho pôs a engenhoca a funcionar, esfrega daqui e dali, praticamente mudou a cor do meu tapete.

– Agora é que o senhor vai ver – anunciou, feliz, revelando-me a existência, dentro do aparelho, de uma sacola onde o pó se acumulava. Exibiu-me seu conteúdo com um sorriso de puro êxtase, o tarado.

Aquilo me decepcionou: pois se tinha de despejar o pó no lixo, por que não recolhê-lo de uma vez com a vassoura? Evidente burrice da minha parte – o gordinho devia estar pensando: com certeza eu esperava que o pó se volatilizasse dentro do aspirador, num passe de mágica?

Deixei que ele me enumerasse as outras aplicações do miraculoso aparelho: servia para escovar um terno, por exemplo, quer ver? E voltou para mim o cano da arma, que num terrível chupão quase me leva a manga do paletó.

– Serve também para massagens. Com sua licença – e passou-me no rosto a ponta do tubo. Minha pele foi repuxada sob a improvisada ventosa, deslocando-se ruidosamente num violento beijo de cavalo.

– Basta! – protestei – Estou convencido. Compro o aspirador.

– E digo mais… – prosseguiu ele, sem me ouvir – Serve para refrescar o ambiente. Duvida? E só virar ao contrário…

– Não duvido não. Já está comprado.

– … e funciona como um perfeito ventilador.

Fui buscar o dinheiro, paguei e despedi sumariamente o gordinho que, perplexo, continuava ainda a recitar sua lição:

– Aspira o pó dos lugares mais inacessíveis: aspira atrás das estantes, aspira cinzeiros, aspira…

– Obrigado, obrigado – e fechei a porta atrás dele.

Passei o resto da tarde me distraindo com a nova aquisição. De todas as maneiras: aspirei cinzeiros, estofados, cortinas, ternos, aspirei atrás das estantes, fiz desaparecer, até o último grão, o pó existente na casa.

Então tentei retirar das entranhas do aspirador a tal sacola, como o gordinho me havia ensinado. Para meu júbilo, estava bojuda como um balão. Só não me lembrei foi de desligar o aparelho que, como ele me havia ensinado também, virado ao contrário funciona como um perfeito ventilador: de súbito, explode no ar uma bomba de pó acumulado. Tudo voltou ao que era dantes, fui à cozinha buscar uma vassoura. És pó e em pó reverterás – pensei comigo.

Fonte:
Para gostar de ler. crônicas. SP: Ática, 1997

Baú de Trovas XXII


Partiste, sim, mas ainda,
por ironia ou maldade,
ficaste muito mais linda
vestida nesta saudade!...
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Quisera ser o teu bem
e disso me convencer.
E não contar a ninguém,
para ninguém te querer...
FLORISE PÉROLA
- - - - - -
Tristeza! Um gesto, um desejo,
que foi de leve esboçado...
A sinfonia de um beijo,
um sonho não terminado!...
LEONOR PEREIRA
- - - - - -
Castanhos e tentadores,
misteriosos demais,
muito me alegram nas dores
esses teus olhos leais.
MARIA DE LOURDES DE ARAÚJO
- - - - - -
No dia em que tu quiseras
ser meu senhor e meu rei,
serei todas as mulheres
na mulher que te darei!
NYDIA IAGGI MARTINS
- - - - - -
Se toda gente soubesse
como custa querer bem,
quanta gente gostaria
de não gostar de ninguém!
OCTÁVIO BABO FILHO
- - - - - -
Depois que a vi tão bonita,
com esse encanto que tem,
deu-se uma coisa esquisita:
— não acho graça em ninguém.
OCTÁVIO KELLY
- - - - - -
Tu ficaste muito longe,
mas o meu olhar te alcança.
Ai de mim, que os olhos chegam
onde não chega a esperança!
OLAVO DANTAS
- - - - - -
Soprei. Apagou-se a chama.
Disse-te adeus em seguida.
- Quem diz adeus a quem ama
diz adeus à própria vida.
OLEGÁRIO MARIANO
- - - - - -
Parece-me coisa absurda,
de efeito constrangedor;
por que te mostras tão surda
aos meus protestos de amor?
OLYNTHO PILLAR
- - - - - -
Três Marias, três amores,
passaram pelos meus dias...
Ficou Maria das Dores,
— a dor maior das Marias!
ONILDO DE CAMPOS
- - - - - -
É da luz que o sol envia
que nasce o brilho da tua.
Assim é minha alegria:
depende sempre da tua!
ORLANDO BRITO
- - - - - -
Às vezes a vida tem
um sentido desigual;
nunca pensei que meu bem
fosse a causa do meu mal...
ORLANDO CAVALCANTI
- - - - - -
O céu é lindo, convenho,
mas, tão alto, e tão incerto!
Nesses teus olhos eu tenho
um céu mais lindo e mais perto.
OSCAR BAPTISTA
- - - - - -
Minha poesia mimosa
na tua algidez não medra.
— Como plantar uma rosa
no coração de uma pedra?
OSMAR BARBOSA
- - - - - -
Alta noite, nos espaços,
arqueados de tanta luz.
a saudade me abre os braços
como se fosse uma cruz.
OSÓRIO DUTRA
- - - - - -
Tenho tudo — o amor, os sonhos,
a vida inteira, você...
E eu vivo sempre esperando...
Meu Deus! Esperando o quê?
OVÍDIO CHAVES
- - - - - –
Os assassinos atrozes
matam, de raiva rugindo!
Teus olhos são mais ferozes,
porque me matam sorrindo…
PAULO ARAGÃO
- - - - - -
Quem não souber, com certeza,
do seu amor a extensão,
consulte o grau de tristeza
que causa a separação.
PAULO FÉNDER
- - - - - -
Nossa vida?… Pobre vida!…
Tanta esperança e, depois…
uma agonia chorando
no silêncio de nós dois.
PEDRO GUEDES
- - - - - –
Quem vê o teu lindo rosto,
feito com tal perfeição,
até se esquece, por gosto,
de que não tens coração.
PERI OGIBE ROCHA
- - - - - -
A fonte de meu queixume
transborda nesta verdade;
de perto — tenho ciúme;
de longe — sinto saudade.
WAGNER LUIZ RIBEIRO
- - - - - -
Não sei bem o que faria,
se algum dia eu te encontrasse.
Talvez, de tanta alegria,
em vez de sorrir, chorasse...
WALCHIRIA DE ALVARENGA CORRÊA
- - - - - -
Renasce em mim o desejo
de ter-te, felicidade,
toda vez que te revejo
na sombra de uma saudade!
ZORAIDE DE SOUZA

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Humberto de Campos (O Ambicioso)


A Mesopotâmia estava já povoada de animais de toda a ordem, quando Jeová resolveu, uma tarde, aperfeiçoar a sua obra dos sete dias.

- Tudo isso - pensava o Criador - está muito bem. Urge, entretanto, favorecer estes viventes, facultando-lhes um ornamento natural com que se embeveçam, e que seja, no mundo, o objeto dos seus cuidados.

E, chamando com a sua voz poderosa o anjo Gabriel, mandou que ele preparasse, nas margens do Eufrates, alguns quilômetros de cauda, de diversas grossuras e de diversos feitios, para ser distribuída, na manhã seguinte, pelos seres recém-criados - à semelhança do que fazem, hoje, com os cordões honoríficos, alguns governantes sem dinheiro.

No dia seguinte, pela manhã, a várzea do Éden ressoava de guinchos, de uivos, de gritos, de berros, de bramidos, de um alarido, enfim, que fazia tremer a terra. Eram os gatos, os leões, os cães, os tigres, os coelhos, a animalidade inteira, em suma, que acorria de toda a parte, na ânsia de receber o seu prêmio.

Sentado sobre um pequeno outeiro resplandecente, com os rolos de cauda amontoados ao lado, o Criador ia chamando, um a um, os animais aglomerados na campina.

- Leão! - gritou.

O quadrúpede formidável aproximou-se, arrastando, humilde, pelo solo fresco, a juba monstruosa, e recebeu dois metros de cauda, da mais grossa, que prendeu, imediatamente, à extremidade do espinhaço.

- Macaco! - chamou.

O animal deu um pulo, chegando-se.

- Dê-lhe metro e meio da cauda n. 2! - ordenou Jeová ao anjo Gabriel.

E assim foi distribuindo, equitativo, pelos outros bichos, dando meio metro aos cachorros, um metro aos tigres, vinte centímetros aos gatos, um metro aos bois, e, desse modo, consecutivamente.

Em certo momento, porém, chamou o Homem, entregou-lhe a sua parte, que era, mais ou menos, um metro.

- Tome! - exclamou.

- Só isso? - estranhou o ambicioso, com desdém.

Jeová encarou-o, irritado, mas pensando em vingança ainda mais terrível, ordenou:

- Então, espere aí.

O homem ficou de lado aguardando a nova chamada, e a distribuição continuou, sendo contemplados, então, na proporção das necessidades, o coelho, o gambá, o carneiro, o bode, o veado, o lobo, toda a bicharada, finalmente, que havia no Paraíso.

Aflito, retorcendo as mãos, o homem olhava o desenrolar dos rolos de corda viva, notando que ia ficar sem a sua, quando de súbito, implorou:

- E a minha, Senhor?

Dos quilômetros de cauda fabricados restavam, apenas, duas pontas pequeninas, de dois ou três centímetros, que o mísero pediu, arrependido:

- Dá-me, ao menos, uma destas sobras, meu pai!

- Destas? Não. Esta aqui é do tatú.

- E aquela, Senhor?

- Aquela? É da cotia!

Vendo-se assim preterido, como pena da sua ambição, o homem deu meia volta, e afastou-se, contrariado.

E daquilo que foi, em verdade, uma punição, fez ele depois na terra o motivo do seu orgulho…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

As Rimas (1)

A rima é um recurso de estilo de linguagem muito utilizado nos gêneros discursivos estruturados em versos, como poemas e músicas, com o objetivo de atribuir ao texto maior sonoridade, ritmo e musicalidade.

De maneira geral, a rima consiste na associação entre os fonemas das palavras que podem ser consideradas como pares nos textos. Isso significa que a rima ocorre entre um verso e outro, designando a repetição de sons idênticos ou semelhantes, geralmente, na sílaba final das palavras.

Leia uma estrofe do poema do poeta romântico Gonçalves Dias e observe os efeitos de sentido sonoros causados pela rima:

Canção do Exílio

Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá,
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá.

(Gonçalves Dias, Primeiros cantos, 1846.)

Embora a utilização das rimas seja frequente nos gêneros discursivos que apresentam função poética da linguagem, há poemas e músicas que não as apresentam. Quando isso ocorre, temos o que chamamos de versos brancos ou versos soltos.

Leia o poema do poeta modernista Manuel Bandeira, “Poema tirado de uma notícia de jornal”, e observe sua construção a partir de versos brancos:

Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número.
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

(BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993.)

CLASSIFICAÇÃO DAS RIMAS:

RIMAS POBRES
As rimas pobres ocorrem entre palavras de mesma classe gramatical: substantivo com substantivo, verbo com verbo etc.

    coração, razão;

    beleza, tristeza;

    amando, cantando;

    bondoso, carinhoso;

    amar, pular, cantar.

Também são consideradas pobres as rimas das palavras finalizadas em sons corriqueiros, triviais:

    Evidentemente, certamente, simplesmente.

    amar, pular, cantar.

As rimas pobres não devem ser desdenhadas ou desmerecidas pela adjetivação pejorativa que carregam no nome. Isso porque há muitas obras literárias construídas a partir desse recurso estilístico.

RIMAS RICAS
São consideradas ricas as rimas entre palavras pertencentes a classes gramaticais diferentes. De maneira geral, essa diferença de classes causa experiências de leitura distintas da leitura dos textos com rimas pobres, surpreendendo pela novidade.

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    maravilhosa – babosa (adjetivo - substantivo)

    idade – nade (substantivo - verbo)

    dela – bela (pronome - adjetivo)

    suba – Cuba (verbo - substantivo)

    fostes – postes (verbo - substantivo)

Leia alguns versos do poema “A um Poeta”, do poeta parnasiano Olavo Bilac, e observe os efeitos causados pelas rimas ricas:

A um Poeta

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.
(...)

(BILAC, Olavo. Tarde. 1919.)

RIMAS RARAS
A rima rara ocorre entre palavras que permitem poucas possibilidades de aproximação fonética (sonora).

    Cisne - tisne

    estirpe - extirpe

Leia alguns versos do poema “Argila”, do poeta carioca Raul de Leoni, e observe os efeitos de sentido causados pela rima rara:

Argila

(...)
É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que ouço ao longe o oráculo de Elêusis.

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

(LEONI, Raul de. Ode a um poeta morto. Florianópolis: EDUSC, 2002.)

RIMAS PRECIOSAS
As rimas preciosas são rimas artificiais que foram construídas a partir da combinação de palavras distintas no que se refere à classe e à aproximação fonética:

    calúnia - resume-a

    tome-a - sonha

    pântanos - quebranta-nos

    Ásia – alague-a

    luxúria - ature-a

Leia o poema de Augusto dos Anjos, “Monólogo de uma sombra”, e observe os efeitos de sentido causados pela rima preciosa, sobretudo entre a palavra apodrece e a letra [s]:

Monólogo de uma sombra

(...)
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.
(...)

(ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 42. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.)

Fonte:
Luciana Kuchenbecker Araújo. "Rimas: pobre, rica, rara e preciosa". Disponível em Brasil Escola.

sábado, 28 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 452

 


Malba Tahan (O Herdeiro Legítimo)


Um israelita rico, que vivia em sua bela propriedade, para além de Ascalon, muito longe de Jerusalém, tinha um filho único, que mandou para a Cidade Santa a fim de se educar. Durante a ausência do jovem, o pai adoeceu repentinamente. Vendo a morte aproximar-se, fez o seu testamento pelo qual instituiu como seu universal herdeiro a um escravo ascalonita, de sua confiança, com a cláusula que a seu filho seria permitido escolher da rica propriedade uma coisa, e uma coisa só, que ele quisesse.

Assim que o seu senhor e dono morreu, o escravo, exultando de alegria, por se sentir proprietário das casas, terras e rebanhos, correu a Jerusalém para informar o filho do que se tinha passado, e mostrar-lhe o testamento. O jovem israelita ficou possuído do maior desgosto ao ouvir essa notícia inesperada, rasgou o fato, pôs cinzas na cabeça e chorou a morte do pai, que amava ternamente, e cuja memória ainda respeitava.

Quando os primeiros arrebatamentos de sua dor tinham passado e os dias de luto acabaram, o jovem encarou seriamente a situação em que se encontrava. Nascido na opulência e criado na expectativa de receber, pela morte do pai, as propriedades a que tinha direito, viu ou imaginou ver as suas esperanças perdidas e as suas perspectivas malogradas. Nesse estado de espírito, foi ter com o seu professor, um rabi afamado pela sua piedade e sabedoria, deu-lhe a conhecer a causa de sua aflição e fê-lo ler o testamento; e na amargura do seu desgosto atreveu-se a desabafar os seus pensamentos — que o pai, fazendo tal testamento, e dispondo tão singularmente de seus bens, não tinha mostrado bom senso nem amizade pelo filho.

— Não digas nada contra teu pai, meu jovem amigo — declarou o piedoso rabi — teu pai era ao mesmo tempo um homem dotado de grande sabedoria e a ti, especialmente, de uma dedicação sem limites. A prova mais evidente é este admirável testamento.

— Este testamento! — exclamou o jovem torcendo os lábios em expressão de amargura. — Este deplorável testamento! Convencido estou, ó rabi!, de que não falas agora com o discernimento de um homem esclarecido. Praticou meu pai uma injustiça. Não vejo sabedoria em conferir os seus bens a um escravo, nem amizade em despojar seu filho único dos seus direitos legítimos, de acordo com o Torah.

— Teu pai nada disso fez! — rebateu com segurança o Mestre — Mas, como pai justo e afetuoso, garantiu-te, nos termos deste testamento a propriedade plena de tudo, casas, terras e rebanhos, se tiveres o bom senso de interpretar com acerto as cláusulas testamentárias.

— Como? Como? — perguntou o jovem, com o maior espanto. — Como é isso? Cabe-me a propriedade integral? Na verdade, não compreendo!

— Escuta, então — acudiu o rabi. — Escuta, meu filho, e terás muito para admirar a prudência de teu pai. E no coração do prudente repousa a sabedoria. Quando viu teu bondoso pai a morte aproximar-se, e certo de que teria de seguir o caminho que todos seguem mais cedo ou mais tarde, pensou de si para consigo: “Hei de morrer; meu filho está longe demais para tomar posse imediata de minha propriedade; os meus escravos, assim que se certificarem de minha morte, saquearão a minha casa e, para evitar serem descobertos, hão de esconder a minha morte a meu querido filho e, assim, privá-lo até da triste consolação de chorar por mim”.

— Para evitar que a propriedade sofresse dano — prosseguiu o rabi — teve teu saudoso pai uma ideia genial. Deixou todos os bens a um escravo, que, decerto, teria o maior interesse em tomar conta de tudo e zelar pela segurança de todos os bens. Para evitar que o escravo, homem de sua confiança, conservasse, em sigilo, a morte do amo, estabeleceu a condição que poderias escolher qualquer coisa da propriedade. O escravo, pensou ele, para assegurar o seu, aparentemente legítimo direito, não deixaria de te informar, como de fato ele o fez, do que acontecera.

— Mas, então — teimou o jovem, um pouco impaciente — que proveito tirarei de tudo isso? Qual é a vantagem que poderá resultar para mim? O escravo ascalonita não me restituirá, com certeza, a propriedade de que tão injustamente fui despojado! Ficará, como determinou meu pai, dono das terras e dos rebanhos.

O judicioso rabi respondeu com serenidade:

— Vejo que a Sabedoria reside apenas nos espíritos amadurecidos pela idade. Sabes que tudo quanto um escravo possui pertence ao seu dono legítimo? E teu pai não te deu a faculdade de escolher, dos seus bens, isto é, da herança, qualquer coisa que quisesses? O que te impede de escolher aquele próprio escravo ascalonita como parte que te pertence? E possuindo-o, terás, de acordo com a Lei, pleno direito à propriedade toda. Sem dúvida era esta a intenção de teu pai.

O jovem israelita, admirando a prudência e a sabedoria do pai, tanto como a argúcia e a ciência do seu Mestre, aprovou a ideia. Nos termos do testamento, e na presença de um juiz, escolheu o escravo como sua parte e tomou posse imediata de toda a herança. Depois do que, concedeu liberdade ao escravo, que foi, além disso, agraciado com rico presente.

E assim podemos ler entre os provérbios que figuram no Livro Santo:

“A Sabedoria vale mais do que as pérolas e jóia alguma a pode igualar”.

E mais:

“Quem acha a Sabedoria encontra a vida e alcança o favor do Senhor”.

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano

Rita Mourão (Poemas Escolhidos) 3

AMOR  FELINO


 O gato chegou de esguelha, moroso, amorado.
Chegou, gateou, miou um miado de desejo.
Derramou um olhar de sultão, anunciando volúpia.
Palmeou o terreno, miou afinado,
saracoteou  exibindo  felinidade.
Agradou, submeteu-se.
A lua romântica prateou o gato, o miado se alongou,
 se perdeu nas barreiras da noite.
E o gato se afastou  molengamente
tomado  por aquela frouxidão  aconchegante
que se sucede depois do amor.
****************************************

AUSÊNCIA

Pássaro amigo, cessa  teu canto
que  por  enquanto, não quero ouvir.
Não cantes mais, quero o  silêncio
para  sonhar, para dormir.
Teu canto é  belo, mas  eu  não  quero
ouvi-lo  assim.
Deixa- me agora   e sem demora
leva  contigo, pássaro amigo,
toda  a tristeza que  há  em  mim.
E se voltares  traga em teu canto
o  doce encanto de uma presença.
Mesmo volátil, em  gaze fluida,
mesmo  num  quase, mesmo em essência!
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DESVARIO

 Hoje se apoderou de mim
um espírito de criança.
Menina arteira, eu virei bicho,
pastei  grama, uivei,  esgravatei o chão,
pulei  corda e despetalei um malmequer
para tirar a  sorte.
Escarranchei sobre minha janela
e aspirei o perfume das rosas
 que  há quarenta anos se esparramavam sobre ela.
Ali  foi o meu canto de silêncio,
 meus  momentos de diálogos  introspectivos.
Foi tudo perfeito, até que fosse desfeito o  sonho
e acabasse a doideira.
Depois, só lonjura!
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DISFARCES

Reinvento-me  para fugir de uma angústia  flácida,
velha  angústia  que se fez platônica
e  deixou n´alma uma ferida crônica
um  não sei quê de uma dor semântica.

 Reinvento auroras se a noite é sólida,
se  a solidão  acena e o silêncio é frêmito.
Invento trilhas pra minha alma em trânsito
se  a chuva cai e me impede o tráfego.

 Engulo  seco e contenho  as  lágrimas,
reinvento  passos se o andar  é trôpego,
pinto  as  faces  e disfarço o pálido,
engano o tempo que me bebe sôfrego.

 Faço da vida o meu tema único,
sou  a invenção de um poeta cômico.
Faço das letras um poema bêbado
que impulsiona o meu corpo em êxodo.

 Sou a vítima, sou disfarce, sou inquérito,
sou a vida questionada nas linhas do pretérito.
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ESTIAGEM

 Ando de um lado para outro dentro de mim
e não me alcanço.
Distancio das minhas carências
enquanto  me preparo para o amor.
Sou semente à espera das tuas águas,
sou  terra seca à espera do teu frescor.
Deixa que me venham os teus rios
e  eu te farei pescador de mim .
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MOMENTO
   
Na bica de água fresca me debruço.
Bebo o tempo e a longa espera.
Me farto de renovo.
Foi então que colhi gotas d‘água
e com elas quis fazer uma represa,
eternizar  o  momento.
Mas elas não se represaram em meu corpo,
gasto  pelo áspero clima de outras paisagens.
Foi aí que meu chão empedrou, ficou  cinzento
e minha alma passou a sofrer de cascalho.
Só na poesia me despedro e me desbravo.
****************************************

RECURSOS POÉTICOS I
 
Não escrevo por mim,
 a vida me propôs usar esse recurso.
Escrevo para eternizar a palavra
que é mais forte  diante do eu que em mim habita.
Escrevo para me enganar
de que o viver não me amedronta.
O tempo passa, mas a palavra resiste.
Minha voz se cala, mas o som de cada  palavra
eterniza  meus hiatos e interrogações sem respostas.
A palavra se encarrega de preservar meus sentimentos,
a palavra me conduz, enquanto ser humano..
O resto é engano.
Ave, Palavra!
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SOLIDÃO

 Sonho-te e te reconstruo.
Recrio a tua imagem, vulto intocável,
volátil   presença  que se evapora dentro da noite
para o desconsolo da minha ilusão.                                                                   
Pudesse eu te tocar, pediria que  ficasses
e  bebesses do meu cálice o amargo vinho
 que  transborda da minha taça de solidão.

Fonte:
Versos (Di) Versos. Disponível no site de Rita Mourão.

Monteiro Lobato (“Pollice verso”)


Dos dezesseis filhos do Coronel Inácio da Gama cedo revelou o caçula singulares aptidões para médico. Pelo menos assim julgara o pai, como quer que o encontrasse na horta interessadíssimo em destripar um passarinho agonizante.

— Descobri a vocação de Nico — disse o arguto sujeito à mulher. — Dá um ótimo esculápio. Inda agorinha o vi lá fora dissecando um sanhaço vivo.

Hão de duvidar os naturalistas estremes que o homem dissesse “dissecando”. Um coronel indígena falar assim com este rigor de glótica é coisa inadmissível aos que avaliam o gênero inteiro pela meia dúzia de pafúncios agaloados do seu conhecimento. Pois disse. Este coronel Gama abria exceção à regra; tinha suas luzes, lia seu jornal, devorara em moço o Rocambole, as Memórias de um médico e acompanhava debates da Câmara com grande admiração por Rui Barbosa, Barbosa Lima, Nilo e outros. Vinha-lhe daí um certo apuro na linguagem, destoante do achavascado ambiente glóssico da fazenda, onde morava.

Quem nada percebeu foi dona Joaquininha, a avaliar pelo ar emparvecido que deu à cara.

— Dissecando — explicou superiormente o marido — quer dizer destripando. — E deixou você que ele cometesse semelhante malvadeza? — exclamou a excelente senhora, compadecida.

— Lá vens com a pieguice!... Deixa-lo brincar, que é da idade, eu em pequeno fazia piores e nem por isso virei nenhum ogre.

(Outra vez! “Ogre”! O homem nascera precioso. Este ogre devia ser reminiscência do Ogre da Córsega, Napoleão chamado. Perdoem-lho à guisa de compensação à parcimônia da esposa, cujo vocabulário era dos mais restritos.)

Dona Joaquina fechou a cara, e quando o pequeno facínora entrou do quintal pediu-lhe contas da perversidade, asperamente. O coronel, que nesse momento lia na rede as folhas recém-chegadas, houve por bem interromper a ingestão de um flamante discurso sobre a questão do Amapá para acudir em apoio ao fedelho.

— Uma vez que será médico, não vejo mal em ir-se familiarizando com a anatomia...

— A anatomia está ali! — rematou a encolerizada senhora apontando a vara de marmelo oculta atrás da porta. — Eu que saiba que o senhor me anda com judiarias aos pobres animaizinhos, que te disseco o lombo com aquela anatomia, ouviu, seu carniceiro?

O menino raspou-se; o coronel retomou resignado o fio do discurso; e o caso do sanhaço ficou por ali.

Mas não ficou por ali a malvadez de Nico. Acautelava-se agora. Era às escondidas que “depenava” moscas, brinquedo muito curioso, consistente em arrancar-lhes todas as pernas e asas para gozar o sofrimento dos corpinhos inertes. Aos grilos cortava as saltadeiras, e ria-se de ver os mutilados caminharem como qualquer bichinho de somenos.

Gatos e cães farejavam-no de longe, aterrorizados. Fora ele quem cortara o rabo ao mísero Joli da agregada Emiliana, e era quem descadeirava todos os gatos da fazenda. Isso, longe. Em casa, um anjinho. E assim, anjo internamente e demônio extramuros, cresceu até à mudança de voz. Entrou nesse período para um colégio, e deste pulou para o Rio, matriculado em medicina.

O emprego que lá deu aos seis anos do curso soube-o ele, os amigos e as amigas. Os pais sempre viveram empulhados, crentes de que o filho era uma águia a plumar-se, futuro Torres Homem de Itaoca, onde, vendida a fazenda, então moravam. Nesta cidade tinham em mente encarreirar o menino, para desbanque dos quatro esculápios locais, uns onagros, dizia o coronel, cuja veterinária rebaixava os itaoquenses à categoria de cavalos.

Pelas férias o doutorando aparecia por lá, cada vez “mais outro”, desempenado, com tiques de carioca, “ss” sibilantes, roupas caras e uns palavreados técnicos de embasbacar.

Quando se formou e veio de vez, estava já definitivo, nos 24 anos. Não se lhe descreve aqui a cara, porque retratos por meio de palavras têm a propriedade de fazer imaginar feições às vezes opostas às descritas. Dir-se-á unicamente que era um rapaz espigado, entre louro e castanho, bonito mas antipático — com o olhar de Stuart Holmes, diziam as meninas doutoras em cinemas. No queixo trazia barba de médico francês, coisa que muito avulta a ciência do proprietário.

Doentes há que entre um doutor barbudo e um glabro, ambos desconhecidos, pegam sem tir-te no peludo, convictos de que pegam no melhor. O doutor Inacinho, entretanto, aborrecia aquele meio acanhado “onde não havia campo”.

“Isto aqui” — contava em carta aos colegas do Rio — “é um puro degredo. Clínica escassa e mal pagante, sem margem para grandes lances, e inda assim repartida por quatro curandeiros que se dizem médicos, perfeitas vacas de Hipócrates, estragadores de pepineira com suas consultinhas de cinco mil réis. O cirurgião da terra é um Doy en de sessenta anos, emérito extrator de bichos-de-pé e cortador de verrugas com fio de linha. Dá iodureto a todo mundo e tem a imbecilidade de arrotar ceticismo, dizendo que o que cura é a natureza. Estes
rábulas é que estragam o negócio” — etc.

Negócio, pepineira, grandes lances — está aqui a psicologia do novo médico. Queria pano verde para as boladas gordas.

“Além disso” — continuava —, “é-me insuportável a ausência da Yvonne e de vocês. Não há cá mulheres, nem gente com quem uma pessoa palestre. Uma pocilga! As boas pândegas do nosso tempo, hein?”

Ora aqui está: Yvonne, os amigos, as pândegas foram o melhor do curso. Com mão diurna e noturna manuseou-os a estes tratadistas de anatomia, da fisiologia, da calaçaria, e agora torturavam-no saudades. Yvonne volta à pátria, deixando cá a meia dúzia de amantes que depenara a morrerem de saudades dos seus encantos. Antes de ir-se deu a cada parvo uma estrelinha do céu, para que, a tantas, se encontrassem nela os amorosos olhares. Os seis idiotas todas as noites ferravam os olhos, um no “Taureau” (ela distribuíra as constelações em francês), outro na “Écrevisse”, outro na “Chevelure de Bérenice”, o quarto, no “Bélier”, o quinto em “Antarés”, e o derradeiro na “Épi de la Vièrge”.

A garota morria de rir no colo dum apache montmartre, contando-lhe a história cômica dos seis parvos brasileiros e das seis constelações respectivas. Liam juntos as seis cartas recebidas a cada vapor, nas quais os protestos amorosos em temperatura de ebulição faziam perdoar a ingramaticalidade do francês antártico. E respondiam de colaboração, em carta circular, onde só variava o nome da estrela e o endereço.

Esta circular era o que havia de terno. Queixava-se a rapariga de saudades, “essa palavra tão poética que fora aprender no Brasil, o belo país das palmeiras, do céu azul, e dos michês”. Acoimava-os de ingratos, já em novos amores, ao passo que a pobrezinha, solitária e triste “comme la juriti”, consagrava os dias a rememorar o doce passado.

Eis explicada a razão pela qual, nas noites límpidas, ficava Inacinho à janela, pensativo, de olhos postos na “Chevelure de Bérenice”. O sonho do moço era enriquecer às rápidas para reatar a gostosura do idílio interrompido.

— Paris!... — balbuciava à meia-voz nos momentos de devaneio, semicerrando os olhos no antegozo do paraíso. Sonhava-se lá, riquinho, com Yvonne pelo braço, flanando no “Bois”, tal qual nos romances; e a realização deste sonho era o alvo de todos os seus anelos. Jurara à amiga ir ter com ela logo que a prosperidade lhe abastasse meios. O tempo, entretanto, corria sem que nenhuma piabanha de vulto lhe caísse na rede. Tardava a bolada...

Entre os médicos antigos de Itaoca o doutor Inacinho gozava péssimo renome — se renome péssimo pode ser coisa de gozo.

— Uma bestinha! — dizia um. — Eu fico pasmado mas é de saírem da Faculdade cavalgaduras daquele porte! É médico no diploma, na barbicha e no anel do dedo. Fora daí, que cavalo!

— E que topete! — acrescentava outro. — Presumido e pomadista como não há segundo. Não diz “humores” ou “sífilis”; é mal luético. Eu o que queria era pilhá-lo numa conferência, para escachar...

O pai, já viúvo então, esse babava-se de orgulho. Filho médico, e ainda por cima destabocado e bem falante como aquele... Era de moer de inveja aos mais. Enlevava-o, sobretudo, aquele modo alcandorado de exprimir-se. Revia-se no filho, o coronel...

— A terminologia inteira da ciência alopata, coisas em grego e latim, circunvolve naquela cabecinha — disse ele uma vez ao vigário, que o olhou de revés, por cima dos óculos, ao som daquele mirífico circunvolve.

E assim corria o tempo, entre as diatribes das duas ciências, a moça e a velha, com entremeio dos belos vocábulos que o coronel nunca perdia de meter na falação.

Entrementes adoeceu o major Mendanha, capitalista aposentado com trezentas apólices federais, o Rockefeller de Itaoca. Deu-lhe uma súbita aflição, uma canseira, e a mulher alvoroçou-se.

— Não é nada, isto passa — acalmou ele.

— Passará ou não!... O melhor é chamar um médico.

— Qual, médico! Isto é nada.

Não era tão nada assim, como pretendia. À noite agravou-se-lhe o mal estar, e o velho, apreensivo, cedeu às instâncias da esposa. Chamar a qual deles, porém?

— Pois o Moura — disse a mulher, para quem o da sua confiança era este Moura.

— Deus me livre! — retrucou o doente. — Aquilo é homem mal azarado. Pois não foi quem tratou Zeca, Peixoto, Jerônimo? E não esticaram a canela todos três?

— O doutor Fortunato, então…

— Fortunato! Já esqueceu você do que me ele fez por ocasião do júri, o tranca? Cobrar cinquenta mil réis por um atestado falso? Não me pilha mais um vintém, o pirata...

No doutor Elesbão não se falou: era adversário político.

— Chama-se Galeno...

— É tão mosca-morta Galeno... — gemeu o doente com cara de desconsolo. — Andou anos a tratar Faria do Hotel como diabético, e já o dava por morto quando um curandeiro da roça o pôs saníssimo com um coco-da-baía comido em jejum. Eram solitárias os diabetes do homem... Só se vier o filho de Inácio?!

Aqui foi a mulher quem protestou.

— Eu, a falar a verdade, prefiro a ruindade de Galeno, a má sorte de Moura, e até Elesbão...

— Esse, nunca!... — interrompeu o velho, num assomo de rancor político.

— ... do que a antipatia do tal doutorzinho. Os outros ao menos têm a experiência da vida, ao passo que este...

— Este, quê?

— Este, Mendanha, é moço bonito, que o que quer é dinheiro e pândega, você não vê?

— Qual!... — emberrinchou o teimoso. — Sempre há de saber um pouco mais que os velhos; aprendeu coisas novas. No caso de Nhazinha Leandro, não a pôs boa num ápice?

— Também que doença! Prisão de ventre...

— Seja prisão ou soltura, o caso foi que a curou. Mande chamar o menino.

— Olhe, olhe! Depois não se arrependa!...

— Mande, mande chamá-lo e já, que não me estou sentindo bem.

Inacinho veio. Interrogou detidamente o major, tomou-lhe o pulso, auscultou-o com o semblante carregado e disse, depois de longa pausa:

— Não diagnostico por enquanto, porque não sou leviano como “certos” por aí. Sem auscultação estetoscópica nada posso dizer. Voltarei mais tarde.

— Vê? — disse Mendanha à esposa logo que o moço partiu. — Fosse Moura, ou qualquer dos tais, e já dali da porta vinha berrando que era isto mais aquilo. Este é consciencioso. Quer fazer uma auscultação, quê?

— Estereoscópica, parece.

— Seja o que for. Quer fazer a coisa pelo direito, é o que é.

Voltou o moço logo depois e com grande cerimonial aplicou o instrumento no peito magro do doente. Vincou de novo a fisionomia das rugas da concentração e concluiu com imponente solenidade:

— É uma pericardite aguda agravada por uma flegmasia hepático-renal.

O doente arregalou o olho. Nunca imaginara que dentro de si morassem doenças tão bonitas, embora incompreensíveis.

— E é grave, doutor? — perguntou a mulher, assustada.

— É e não é! — respondeu o sacerdote. — Seria grave se, modéstia de lado, em vez de me chamarem a mim chamassem a um desses mata-sanos que por aí rabulejam. Comigo é diferente. Tive no Rio, na clínica hospitalar, numerosos casos mais graves e a nenhum perdi. Fique descansada que porei o seu marido completamente são dentro de um mês.

— Deus o ouça! — rematou a mulher acompanhando-o até a porta e já meio reconciliada com a “antipatia”.

— Então? — perguntou-lhe o doente. — Fiz ou não fiz bem em chamar este moço?

— Parece... Deus queira tenhamos acertado, porque isto de médicos é sorte.

— Não é tanto assim — reguingou o velho. — Os que sabem, conhecem-se por meia dúzia de palavras, e este moço ou muito me engano ou sabe o que diz. Fosse Fortunato...

E riu-se lá consigo ao imaginar as doencinhas caseiras que Fortunato descobriria nele...

A doença do major Mendanha ninguém soube qual fosse. O lindo diagnóstico de Inacinho não passava de mera sonoridade pelintra. Bacorejara ao moço que o velho tinha o coração fraco e qualquer maromba no fígado. Isto porque lhe doía, a ele, aqui no “vazio”; aquilo por ser natural. Confessá-lo com esta sem-cerimônia, porém, seria fazer clínica à moda de Fortunato, e desmoralizar-se. Além do mais, quem sabe lá se não estaria ali o sonhado lance? Prolongar a doença... Engordar a maquia...

Inácio não enxergava em Mendanha o doente, mas uma bolada maior ou menor, conforme a habilidade do seu jogo. A saúde do velho importava-lhe tanto como as estrelas do céu — exceção feita à “Cabeleira de Berenice”. Como desadorasse a medicina, não vendo nela mais que um meio rápido de enriquecer, nem sequer lhe interessava o “caso clínico” em si, como a muitos. Queria dinheiro, porque o dinheiro lhe daria Paris, com Yvonne de lambuja. Ora, o major tinha trezentas apólices... Dependia pois da sua artimanha malabarizar aquele fígado, aquele coração, aquelas palavras gregas e, num prestidigitar manhoso, reduzir tudo a uns tantos contos de réis bem sonantes.

Mandou carta à francesinha: “Os negócios melhoraram. Estou metido em uma empresa que se me afigura rendosa. Saindo tudo a contento, tenho esperanças de inda este ano beijar-te sob a luz da terna confluente dos nossos olhares...”.

O velho piorou com a medicação. Injeções hipodérmicas, cápsulas, pílulas, poções, não houve terapêutica que se não experimentasse desastrosamente.

— É mais grave o caso do que eu supunha — disse o doutor à mulher — e os escrúpulos do meu sacerdócio aconselham-me a pedir conferência médica.

Os colegas da terra são os que a senhora sabe; entretanto, submeto-me a ouvi-los.

— Não, doutor! Mendanha não quer ouvir falar nos seus colegas; só tem confiança no doutor Inácio Gama.

— Nesse caso...

Inacinho voltou para casa esfregando as mãos. Estava só em campo, com todos os ventos favoráveis. Paris corria-lhe ao encontro...

Malgrado seu, na semana seguinte, inesperadamente, o raio do major apresentou melhoras. Sarava, o patife! E a Inácio palpitou que com mais uma quinzena daquela arribação o homem se punha de pé.

Fez os cálculos: trinta visitas, trinta injeções e tal e tal: três contos. Uma miséria! Se morresse, já o caso mudava de figura, poderia exigir vinte ou trinta. Era costume dos tempos fazerem-se os médicos herdeiros dos clientes. Serviços pagos em caso de cura aí com centenas de mil-réis, em caso de morte reputavam-se em contos. Se os interessados relutavam no pagamento, a questão subia aos tribunais, com base no arbitramento. Os árbitros, mestres do mesmo ofício, sustentavam o pedido por coleguismo, dizendo em latim: “Hodie mihi, cras tibi”, cuja tradução médica é: “Prepare-se você para me fazer o mesmo, que também pretendo dar a minha cartada”.

Inácio ponderou tudo isto. Mediu prós e contras. Consultou acórdãos. E tão absorvido no problema andou que à noite se deixava ficar à janela até tarde, mergulhado em cismas, sem erguer os olhos para a Berenice estelar.

O que a sua cabeça pensou ninguém o saberá jamais. Têm as ideias para escondê-las a caixa craniana, o couro cabeludo, a grenha; isso por cima; pela frente têm a mentira do olhar e a hipocrisia da boca. Assim entrincheiradas, elas, já de si imateriais, ficam inexpugnáveis à argúcia alheia. E vai nisso a pouca de felicidade existente neste mundo sublunar. Fosse possível ler nos cérebros claro como se lê no papel e a humanidade crispar-se-ia de horror ante si própria...

Positivo como era Inacinho, supomos que meteu em equação o problema das duas vidas.

Primeira hipótese:
Cura do major = 3 contos.
Três contos = Itaoca, pasmaceira etc.

Segunda hipótese:
Morte do major = 30 contos.
Trinta contos = Paris, Yvonne, “Bois”...

Depois desta sólida matemática, esta anavalhante filosofia: “A morte é um preconceito. Não há morte. Tudo é vida. Morrer é transitar de um estado para outro. Quem morre, transforma-se. Continua a viver inorganicamente, transmutado em gases e sais, ou organicamente, feito lucílias, necróforas e uma centena de outras vidinhas esvoaçantes. Que importa para a universal harmonia das coisas esta ou aquela forma? Tudo é vida. A vida nasce da morte. Eu preciso, eu ‘quero’viver a minha vida. Há óbices no caminho? Afasto-os...”.

Fiquemos por aqui. Não há tempo para filosofias, porque o major Mendanha piorou subitamente e lá agoniza. Morreu.

O atestado de óbito deu como causa mortis flegmatite complicada com necrose elipsodal. Podia batizá-la de embolia estourada, nó cego na tripa, tuberculose mesentérica, estupor granuloso peristáltico, ou qualquer outro dos cem mil modos de morrer à grega.

Morreu, e está dito tudo. Morreu, e o doutor Inacinho apresentou no inventário uma conta de chegar: 35 contos de réis.

Os herdeiros impugnaram o pagamento. Move-se a traquitana da Justiça. Mói-se o palavreado tabelionesco. Saem das estantes carunchosos trabucos romanos. Procede-se ao arbitramento.

Os árbitros são Fortunato e Moura, os quais disseram entre si:

— Que grande velhaco! Mata o homem e ainda por cima quer ficar-se herdeiro! O tratamento, alto e malo, não vale cem mil-réis. Que valha duzentos. Que valha um conto ou três. Mas trinta e cinco? É ser ladrão!...

No laudo, entretanto, acharam relativamente módico o pedido — sem dizer relativo ao quê.

A Justiça engoliu aquele papel, gestou-o com outros ingredientes da praxe e, a cabo de prazos, partejou um monstrozinho chamado sentença, o qual obrigava o espólio a aliviar-se de trinta e cinco contos de réis em proveito do médico, mais as custas da esvurmadela forense. Inacinho, radiante, embolsou os cobres e reconciliou-se com os dois colegas que, afinal de contas, não eram os cretinos que supusera.

— Colegas, o passado, passado; agora, para a vida e para a morte!

— Pois está visto! — disse Fortunato. — Tolo andou você em abrir luta com os que ajudam o negócio. O coleguismo: eis a nossa grande força!...

— Tem razão, tem razão. Criançada minha, ilusões, farofas que a idade cura... Que mais? Que voou a Paris? É claro. Voou e lá está sob o pálio da grenha astral, a passear com a Yvonne no “Bois”.

Ao pai escreveu:

“Isto é que é vida! Que cidade! Que povo! Que civilização! Vou diariamente à Sorbonne ouvir as lições do grande Doyen e opero em três hospitais. Voltarei não sei quando. Fico por cá durante os 35 contos, ou mais, se o pai entender de auxiliar-me neste aperfeiçoamento de estudos.”

A Sorbonne é o apartamento em Montmartre onde compartilha com o apache de Yvonne o dia da rapariga. Os três hospitais são os três cabarés mais à mão.

Não obstante, o pai cismou naquilo cheio de orgulho, embora pesaroso: não estar viva Joaquininha para ver em que alturas pairava Nico — Nico do sanhaço estripado... Em Paris! Na Sorbonne!... Discípulo querido do Doy en, o grande, o imenso Doy en!...

Mostrou a carta aos médicos reconciliados.

— Isso de hospitais — gemeu o invejoso Fortunato — é uma mina. Dá nome. Para botar nos anúncios é de primeiríssima.

— E o Doy en? — murmurou, baboso, o embevecido pai. — Não há como a gente apropinquar-se das celebridades...

— É isso mesmo — concluiu Moura, relanceando um olhar a Fortunato num comentário mudo àquele mirífico apropinquamento. E os dois enxugaram, a uma, os copos da cerveja comemorativa mandada abrir pelo bem-aventurado coronel.

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. 1916.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 451

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 11 e 12

O SEXTO GATO


Nasceram sete gatinhos da gata siamesa, mas o sétimo era mofino, e a mãe não lhe deu apreço, pelo que o coitado achou de bom aviso raspar-se deste mundo com a maior discrição.

Os restantes cresceram na forma habitual, e à medida que cada um se desenvolvia a gata se considerava quite com ele, dispensando-se de amamentá-lo e lambê-lo. Sabendo que esta é a lei natural, eles saíam muito lampeiros para viver a vida.

O último, porém, não quis desligar-se da proteção materna. Deixar de mamar, ele admitia, mas deixar de ser lambido e de dormir encostado à mãe, isso nunca.

Resultou que a gata, a princípio aborrecida, acabou se conformando com a companhia do gato já florido e maior do que ela, e daí por diante esqueceu as regras da espécie, passando a ser a primeira supermãe felina.

O dono quis separá-los para vender a cria. A mãe ferrou-lhe uma unhada no traseiro, que o fez desistir do negócio.

Mãe e filho, inseparáveis e castos, foram objeto de programas de televisão do Dia das Mães e do Dia dos Gatos, mas queixavam-se da publicidade. Preferiam dormir nessas ocasiões.
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O SOFRIMENTO DE JÓ


Os amigos de Jó, ao fim de certo tempo, acharam que ele se comprazia em sofrer e lamentar-se porque o Senhor o havia abandonado. Sentiam-se enervados com a prantina infindável.

— É preciso dar jeito na vida de Jó — dizia um. — Ninguém mais suporta as suas lamentações. Vamos propor-lhe uma viagem ao país de Tiro, onde ele se deleitará com as coisas belas e agradáveis ofertadas pelo rei Hirão?

Jó recusou o convite, alegando que não tinha amigos, e a proposta visava sua perdição eterna. Trancou a porta a Elifaz, a Baldad e a Sofaz, e continuou a dizer-se o mais desgraçado dos homens. A Morte, que rondava, escutou-o. E sugeriu-lhe:

— Venha comigo. Darei cura total a seus males.

— Muito obrigado — respondeu Jó. — Não posso mais viver sem eles. Desaprendi a alegria e, pensando bem, qualquer estado é sempre o mesmo; todas as coisas são uma só e triste coisa. Deixe-me em paz, isto é, em guerra comigo mesmo.

O Senhor, ouvindo tamanho dislate, apiedou-se de Jó e restituiu-lhe as graças e bens perdidos, mas Jó nunca mais foi o mesmo homem. Conhecera o sofrimento, que lhe voltava em sonho.

Esta versão, que contraria o livro clássico, foi divulgada pela terceira filha de Jó, chamada Cornustíbia, a quem os cronistas da época não concedem maior crédito, alegando que nascera de cinco meses e não tinha a cabeça no lugar.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXIII


MUNDO MAU

MOTE:
Ao ver no meu dia-a-dia
um mundo mau, revoltante,
só no amor e na poesia
sinto um belo fascinante.
Milton Nunes Loureiro
Campos/RJ, 1923 – 2011, Niterói/RJ


GLOSA:
Ao ver no meu dia-a-dia
tanta tristeza ao redor,
essa visão me angustia,
entra em mim, fica maior.

É um mundo sem emoção!
Um mundo mau, revoltante,
onde a palavra: razão,
não chega a ser importante!

Mas existe uma magia
e o poeta com seu verso
só no amor e na poesia
tenta mudar o universo!

A poetar eu me ponho,
e assim, vou seguindo adiante,
pois mergulhado em meu sonho
sinto um belo fascinante.
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SONHANDO...

MOTE:
Sonhando viver em paz,
vivo num campo de guerra,
onde está sempre em cartaz
toda a pobreza da terra.

Nilton Manoel Teixeira
Ribeirão Preto/SP


GLOSA:
Sonhando viver em paz,
vou fazendo minhas trovas,
pois a trova é que nos traz
muitas esperanças novas!

Sofre nosso mundo inteiro...
Vivo num campo de guerra,
não nasci pra ser guerreiro;
guerra, só tristeza encerra!

Ser feliz, como me apraz,
sei que é difícil de ser,
onde está sempre em cartaz
o que eu quisera esquecer!

Esse cartaz que estou vendo,
que muita angústia descerra,
vai aos poucos descrevendo
toda a pobreza da terra.
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QUANDO CHEGAR A PAZ!

MOTE:
E quando chegar a paz
com alicerces de amor,
qualquer um vai ser capaz,
de suas armas depor.

Oefe Souza
Ribeirão Preto/SP


GLOSA:
E quando chegar a paz
se conscientizando o mundo,
deixaremos para trás
todo esse sofrer profundo!

Se protegermos as bases
com alicerces de amor,
abrandaremos as fazes
ruins e que tragam dor!

O amor – o que é mau, desfaz,
sempre trazendo a alegria,
qualquer um vai ser capaz,
de atingir sua utopia!

Diante do amor – as maldades
perderão a força e a cor,
e terão a sobriedade,
de suas armas depor.
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OCASO SEM TI...

MOTE:
O sol no ocaso não viste,
porque o dia foi covarde,
e chorou quando partiste
chovendo no fim da tarde.

Otavio Venturelli
Rio de Janeiro/RJ, 1937 – 2019, Nova Friburgo/RJ


GLOSA:

O sol no ocaso não viste,
pois a tarde, em seus segredos,
fingindo que nada existe,
tenta esconder os seus medos!

Foi muito grande a tristeza,
porque o dia foi covarde,
e escondeu toda a beleza,
terminando sem alarde!

Nunca vi dia mais triste!
O Sol se tornou cinzento
e chorou quando partiste,
gemendo na voz do vento!

Tenho triste o coração!
Em pranto o Sol já não arde,
e chora a sua emoção
chovendo no fim da tarde.
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SIGO EM FRENTE

MOTE:
Sem que a vida me amedronte
sigo em frente, cumpro a meta,
buscando além do horizonte
a luz que me faz poeta!

Rita Marciano Mourão
Ribeirão Preto/SP

GLOSA:

Sem que a vida me amedronte
e sem ter medo da morte,
não deixo que ela me afronte.
O meu caminho é de sorte!

Com a sorte sempre ao meu lado,
sigo em frente, cumpro a meta,
é para mim, um achado
a coragem que me aquieta!

Eu bebo a água da fonte
que me dá muita alegria,
buscando além do horizonte
todo um caudal de poesia!

Vivo com grande emoção
e minha alma, então, decreta
que nasça em meu coração
a luz que me faz poeta!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.