quarta-feira, 7 de abril de 2021

Arthur de Azevedo (Uma por outra)

O Paulo jantou apressadamente e, mal acabou de sorver o último gole de café, pôs o chapéu, saiu de casa, tomou na Rua do Catete um bonde que passava, apeou-se no largo da Carioca, desceu a Rua da Assembleia e dirigiu-se para o lado das barcas.

Estava febricitante: a Isabel, que durante quatro meses não fez o menor caso de seus protestos de amor, resolvera, afinal, conceder-lhe uma entrevista.

A linda costureira (a Isabel era costureira) ficara de estar às oito em ponto à porta da estação das barcas. Eram sete e quarenta.

Estava tudo muito bem combinado. Entrariam ambos na estação sem se falar, como se não se os conhecessem; tomariam a primeira barca e subiriam para a tolda, a fim de conversar à vontade. Desembarcando em São Domingos, um bonde levá-los-ia a Icaraí. Na saudosa praia esperava-os um ninho discreto, onde passariam a sua primeira noite de amor. Estava tudo muito bem combinado.

Por que Icaraí?... Por que não Copacabana ou Tijuca?... Por nada: tinha sido um capricho da Isabel.

Notou o Paulo que, um pouco distante do lugar em que ele se achava, isto é, da porta da estação, estava, como que protegida pela sombra, uma senhora de preto, que tinha, pouco mais ou menos, o corpo e a estatura de Isabel. Seria ela que, por qualquer circunstância, não tivesse querido chegar mais perto? Ele aproximou-se, disfarçou, observou, e voltou para o seu posto. A senhora de preto não se parecia nada com a outra. Era aliás mais bonita.

Passou meia hora... passou uma hora; chegaram e partiram numerosos bondes... as barcas de vez em quando despejavam gente sobre a praça, mas nem a Isabel aparecia, nem aquele misterioso vulto de mulher se movia do recanto sombrio em que estava.

Paulo ficou desesperado. O seu desejo era sair dali, não esperar nem mais um momento; dizia, porém, consigo: - Mais um bonde, o último! - e ia esperando...

Convencendo-se, afinal, de que a Isabel não vinha, resolveu ir para a casa, mas, ao retirar-se, passou rente à senhora de preto; que esperava sempre, e encarou-a.

Ela perguntou-lhe, sorrindo:

- Faz favor de me dizer que horas são?

- Pois não, minha senhora! Passam vinte das nove.

- Decididamente não vem! Que maçada!

- Espera alguém, minha senhora?

- Que tem o senhor com isso?

- É que eu também esperava uma pessoa... e, quem sabe? talvez que a analogia das nossas situações pudesse estabelecer entre nós certa... certa... como direi?... certa simpatia...

- Não imagina como estou contrariada!

- Naturalmente porque gosta muito do homem que a faz esperar...?

- Como sabe o senhor que é um homem?

- Uma mulher não espera tanto tempo por outra...

- Isso é verdade...

E, depois de uma ligeira pausa, continuou assim o diálogo:

ELA - Sim, é por um homem que eu esperava, mas não pense o senhor que o ame loucamente. O que ele hoje me fez, varreu-o cá de dentro!

ELE - O mesmo digo da mulher que me pôs aqui de plantão! Era a nossa primeira entrevista... Foi melhor assim!

ELA - Ora!, amanhã ela conta-lhe quatro caraminholas, e o senhor desculpa-a...

ELE - Está enganada! Não quero vê-la!

ELA - Na realidade, temos ambos razão de estar queixosos...

ELE - Se nos vingássemos, eu dela e a senhora dele?

ELA - Como?

ELE - Se eu tomasse o lugar dele e a senhora o dela?

ELA - Que diria o senhor de mim?

ELE - Diria: "É uma mulher de espírito, que sabe vingar-se!" A senhora não me conhece, mas...

ELA - E se eu o conhecesse, Paulo?

ELE - Conhece-me?

ELA - Pelo menos de fotografia. Foi a Isabel que me mostrou.

ELE - A Isabel?!, conhece-a?

ELA - Trabalhamos juntas no mesmo atelier de costuras, e somos amigas... íntimas.

ELE - Ah!...

ELA - Ela falou-me do senhor... mostrou-me o retrato... disse-me que o achava feio... Eu, pelo contrário, achei-o...

ELE - Bonito?

ELA - Pelo menos simpático.

ELE - Muito obrigado.

ELA - Não há de que.

ELA - Hoje ela disse que o senhor estaria aqui à sua espera às oito horas... mas que o deixaria esperar em vão, para desenganá-lo. Fiquei com muita pena do senhor e disse comigo: "Como pode esta mulher enganar assim a um moço tão simpático?" Resolvi, então, um pouco por comodidade e... um pouco por simpatia... verificar se o senhor tinha vindo... Quando o vi interrogando com os olhos ansiosamente os bondes que chegavam, tive ímpetos de preveni-lo de que ela não vinha, mas não me atrevi.

ELE - Então a senhora não estava à espera de ninguém?

ELA - Não, vim simplesmente vê-lo... e vingá-lo. Que quer? Tenho um coração tão mole. .
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Uma hora depois, estavam ambos no doce ninho de Icaraí.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Nilton da Costa Teixeira (Ramalhete de Trovas) – 2

A jura é a falsa aliança
pela incerteza marcada
e faz da verde esperança
uma esperança frustrada!
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A mentira do sorriso
é silenciosa e indulgente,
e sempre vem de improviso
aos lábios tristes da gente!
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As campanhas meritórias
têm mais autenticidade
quando o resplendor das glórias
guardam silêncio e humildade
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Castro Alves é o verso ativo
da palavra em explosão,
fazendo o protesto vivo
contra a negra escravidão.
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Cruzes toscas nos caminhos
são mostras de iniquidades
remarcando nos espinhos
os silêncios das saudades.
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Despreocupado com a morte,
para quem tão pouco resta,
mesmo os rigores da sorte
são verdes sonhos de festa!
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Em majestoso clarão,
tendo desenhos no centro,
parece a lua um balão,
levando São Jorge dentro.
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Em momentos silenciosos
relembrando meus desejos.
Volto aos dias venturosos
das doçuras dos teus beijos.
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Em silêncio, entre matizes,
estrelas postas ao léu,
mostram sorrisos felizes
dos anjos que estão no Céu.
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Em triste recolhimento,
a saudade enternecida
guarda em silencio o tormento
de um beijo de despedida.
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Entrando pela vidraça,
o clarão do sol nascente
traz otimismo de graça
para os anseios da gente.
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Entre clarões de indulgência,
a humildade e a tolerância
vencem, com muita frequência,
o fantasma da arrogância.
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Esse clarão que traduz
boa amizade e confiança
é como um facho de luz
feito de amor e esperança.
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Eu, eterno sonhador,
portei-me como um menino,
vendo clarões de esplendor
nas mentiras do destino.
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Fiel a tantos mistérios,
a noite vem, sem alarde,
no luto dos cemitérios,
dormir nos ombros da tarde!
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Fiel ao sonho desfeito
há, no mundo, certa gente
guardando dentro do peito
toda a descrença que sente!
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Fiel aos sonhos vassalos,
qualquer grande sonhador
guarda o medo de guardá-los
escondendo sua dor.
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Há silêncios manifestos
calando sempre mais fundo,
porque são mudos protestos
aos desaceitos do mundo.
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No coração do mendigo,
todo o verdor da esperança
vive em carência de abrigo
do sonho que nunca alcança!
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No mundo das fantasias,
sinto clarões de esperança,
fingindo ter alegrias.
tendo ilusões de criança.
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Nos clarões da madrugada,
as estrelas, céu a fora,
parecem joias coladas
nos cortinados da aurora.
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No silêncio das esperas,
entre meus dias tristonhos,
vou sonhando primaveras
nos espinhos dos meus sonhos.
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O dia 22 de abril,
Cabral e Porto Seguro.
são na História do Brasil,
sempre degraus do futuro.
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O Judas de hoje, moderno,
maneiroso, demagogo,
não teme os clarões do inferno
porque dança sobre o fogo!
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() Sol dobrando o poente,
mostra um clarão moribundo
qual uma vela descrente
que se apaga para o mundo.
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Quando a manhã se agiganta
e mais clarão irradia,
a esperança se levanta
para sonhar mais um dia.
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Santos Dumont com coragem
e com a nave pioneira
foi ao céu soltando a aragem
a Bandeira Brasileira.
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Se, ao silêncio nos induz,
um pedido de segredos,
tem sempre a forma de cruz
sobre os lábios, nossos dedo.
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Sempre a palavra saudade
entre o silêncio e a emoção,
tem um quê de eternidade
morando no coração.
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Sempre em silêncio profundo,
no mais triste desencanto,
vamos nós por este mundo,
chorando e escondendo o pranto.
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Sempre em silêncio vivendo,
eu venho, desde criança,
por entre espinhos sofrendo
sem ter qualquer esperança.
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Silencioso em meus versinhos
escrevendo-os sempre a esmo,
eu retrato pedacinhos
dos pedaços de mim mesmo.
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Tem cautela, não te iludas,
entre silêncios, contigo,
haverá um novo Judas
que se veste como amigo!

Fonte:
Trovas enviadas por Nilton Manoel.

Ivan Lessa (Fiquemos quietos)

O calor são doze pessoas que você não quer ver nem a cara a imprensar os corpos de encontro ao seu. Você está sempre num elevador no centro da cidade, elevador correndo para os lados, a olhar para cima o ventilador parado, o cabineiro deixando pingar o suor na farda parda.

O sol é secundário, calor são as pessoas a fazer perguntas, querendo pegar na mão, olhando nos seus olhos, pedindo coisas, dando coisas. Se pudesse ficar sozinho, não sentiria calor, nem precisaria do ar condicionado: entre o teto e o chão da minha casa estaria eu ‒ refrigerado e a refrigerar.

As pessoas que sentem muito calor são as que mais o fazem. Deveriam ir para fora, para Araruama, por exemplo, e se contentar com o vento, o sal e um bronzeado. Faria menos calor aqui no Rio, eu abriria e fecharia menos a geladeira, minha boca se contentaria em sorver refrescos, meus ouvidos se acalmariam com os pedaços de gelo batendo de encontro ao copo. As pessoas sentem calor e nos procuram como se fôssemos uma praia, com barraca e mar. Não tem o que dizer, querem nos ouvir falar, e vêm à nossa casa como se fosse um vernissage ou uma sala de conferências. Vão à praia: fechem os olhos; ponham os óculos escuros; deixar queimar; banhem-se. Façam tudo isso. Façam todos os gestos, todos os programas em que o silêncio esteja envolvido: ele é parte de vocês. E é meu também, se eu o puder recapturar.

O pouco que fiz de bem e de bom foi feito com silêncio, em silêncio, pelo silêncio. Coisas de sombra, brisa, fim de tarde. Cada vez que pronuncio uma frase, formulo uma sentença, sujeito, predicado e verbo, sinto-me como se tivesse perdido uma coisa. Cada vez que vejo uma pessoa de cara amarrada ou triste e, dizendo eu uma besteira qualquer, vejo-a dois minutos depois sorrindo, sinto-me, mais uma vez, como se tivesse perdido outra coisa (não que me tenham tirado, foi perdido e por mim só). O muito falar, a importância que se dá ao falar, é roubar-se da ordem das coisas encontradas a sós na solidão.

Calor dá vontade de falar, ou ouvir. Experimente ficar sozinho um pouco, repare então: ligou-se o inverno. As coisas frias não têm barulho, são aconchegantes, e bastam para dois, no máximo. Dois é o quanto basta. Três já é verão, chopada, acaba mal.

Vamos fazer isso então: lavar bem o rosto, molhar os pulsos, abrir as cumbucas de gelo e ficar quietos: tem vitrola, barulhos mornos na janela (você ouve o mar se quebrar), dá para um escutar a respiração do outro. E depois, quietos assim, se baterem na porta a gente escuta e não precisa atender. Ficamos lá, quietos, quietos, admirando-se mais. Não tem calor, não tem frio, o relógio parou às dez horas, não tivemos que dizer nada. Tudo que houve, ou terá que haver, é mansidão. Com poucas palavras, raros gestos e uma imensidão de coisas pequenas, mexendo-se, mornas, como se houvesse no canto do quarto uma porção de cachorrinhos recém-nascidos e nós estivéssemos apenas de passagem assistindo. E nós estamos escute bem apenas, apenas, apenas de passagem.

Fonte:
Diário Carioca. 29 dez 1965.

Estante de Livros (Ibiamoré, o trem fantasma – de Roberto Bittencourt Martins)

Ibiamoré, o trem fantasma (1981), de Roberto Bittencourt Martins, apesar de ser um dos mais admiráveis romances da literatura do Rio Grande do Sul, é pouco lido e estudado. Publicado pela primeira vez em 1981, voltou a receber uma nova edição somente em 2006.

A paisagem vista pelas janelas da leitura – tomada em ato – cobre tempos, coxilhas e memórias que se apresentam, lançando pistas e fumaças, e sorriem como mágico seccional, distraindo a plateia com a direita para não desvendar o truque narrativo da mão esquerda. A lenda do Trem da noite surge, de súbito, alimentada na fornalha da Maria Fumaça por um gaúcho velho e cantor que passa a palavra e a ordenação das histórias e relatos aos narradores, os quais foram pesquisados e documentados pelo autor. Exatamente neste ponto, um apito surge e alerta-nos das nebulosas no escuro do sul platino e nas aventuras desta jornada que aprisiona e liberta a todos para que as páginas rumem a outros olhos no meio da noite da ação produzida no solo gaúcho, em especial, no da localidade de Ibiamoré.

O romance divide-se em 11 estações. Cada uma delas encerra uma parada e várias histórias, que se entrecruzam, apesar de os narradores muitas vezes não o saberem. O leitor é convidado a usar a sua memória, exercitá-la, a fim de criar sentido na narrativa que surge aparentemente confusa, para ajudar a construí-la. A narrativa realiza, tal como o trem, percursos variados, exigindo escolhas de nortes para orientar o passeio de leitura. Os onze capítulos, assim como os vagões, transportam histórias dos diferentes viventes e povoadores do extremo sul do Brasil, fazedor de divisas com o Uruguai e a Argentina. Cada capítulo é uma nova estação, a qual se apresentará compartimentada; sabe-se que os sujeitos semiapagados numa narrativa voltam de modo estelar e dramático na seguinte, pois essas personagens também pegarão o trem que:

Ninguém vê de onde vem,
aonde vai nem o que é.
Um trem correndo nos campos,
sem trilhos nem chaminé.
O trem fantasma encantado
dos campos de Ibiamoré. (1981, p. 15)

O cenário principal do romance seria Ibiamoré, uma região que se localizaria em um lugar indeterminado na fronteira do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Uma fronteira imaginária no tempo e no espaço que separaria o que somos do que poderíamos ter sido. De lá o trem fantasma, ou trem da noite, partiria, sem respeitar fronteiras, passando pelas onze estações que compõem o romance. O trem cruza guerras como a guerra guaranítica e lutas por territórios; espreita-se por entre o medo do progresso e da mudança; confronta-se com preconceito e racismo. Durante o seu percurso pelas malhas da narrativa, entram e saem de cena muitas personagens e vários narradores: capitães, heróis, índios, jesuítas, espanhóis, portugueses, imigrantes, mulatos, mestiços, cronistas e até um autor. O ponto de partida remete ao fim do Império (1870-1888), época em que as primeiras locomotivas começavam a correr pelos trilhos recém-construídos no Estado do Rio Grande do Sul.

Em Ibiamoré, o trem fantasma, encontramos, porém, um tempo histórico anterior, pois surgem como personagens seguras que estariam entre os fundadores do Rio Grande do Sul, tais como Afonso Inácio, o capitão-menino, que seria o representante do português açoriano, o índio Teireté, representando a violência das guerras guaraníticas (1753-1756) e até um tal Frei Esteban Cortez, um padre jesuíta espanhol, que seria um dos primeiros a narrar a lenda do Trem Fantasma. Lendas de tempos e espaços diferentes encontram-se nas estações do romance, sugerindo que uma concepção diferente de tempo e espaço é defendida nas páginas do romance, através das vozes dos vários narradores que se dividem para dar conta da lenda do trem fantasma e de suas inúmeras versões. Se nossa identidade é também formada por nossa memória, por um determinado entrecruzar de tempo e espaço, pela história de nossa vida, a construção da identidade do gaúcho e a construção das identidades dos narradores de Martins são mostradas na obra. Os narradores funcionam como espelhos de si mesmos e de nós mesmos.

A lenda do trem

A narrativa principia com a descrição de uma cena comum a muitos gaúchos: um dia de friagem. O frio dos campos é contrastado com o calor da beira de um fogo, ao redor do qual se reúnem viventes em torno de um velho homem para ouvi-lo contar suas histórias. Ele pega sua viola e inicia a cantoria. O velho nos intima a ouvir a sua história assim como Martins nos chama para a beira do seu fogo a fim de ouvir a sua narrativa e não deixar que “o fogo de lenha ardendo no chão de terra” (1981, p. 9) se apague. Há uma clara referência à importância de contarmos histórias e de ficarmos “calados para escutar” (1981, p. 9). O valor da tradição oral da contação de histórias é reforçado, pois a perda da memória de um vivente pode converter-se na perda de memória de todos. Quem vai contar a história se o velho índio não a contar a outros? E se deixarmos o fogo se apagar? Qualquer narrativa é uma luta contra o esquecimento. A repetição, mesmo com diferença, cria lembrança. O importante é contar, contar, contar, contar repetidas vezes a mesma história até que pareça verdade ou faça sentido.

A narrativa do velho índio, e por aproximação a de Martins, oferece-se como uma tentativa de driblar o esquecimento, o apagamento da lenda do trem fantasma ou trem da noite e das lendas que formam a nossa história e a nossa identidade.

Em todas as 11 estações, repete-se uma estrutura. A estação recebe um nome e é composta por quatro partes. Na primeira, há uma narrativa sobre a lenda do trem fantasma, através de um dos seus narradores. Depois há uma parada, que recebe o nome da estação, e finalmente duas outras histórias, que recebem ou o nome de seu protagonista ou de uma localidade. Apesar de aparentemente não manterem relação com narrativas anteriores ou posteriores, acabam entrecruzando-se. De modo particular, os capítulos nominados como estações/paradas estão organizados.

No primeiro capítulo, ou estação, há um relato intitulado “O trem: a Lenda” que apresenta a lenda do trem fantasma ao leitor. Esse relato é precedido por um poema de autor sul-rio-grandense usado como epígrafe como acontece em todos os capítulos. O poema, como na maioria dos casos, é de um poeta pouco conhecido da literatura do Rio Grande do Sul; entretanto, também são usados fragmentos de obras de autores mais conhecidos como Simões Lopes Netto. No primeiro capítulo, Martins apresenta um fragmento de um poema de autoria de Alberto Ramos, poeta pelotense que viveu entre 1871 e 1941 e que hoje é pouco lembrado. O poema versa sobre a morte e a ligação entre o trem e a morte é estabelecida mais adiante:

Após explicar a lenda, o narrador apressa-se em apresentar as variantes da lenda, trazendo as razões que levariam pessoas a entrarem nesse trem do esquecimento do qual nunca mais se sairia: crianças, lindas mulheres, bebidas, festas (1981, p. 14-15). O narrador deixa claro que aqueles que no trem ingressam, esquecem-se do que está fora do trem, pois somem “da vista e da memória”, pois “nada mais existe além do trem”. (1981, p. 14)

Após esse relato, na primeira parada, é contada a história de Afonso Inácio, o capitão menino, que “lutava buscando a morte”, pois “Era menino, mas o que desejava era morrer” (1981, p. 21). Ao longo de sua vida de batalhas, questionava-se “haverá por que viver?”, assombrado por seus fantasmas, mortos, escombros e ruínas, sendo “estrangeiro ao mundo, viajando em si mesmo” (1981, p. 23). Afonso Inácio “por duas vezes sofreu o mesmo infortúnio, como se o Destino lhe houvesse traçado o passar duas vezes pelo mesmo ponto de sua existência” (1981, p. 25).

Tempo e espaço são equiparados. Assim, a narrativa de Martins estrutura-se misturando a história sul rio-grandense a mitos e ficção. Isso nos traz a questão de que a narrativa se situaria em um tempo mítico. A cada estação os trilhos se cruzam e se sobrepõem, levando os vagões da memória a estações surpreendentes. O leitor é convidado a embarcar em uma jornada guiada pelas malhas associativas dos inúmeros narradores. Todos têm a sua versão da lenda do trem fantasma. A estrutura é associativa, pois a memória, como já dito, é seletiva e associativa. Mais do que isso: a memória é afetiva. Rastros ou vestígios memoriais podem ser cartas, poemas, relatos orais, anotações, que interpolados na narrativa remetem a outro tempo ou lugar e com os quais se mantém uma memória afetiva.

A relação entre esses elementos e os narradores dá o tom aos relatos.

O capítulo II intitula-se Santa Joana e enfoca outra versão da lenda “O Trem: Relato de João José Cohimbra”. João José relata, no jornal O Mercantil, a história de um menino de 15 anos que embarca no Trem Fantasma, restando a mãe no desespero; ao final do artigo, avalia a lenda e o povo interiorano como rústico e supersticioso frente à modernidade que o novo meio de transporte que os espanta. Posteriormente, somos informados sobre a trajetória do cronista João José que, depois de retornar da Europa, casa-se, passando a residir “numa fazenda do sogro, nas cercanias de Campos Claros”. Foge, às pressas, com a esposa e o filho para o Uruguai por ter assediado a menina de 13 anos, Carlinda. Aos 43 anos, morre num desastre de trem ao sair da estância de Las Mercedes em direção a Montevidéu a fim de assistir a opera verdiana “La forza del Destino”, à qual havia assistido em Porto Alegre, na voz da italiana Angela Gattini. Seu ex-sócio Mr. John Kendall assume os negócios e também o substitui “junto ao leito da viúva”, criando os dois fi lhos do casal Cohimbra. O mais velho morre louco num hospício em Montevidéu; sendo que o filho mais novo, Adido Comercial do Uruguai em Londres, morre durante um bombardeio na cidade inglesa, durante a Segunda Guerra Mundial. Encerra-se o capítulo, apontando a proximidade das sepulturas da Mrs. Malvina Kendall de Cohimbra Garcia com a de João José, e ambas afastadas, no mesmo cemitério, da de Mr. Kendall.

Já o capítulo III, Solidões, traz, em “O Trem: Relato de Frei Esteban Cortez”, a figura do padre jesuíta que dirige e escreve no semanário católico A Cruz. Frei Esteban Cortez reconfigura a lenda do trem fantasma, usa-o para desaprovar a todos da comunidade porto-alegrense: fiéis, fazendeiros e políticos. Todos gananciosos, corruptos e pecadores. Retoma o desaparecimento dos trinta trabalhadores nas ferrovias da região de Santo Onofre, igualando-os a Dr. Fausto. Morre aos 65 anos, sem grandes amigos nem companheiros.

Sobre os cobiçosos, procurava associações bíblicas nas lendas como a do Negrinho do Pastoreio e as histórias de mártires, por exemplo, Sepé Tiaraju e Nhenguiru para maldize-los, ressaltando a ambição deles, a qual os conduziria “às labaredas rubras do inferno”.

No capítulo IV, Gastonville, “O Trem: Versão de Camilo Vaz e Viagem de Frei Esteban” apresenta história do terceiro cronista da lenda, tendo a publicado no início do século 20, no jornal A Federação. Reporta que durante a construção da via férrea de Ibiamoré teria sido encontrado um baú enterrado cheio de tesouros dos jesuítas pelos trabalhadores e o engenheiro. Pela impossibilidade de abri-lo, rumaram num trem para a cidade. Com o engenheiro e seus dois assistentes na locomotiva, os demais conseguem abrir o baú, levando a trem ao seu desaparecimento, reza a lenda.

O romance desenvolve-se mantendo essa estrutura e, assim como nas versões da lenda trazidas por Martins na narrativa, os habitantes de Ibiamoré entram no trem e desaparecem, para reaparecerem, páginas mais tarde, de uma outra forma, nas memórias de alguém. De forma geral, a narrativa de Martins fala de medo, do medo de entrar no trem e sumir; do medo do fantasma do apagamento, do esquecimento, da perda da memória, do viver sem deixar marcas. Esse, talvez o maior medo de todos nós. O medo de sumir e não deixar nada nosso para aqueles que ficam. Nenhuma contribuição à história dos outros. Isso se relaciona à necessidade das marcas, de deixar marcas, em outros ou em nós mesmos, mesmo que sejam somente marcas na memória.

Um dos narradores, Almagre, ao questionar-se sobre a veracidade de suas memórias pergunta-se: “O tempo, contudo, faz com que duvide de si mesmo. Terá sido verdade?” (1981, p. 48).

Através do romance de Martins e da vida de seus múltiplos e multifacetados narradores, somos convidados a repensar a nossa história, desde a formação do Rio Grande do Sul. Os entrecruzamentos geográficos provocados pelas malhas da narrativa são também o entrecruzamento de memórias. A memória é um lugar e suas malhas e vagões nos levam a recintos imaginados ou imaginários. O esquecimento é a contrapartida necessária da memória, do lembrar, pois esquecer pressupõe sempre a possibilidade de lembrar. Não se lembra de tudo, assim como não se esquece de tudo. Se a memória é seletiva, ou melhor dizendo, afetiva, há razões para lembrarmos e esquecermos. A relação que temos com o passado, ou com incidentes passados, nos leva ou nos traz certos elementos do passado. A esse respeito, é relevante pontuar que somente sujeitos lembram e esquecem, ou seja, têm memória.

A partir de um certo presente, Martins constrói uma narrativa. O que é ficção inventada por Martins ou o que é parte da nossa história? Não importa, pois a dissolução da história como absoluta é muito bem representada pelo desaparecimento, na língua portuguesa, da palavra estória. A aproximação de história e estória remete aos limites tênues, e talvez inexistentes, entre a ficção e o real.

A estrutura do romance Ibiamoré – o trem fantasma é bastante homogênea, apresenta-se circular e encaixante, há a cena e o cenário de abertura e de encerramento assemelhados, os quais molduram os onze capítulos, no total, com os subcapítulos, trinta e três. Na de abertura, todos, calados, se encontram em volta do fogo de chão, pois o frio os une no galpão e os impulsiona para ouvirem o velho que pega a viola e entoa a “Cantiga do folclore de Ibiamoré” (1981, p. 322), enquanto a chama da memória e da arte literária crepita na voz canora. No entanto, na cena de fechamento da obra literária, o “nós” (ouvintes, narrador e leitor) – que escutava silenciosamente o artista – retira-se. Também o contador/cantor vai silenciando o texto literário, deixando, no espaço textual, o rastro, a cinza e o carvão (cemitério ígneo) das linhas narrativas visitadas na noite de leitura/audição e de reminiscências no decorrer da andança. “Ninguém para escutar o cansaço de sua voz”, diz o romance; entretanto, a cantiga/lenda/narrativa avança no final do livro, pulando para o espírito do leitor, feito locomotiva que espiona um túnel ou que se equilibra numa ponte: “Tem um trem correndo os campos, / nos campos de Ibiamoré.” (1981, p. 331).

Todas as estações, ou capítulos da narrativa, apontam para o vazio, a solidão, o esquecimento, ou seja, a morte. Para o autor, “A fonte de Letes, o ‘esquecimento’, faz parte integrante do reino da Morte. Ter memória significa estar vivo, manter-se vivo, e contar as suas memórias lutar contra o esquecimento. Novamente, a personagem Chico Doce, que achou o amor e dele fugiu. Nas suas palavras, fugiu da mulher amada, Frederika, “pra conservar a lembrança” bela que dela tinha (1981, p. 270). Ainda, outra personagem, Madame Delorme, afirma: “Foi tolice querer reviver o passado que deveria ser lembrado somente pela memória” (1981, p. 243), ou seja, este não deveria ter sido revivido, como o padre que volta à Guanambi perdida para perceber que a cidade não existe mais, ou Chico Doce que tenta voltar para a jovem Frederika e a encontra matrona muitos anos depois, após desistir de conservar a lembrança. Todos eles são personagens atormentados pelo trem da morte e do esquecimento e assombrados por seus medos e memórias.

A formação do nome Ibiamoré, ligado ao rio Ibiá, mencionado várias vezes na narrativa, remete à vida, amor, e morte. Todos os elementos estão em uma só palavra, fazendo referência ao ciclo da vida, a nossa realidade enquanto “índios da mesma taba”, umas expressão tantas vezes usada por Martins ao longo da narrativa. Os vários narradores da lenda do trem fantasma, e de lendas quase esquecidas da região de Bagé, como a lenda da Lagoa da Música, retomadas por Martins, apontam para a necessidade de que várias histórias sejam contadas a partir de vários pontos de vista, complementares e não excludentes, para que possam ser ouvidas, e porque não, lidas. A realidade não pode ser compreendida, somente construída, a partir de vários pontos de vista.

A obra de Martins remete a luta em não esquecer, que motiva Martins e seus narradores a dirigir-se a outros e a narrarem, pois cada pessoa vê as coisas de maneira diferente. Uns veem mais outros menos. Uns veem demais enquanto outros são quase cegos. Os fatos são para sempre perdidos, pois sobram só visões recuperadas pela memória. O que nos marca, o que nos chama atenção, é o que vemos, é o que lembramos. Há uma verdade, mas é uma verdade particular, que pode ser compartilhada. Todos precisam contar a sua história. Só ela nos salva do esquecimento. Assim, devemos aceitar o convite de Martins para reler e recontar. Só isso nos salva do trem da noite, do trem da morte, do trem do esquecimento.

Fonte:
Excerto do artigo de Valéria Brisolara  e Roberto Medina. Pelas malhas e vagões da memória: Uma análise de Ibiamoré, o trem fantasma. In Revista do Instituto de Letras Organon, UFRGS, n. 57, v. 29, 2014. Disponível na íntegra em pdf, https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/48268/31800

terça-feira, 6 de abril de 2021

Silmar Böhrer (Croniquinha) 21

Molhadas noites pluviais. Existem. Densas, imensas, presenças aguaceiras. Duas ou três da madrugada acordamos com o tropel das águas, pingos pingando, telhados derramando, vigor molhado da natureza.

As analogias. São muitas. Usamos seguidamente. Comparações? Não sei . . .

São verdades misturadas. Pensares que se cruzam.

Pensamentos também chegam repentinos - quais chuvas, invadem, agitam - rebordosas às vezes, serenidades noutras. Obuses ligeiros faiscando.

Eis a vida, cadinho de chuvas e trovoadas, de céu azul, sol intenso. Vivência atormentada, vivência alcandorada. Vivemos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Antonio Bruno e Ernesto Zwarg (Litoral Musical)


SANTOS POEMA

SANTOS POEMA, jardins pela praia
Cidade e Porto de Mar...
Tens a magia, dos barcos estranhos
na Barra esperando adentrar
 
Morros, varandas alegres...
Suspensas no arvoredo...
Santos, das ruas antigas,
Da beira do cais, que
escondem segredos...
 
Tuas paineiras floridas,
salgueiros que choram
nos velhos canais
 Santos, cuidado menina,
As tuas belezas, não percas jamais...
Os flamboyants florescentes
Palmeiras imperiais...
Ilha Urubuqueçaba
O verde reduto, nas ondas do mar...(bis)
 
Oh Santos - és linda demais!!!
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O MAR DE SÃO VICENTE

O mar de São Vicente é um gigante sem igual
Diz versos às estrelas, faz poemas no areal
E quando é lua cheia, das sereias traz o canto
Que se ouve muito ao longe
 
- Das ondas ao quebranto
- Das ondas ao quebranto (bis)
 
 Pequena não percebes o que diz o velho mar
Que o amor é infinito qual estrada de luar
E o vento repetia o que o mar me segredou
Quando fez São Vicente
 
- Até Deus se admirou
- Até Deus se admirou (bis)
 
As velas no horizonte e a história começou
Subindo a serrania o planalto conquistou
Aos olhos de uma índia o guerreiro se curvou
O mar da Ponte Pênsil
 
- Tudo isso me contou
- Tudo isso me contou (bis)
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O CORREIO DO LITORAL

Itanhaém da praia grande tão bonita
Como a saudade que é infinita (bis)
 
O Correio de Iguape
Que chegava a Cananéia
Namorava uma índia
Lá na Serra da Juréia (bis)
 
Saía de São Vicente
Nem ligava pra maré
Praia Grande, Peruíbe
Percorria tudo a pé (bis)
 
Itanhaém da praia grande tão bonita
Como a saudade que é infinita (bis)
 
Mas chegando na Juréia
Que nas nuvens se escondia
Só por causa dessa índia,
Do "correio" se esquecia (bis)
Certa vez na Primavera,
Nem chegou à Cananéia,
Dizem que ficou pra sempre
Lá na Serra da Juréia!
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PRAIA GRANDE

Quando a Ponte Pênsil cruzares
Prepara o teu coração
Pra vislumbrar Praia Grande
De Solemar, Boqueirão
 
É tanto sol, tanta praia
Renda de espuma de Yemanjá
Suas areias recebem
 Os mais belos versos do Mar
Praia Grande é a estrada
Que conduz ao firmamento
Caminhando pela praia
Eternize esse momento...
 
Quando as areias pisares
Eleva teus pensamentos
Manda mensagens pra longe
Pelo correio dos ventos
E pés descalços na areia
Juntinhos de braços dados
Ouçam a voz da Sereia
Que canta aos namorados
Praia Grande é a estrada
Que conduz ao firmamento
Caminhando pela praia
Eternize esse momento
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Ernesto Zwarg Júnior, nascido em Piracicaba em 1925. Morou por um tempo na capital paulista com seus pais e irmãos. Com a aposentadoria de seu pai, Ernesto Zwarg, a família toda mudou-se para Itanhaém nos idos de 1950, adotando a pitoresca cidadezinha para sua moradia. Foi o jornalista responsável e o editor dos jornais "Jornal de Itanhaém" e "Correio do Litoral". Vereador por três mandatos consecutivos e ambientalista, defendendo a ecologia na região que abrange da Baixada Santista até Cananéia, principalmente Itanhaém e a, hoje, Estação Ecológica da Juréia. Autor, junto com seus irmãos Antonio Bruno e Tino das MÚSICAS DO LITORAL
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Antonio Bruno Rocha Zwarg, nome artístico Antonio Bruno, nascido em São Paulo em 1923, foi músico (compositor, cantor e arranjador. Formado pela USP, na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, lecionou Português na Rede Estadual e Municipal em São Paulo. Estudou Harmonia e Composição. Atuou como pianista e acordeonista nas principais estações de rádio e canais de TV de São Paulo, como solista, dirigindo conjuntos musicais e acompanhando cantores brasileiros e internacionais. Autor de músicas que foram gravadas por Maysa, Silvio Caldas, Isaura Garcia, Elizete Cardoso, e premiado no concurso Cinzano da Canção Brasileira com três músicas entre as dez primeiras colocadas. Junto com seus irmãos, Ernesto Zwarg e Ascendino Zwarg compôs muitas canções sobre Itanhaém e o Litoral e que resultou em Três Lps. Gravou, cantando no CD de Hermeto Pasqual "SÓ NÃO TOCA QUEM NÃO QUER", algumas músicas de sua autoria.

Fernando Sabino (Como melhorar a memória)

Antes que eu me esqueça, compro o livro e trago-o para casa. Há muito tempo ando atrás dele: “Como Melhorar Sua Memória”, de um americano cujo nome no momento não me vem à memória.

Logo às primeiras páginas o autor se propõe a fazer com que eu tenha uma memória tão extraordinária como a do General Marshall. Quem foi mesmo o General Marshall? Além do plano que tomou seu nome, o que mais que ele fez? Diz o autor que o General Marshall, durante a guerra, concedeu uma entrevista coletiva a mais de sessenta correspondentes. Cada um fez a sua pergunta, o general ouviu atentamente, e depois respondeu uma por uma, pela ordem, e lembrando-se ainda do nome de cada jornalista e do respectivo jornal.

Não peço tanto. Meu problema com relação à memória é muito mais primário e toca às vezes as raias da oligofrenia: simplesmente não sou capaz de guardar o nome ou a cara das pessoas.

Uma fisionomia familiar, que não identifico, deixa-me logo naquele estado de inquietação que prenuncia a eclosão desastrosa de uma gafe. Então bato cordialmente às costas de um desafeto, ou forjo outro, virando a cara a um velho conhecido. Já cheguei, por equívoco, a despedir-me num bar estendendo a mão a um por um dos que compunham uma roda de gente inteiramente desconhecida — a minha mesa era outra, fato que me escapou ao voltar do toalete. Certa vez, noutro bar, eu era servido por um velho e conhecido garçom, com ares de desembargador aposentado. Foi o homem ir lá dentro mudar de paletó para sair, e retive-o quando voltava, convidando-o para tomar alguma coisa: para mim agora se tratava mesmo de um conhecido desembargador aposentado.

Não que minha falta de memória se circunscreva aos bares, onde se bebe para esquecer. Ainda há pouco tempo eu me referia aos vexames que o esquecimento me tem feito passar, nascido da mais diabólica distração. Em matéria de nomes e fisionomias, então, o General Marshall é, para mim, um dos grandes gênios da humanidade: não creio que em toda a minha vida tenha guardado corretamente sessenta nomes na cabeça. O pior é que me vem sempre a insopitável cretinice de designar alguém que conheço por um nome semelhante ao seu, ou mesmo completamente diferente, sem nenhuma procedência, aumentando a confusão. É fácil perceber por que o Esmaragdo para mim é Maraschino, o Vinícius é Demetrius e o Josué é Samuel. Mas por que diabo chamo o Paulo Mendes Campos de Nicodemus e o Pedro Gomes de Ramon?

Pois encontrei no tal livro um capítulo especialmente dedicado ao meu caso. Propõe um método prático e infalível de ligar para sempre uma fisionomia ao seu verdadeiro nome, evitando confusões futuras e as distorções que fazem surgir na minha mente uma floresta de apelidos. Consiste simplesmente no seguinte: primeiro destacamos no rosto da pessoa que não queremos esquecer um detalhe qualquer — o bigode, por exemplo; depois ligamos o indivíduo em questão ao lugar em que o encontramos — vamos dizer a Praça General Osório; finalmente, juntamos seu nome — digamos Carlos Penteado — aos dois dados anteriores, numa frase que ficará para sempre na memória, representando simbolicamente a pessoa da qual não queremos nos esquecer. Assim: o General Osório penteou o bigode do Carlos. Ou então: o penteado do Carlos Osório foi feito pelo general de bigode.

Fácil, como se vê. Diz o livro que então a presença da referida pessoa fará logo saltar-nos na mente a frase que compusemos, e nosso único trabalho será traduzir. Como medida de precaução, devemos sempre que possível anotá-la num caderninho, para não esquecer.

Outra coisa que o livro ensina, e que não me saiu mais da cabeça, é que não adianta quebrá-la, tentando arrancar dela aquilo que a gente esqueceu. Esta lição, pelo menos, imediatamente aprendi: deixei de fazer força para me lembrar do que quer que seja, e continuo vivendo como sempre, sem me lembrar de nada, mas pelo menos sem me aborrecer mais com isso. Ainda há pouco me veio à lembrança um sugestivo exemplo com que ilustrar o meu progresso em matéria de memória, e que serviria de brilhante fecho a esta crônica. Como veio, foi — pouco importa: fecho-a assim mesmo.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Varal de Trovas 491

 

Lenda Indígena (Uaupés*: o Sepulcro de Nama-kuru)

Antigamente uma personagem chamada Nama-kuru** matava muita gente e, por isso, todos o odiavam e queriam mata-lo, mas nunca conseguiam vê-Io.

Estava uma viúva chorando a morte do marido quando Nama-kuru disse: "Vou ter com ela". No outro dia a mulher foi apanhar camarão à beira do rio e Nama-kuru, andando na sua frente sem se deixar ver, jogava-lhe peixes que ela apanhava com facilidade. Então a mulher gritou: "Quem é que me dá esses peixes? Quero vê-lo! Por que se esconde? Ensina-me como se apanha tantos peixes!".

Nama-kuru respondeu:

"Ensinar-te-ei se me abres a porta da tua casa!".

Replicou a muIher: "Vem quando quiseres, abrir-te-ei a porta da casa".

De noite, quando os filhos da viúva estavam dormindo, Nama-kuru foi ter com ela, que o recebeu com muita alegria e o tratou bem. Nama-kuru trazia muito moqueado: tatu, peixe, inambu, paca etc e tudo lhe entregou.

Ela, porém, escondeu-o, e todos os dias comia sem partilhar com os filhos. Entretanto, Nama-kuru, todas as noites ia ter com a muIher e com ela comia e bebia.

Uma noite os filhos da viúva acordaram e descobriram o mau proceder da mãe. Disseram: "Nossa mãe não gosta mais de nós, vamos fugir!".

Assim fizeram. No outro dia, fugiram para o mato onde cavaram um buraco para se esconderem. A mulher não chorou a fuga dos filhos.

Quando ela ia à roça deixava sempre a cuia de manicuera*** para Nama-kuru beber. Um dia, enquanto ela estava trabalhando na roça, os filhos entraram em casa e misturaram na cuia de manicuera um forte veneno de cipó****, e depois fugiram.

Nama-kuru veio, fumou primeiro um grande cigarro, depois bebeu a manicuera com veneno e morreu. A viúva queria sepulta-Io na terra, mas ele não quis e foi sepultar-se no firmamento. Seu sepulcro está no grupo de estrelas que rodeiam o Cruzeiro do Sul.

Como a viúva tinha coabitado com Nama-kuru, deu à luz um filho que (ela) costumava colocar sempre em um atura*****, amarrado debaixo do telhado. Quando (ela) ia tomar banho, os filhos entravam em casa para ver o irmãozinho. Como ia crescendo muito devagar, um dia, quando a mãe estava na roça, os filhos levaram o irmãozinho para o mato. Lá cortaram galhos de imbaúba, amarraram com eles os pés do pequeno, colocaram-no perto de uma planta de batatas. Ele comeu as folhas e cresceu muito depressa. Quando foram vê-lo, deu um pulo e fugiu: tinha virado veado.

Por isso a mulher indígena, quando está para dar à luz, não come carne de veado porque teme que o filhinho morra.
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* Uaupés: Os índios que vivem às margens do Rio Uaupés e seus afluentes – Tiquié, Papuri, Querari e outros menores – integram atualmente 17 etnias, muitas das quais vivem também na Colômbia, na mesma bacia fluvial e na bacia do Rio Apapóris (tributário do Japurá), cujo principal afluente é o Rio Pira-Paraná. Esses grupos indígenas falam línguas da família Tukano Oriental (apenas os Tariana têm origem Aruak) e participam de uma ampla rede de trocas, que incluem casamentos, rituais e comércio, compondo um conjunto sócio-cultural definido, comumente chamado de “sistema social do Uaupés/Pira-Paraná”. Este, por sua vez, faz parte de uma área cultural mais ampla, abarcando populações de língua Aruak e Maku.
As etnias que estão na região do Rio Uaupés são, além dos Arapaso, Bará, Barasana, Desana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Kotiria, Tatuyo, Taiwano, Yuruti (as três últimas habitam só na Colômbia). Estão no noroeste da Amazônia, às margens do Rio Uaupés e seus afluentes

**É uma lenda "dos Tukanos sobre o Cruzeiro do Sul". Nama é 0 nome tukano do veado, ungulado da familia Cervídeos.

*** Manicuera: suco de mandioca amarga (Manihot esculenta Cranz) que, pela fervura, perde a toxicidade do ácido cianídrico.

**** Cipó: trata-se do timbó, 0 veneno de pesca preparado corn vários cipós Lonchocarpus sp.

***** Atura: 0 cesto-cargueiro feito de cipó imbé (philodendron imbé) que as mulheres costumam trazer às costas pendendo de uma embira que lhes contorna a testa e que é de fabricação exclusiva dos indios Maku.


Fontes:
– P. Alcionilio Brüzzi Alves da Silva SDB. Crenças e lendas dos Uaupés. Ediciones Abya-Yala, 1994.
– Sobre os Uaupés: Povos indígenas do Brasil.

Castro Alves (Poemas Avulsos) – 2

 ANJO


"Ai! Que vale a vingança, pobre amigo,
Se na vingança a honra não se lava?...
O sangue é rubro, a virgindade é branca —
O sangue aumenta da vergonha a bava.

"Se nós fomos somente desgraçados,
Para que miseráveis nos fazermos?
Desportados da terra assim perdemos
De além da campa as regiões sem termos...

"Ai! não manches no crime a tua vida,
Meu irmão, meu amigo, meu esposo!...
Seria negro o amor de uma perdida
Nos braços a sorrir de um criminoso!...”
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CANÇÃO DO BOÊMIO

Que noite fria! Na deserta rua
Tremem de medo os lampiões sombrios.
Densa garoa faz fumar a lua,
Ladram de tédio vinte cães vadios.

Nini formosa! por que assim fugiste?
Embalde o tempo à tua espera conto.
Não vês, não vós?... Meu coração é triste
Como um calouro quando leva ponto.
A passos largos eu percorro a sala
Fumo um cigarro, que filei na escola...

Tudo no quarto de Nini me fala
Embalde fumo... tudo aqui me amola.
Diz-me o relógio cinicando a um canto
"Onde está ela que não veio ainda?"
Diz-me a poltrona "por que tardas tanto?
Quero aquecer-te rapariga linda."

Em vão a luz da crepitante vela
De Hugo Garcia uma canção ardente;
Tens um idílio — em tua fronte bela...
Um ditirambo— no teu seio quente...
Pego o compêndio... inspiração sublime
P'ra adormecer... inquietações tamanhas...

Violei à noite o domicílio, ó crime!
Onde dormia uma nação... de aranhas...
Morrer de frio quando o peito é brasa...
Quando a paixão no coração se aninha!?...
Vós todos, todos, que dormis em casa,

Dizei se há dor, que se compare à minha!...
Nini! o horror deste sofrer pungente
Só teu sorriso neste mundo acalma...
Vem aquecer-me em teu olhar ardente...
Nini! tu és o cache-nez dest'alma.
Deus do Boêmio!... São da mesma raça

As andorinhas e o meu anjo louro...
Fogem de mim se a primavera passa
Se já nos campos não há flores de ouro...
E tu fugiste, pressentindo o inverno.
Mensal inverno do viver boêmio...
Sem te lembrar que por um riso terno

Mesmo eu tomara a primavera a prêmio..
No entanto ainda do Xerez fogoso
Duas garrafas guardo ali... Que minas!
Além de um lado o violão saudoso
Guarda no seio inspirações divinas...
Se tu viesses... de meus lábios tristes

Rompera o canto... Que esperança inglória...
Ela esqueceu o que jurar lhe vistes
Ó Paulicéia, ó Ponte-grande' ó Glórial...
Batem!... que vejo! Ei-la afinal comigo...
Foram-se as trevas... fabricou-se a luz...
Nini! pequei... dá-me exemplar castigo!

Sejam teus braços... do martírio a cruz!…
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A DUAS FLORES

São duas flores unidas,
São duas rosas nascidas
Talvez no mesmo arrebol,

Vivendo no mesmo galho,
Da mesma gota de orvalho,
Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penas
Das duas asas pequenas
De um passarinho do céu…

Como um casal de rolinhas,
Como a tribo de andorinhas
Da tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,
Que em parelha descem tantos
Das profundezas do olhar…

Como o suspiro e o desgosto,
Como as covinhas do rosto,
Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem pudera
Numa eterna primavera
Viver, qual vive esta flor.

Juntar as rosas da vida
Na rama verde e florida,
Na verde rama do amor!
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ONDE ESTÁS

É meia-noite. . . e rugindo
Passa triste a ventania,
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos fugaz:
"Vento frio do deserto,
Onde ela está? Longe ou perto?
" Mas, como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
"Oh! minh'amante, onde estás?...

Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
Com teu lânguido abandono!...
'Stá vazio nosso leito...
'Stá vazio o mundo inteiro;
E tu não queres qu'eu fique
Solitário nesta vida...
Mas por que tardas, querida?...
Já tenho esperado assaz...
Vem depressa, que eu deliro
Oh! minh'amante, onde estás?..

Estrela—na tempestade,
Rosa—nos ermos da vida,
Iris—do náufrago errante,
Ilusão—d'alma descrida!
Tu foste, mulher formosa!
Tu foste, ó filha do céu!...
. . . E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz...
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte...
"Oh! minh'amante, onde estás?..."

Fonte:
Castro Alves. Espumas flutuantes. Publicado em 1870.

Benedita Cristófoli (As faces)

O vento soprava suavemente nas folhas do arvoredo que ainda restava ao lado direito do lago; à esquerda o milharal confrontava num cenário tão belo e de compatível encanto! Completando o círculo, um bambuzal que reforçava o aterro e também sombreava as manhãs de sol. O sítio da vovó fazia divisão com o da mamãe apenas por um pequeno riacho.

O céu ostentava magnificamente um azul mais lindo do que nunca e uma temperatura agradável naquele final de dia.

Vovó disse: –  Vamos fazer uma pescaria hoje?

– Vamos, sim. – Não pensei duas vezes.

– Então vai lá experimentar se as águas do lago estão mornas.

– Não é preciso, já dei um mergulho nele agora há pouco.

– Vai tirar essa roupa molhada enquanto vou atrás das iscas.

Saí correndo descalça pisando aqui, ali, sabe Deus onde e muito feliz. Adentrei faltando o fôlego à porta da cozinha. Mamãe preparava o jantar. Olhou meio assustada:

– O que foi, filha?

– Mamãe, a senhora não vai acreditar, vou pescar com a vovó,

– Que bom, fique calma, para uma pescaria a receita é tranquilidade.

– Acha que é fácil? Há tempo que sonho com isso!

Num segundo tirei as roupas substituindo-as por umas mais apropriadas.

Desci o morro observando já a posição do sol quase rente no horizonte, a filtração dos raios entre as árvores caindo nas águas borbulhando um amarelo forte. Virei a direção dos olhos para o aterro, lá estava a mulher mais linda do mundo! De anzol iscando, jogou a linha quase no meio do lago com uma arte espetacular! Confesso que senti no momento um pouco de inveja... Pensei em imitá-la com tanta maestria, mas logo passou. A ideia de pegar a minhoca, aquilo encolhendo e espichando sempre foi escabrosa e nunca bem aceita... A vó Joana, apontou para a cumbuca, senti um frio na barriga quando vi a metade das bichinhas fora, naquele encolhe, encolhe. O ímpeto foi de sair correndo, não, tinha de me mostrar valente, não deixando transparecer nenhum medo, meti a mão em uma minhoca grandota, atorei-a pelo meio enfiando-a goela abaixo do anzol e jogando nas águas, sentei-me no chão segurando a vara como gente adulta.

Reparei no rosto dela. Não havia nada que me comprometesse.

– Vejo na minha companheira muita segurança!

– O que me deixaria insegura?

– Nada, a minhoca é um bicho inofensivo.

– É, a senhora tem razão.

Ela notou o quanto me esforçava na hora da repetição e Deus também sabia.

A noite caía de mansinho aparecendo as primeiras estrelas. Os grilos cantavam alegremente e alguns sapos coaxaram bem perto de nós. O cesto da vovó cheio até à borda de traíras, o meu, apenas duas e até conformada, sem experiência nenhuma, estava bom demais.

Nisso passou pela minha cabeça... Se fosse mais cedo, deixaria a vara de espera, e iria à casa dela mexer no tear, quem sabe fiar um pouco na roda de fazer fio. Tudo aquilo era por demais tentador. Imaginei o tear na sala. Não tinha outro lugar para vovó tecer seus lençóis e as cobertas? Quantas vezes ela me pegou tocando a roda de frente para trás, desperdiçando o algodão dela.

– Por hoje chega, ela disse, amanhã você tem aula cedo.

– É mesmo.

– Faremos outra se você quiser, gostou?

– Claro! Bastante.

Vovó era descendente de índio, sua pele escura, cabelos lisos e pretos, magra, alta, muito bonita, mesmo a quantidade de anos não deformou a sua beleza.

O nosso relacionamento não ficava só nas pescarias, mas dos passeios às rezas e me ensinou a costurar, bordar e na cozinha a fazer coisas deliciosas.

A semana se aproximava, mamãe disse: - Iremos todos, vovó, as primas e alguns inquilinos.

O aluguel da casa na cidade, o meu padrasto já havia combinado e os peixes também eram tarefa de assim como pescar, limpar e colocar o sal e secar no sol. Mamãe fazia as broas de fubá, os biscoitos de polvilho e os doces. Os preparativos, correr atrás de costureira, era tudo às pressas. Chega o tal dia e ia pondo tudo dentro do carro de boi, super-carga, mas tudo se ajeitava, a gente ir a pé era muito sacrifício, mas já que fazia parte da devoção, tudo valia.

Paramos o carro em frente à casa. Deus do céu, não me lembro de ter visto uma tão feia antes. Meu padrasto disse: – Foi a única disponível.

Se por fora desanimamos imagine por dentro, nem se fale, a parede fazia um século que não era pintada, o chão todo esburacado. Mamãe fez sinal para que ficássemos quietos. Iniciamos a arrumação dando-nos por satisfeitos. E assim foi essa semana santa como as outras, as procissões, o cheiro de vela, os cabelos sapecados, tudo isso fazia parte da programação, a igreja cheia, a morte de Jesus, a ressurreição e no sábado a queima do Judas, o domingo de aleluia.

Na segunda-feira a chatice das aulas da professora Ilda. Mamãe nem sonhava que matávamos aula adoidado. A caminhada era seis quilômetros todos os dias. De vez em quando os primos, minhas irmãs, mesmo sendo nós as mais novas tínhamos de concordar em passar as horas de aula sem abrir a boca. A brincadeira era para valer jogar bola com as bobeiras, colher frutos silvestres, sangravamos a boca com os gravatás, a colheita era uma tarefa dificílima, as mãos e as pernas arranhadas, mas nem assim havia desistências.

As pescarias, as novenas e os passeios foram aumentando e fortalecendo a nossa amizade, quem não reparasse bem, tomava-nos por duas adolescentes. Vovó teve uma participação fundamental na transição da minha infância para a adolescência. Mamãe não explicava nada. A vovó era quase igual uma médica, fazia remédio para bronquite, parteira, benzia as crianças, curava tudo e todos.

As novenas longas. Caminhadas quando à noite enluarada, tudo beleza a heroína seguia em frente como soldado em combate. Nas rezas ela ia para cozinha fazer café e chá para depois da novena servir com os biscoitos, enquanto lá fora as moças e rapazes brincavam de roda, de passar anel e namoravam, tudo bem escondido.

Um certo dia mamãe e padrasto inventaram de ir visitar a irmã mais velha de mamãe no Sul... Admirados com o progresso, a terra fértil. Deixaram uma fazenda com proposta de compra... E dentro de pouco tempo venderam a fazenda no interior de Minas Gerais e partimos para o Sul.

Pensei que não ia aguentar a grande dor, uma tristeza inconsolável, deixar tudo no momento mais gostoso de minha vida. A manhã está clara e mais linda do que nunca para nossa despedida. O caminhão super-lotado de gente em cima de colchões, trouxas e roupas e as coisas de casa, meu padrasto trouxe junto os agregados da fazenda.

Virei para trás, um vulto na janela, meus olhos cheio de lágrimas tampavam a imagem da vozinha, tudo embaçado, imaginei ela na mesma situação minha.

Depois de alguns meses a tia Marieta nos escreveu contando, "a ida de vocês foi tão triste para mamãe, pois teve momento que achei que ia morrer de tanto se lamentar, ficava horas na janela olhando a casa fechada".

À última curva mais esforço, nada definido, tudo turvo. O desespero foi tão grande! O coração batia mais forte... Comecei a enumerar as perdas, eram muitas, deixando a vozinha amada, meus pássaros, minha terra onde vivi a infância e metade da adolescência, minha casa onde nasci e a goiabeira, pousada do meu pintassilgo, que mesmo depois que o vaqueiro deixou-o escapar da gaiola, ele retornava todos os dias para cantar e comer a canjiquinha de milho, junto com os pintinhos.

Um belo dia contei a história do meu pintassilgo à vovó que mesmo depois de sua liberdade, ainda éramos amigos.

– Como o Sezão soltou o pássaro? Que maldade!

– Não vovó, a senhora sabe o jeito que ele é estabanado.

– Você acha que é o mesmo pintassilgo?

– É sim, ele não tem um dedinho do pé esquerdo.

– Que coisa interessante! – disse rindo muito.

– Sabe que eu não quis prendê-lo de novo?

– É muito bom ouvir isso, pois ninguém pode mudar a direção correta das coisas.

No dia seguinte vovó chegou no lugar que havíamos combinado para ver a chegada do pássaro... Espalhamos a comida farta no terreiro, as chocas e seus pintinhos foram se aproximando junto com alguns pardais e os canários amarelos. Percebi que vovó atenta procurava o tal pássaro, tranquilamente continuava jogando a canjiquinha que restava na latinha, esperando uma interrogação. E lá vem ele então soberbo! Pousou no chão no meio da pintaiada, enfiou seu delicado bico a catar comida e saboreando com gosto as delícias.

– A senhora viu?

– Sim, querida, não que duvidasse mais voltar depois de solto.

A felicidade está nestas pequenas coisas, não é preciso ir longe para atingi-las. O semblante dela animadíssimo e sorridente como nos dias das pescarias.

As estradas, a maior parte de terra e vários dias penosos, uma viagem difícil, chegamos ao destino. Ficamos algumas semanas no sítio da titia até resolverem comprar o nosso.

As matas verdes, não dando por satisfeita em contemplá-la de longe, adentrava e permanecia longas horas observando as belezas naturais do Sul.

No meado do ano, as geadas vinham vigorosas, queimavam tudo, os cafezais, morriam até as raízes. Batia a tristeza, a cicatriz profunda das perdas que ali tinha tido, florescia novamente a saudade da infância, do meu mundo de sonhos agarrava a minha alma, voltava ao passado.

Naquele ano mesmo surgiram outras paixões, senti-me dominada por um amor louco, era a primeira vez que amava sem dúvida. Isso me fez mergulhar no mundo dos romances, ia fundo dedicando-me à leitura.

Quando se completou um ano de minha vinda, me casei e dessa união nasceram quatro filhos, dois casais, presentes de Deus, foi uma maravilha! Pois enquanto cuidava esquecia o fracasso que fora o casamento. Nunca podia imaginar que aquilo fosse acontecer, milhões de sonhos acalentados foram se distorcendo. Bati frente a frente com a dura realidade!... O romantismo não existe... Nunca existiu? As lindas histórias de amor só existiam nos livros.

Entregava-me inteiramente às crianças, ao serviço doméstico e agradecia a Deus por ser tão carregada de trabalhos. Quando as crianças dormiam e mais tarde quando iam para o colégio, começava a pensar, sempre procurando respostas que justificassem as atitudes desonestas e frias do esposo. Adormecia perdida, na maioria, no meio das reflexões.

E assim foram trinta e quatro anos e não trinta e quatro meses e nem trinta e quatro dias. "Sem direito a nada". E então, imenso desejo de esquecê-lo. Mas através do sofrimento e bastante luta consegui, numa manhã, pôr quatro mudas de roupas, um par de sapatos, alguns livros na maleta e a vontade de retomar ao sul de onde ausentei dez anos, na última tentativa de salvar meu casamento.

Muitas vezes cheguei a pensar que Deus havia me abandonado, mas não, todo sofrimento, as repressões tudo fez com eu fosse em busca da liberdade. Oito anos divorciada e disposição sem limites. E desejava renovar o destino para mim e para as pessoas que achavam tudo sem solução, só porque já passaram dos sessenta anos de idade. Infelizmente na minha geração ninguém tinha a ousadia de dizer, vamos lá, você pode, estudar não é um crime. Então, procurava realizar meus sonhos e ensinar o que havia aprendido durante esses anos de experiências, passando às pessoas que não tiveram oportunidades antes.

Lecionei como voluntária alfabetizando jovens e adultos, ninguém saberia medir a minha felicidade quando uma aluna de setenta anos escrevera as primeiras palavras, depois as frases e as lera corretamente. Acreditei, sempre acreditara no amor, na sua força misteriosa! Onde Ele está tudo é possível fazer. Ao completar sessenta anos de idade conclui o magistério e depois de várias tentativas (4 vezes), consegui passar no vestibular, cursei Pedagogia. O mais importante sempre fora a persistência, nunca desistia enquanto não alcançava o meu objetivo.

Encontrava-me dedicando a um mundo maravilhoso e cheio de esperança, participando da maturidade, das danças, me sentia feliz no meio de amigos verdadeiros e até encontrando um grande amor, quando pensava que ele só existia nos romances.

A convivência com os netos fora, sem dúvida, uma troca de experiências e fez com que acabasse voltando ao passado e revivendo a infância, a doce lembrança que fora a minha avó.

Fonte:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro.

Estante de Livros (Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto)

Publicado em 1912. O livro é composto por dezenove contos e neles percebemos as qualidades do narrador e paralelamente, os seus limites. Dois traços tornam-se nítidos:

– a fixação do mundo gauchesco;
– a oralidade e o regionalismo da linguagem.

Para isso, muito vale a estratagema do escritor, cedendo a palavra ao vaqueano Blau Nunes.

Blau Nunes contará os seus casos, recolhidos no "trotar sobre tantíssimos rumos". E a sua fala - por ser teoricamente a de um gaudério, a de um peão sem trabalho fixo - se esquivará, por vezes, da exaltação dos pampas e da condição gaúcha, que no fundo, foi sempre uma auto-exaltação dos oligarcas sulinos.

Há no tom narrativo de Blau certa neutralidade, destruída aqui e ali pela saudade dos antigos tempos e por certo moralismo de origem cristã. Porém a sua nostalgia vincula-se a uma época na qual o gado ainda xucro era campeado - conforme o relato Correr eguada - e os peões tinham direito a sua tropilha nova, fato que não se repetiria numa sociedade cada vez mais dividida entre fazendeiros e trabalhadores.

Por outro lado, a significação moral das histórias exige-se sobre um sentimento de relativo desconforto no narrador com a violência imperante no território gaúcho: a destruição do boi em serventia (O boi velho), a carnificina guerreira (O anjo da vitória), etc.

Ainda que esforço documental presida a obra, o registro dos costumes nunca é gratuito. Liga-se à ação dos contos e a psicologia simples dos indivíduos. Em três ou quatro narrativas, contudo, o valor do documento é superado por uma legítima sensibilidade artística: Trezentas onças, O contrabandista e O boi velho transcendem à condição de espelho da região, atingindo a chamada universalidade das grandes produções literárias.

Se muitos contos permanecem apenas como registro de costumes ou como anedotas bem contadas (eis o limite do autor pelotense), a linguagem em todos eles é viva e cheia de dialetismos, o que, em parte, dificulta a leitura. O linguajar gauchesco é reproduzido pelo escritor. Mas a utilização que Simões Lopes Neto faz do regionalismo linguístico não visa o pitoresco, como acontece na maioria das manifestações artísticas dita regionais. Nele, a expressão típica é uma decorrência dos conteúdos trabalhados, e, por isso mesmo, somos capazes de superar as dificuldades de seu vocabulário.

Como disse Augusto Meyer, há em sua obra "o cuidado de reconstruir o timbre familiar das vozes". E isso forneceria a mesma um efeito surpreendente de oralidade, encanto e frescor.

TREZENTAS ONÇAS

O narrador Blau Nunes conta que, certa vez, viajando sozinho a cavalo, acompanhado apenas de seu cachorro, levava na guaiaca trezentas onças de ouro, destinadas a pagar um gado que compraria para seu patrão. Um certo ponto da viagem, para para sestear num passo, onde, depois de uma boa soneca, vai refrescar-se com alguns mergulhos na água fresca.

Tornando a vestir-se e a encilhar o zaino, parte em direção à estância da Coronilha, onde devia pousar. Logo que sai a trotar pela estrada, o gaúcho nota que seu cachorro estava inquieto, latindo muito e voltando sobre o rastro, como se quisesse chamar seu dono para o pasto outra vez. Mas Blau Nunes segue seu caminho até chegar à estância da Coronilha. Lá chegando, ao apear do cavalo e cumprimentar o dono da casa, nota que não estava com sua guaiaca. Anuncia que perdera trezentas onças do patrão e, preocupadíssimo, monta o cavalo outra vez para voltar ao lugar onde teria deixado a guaiaca.

Depois de nova cavalgada, sempre acompanhado do fiel cãozinho, Blau Nunes chega ao passo, já de noite, e não mais encontra a guaiaca no lugar onde tinha certeza de que havia colocado quando se despira para o banho. Desespera-se tanto por imaginar que seu patrão o consideraria um desonesto, que pensa em suicidar-se. Chega a engatinhar o revólver e colocá-lo no ouvido, mas o cusco lambendo-lhe as mãos, o relincho de seu cavalo, o brilho das Três Marias, o canto de um grilo, tudo lhe invoca a presença e a força divina, que o demove daquele ato transloucado.

Assim, o gaúcho reequilibra-se e decide que venderá todos os seus bens e dará um jeito de pagar ao patrão o prejuízo da perda das trezentas onças. E volta para a pousada na estância da Coronilha. É então que tem uma feliz surpresa: sobre a mesa da sala do estanceiro, ao lado da chaleira com que se servia a água do mate, estava a sua guaiaca "empanzinada de onças de ouro". Uma comitiva de tropeiros, que chegava à estância no momento em que ele voltava ao passo de sesteada, havia encontrado a guaiaca e a trouxera intacta. E esta foi a saudação que ele recebeu quando entrou na sala:

" - Louvado seja Jesus Cristo, patrício! Boa noite! Entonces, que tal le foi de susto?"

Conto narrado em 1ª pessoa, com muita descrição de paisagem.

NO MANANTIAL

Narração em 3ª pessoa. Na tapera do Mariano há um manantial. Bem no meio dele, uma roseira, plantada por um defunto, e gente vivente não apanha flores por ser mau agouro.

Carreteiros que ali perto acamparam viram duas almas: uma chorava, suspirando; outra, soltava barbaridades. O lugar ficou mal-assombrado.

Com Mariano morava a filha Maria Altina, duas velhas, a avó da menina e a tia-avó, e a negra Tanásia.

Tudo em paz e harmonia.

Certa vez foram a um terço na casa do brigadeiro Machado. Maria Altina encontrou o furriel André, e os dois se apaixonaram (conchavo entre o pai e o brigadeiro). André lhe deu uma rosa vermelha. Em casa, ela plantou o cabo da rosa e a roseira cresceu e floresceu. Surgiu o trato do casamento...o enxoval...

Chicão, filho de Chico Triste, andava enrabichado pela Maria Altina, que não se interessava por ele e tinha-lhe medo.

Na casa de Chico Triste houve um batizado. O pai e a tia-avó foram ajudar. Chicão aproveitou-se, foi à casa do Mariano, matou a avó e quis pegar à força Maria Altina.

Esta, vendo a avó morta, pegou o cavalo e saiu às disparadas, entrando no manantial. Chicão atrás. Ela some e só fica a rosa do chapéu boiando.

Mãe Tanásia, que se escondera e vira tudo, vai à procura de Mariano.

Nesse meio-tempo chegaram a casa os campeiros para comer. Viram a velha morta. Uns ficaram, e outros foram avisar Mariano e procurar Maria Altina....

Mariano apavorou-se, pensando que a filha fugira com o Chicão. Nisso chegou a mãe Tanásia e conta o sucedido. Todos vão ao manantial e encontram Chicão atolado, boiando. Mariano atira e acerta Chicão. O padre que ali está, coloca a cruz na boca da arma e pede que não atire mais. Mariano entra no lamaçal, luta com Chicão e os dois afundam e morrem.

A avó foi enterrada também na encosta do manantial. Uma cruz foi benzida e cravada no solo pelos quatro defuntos.

Mãe Tanásia e a tia-avó foram por caridade, morar na casa do brigadeiro Machado.

E como lembrança do macabro acontecimento, ficou, sobre o lodo, ali no manantial, uma roseira baguala, roseira que nasceu do talo da rosa que ficou boiando no lodaçal no dia daquele cardume de estropícios.

O CONTRABANDISTA

Narração em 1ª pessoa. Informações históricas.

O contrabandista é Jango Jorge. Mão aberta e por isso sem dinheiro. Foi chefe de contrabandistas. Conhecia muito bem lugares (pelo cheiro, pelo ouvido, pelo gosto).

Fora antes soldado do Gen. José Abreu.

Estava pelos noventa anos, afamilhado com mulher mocetona, filhos e uma filha bela, prendada, etc.

O narrador pousa na casa dele, era véspera do casamento da filha.

Tudo preparado, Jango Jorge parte para comprar o vestido e os outros complementos de contrabando. É atacado, na volta, pelo guarda que pega o contrabando, mas ele não solta o pacote contendo o vestido e, por isso, é morto. Os amigos levaram o cadáver para casa, contaram como ocorreu e a alegria da festa vira tristeza geral.

Obs.: no meio do conto é contada a história do contrabando na região, do comércio entre os lugares, os mascates...

JOGO DE OSSO

Narração em 1ª pessoa, bastante descritivo.

Começa, dizendo que já viu jogar mulher num jogo.

Depois descreve a vendola do Arranhão (um pouco para fora da vila, de propriedade de um meio-gringo, meio-castelhano, que tem faro para negócios: bebida, corrida, jogos, etc.).

Certo dia choveu e atrapalhou a jogatina. Cessada a chuvarada, resolvem jogar o osso. (Explica como se desenvolve a jogatina.)

Os jogadores eram Osoro (mulherengo, compositor) e Chico Ruivo (domador e agregado num rincão da Estância das Palmas; vivia com Lalica.

Chico só perde e acaba apostando Lalica. Esta com raiva de Ter sido incluída na aposta, começa a dançar com Osoro (o ganhador) provocando Chico Ruivo, que não agüentando mais, vara os dois ao mesmo tempo com um facão.

O povo à volta grita para que peguem Chico Ruivo, mas ele foge no cavalo de Osoro.

"-Pois é, jogaram, criaram confusão, mas nenhum pagou a comissão...Que trastes!..." (falou o meio-gringo do bolicho).

domingo, 4 de abril de 2021

Adega de Versos 9: Severino Feitosa

 

Júlia Lopes de Almeida (O Último raio de luz)

A Júlia Cortines


Ainda me lembro do último raio de luz que me feriu as pupilas. Sol! sol! por que não te hei de esquecer?

Era em maio. A janela do meu quarto dava para o mar, e havia uma larga moldura de rosas amarelas que a circundava toda. Eu tinha quinze anos só. O médico ia todos os dias ver os meus olhos e quedava-se longo tempo a falar com minha mãe, descrevendo-lhe o meu mal, pedindo-lhe desvelo, arregaçando-me as pálpebras, admirando a limpidez do meu olhar azul e inocente.

Eu ouvia-o falar em amaurose* com uma piedade tão comovente, que me enternecia. Qual era a minha doença? Ignorava-o eu; minha mãe compreendia-a, respondia com voz mal firme às perguntas e prescrições do doutor. Ele era moço, era formoso e era meigo; que havia de estranhável em que eu o amasse?

Amei-o; mas eu só tinha quinze anos e ele já tinha trinta! Para ele eu era uma criança apenas, uma flor mal desabrochada e triste. Sorria-me com a doçura que os desgraçados inspiram, eu bebia-lhe a voz com a sofreguidão indefinida que o primeiro amor dá! Para mim, ele era tudo! Tremia com o vê-lo e senti-lo ao meu lado, o coração batia-me com força, as fontes latejavam-me, um desmaio de ventura percorria as minhas veias, ia no meu sangue; era o meu sangue mesmo, girando dentro da minha carne fresca, rosada e pura, ora impetuoso, ora brando, que me sobressaltava, avermelhando-me as faces, ou me enlanguecia, matando-me de gozo. Quinze anos! oh, meus quinze anos! quão longe estais! Quando passo as mãos pelos meus cabelos, que devem estar brancos, e os dedos encontram no meu rosto as rugas da velhice, treme-me no peito uma saudade daquele tempo de primavera, e sinto as lágrimas rolarem-me pelas faces. Só para chorar não morreram os meus olhos, bendito seja Deus!

Um dia o médico tapou-me a vista com um lenço escuro. Senti–lhe as mãos emaranhadas no meu cabelo loiro, e a sua voz clara e sonora dizer-me junto ao ouvido:

– Conserve-se assim alguns dias; não retire esse lenço sem meu consentimento... do contrário ficará cega... cega, ouviu? Promete-me obediência?

Prometer-lhe obediência foi para mim uma felicidade. Obedecer ao homem que ama é para a mulher um gozo esquisito, terno e perfeito. Acenei-lhe que sim. Passei alguns dias imóvel; mãos cruzadas no colo, como uma figura de santa paciente, feliz na sua resignação!

Ao redor de mim tumultuava a casa. As crianças corriam, chamavam-me, diziam que o tempo estava formoso, que havia novas flores na minha roseira; que a mamãe fizera outro manto para a imagem do meu oratório... As criadas vinham contar proezas dos meus animais favoritos; minha mãe, tão discreta, essa mesma deixava-se levar no entusiasmo de quem vê, e volta e meia tinha uma exclamação de espanto ou de alegria que me impeliam a arrancar o lenço para ver também.

As mãos, porém, não se descruzavam; o sacrifício feito para obedecer-lhe tornava a obediência mais querida ao meu coração. Eu supunha que ele conheceria, perceberia, apalparia, por assim dizer, todas aquelas atribulações, todos aqueles sentimentos que se agitavam dentro de mim. Eu devia ser como um cristal, e cuidava sê-lo aos olhos do meu médico! De todas as pessoas da família, minha irmã mais velha era a mais doce. Ao pé de mim não gabava a beleza que os seus olhos vissem; acariciava-me como a uma pomba cansada, a quem se teme magoar as asas. Pobre de minha irmã! Com a falta de vista fui apurando o ouvido, de tal sorte que o mínimo som chegava até mim perfeitamente limpo. Uma agulha que caísse no chão, uma palavra mal segredada, um suspiro retido a meio, um sopro, um voar de asas finas do mais pequenino inseto constituíam o meu drama, todo o meu mundo visível, porque enfim eu via pelo ouvido, pelo ouvido reconstruía imaginariamente todas as cenas! Chegava a adivinhar a intenção das pessoas, a maneira de ocultarem sob palavras brandas e quase indiferentes a admiração que algum objeto lhes causasse; a recusa íntima de coisas que os lábios consentiam, ou o consentimento de outras que o espírito recusava!

Principiei a conhecer que toda a gente mentia mais ou menos em minha casa, e que o exemplo vinha desde minha mãe e de meu pai.

Não era só a mentira grosseira, áspera, rude, vulgar; o que eu percebia ia mais longe: sentia a mais tênue, a mais fina, a mais vaporosa sombra de falsidade. Tristes momentos em que a cegueira nos descortina segredos, que desejaríamos ignorar toda a vida! Para eu não ser má, valia-me a paixão pelo médico. O amor abria-me a alma, enchia-me o coração de bênçãos, e para cada defeito que eu descobrisse na voz de alguém, tinha um perdão no meu seio!

Um dia, não se puderam calar e entoaram todos louvores ao sol.

– Há muito que não faz um tempo assim! exclamava um.

– Dá vontade à gente de passear! dizia outra, rindo.

Eu sentia o calor brando e doce do sol de maio, e as minhas narinas dilatavam-se ao aroma das rosas francamente abertas. Voavam andorinhas perto das janelas, e o flu-flu das asas soava no ar deliciosamente. Alguém passava na praia cantando uma cançoneta alegre, e as crianças riam alto na varanda, correndo atrás do meu cão predileto.

Oh, se eu pudesse correr ao sol! colher flores para o meu amado, cantar as canções felizes que a vista do mar me inspirasse, como seria bom, como seria bom! E as mãos apertavam-se mais, com medo de desobedecer ao meu senhor, ao dono do meu destino, do meu terno coração de quinze anos, todo primavera, todo amor, todo esperança.

Comecei a rezar baixo, mentalmente mesmo, pedindo à virgem minha patrona que desse saúde aos meus olhos cansados da escuridão. Tive de interromper a minha prece... No jardim havia um sussurro brando que me fez estremecer. Ergui-me e fui, tateando, à janela.

Vi todas as flores, nos seus perfumes, o calor ameigou-me a pele, o mar rolou uma queixa doce aos meus ouvidos; as mãos trêmulas desligaram-se-me: ouvi então a voz do meu médico falando de amor a minha irmã...

Uma ilusão! sim! era uma ilusão tudo aquilo; e, para convencer--me, eu, desgraçada, arranquei dos olhos o lenço escuro. O sol! Só vi o sol... mais nada! O sol furioso, dardejante, afogueando tudo, mar, céu, terra, plantas, como brasa ardente e cáustica a rebrilhar em toda a natureza, tingindo de ouro vivo as cores mais delicadas, ferindo de morte os meus pobres olhos de virgem apaixonada...

Agora, quando os filhos de minha irmã me perguntam qual foi a última impressão que tive pelo olhar, mal lhes respondo e quedo-me a rever-me nos meus quinze anos, sentindo que, ao menos para chorar, ainda vivem os meus olhos, louvado seja Deus!
____________________________________
* Amaurose ou Gota Serena é a perda total da visão, sem lesão no olho em si, mas com afecção do nervo óptico ou dos centros nervosos, podendo afetar a visão de um ou ambos os olhos.
 
Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Sammis Reachers (Poemas Avulsos) 2


 Casadoiro

Procuro uma menina
que me dê amor verdadeiro,
não fingido, não sonhado

amor de abraço longo
e comida benfeita

confiança
como telhado novo sem goteiras

De minha parte
faço-lhe uma promessa:
ainda que eu não encontre
as palavras certas
eu encontrarei as ações
e isso
é o que de maior um poeta
pode prometer.
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Equívocos

Perdi o poema que vinha
eu sangrei meu seio

supus primavera na esquina
era algazarra de um tiroteio

e eu lá de sonhos abertos
com os olhos intoxicados e quietos

na solidão central de seu meio
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Lamento à maneira antiqua

Um coração de tipo e viés cigano
valia-me mais que este meu, pacato
eu amaria as que me constrangem, sem recato
trocaria minha farda por colorido pano.

Beberia vinho em fundas tascas de cristal
sem atinar para a vil aparência do mal;
deitaria meu rosto de pranto em todo colo
e redimiria de o vazio delas todo o dolo...

Mas temo e tremo, pela alma e destino meus;
recolho-me à minha taba, espero em meu Deus.
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Menina-mulher

Renovas o mundo,
Deita-o a girar

A tapeçaria do Caos
Tecem-na teus dedos
Delicados-brancos
tecem-na para que eu me deite,
leito de intempestivas andorinhas

há paz & forças sulfurosas
em teu beijo langoroso
pacificação e lento incêndio
em teus olhos-de-dilacerar

A balbúrdia em teu iPod
o último louvor da última levita,
ou o Pearl Jam cantando Last Kiss
a todo o momento, ressuscitando
um dia de poemas realizados
que talvez nunca tenha sido

A forma como entregas a tua vida
Como se fora dela o dia derradeiro

Teu sorriso tange os homens,
Arrebanha a minha dispersão

Hoje é o teu dia, lua cadente-sorridente
- Parabéns
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O poeta é um desvelado

O poeta é um desvelado,
Qualquer criança, num qualquer soslaio,
Lhe desnuda o segredo:
Ele escreve
porque não sabe voar
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Peter Pa(i)n

Perfile as tropas, Sininho.
Não há volta para nenhum de nós;
Crianças, nossas ações
são as ações de homens desesperados.
Desconecte os Bulbos de Realidade,
mergulhe tudo no Sonho.

Ele é um anjo caído, o que se nos opõe;
sequer podemos vê-lo,
conhecer-lhe o plano ou a extensão do braço;

No Sonho e no Sonho apenas
é o único lugar onde poderemos
assassinar o nosso tão injustamente
poderoso inimigo.

Fonte:
Sammis Reachers. Pulsátil. Poemas canhestros & prosas ambidestras.
 São Gonçalo/RJ, 2014.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Germani, um sábio

Quase um século de heroísmo, talento, generosidade. Belíssima história inserida na fascinante história do Sul – Rio Grande, Santa Catarina, Paraná.

Conheci Emílio Germani em 1955, logo que cheguei a Maringá. Ele já era um vitorioso empresário, um dos mais respeitados pioneiros da cidade. Participante ativo de todas as entidades já aqui existentes, entre as quais a Santa Casa, a Associação Comercial, o Rotary Club – o rotariano mais rotariano que até hoje conheci. E ainda achava tempo e fôlego para escrever ótimos artigos para os nossos primeiros jornais e revistas.

Catarinense nascido no dia 22 de junho de 1917 em Capinzal, em 1950 Germani residia em Videira, após haver morado durante algum tempo em Caxias do Sul. Em Videira ele era já um homem importante, exercendo alta função na empresa Ponzoni Brandalise, que mais tarde se tornaria a Perdigão.

Deu-se, porém, o inesperado: numa noite de chuva, ao atravessar de jipe a linha férrea, foi atropelado por um trem, o que o obrigou a ficar 40 dias no hospital. Ao receber alta, pediu mais 10 dias de licença e aproveitou para vir conhecer o norte do Paraná, eldorado do qual muito se falava na época. Maringá estava novinha ainda, nem município era. Ele chegou aqui exatamente no dia 15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Glória, futura padroeira da cidade.

Ao passar em frente ao escritório da Companhia Melhoramentos, Germani viu um montão de gente entrando e saindo. Entrou, foi conversar com um dos corretores. Resultado: comprou um terreno na Avenida Mauá, uma chácara nos arredores e alugou um salão na Avenida Paraná. Voltou a Videira levando a surpresa, contou a aventura para Dona Elza e no dia seguinte apresentou aviso prévio à firma onde trabalhava.

Dois meses após já estava em Maringá de mala e cuia, em companhia do seu irmão Guido. Montaram primeiro um escritório de representações, depois uma fábrica de camas, depois uma cafeeira, e alguns anos mais tarde entraram no ramo do milho. Logo cresceram e se tornaram grandes industriais, com prestígio internacional. Uma história de gente forte, parecida com a de tantos outros peitudos que ajudaram a construir esta pujante cidade.

Mas o que eu queria mesmo dizer era que para mim foi uma bênção haver conhecido Emílio Germani e ter com ele convido durante muitos anos nas reuniões de Rotary, na Academia de Letras de Maringá e em muitos e inesquecíveis encontros nas redações de jornais e revistas.

Gostava demais de conversar com ele, ouvir suas histórias, aprender com ele tantas e tão preciosas lições de vida. Germani era um sábio, um homem bom, um modelo de cidadania. Um ser humano realmente fora do comum.

Autor de três ótimos livros – “Encruzilhadas”, “Fragmentos Históricos do Distrito 4630” e “Retalhos da Vida”, além de centenas de artigos, poemas e crônicas. Despediu-se no dia 2 de junho de 2010, com 93 anos. Deixou uma bela família – 11 filhos, 25 netos, 11 bisnetos.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 28--01-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.