sábado, 17 de abril de 2021

A. A. De Assis (Maringá Gota a Gota) A primeira revista de Maringá


“A redação era a casa de cada um de nós”

Criador da primeira revista de Maringá, Antonio Augusto Assis, viveu os entraves do início dos impressos do interior. Mais conhecido por assinar seus textos como A. A. de Assis, o professor aposentado pelo departamento de Letras da UEM (Universidade Estadual de Maringá), jornalista e escritor por paixão, Antonio Augusto de Assis, idealizou a Maringá Ilustrada, primeira revista de Maringá.

Nasceu em São Fidélis, interior do Rio de Janeiro, 285 km da capital carioca. Migrou em direção ao Sul ainda jovem, passando, primeiro, por Bauru (SP) e só em janeiro de 1955 Assis mudou-se para Maringá. Seu primeiro contato com o jornalismo foi aos 16 anos, quando escreveu um artigo para o jornal O Fidelense. Ele já passou por diversos periódicos maringaenses, entre os quais A Hora, O Jornal de Maringá, A Tribuna de Maringá, A Folha do Norte do Paraná e na primeira revista, a Maringá Ilustrada, que depois se chamou Norte do Paraná. Também trabalhou na Rádio Cultura.

Assis conversou com a equipe do jornal Matéria Prima. Contou como foi fazer a primeira revista de Maringá e as “aventuras” de noticiar os fatos da cidade e do interior do Paraná.

Confira abaixo:

1) A Maringá Ilustrada foi uma revista comemorativa. Como surgiu a ideia de fazer o que viria a ser a primeira revista da cidade?

- Aristeu Brandespim era um colega e contador de Maringá e resolveu me chamar para criar a revista. Ele era sonhador e quis fazer a revista para comemorar os dez anos de Maringá. Convidou a mim e Ary de Lima, a primeira safra do jornalismo da cidade. Primeiro, Aristeu começou a vender anúncios, para garantir que a publicação fosse para as ruas. E a gráfica era em São Paulo, porque aqui não tinha. Enquanto ele vendia publicidade, a gente [Assis e Ary de Lima] escrevia a história dos primeiros dez anos de Maringá, registrando a vida dos pioneiros que fundaram o município. Posso dizer que fizemos o primeiro registro histórico da cidade.

2) E a cidade tinha potencial jornalístico nessa época?


- A cidade tinha cerca de 30 mil habitantes. Não tinha potencial. Ela tinha mais peito do que potencial. As pessoas que vieram, arriscavam tudo para fazer de Maringá uma boa cidade para se viver. Na revista a gente se reservou a escrever mais a história do que realmente notícias, porque aqui não acontecia muita coisa. Eu ajudei a publicar, no que pode se chamar a primeira grande notícia de impacto da cidade. Foi a queda de um dos aviões da Esquadrilha da Fumaça, no aniversário de Maringá, que bateu num mastro do centro da cidade e caiu na caixa d’água da estação ferroviária. Eu e o Taborianski [Edgar Taborianski, fotógrafo da revista] estávamos lá e publicamos a foto dos destroços do avião, um grande furo jornalístico.

3) Depois do sucesso da Maringá Ilustrada, Aristeu Brandespim e o senhor deram continuidade à produção de revistas. A seguinte foi a Norte do Paraná em Revista (NP). Como era a produção?

- Como ela agradou tanto, Aristeu resolveu criar uma revista permanente. E como ele queria mais do que Maringá, mudou o nome da revista para Norte do Paraná. Mas depois da 4ª ou 5ª edição ela repercutiu para todo o Estado e mudamos o nome para Nôvo Paraná. E o escritório era na casa de cada um de nós. Nos reuníamos na casa do Aristeu para discutir o que seria publicado, não existia um local [uma sede] da revista. A gente tinha um Jeep e cobríamos todo o norte do Paraná. Depois de um tempo ela ganhou expressão e criamos escritórios em Curitiba e Londrina. A equipe, composta [no começo] por mim, Frank [Franklin Vieira] Silva, Ademar Schiavone e Ademaro Barreiros, viajava de avião, carro, ônibus e trem para atender o Estado inteiro.

4) A revista durou cerca de duas décadas. A que se deve o sucesso desse impresso?

- A revista teve sucesso pelo jeito que a escrevíamos. A gente escrevia o que interessava ao povo do interior do Paraná, que era sobre eles mesmos. Não era fofoca, publicávamos notícias diferentes. Nós corríamos por diversas cidades para fazer matérias que não fossem apenas desastres ou crimes, sempre procuramos achar algum detalhe do cotidiano do cidadão. Além disso, ela era impressa com um ótimo papel e também ótima fotografia. Os fotógrafos eram Jasson Figueredo e Edgar Taborianski. A revista fazia o estilo da cidade. A cabeça do jornalista era a cabeça da cidade. Ela só acabou quando Aristeu morreu, ele levou a revista com ele para o túmulo. E como já estávamos dispersos em outros trabalhos resolvemos deixar [de lado] a publicação.

5) Não era tão fácil ser jornalista em Maringá na época. Quais eram os maiores problemas enfrentados?

- Na verdade as dificuldades eram superadas pelo sonho. Eu e os companheiros pagávamos pelo sonho. Existiam problemas que a gente enfrentava, como escrever em máquinas de escrever, mandar publicar em São Paulo, que demorava quase dois meses para voltar impressa para Maringá. Esses eram os maiores problemas da revista, porque o resto… a gente era sonhador, não importava o problema, a gente estava realizando um sonho.

6) Como o senhor disse, a revista publicava algo diferente. Conte uma curiosidade da revista.

- Uma das reportagens mais marcantes eu fiz junto com Frank Silva. A gente contou a história das primeiras damas das cidades do interior, entre Londrina e Paranavaí. Em vez de mostrar o prefeito, mostrávamos suas mulheres, que ninguém conhecia. Convencemos os prefeitos a fazer isso, já que eles estavam sempre na mídia. Ficou uma reportagem muito bonita, que mostrava a importância das mulheres dos políticos, que conviviam com a vida agitada dos maridos políticos. Aproveitamos para mostrar a importância da família no trabalho desses prefeitos.

(Matéria extraída do site "Jornal Matéria Prima")

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Varal de Trovas 493

 


Arthur de Azevedo (Ardil)


A Raul Pompéia.


— A que devo o prazer de uma visita a estas horas? perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde havia quinze minutos, a baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e admiravelmente calçado.

Ergueu-se a formosa visitante, e suspirou, aliviada pela presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos consuetudinários, sentaram-se ambas.

— O visconde ainda dorme?

— Ainda, e não acordará tão cedo: são apenas sete horas.

— Posso falar sem receio?

— Estamos completamente sós.

Houve uma pequena pausa.

— Temos então algum mistério? interrogou a dona da casa, consertando as dobras da sua magnífica bata de rendas brancas. Histórias do coração, aposto?

— Do coração? Não sei. Há quem diga que estas coisas nada tem a ver com ele, mas com a cabeça... Em todo caso, fazem padecer.

— A quem o dizes!

— Não durmo há duas noites... há três dias não abro o piano... Amor? - sei lá! Despeito, raiva, talvez...

— Conta-me tudo, disse a viscondessa, enxugando com os lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos da amiga; conta-me tudo. Os meus trinta e nove outonos estão, como sempre, às ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do Bittencourt.

— Fale mais baixo.

— Não tenhas medo.

— Sim, venho ainda uma vez ao encontro dos seus conselhos... Há oito meses a senhora ensinou-me a subjugá-los, a escravizá-lo aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor; hoje, que ele se mostra arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua experiência, a sua calma, o seu bom senso e, sobretudo, a sua amizade, me indicará os meios de reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para mim. A senhora teve quatro amantes...

— Três, interrompeu serenamente a viscondessa; ao quarto não se pode ainda aplicar o pretérito mais que perfeito: está no pleno gozo da sua conquista.

— Pois bem, três, e nenhum deles a desprezou; no momento oportuno a senhora desfez-se habilmente de todos três, sem deixar a nenhum o direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço do visconde: Fui eu que não quis mais...

Houve outra pausa.

— Imagine, prosseguiu a baronesa, imagine que há mês e meio só tenho estado com ele no Lírico, durante os espetáculos. Procura, para cumprimentar-me, justamente as ocasiões que o meu marido está no camarote. Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal; não tive resposta!

— Que horror! murmurou a viscondessa, profundamente impressionada.

— Vamos... diga-me... aconselhe-me! Que devo fazer?... Estou irresoluta... a senhora bem sabe... é o meu primeiro amante...

— Deixa-me pensar, filhinha, deixa-me pensar. Estas coisas não se decidem assim, num abrir e fechar de olhos!

E, depois de refletir alguns segundos, tamborilando com os dedos nos braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a seriedade de um velho advogado, comprometido a defender causa importante.

— Vejamos: o Bittencourt, segundo me consta, contraiu ultimamente uma dívida de gratidão com teu marido...

— Sim, creio que sim... O barão, ao que parece, interveio com muito empenho para que lhe dessem aquele belo emprego...

— Uma verdadeira sinecura.

— Mas... que tem isso?

— Tem tudo, filhinha; a moral fácil desses senhores proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde que devam favores ao marido.

— Quer isso dizer que tais favores são pagos à custa do nosso amor próprio?

— E do nosso próprio amor: o sacrifício é todo nosso! Podem limpar a mão à parede com sua moral!

— Mas, por fim das contas, que devo fazer?

— Guerrear e vencer os escrúpulos tolos do teu amante! Para isso é indispensável que ele te escreva. Verba volant, scripta moment.

— Não sei latim.

— Quero dizer que nenhum homem, por mais inteligente, soube até hoje redigir uma epístola de amor sem se comprometer. Na sua carta o Bittencourt fatalmente renovará promessas, e o seu cavalheirismo — o seu cavalheirismo pelo menos — o obrigará a cumpri-las. E quando o vires de novo rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém esses amantes que fazem pose da sua falsa dignidade.

— Mas por amor de Deus, viscondessa! Não lhe acabo de dizer que as minhas cartas tem ficado sem resposta?

— A que lhes vai escrever agora não ficará sem ela. Tenho um ardil que há tempos empreguei com ótimo resultado. Vem cá, acompanha-me.

A doutora levantou-se e dirigiu-se para um gabinete contíguo. A baronesa acompanhou-a.

— Senta-te, e escreve o te vou ditar.

No dia seguinte o Bittencourt recebia este bilhete:

“Tenho-lhe escrito três cartas, e de nenhuma recebi resposta. Não me queixo, perdoo: o senhor deve andar muito preocupado com o seu novo emprego, e há momentos, parece, em que todo o homem honesto é obrigado a sacrificar os seus afetos aos deveres e às responsabilidades da vida prática. Paciência. Entretanto, como o senhor agora já deve estar mais folgado, tem por fim esta carta pedir-lhe a resposta das outras. — Sua quand même, L.

Post-scriptum — Há aqui no meu bairro grande dificuldade de obter selos do Correio, e, para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los à cidade. Peço-lhe que, com os cinco mil réis que inclusos encontrarás, compre cinquenta selos de tostão, e nos remeta dentro da sua carta quando me responder. — Sua L.”

E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma nota de cinco mil réis!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora da moda. 1901.

Fagundes Varela (Poemas avulsos)

À LUCÍLIA
 
Se eu pudesse ao luar, Lucília bela,
Queimar-te a fronte de insensatos beijos,
Dobrar-te ao colo, minha flor singela,
Ao fogo insano de eternais desejos;

Ai! se eu pudesse de minh’alma aos elos
Prender tu’alma enfebrecida e cálida,
Erguer na vida os festivais castelos
Que tantas noites planejaste, pálida;

Ai! se eu pudesse nos teus olhos turvos
Beber a vida da volúpia ao véu,
Bem como os juncos sobre as ondas curvos
A chuva bebem que derrama o céu,

Talvez que as mágoas que meu peito ralam
Em cinzas frias se perdessem logo,
Como as violas que ao verão trescalam
Somem-se aos raios de celeste fogo!

Oh! vem Lucília! é tão formosa a aurora
Quando uma fada lhe batiza o alvor,
E a madressilva, que ao frescor vapora
Os ares peja de lascivo amor...

Sou moço ainda; de meu seio aos ermos
Posso-te louco arrebatar comigo...
De um mundo novo na solidão sem termos
Deitar-te à sombra de amoroso abrigo!

Tenho um dilúvio de ilusões na fronte,
Um mundo inteiro de esperanças n’alma,
Ergue-te acima de azulado monte,
Terás dos gênios do infinito a palma!...
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TRISTEZA

Eu amo a noite com seu manto escuro
De tristes goivos coroada a fronte
Amo a neblina que pairando ondeia
Sobre o fastígio de elevado monte.
Amo nas plantas, que na tumba crescem,
De errante brisa o funeral cicio:
Porque minh’alma, como a sombra, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio.

Amo a desoras sob um céu de chumbo,
No cemitério de sombria serra,
O fogo-fátuo que a tremer doideja
Das sepulturas na revolta terra.
Amo ao silêncio do ervaçal partido
De ave noturna o funerário pio,
Porque minh’alma, como a noite, é triste,
Porque meu seio é de ilusões vazio.

Amo do templo, nas soberbas naves,
De tristes salmos o troar profundo;
Amo a torrente que na rocha espuma
E vai do abismo repousar no fundo.

Amo a tormenta, o perpassar dos ventos,
A voz da morte no fatal parcel,
Porque minh’alma só traduz tristeza,
Porque meu seio se abreviou de fel.

Amo o corisco que deixando a nuvem
O cedro parte da montanha, erguido,
Amo do sino, que por morto soa,
O triste dobre na amplidão perdido.

Amo na vida de miséria e lodo,
Das desventuras o maldito seio,
Porque minh’alma se manchou de escárnios,
Porque meu seio se cobriu de gelo.

Amo o furor do vendaval que ruge,
Das asas negras sacudindo o estrago;
Amo as metralhas, o bulcão de fumo,
De corvo as tribos em sangrento lago.

Amo do nauta o doloroso grito
Em frágil prancha sobre mar de horrores,
Porque meu seio se tornou de pedra,
Porque minha’alma descorou de dores.

O céu de anil, a viração fagueira,
O lago azul que os passarinhos beijam,
A pobre choça do pastor no vale,
Chorosas flores que ao sertão vicejam,

A paz, o amor, a quietação e o riso
A meus olhares não têm mais encanto,
Porque minh’alma se despiu de crenças,
E do sarcasmo se embuçou no manto.
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O EXILADO

O exilado está só por toda a parte!
Passei tristonho dos salões no meio,
Atravessei as turbulentas praças
Curvado ao peso de uma sina escura;
As turbas contemplaram-me sorrindo,
Mas ninguém divisou a dor sem termos
Que as fibras de meu peito espedaçava.
O exilado está só por toda a parte!

Quando, à tardinha, dos floridos vales
Eu via o fumo se elevar tardio
Por entre o colmo de tranquilo albergue,
Murmurava a chorar: - Feliz aquele
Que à luz amiga do fogão doméstico,
Rodeado dos seus, à noite, senta-se.
O exilado está só por toda a parte!

Onde vão estes flocos de neblina
Que o euro arrasta nas geladas asas?
Onde vão essas tribos forasteiras
Que à tempestade se esquivar procuram?
Ah! que me importa?... também eu doidejo,
E onde irei, Deus o sabe, Deus somente.
O exilado está só por toda a parte!

Desta campina as árvores são belas,
São belas estas flores que se vergam
Das auras estivais ao débil sopro;
Mas nem a sombra que no chão se alonga,
Nem o perfume que o ambiente inunda
São dessa gleba divinal que adoro.
O exilado está só por toda a parte!

Mole e lascivo no tapiz da selva
Serpeia o arroio, e o deslizar queixoso
Peja de amor as solidões dormentes;
Mas nunca o rosto refletiu-me um dia,
Nem foi seu burburinho enlanguescido
Que embalou minha infância a descuidosa.
O exilado está só por toda a parte!

- Por que chorais? me perguntou o mundo;
Contai-nos vossa dor, talvez possamos
Saná-la às gotas de elixir suave;
Mas, quando eu suspendi a lousa escura
Que o túmulo cobria-me da vida,
Riram-se pasmos sem sondar-lhe o fundo.
O exilado está só por toda a parte!
 
Vi o ancião da prole rodeado
Sorrir-se calmo e bendizer a Deus,
Vi junto à porta da nativa choça
As crianças beijarem-se abraçadas;
Mas de filho ou de irmão o santo nome
Ninguém me deu, e eu fui passando triste.
O exilado está só por toda a parte!

Quando verei essas montanhas altas
Que o sol dourava nas manhãs de agosto?
Quando, junto à lareira, as folhas lívidas
Deslembrarei de meu sombrio drama?
Doida esperança! as estações sucedem-se
E sem um gozo vou descendo à campa.
O exilado está só por toda a parte!

Brandas aragens, que roçais fagueiras
Das maravilhas nas cheirosas frontes,
Aves sem pátria, que cortais os ares,
Irmãs na sorte do infeliz romeiro,
Ah! levai um suspiro à pátria amada,
Último alento de cansado peito.
O exilado está só por toda a parte!

Quando nas folhas de lustrosos plátanos
Novos luares descansarem gratos,
Já sobre a estrada de meus pés os traços
O pegureiro não verá, que passa!
Mísero! ao leito de final descanso
Ninguém meu sono velará chorando.
O exilado está só por toda a parte!
 
Fonte:
Fagundes Varela. Vozes da América. Publicado em 1864.

Luís Fernando Veríssimo (Trapezista)

Querida, eu juro que não era eu. Que coisa ridícula! Se você estivesse aqui — Alô? Alô? — olha, se você estivesse aqui ia ver a minha cara, inocente como o Diabo. O quê? Mas como, ironia? "Como o Diabo" é força de expressão, que diabo. Você acha que eu ia brincar numa hora desta? Alô! Eu juro, pelo que há de mais sagrado, pelo túmulo de minha mãe, pela nossa conta no banco, pela cabeça dos nossos filhos que não era eu naquela foto de carnaval no Cascalho que saiu na Folha da Manhã. O quê? Alô! Alô! Como é que eu sei qual é a foto? Mas você não acaba de dizer... Ah, você não chegou a dizer... ah, você não chegou a dizer qual era o jornal. Bom, bem. Você não vai acreditar mas acontece que eu também vi a foto. Não desliga! Eu também vi a foto e tive a mesma reação. Que sujeito parecido comigo, pensei. Podia ser gêmeo. Agora, querida, nunca, em nenhum momento, está ouvindo? Em nenhum momento me passou pela cabeça a idéia de que você fosse pensar — querida, eu estou até começando a achar graça — que você fosse pensar que aquele era eu. Por amor de Deus. Pra começo de conversa você pode me imaginar de pareô vermelho e colar havaiano, pulando no Cascalho com uma bandida em cada braço? Não, faça-me o favor. E a cara das bandidas! Francamente, já que você não confia na minha fidelidade, que confiasse no meu bom gosto, poxa! O quê? Querida, eu não disse "pareô vermelho". Tenho a mais absoluta, a mais tranquila, a mais inabalável certeza que eu disse apenas "pareô". Como é que eu podia saber que era vermelho se a fotografia não era em cores, certo? Alô? Alô? Não desliga! Não... Olha, se você desligar está tudo acabado. Tudo acabado. Você não precisa nem voltar da praia. Fica aí com as crianças e funda uma colônia de pescadores. Não, estou falando sério.

Perdi a paciência. Afinal, se você não confia em mim não adianta nada a gente continuar. Um casamento deve se... se... como é mesmo a palavra?... se alicerçar na confiança mútua. O casamento é como um número de trapézio, um precisa confiar no outro até de olhos fechados. É isso mesmo. E sabe de outra coisa? Eu não precisava ficar na cidade durante o carnaval. Foi tudo mentira. Eu não tinha trabalho acumulado no escritório coisíssima nenhuma. Eu fiquei sabe para quê? Para testar você. Ficar na cidade foi como dar um salto mortal, sem rede, só para saber se você me pegaria no ar. Um teste do nosso amor. E você falhou. Você me decepcionou. Não vou nem gritar por socorro. Não, não me interrompa.

Desculpas não adiantam mais. O próximo som que você ouvir será do meu corpo se estatelando, com o baque surdo da desilusão, no duro chão da realidade. Alô? Eu disse que o próximo som... que... O quê? Você não estava ouvindo nada? Qual foi a última coisa que você ouviu, coração?

Pois sim, eu não falei — tenho certeza absoluta que não falei — em "pareô vermelho". Sei lá que cor era o pareô daquele cretino na foto. Você precisa acreditar em mim, querida. O casamento é como um número de...

Sim. Não. Claro. Como? Não. Certo. Quando você voltar pode perguntar para o... Você quer que eu jure? De novo? Pois eu juro. Passei sábado, domingo, segunda e terça no escritório. Não vi carnaval nem pela janela. Só vim em casa tomar um banho e comer um sanduíche e vou logo voltar para lá. Como? Você telefonou para o escritório. Meu bem, é claro que a telefonista não estava trabalhando, não é, bem. Ha, ha, você é demais. Olha, querida? Alô? Sábado eu estou aí. Beijo nas crianças. Socorro. Eu disse, um beijo.

Fonte:
Luís Fernando Veríssimo. As mentiras que os homens contam. 
Publicado em 2000.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Adega de Versos 12: Olivaldo Júnior

 

Sammis Reachers (Andrezinho e o batismo de fogo)


Nota do blog:

Sammis Reachers, que adotou o pseudônimo de Ron Letta neste livro, conta sobre histórias divertidas da vida dos Rodoviários, profissão que o autor exerceu em Niterói. Veja mais sobre Sammis após a história.

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André foi por muitos anos cobrador na Ingá, linha 21 (Fonseca x Centro). Trabalhou com o velho Godá, de saudosa memória, Godá que por si só daria um livro como este, de tão grande trapalhão que era. Mas nosso herói de hoje é o André.

Com o passar dos anos e o acúmulo de filhos, o pequeno André passou a considerar que o salário de cobrador estava pequeno para alimentar a tropa. Resolveu então seguir o único caminho que lhe parecia viável: partir para a manobra (escolinha) no objetivo de tornar-se um motorista.

Meses se passaram, e André lá, esforçando-se ao máximo. Por fim, chegou o grande dia de André ter sua "estreia" como motorista. Seria no sereno (horário da madrugada), e sem cobrador: naquela época a empresa havia adquirido os primeiros micro-ônibus. André, como seria natural, estava bastante nervoso. Tudo era motivo de preocupação: o primeiro dia ao volante, o fato de estar sozinho, sem a ajuda de um cobrador, e ainda por cima o horário, em que ele nunca trabalhara: a madrugada. Mas não tinha jeito; eram muitas bocas pra alimentar e todos contavam com ele. E lá foi André pro seu batismo.

Mas todos que já foram ou são rodoviários sabem de uma coisa, que aprenderam provavelmente bem rápido: a rua é o lugar da incerteza. Tudo é possível, e o rodoviário logo aprende que "se está na chuva, é pra se molhar".

Logo em sua segunda viagem, linha 23 (Teixeira de Freitas x Terminal), sai André do terminal rodoviário João Goulart, com o ônibus cheio, em lotação de bancos. Chegando defronte à rodoviária de Niterói, algumas centenas de metros após o terminal, o escaldado André nota uma estranha movimentação próxima ao ponto da rodoviária e a entrada da rua Barão de Amazonas, que fica ao lado da mesma. Para quem não conhece Niterói, fique sabendo: aquela região por trás da rodoviária e ruas adjacentes torna-se, durante a madrugada, uma imensa zona de baixo meretrício, de prostituição.

Ao aproximar-se mais daquele imenso furdunço, André não percebeu que o sinal fechara-se, entretido que estava observando o que ele entendeu serem as "primas". Por sinal, eram muitas delas. André freou em cima da faixa, de forma um pouco brusca. Imediatamente, as meninas (e "meninos" também, pois havia travestis naquela manada) avançaram sobre o veículo.

- Abre aí, seu motorista, me dá uma carona aí!

- Ei gostoso, olha pra mim - disse outra, levantando o curto vestido e mostrando suas "partes".

Ao mesmo tempo, outras foram para a frente do ônibus e começaram a dançar e rebolar. André já estava tenso, e tudo piorou quando alguns dos passageiros, nervosos com aquela bagunça na rua, passaram a incitá-lo:

- Como é que é, seu motorista! Eu tô com minha família aqui!

E um outro berrou:

- Avança o sinal, amigo, vamos sair daqui, olha essa bagunça aí!

O falatório era geral e nada do sinal abrir. Do lado de fora, as primas e travecos só faltavam voar de tão fogosas, rebolando e mostrando suas partes, cismadas com a cara do sofrido André. E nosso herói, encurralado entre a zona de fora e a gritaria de dentro, não sabia o que fazer. Não podia avançar o sinal, não no seu primeiro dia ao volante. Se causasse um acidente, por menor que fosse, estaria na rua.

Aquele breve minuto em que o sinal demorou para reabrir foi o minuto mais longo da vida do pequeno André, que suava frio...

Quando finalmente o sinal abriu, foi com imenso alívio que André conseguiu mover o veículo dali. Respirando fundo, acreditou que o pesadelo ficara somente naquilo, mas estava enganado: Um  dos passageiros ainda teve o desfrute de ligar para a garagem e falar que o bom André "estava dando carona para piranhas e zoando com elas num ônibus cheio de famílias".

No dia seguinte André estava "pegado" (suspenso do trabalho), LOGO EM SEU PRIMEIRO DIA DE MOTORISTA, e teve que ir na garagem da empresa prestar esclarecimentos.

É o que chamamos de batismo de fogo!!!
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SOBRE O AUTOR
Sammis Reachers nasceu em 1978, em Niterói, mas desde sempre morador de São Gonçalo, ambos municípios fluminenses. É poeta, escritor e editor. Autor de nove livros de poesia e três de contos/crônicas, organizador de mais de quarenta antologias e professor de Geografia no tempo que lhe resta - ou vice-versa.

Como autor, publicou:
POESIA
Uma Abertura na Noite (2006).
A Blindagem Azul (2007).
CONTÉM: ARMAS PESADAS (2012).
Poemas da Guerra de Inverno (2012, 2021).
Deus Amanhecer (2013).
PULSÁTIL - Poemas canhestros & prosas ambidestras (2014).
GRÃNADAS (2015).
Poemas de Amor em Trânsito (2018).
Cartas & Retornos (2021).
 
CONTOS/CRÔNICAS
O Pequeno Livro dos Mortos (Letras e Versos, 2015).
RODORISOS - Histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários (2017, 2021).
Renato Cascão e Samy Maluco - Uma dupla do balacobaco (2021).

Leia mais textos do autor (e baixe alguns e-books gratuitos) em:
O Poema Sem Fim - www.opoemasemfim.blogspot.com
Azul Caudal - www.azulcaudal.blogspot.com
Jornal Dafa'- www.jornaldaki.com.br/blog/categorÍes/sammis-reachers
Recanto das Letras: www.recantodasletras.com.br/autores/reachers
Diversas,    das    antologias    gratuitas    que    organizou:
www.linktr.ee/sammisreachers


Fonte:
Ron Letta. Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. 
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) V, pantuns

ECLOSÃO DO AMOR


Trova-tema:

Eu vi o amor eclodindo
Na mensagem de um chamado:
o mar, despido, sorrindo...
O Sol se pondo, apressado.
(Mara Melinni)


Na mensagem de um chamado,
vinha um toque de magia:
O Sol se pondo, apressado,
visto que a noite caía.

Vinha um toque de magia
naquele doce arrebol,
visto que a noite caía,
logo após o adeus do Sol.

Naquele doce arrebol,
quase fiquei de alma nua,
logo após o adeus do Sol,
ao primeiro olhar da Lua.

Quase fiquei de alma nua,
e, num êxtase tão lindo,
ao primeiro olhar da Lua,
eu vi o amor eclodindo.
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ESPERANÇA DISFARÇADA

Trova-tema:

– De ilusões eu fui vivendo...
E a esperança, disfarçada,
viu os meus sonhos morrendo,
mas nunca me disse nada.
(Maria Lúcia Daloce)


E a esperança, disfarçada,
viu que meu mundo caía,
mas nunca me disse nada.
Desprezou-me à revelia.

Viu que meu mundo caía,
não deu nenhuma atenção;
desprezou-me à revelia
(Pobre do meu coração!).

Não deu nenhuma atenção,
e eu, sem perder a esperança,
(Pobre do meu coração!)
como faz toda criança.

E eu, sem perder a esperança,
outros sonhos fui tecendo...
Como faz toda criança,
de ilusões eu fui vivendo.

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MULHER FORMOSA

Trova-tema:

Mulher, joia primorosa,
sinal de vida e de amor,
tens o perfume da rosa
e a formosura da flor.
(Djalma Mota)


Sinal de vida e de amor,
tens no ventre feminino,
e a formosura da flor
marca-te o rosto divino.

Tens no ventre feminino
o dom da humana esperança;
Marca-te o rosto divino
um sorriso de criança.

O dom da humana esperança,
em ti, é santo reflexo:
Um sorriso de criança.
És, de fato, o belo sexo.

Em ti, é santo reflexo
essa fragrância de rosa.
És, de fato, o belo sexo,
mulher, joia primorosa!

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PERSISTÊNCIA NO AMOR

Trova-tema:

Não desista sem tentar,
mesmo se você sofrer;
Liberte a alma pra amar,
não deixe esse amor morrer!
(Eva Yanni)


Mesmo se você sofrer,
na estrada longa e dorida,
não deixe esse amor morrer!
Ele faz parte da vida.

Na longa estrada dorida,
só o amor é essencial.
Ele faz parte da vida;
É a luz do bem contra o mal.

Só o amor é essencial
entre os dons que a gente almeja,
é a luz do bem contra o mal,
por mais difícil que seja.

Entre os dons que a gente almeja
ele é, de fato, sem par...
Por mais difícil que seja,
não desista sem tentar!

= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = c

VONTADE DE AMAR

Trova-tema:

Gotas de orvalho na mata,
um cheiro de terra no ar,
o branco véu da cascata,
me dá vontade de amar.
(Carmen Pio)


Um cheiro de terra no ar,
depois de uma noite linda,
me dá vontade de amar
como ninguém viu ainda.

Depois de uma noite linda,
a natureza desperta
como ninguém viu ainda...
Nasce o amor na fonte aberta.

A natureza desperta
sob um sol que Deus conduz;
Nasce o amor na fonte aberta,
surge um bordado de luz.

Sob um sol que Deus conduz,
a flor do sonho desata;
Surge um bordado de luz:
Gotas de orvalho na mata.


Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. 
Natal/RN: CJA Ed., 2014

Contos e Lendas do Mundo (A Quiromante e a Centopeia)

Um dia a centopeia foi consultar uma quiromante. A centopeia queria saber se o seu namorado gostava dela. Na verdade, ela queria saber se o namorado casaria com ela, mas achava que se ele gostasse dela, já era meio caminho andado para o casório.

Daí então a centopeia deu um susto na quiromante, porque a quiromante já tinha lido o futuro em muitas mãos, Já havia visto as linhas do coração, da cabeça e da vida, em centenas de palmas. Mas nunca tinha topado antes com tantas mãos para ler de uma só vez. E muito menos tantas mãos em um só ser.

A quiromante arregaçou as mangas e enfrentou o maior desafio de sua carreira de profissional leitora das linhas das mãos, onde está escrito a verdade.

E leu a primeira mão da centopeia. E viu que o namorado dela casaria com ela sim.

E leu a segunda mão da centopeia. E viu que o namorado da centopeia não casaria com ela.

Acontece que a centopeia chega a ter 170 mãos.

E deu empate. 85 mãos diziam que sim, 85 mãos diziam que não.

Mas a centopeia saiu contente. Preferia acreditar que a metade dos sins era mais forte que a metade dos nãos.

E a quiromante também ficou feliz. Tinha acertado na leitura de todas as mãos da centopeia.

Afinal o futuro é isso mesmo: Metade certezas, metade dúvidas.

Moral da Estória:

Você é quem deve decidir em que acreditar. Por isso acredite sempre mais que vai dar certo.

Academia Formiguense de Letras (Inscrição para novas cadeiras)

EDITAL DE SELEÇÃO PARA COMPOSIÇÃO DE CADEIRAS DA ACADEMIA FORMIGUENSE DE LETRAS (AFL)

Pelo presente Edital de Seleção, a Academia Formiguense de Letras (AFL), em consonância com seu Estatuto Social, torna público e convida todos(as) os(as) interessados(as) em candidatar-se a ocupar uma das suas Cadeiras, nos seguintes termos e condições básicas:

A) 05 Vagas para Acadêmico(a) Efetivo(a)
Requisito: ser residente a no mínimo 5 anos na cidade de Formiga/MG;

B) 03 Vagas para Acadêmico(a) Formiguense Ausente
Requisitos: ser formiguense nato e residir fora de Formiga/MG;

C) 03 Vagas para Acadêmico[a) Correspondente Nacional
Requisitos: ser brasileiro nato ou residente a no mínimo 5 anos no Brasil;

D) 02 Vagas para Acadêmico(a) Correspondente Internacional  Requisitos: Ser estrangeiro nato e residir fora do Brasil;

E) A todos é imprescindível, enviar pelos Correios entre 20/03/2021 e 20/05/2021, conforme abaixo (A/C de Dr. Wilson Figueira, Rua Eni Antonia Ferreira, n. 11, bairro Areias Brancas, CEP: 35570-000, Formiga/MG, Brasil), registrado e/ou via sedex:

1 - Currículo completo, contendo dados, RG, CPF, passaporte [se houver], comprovante de endereço atualizado, profissão, e portfólio com certificados, documentos, foto 3x4, foto de meio corpo, livros publicados, cópias de publicações em mídias, etc,;

2 - Carta de apresentação assinada por no mínimo dois Acadêmicos efetivos da AFL (modelo a ser solicitado por email: pajo121@yahoo.com.br ou afl.presidência@yahoo.com);

3 - Aos agraciados com a aprovação, registramos que os mesmos serão convidados e enviarem um texto de sua autoria para compor a nova Antologia da AFL.

IMPORTANTE: A AFL salienta que aos interessados em ocupar as Cadeiras, há uma joia de posse e mensalidades posteriores, conforme o estatuto.

Observação: A Solenidade de Posse dos selecionados será agendada assim que a situação da Pandemia da C0VID19 assim permitir, ou de forma virtual se necessário.

Formiga/MG, 18 de março de 2021
Paulo José de Oliveira - Diretor Presidente

Maiores informações: Cel/zap: 055 XX (37) 99923.3122 - pajo121@yahho.com.br ou afl.presidência@yahoo.com

Conheça os membros e trabalhos na página do Facebook: https://www.facebook.com/academiaformiguensedeletras/

sábado, 10 de abril de 2021

Adega de Versos 11: Geraldo Amâncio

 

Paulo Mendes Campos (Metido em apuros)

O despertar da montanha

Assim como há quem sofra de insônia, sofro eu de despertar. Meu sono é tão nebuloso, tão viscoso, tão atravessado de assombrações e armadilhas, que me custa o indizível ter de me arrastar desse brejo ancestral para as obrigações do mundo urbano. Existe um poema de Henri Michaux que conta o angustioso renascimento do planeta gasoso em que certas pessoas se transformam depois da viagem noturna.

Enquanto pude, filho ou chefe de família, proibi que me fosse feita qualquer pergunta durante a minha primeira hora de vida cada manhã. Você hoje vai cedo para a cidade? Uma questão à toa como essa, em vez de me puxar para a frente, me empurra de novo para trás, para o pântano primevo, onde se conhece apenas o desconhecimento.

Quer um ovo quente? E eis-me outra vez cadáver que não morreu de todo, um morto ainda emaranhado no pesadelo de ter vivido.

Quando os pequenos foram crescendo (são dois, como no Plebiscito, um menino e uma menina), minha interdição começou a ser desmoralizada. Abro os olhos omissos e, como um cão que estranha o dono, tenho vontade de latir para o mundo. Venho de charnecas nevoentas, venho de desencontros e nada quero. Sou só um pedaço de homem, sem forças para galgar os degraus do dia que se oferece. Já inclinado a regressar para sempre ao meu povoado de fantasmas, de horrores e êxtases, ouço uma voz a pronunciar palavras incompreensíveis. Faço um esforço sem direção. Uma faísca sonora articulou a palavra papai, estilhaçando a treva que vedava a face do abismo. Papai era eu. Abro os olhos e vejo uma carinha que não me é de todo estranha.

Depois de sofrida reflexão, admito que pode ser minha filha. Mas terei uma filha? Desisto de saber. Fujo por um túnel, ando, ando, e reapareço do outro lado, onde a mesma carinha me espera com a sua condenação. Papai. Papai sou eu mesmo, digo para tranquilizar-me. Removo destroços, procuro espancar pelo menos o grosso do nevoeiro, agarro-me ao abajur, ao armário, à persiana, e o homem da caverna consegue emitir uma palavra: Hã! A menina, esperançada, repete a sentença ininteligível:

- Como é que eu distribuo 2 400 litros d'água por três reservatórios, de modo que o primeiro tenha 54 litros mais que o segundo, e este 63 litros mais que o terceiro?

Diante desse enigma é melhor voltar à condição de ameba, mas já é tarde: estou grudado a uma zona intermediária, numa terra de ninguém, entre dois mundos absurdos.

Abre-se um pouco mais a réstia do entendimento, mas o impasse continua. Com ressentido orgulho, confesso: Não sei. A carinha não se afasta e compõe outro enigma, como se fosse possível a gente ignorar uma coisa e saber outra, como se os enigmas todos não constituíssem um único e esmagador enigma:

- Uma livraria manda pagar a uma casa editora de Paris uma fatura de 1 500 francos por intermédio do Banco de Londres.

Suspiro de desespero. A esfinge continua:

- Eu quero saber qual a quantia necessária, em moeda brasileira, se 30 francos valem uma libra, e esta, 48 cruzeiros.

Aquela libra a 48 cruzeiros me tonteia:

- Não sei; pergunte à sua mãe que é inglesa.

Fecho os olhos. (Puxa, papai!) Abro os olhos. Reconheço com uma alegria de bicho inferior que a menina impertinente sumiu. Posso regressar aos meus pampas impalpáveis, às minhas campinas eternas. Mas uma pata de urso me agarra pelos cabelos. Papai. Abro os olhos com relutância e vejo uma cara redonda e resolvida de menino.

- Pai, os músculos formam o que chamamos de carne?

- É claro - respondo sem convicção, só para ficar livre daquela cara de maçã.

- Quais são os símbolos da Pátria?

- Que Pátria?

- Da nossa Pátria, ora bolas!

- Não me lembro de todos.

- Como eram constituídas as bandeiras?

- Mesma coisa de sempre: um pedaço de pano e um pedaço de pau.

- Deixa de ser burro, pai; essa até eu sei: as bandeiras eram constituídas de homens, mulheres, moços, velhos, índios amansados, padres, animais domésticos e bestas de carga.

- Se você sabe, por que está perguntando?

- Queria ver se você é mesmo ignorante.

- Vê se não chateia, Daniel.

Recebo uma patada no ombro e reconheço que perdi o combate: vou nascer de novo. A luz me machuca. Usando todos os meus pseudópodos, rastejo até o chuveiro. A água  faz bem aos animais.

Do outro lado da porta as perguntas também chovem:

- Qual é o antônimo de fervor?

- O barulho do chuveiro não me deixa ouvir.

- Que consequências trágicas sofreu o Brasil na Segunda Grande Guerra Mundial por não possuir estradas?

- Hein? Depois eu conto.

- Movimento de translação é assim ou assim?

- Não posso ver pela porta, não é, Gabriela?

- Como Pedro Álvares Cabral podia saber que tinha chegado na baía Cabrália?

- Engraçadinho!...

- Como era mesmo o nome direito do Caramuru?

- João Ramalho, menina.

- Que João Ramalho, pai!

- Uai, não é não?

- João Ramalho é aquele que ajudou Martim Afonso de Sousa na capitania de São Vicente.

- Ah, isso mesmo: o bacharel de Cananéia.

- Mas eu quero saber é o Caramuru.

- O do Caramuru eu não sei não.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Balé do pato e outras crônicas.

Mario Quintana em Prosa e Verso – 16 –

 
OBSESSÃO DO MAR OCEANO

Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças nas janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso,
Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios da beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais Nome
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

AO LONGO DAS JANELAS MORTAS

Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!...Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrível!
Vou apitar chamando os guardas, os anjos.
Nosso Senhor, as prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação,
A minha sede insaciável de não sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai. Cobri com a santa
inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de sonho…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NO SILÊNCIO TERRÍVEL

No silêncio terrível do Cosmos
Há de ficar uma última lâmpada acesa.
Mas tão baça
Tão pobre
Que eu procurarei, às cegas, por entre
os papéis revoltos,
Pelo fundo dos armários,
Pelo assoalho, onde estarão fugindo
imundas ratazanas,
O pequeno crucifixo de prata
O pequenino, o milagroso crucifixo
de prata que tu me deste um dia
Preso a uma fita preta.
E por ele os meus lábios convulsos chorarão
Viciosos do divino contato da prata fria...
Da prata clara, silenciosa,
divinamente fria - morta!
E então a derradeira luz se apagará de
Todo…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

ELEGIA
 
Há coisas que a gente não sabe nunca
o que fazer com elas...
Uma velhinha sozinha numa gare.
Um sapato preto perdido do seu par:
símbolo
Da mais absoluta viuvez.
As recordações das solteironas.
Essas gravatas
De um mau gosto tocante
Que nos dão as velhas tias,
As velhas tias.
Um novo parente que se descobre.
A palavra "quincúncio".
Esses pensamentos que nos chegam
de súbito
nas ocasiões mais impróprias.
Um cachorro anônimo que resolve ir
seguindo a gente pela madrugada na
cidade deserta.
Este poema, este pobre poema
Sem fim…

Fontes:
O aprendiz de feiticeiro. 1950.
Apontamentos de história sobrenatural. 1976.

XLIV Concurso Literário Felippe D'Oliveira Conto, Crônica e Poesia (Prazo: 30 de abril)


 INSCRIÇÃO


A edição de 2021 tem uma novidade: as inscrições são online. Para se inscrever, após ler atentamente o regulamento (disponível abaixo), siga os seguintes passos:

1) No site da Prefeitura de Santa Maria acesse Área do Usuário. Se você já tem usuário, preencha o login e a senha. Caso não tenha, crie em "criar um cadastro novo";

2) Ao clicar em "serviços", caso você seja um novo usuário, precisará preencher um formulário completo com dados como nome, RG, CPF, endereço e telefone. Após completar este cadastro, clique em "enviar". Após, retorne à página inicial;

3)  Clique novamente em "Serviços". Aparecerá uma tela com os Serviços ao Cidadão. Procure "Secretaria de Cultura" e clique no botão "Inscrição Concurso Felippe D'Oliveira";

4) Preencha a ficha de inscrição e anexe o seu texto no arquivo. O comprovante de residência apenas é necessário para inscrições que concorrem na categoria local.

 REGULAMENTO

A Prefeitura Municipal de Santa Maria, através da Secretaria de Município da Cultura (SMC) promove Concurso Literário Felippe D’Oliveira criado pela Lei Municipal nº1916/77, que visa homenagear a memória do poeta santa-mariense que lhe empresta o nome, bem como estimular produções literárias nas categorias: conto, crônica e poesia com objetivo de revelar novos talentos das letras nacionais.

1 - Participação:

1.1 - Poderão participar do Concurso Literário candidatos de nacionalidade, brasileira residentes no país ou no exterior.

1.2 - Cada participante poderá inscrever-se exclusivamente em uma das categorias: conto, crônica e poesia com um único texto.

1.2.1 - O participante deverá ter um número de conta bancária para possível depósito de premiação.

1.2..2 - Os textos inscritos deverão ser rigorosamente INÉDITOS.

1.2.3 - Os textos deverão ser enviados online através do site da Prefeitura Municipal de Santa Maria na área do usuário link: http://www.santamaria.rs.gov.br/secao/usuario se não for usuário do site deverá efetuar o cadastro e a seguir acessar o menu Serviços - Inscrição Concurso Literário Felippe D Oliveira em um arquivo com a ficha de inscrição preenchida.

1.2.4 - Os participantes classificados em primeiro lugar de cada categoria ficarão impedidos de concorrer nessa mesma categoria pelo período de um (1) ano, a contar da data de premiação.

2 - Inscrição:

2.1 - As inscrições deverão ser realizadas online através do site da Prefeitura Municipal de Santa Maria na área do usuário link: http://www.santamaria.rs.gov.br/secao/usuario se não for usuário do site deverá efetuar o cadastro e a seguir acessar o menu Serviços - Inscrição Concurso Literário Felippe D'Oliveira com o preenchimento do formulário e anexar junto a esta o texto com o título e pseudônimo. Informações pelo e-mail: concursofelippedoliveira.sm@gmail.com

2.2 - O preenchimento da ficha de inscrição deve ser completo e o tema dos textos é de livre escolha do autor.

2.3 - No caso da categoria Poesia o texto não possui delimitação de páginas ou caracteres.

2.4- No caso da categoria Crônica, o texto deverá obedecer a extensão máxima de 5.000 caracteres com espaço.

2.5- Na categoria Conto, o texto deverá obedecer a uma extensão máxima de 12.000 caracteres com espaço.

2.6 - Nesses documentos (TEXTOS) NÃO deverá constar o nome do autor. O pseudônimo é obrigatório e deverá ser colocados logo abaixo do título do texto e alinhado à direita.

2.7- Assim que recebido o mail, a comissão organizadora sinalizará o recebimento com uma mensagem automática.

3 - Seleção:

3.1 - A seleção e premiação dos textos será realizada por uma Comissão Julgadora composta de três (3) membros para cada modalidade, residentes ou não em Santa Maria. A Secretaria de Município da Cultura Esporte e Lazer, solicita a indicação de nomes às instituições e entidades ligadas à área de Letras para compor a comissão Julgadora do Concurso a cada edição.

3.2- A identificação dos concorrentes será feita após a decisão da Comissão Julgadora, quando serão conferidos o título e pseudônimo do texto premiado com os dados da ficha de inscrição que acompanha os textos e os premiados serão informados através de seus emails .

3.3 - O não cumprimento, ou violação de qualquer uma das regras deste regulamento resultarão na desclassificação do participante.

Parágrafo Único - Os textos selecionados deverão ser encaminhados para a Comissão Organizadora do Concurso, via email - concursofelippedoliveira.sm@gmail.com após a publicação do resultado final em documento no formato “.doc”, ou compatível com MS Word, em tamanho 12, na fonte Times New Roman, espaço 1,5 (devendo constar: categoria (conto, crônica ou poesia) - título - nome completo do autor - cidade procedente e o texto)

Obs: Os textos selecionados, nesta versão pós divulgação dos resultados, deverão vir corrigidos de acordo com as novas regras ortográfica da Língua Portuguesa. Sendo assim, a correção do texto, para edição do livro, fica sob a responsabilidade do autor. O livro dos premiados será publicado em forma de e-book.

4 - Premiação:

4.1 - O Primeiro colocado em cada categoria receberá um prêmio no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) e certificado.

4.2 - Aos candidatos que obtiverem 2º e 3º lugares em cada categoria serão conferidos certificados.

4.3 - Será concedido um Prêmio Cidade de Santa Maria em cada categoria, dirigido exclusivamente a candidatos naturais de Santa Maria ou residentes na cidade há mais de dois (02) anos. Essa premiação somente se dará mediante a apresentação de comprovante de residência ou documentação afim, enviada junto ao e-mail de inscrição.

4.4 - O valor do Prêmio de Incentivo Local será de R$ 2.000,00 (dois mil reais) em cada categoria.

4.5 - A critério da Comissão Julgadora, poderão ser atribuídas ATÉ três (3) Menções Honrosas em cada categoria.

5 - Publicação:

5.1- Os três (3) primeiros textos classificados em cada categoria serão publicados, em forma e data a serem posteriormente anunciadas.

5.2 - Os textos distinguidos com Menção Honrosa poderão também ser publicados.

5.3 - Por ocasião das publicações, os selecionados precisarão assinar documento de cedência de direitos autorais.

5.4 - A entrega dos prêmios será feita em agosto, no Mês da Cultura de Santa Maria e durante a semana do aniversário do poeta Felippe D'Oliveira.

6 - Disposições Gerais:

6.1 - No ato das inscrições, o participante aceitará, implicitamente, todas as disposições deste regulamento.

6.2 - As decisões de seleção e premiação das comissões de cada categoria terão caráter irrecorrível.

7 - Cronograma:

7.1 - Inscrições e Envio dos textos: 5 a 30 de abril de 2021

7.2 - Seleção e classificação: 16 a 30 de maio de 2021

7.3 - Análise dos jurados : 1º de junho a 30 julho de 2021

7.3 - Divulgação do resultado: 3 de agosto de 2021

7.4 - Premiação: 26 de agosto de 2021

Carla Rejane Silva (Ela só queria ser feliz, nada mais...)

Ela queria ser feliz. De qualquer maneira. Feliz! Não sabia como, nem quando, qual dia e qual hora. Ficava então, amuada, aperreada, chateada, sem chão, sem cabeça... As coisas boas não sorriam para seu lado, não ligavam para seu rosto carrancudo, tampouco para o seu eterno ar de preocupação.

Ela queria ser feliz, custasse o que custasse, não importava. Queria, apenas ser feliz. Sair fora de seu “apê”, sentar no banco de pedra em frente à portaria do seu prédio e espiar... Espiar longamente para todos os lados, e depois, para o infinito.

O céu haveria de lhe dar um sinal, um toque, dizer alguma coisa em seu ouvido que lhe fizesse ser feliz. Entretanto, entrava dia, saia noite, entrava noite, saia dia e nada. Absolutamente coisa alguma acontecia. Teria esta ausência de coisas novas a  ver com a pandemia? Qual o quê!

A pandemia não estava nem aí para ela. Ela se cuidava. Usava máscaras, passava álcool em gel. Trocava toda hora de roupas, tomava de quatro a cinco banhos por dia. Nessas lavagens todas, asseava a alma, esfregava as manchas do coração, ensaboava as tristezas  e deixava que tudo o que fosse de ruim e danoso se perdesse pelo ralo as suas infelicidades e ‘desalegrias’.  

Então, aconteceu! A Felicidade chegou. Sorrateira, alegre, e febril, ela chegou.  Sem dizer nada. Simplesmente chegou. Bateu na porta. Uma, duas, vezes. Ela abriu. E quando a porta se escancarou, seu pequeno espaço vazio se fez de um encantamento inebriante.

Seu sorriso voltou, seus olhos se contaminaram com um sorriso  perfeito que invadiu toda a sua alma entristecida. Ela, até então, solitária, dentro da sua solidão oca e vazia, se transmudou.

Tudo ao seu entorno se fez de uma paz acolhedora, bonita, cativa... Envolvente...  E ela, ela se abriu inteira, em festa. E a festa foi tão perfeita, tão fenomenal, que seu coração dançou a noite inteira embalada por uma música que vinha diretamente dos olhos maviosos de Deus.    

Fonte:
Texto enviado por Aparecido R. De Souza

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Moacyr Scliar (Uma casa)

Um homem estava chegando ao fim de sua vida sem ter comprado uma casa. Na segunda-feira tivera um ataque de angina; perguntou ao médico se era grave e quanto tempo lhe restava de vida.

— Quem sabe? — disse o doutor secamente. — Talvez uma hora, talvez dez anos.

O homem se impressionou e pôs-se a pensar, o que não fazia há longo tempo. Porque estava aposentado. Levantava-se, lia o matutino, à tarde, o vespertino, e à noite olhava televisão, coisas que embalavam suavemente seu espírito, sem mobilizá-lo em excesso. Órfão e solteiro, não tinha maiores emoções, nem cuidados. Vivia num quarto, de pensão, e a senhoria — boa mulher — velava por tudo.

Mas então, vê o homem sua vida extinguir-se. Lavando-se, ele observa a água escoar pelo ralo e pensava:

“É assim.” Enxuga o rosto, penteia-se com cuidado. “Ao menos uma casa.” Qualquer coisa: um chalé, um apartamento minúsculo, um porão que seja. Mas morrer em casa. No seu lar.

O corretor imobiliário mostra-lhe plantas e fotografias.

O homem olha, impaciente. Não sabe escolher. Ignora se precisa de dois quartos ou de três. Uma tem até ar-condicionado, porém ele não está seguro de viver até o verão.

De repente, encontra: “Esta aqui. Fico com ela.” É um velho bangalô de madeira; um fóssil, com suas beiradas coloniais e a pintura desbotada.

“É longe...” — pondera o corretor. Longe!.. O homem sorri. Assina o cheque, pega as chaves, toma nota do endereço e sai.

A tarde vem caindo e o homem move-se entre pessoas. Caminha ligeiro e contente: vai mudar-se para a sua casa. Na praça estão os carroceiros. Conversa com um deles em voz baixa, acerta a hora e a paga.

O carroceiro ajuda-o a transportar malas e quadros. E já é noite fechada quando eles se põem a caminho. O homem está silencioso; nem sequer se despediu da dona da pensão. Limitou-se a dar o endereço ao carroceiro e não proferiu mais palavra.

A carroça avança rangendo pelas ruas desertas. Embalado pelo movimento, o homem cochila, e tem sonhos, visões ou lembranças. Canções da infância ecoam longínquas, ele ouve a mãe chamá-lo para o café. As estrelas cintilam na quieta noite de inverno.

— É aqui — resmunga o carroceiro. O homem olha: é a mesma casa que viu na fotografia. Levam as coisas para dentro. Num impulso, o homem agarra a mão do carroceiro, deseja-lhe felicidades. Tem vontade de convidá-lo para entrar, para que tomem juntos o chá; em casa.

Mas não há chá; nem luz. O carroceiro recebe o pagamento e parte, tossindo.

O homem fecha a porta e dá duas voltas à chave. Acende uma vela, estende o colchão no assoalho empoeirado e deita, cobrindo-se com o sobretudo.

As tábuas estalam, ele ouve sussurros. Estão todos aqui, pai, mãe, tia Júlia e até o avô, com seu risinho irônico.

O homem não tem medo; seu coração é um pedaço de couro seco, onde o sangue já não penetra. Bate automático no ritmo de sempre. E então a vela se apaga, ele dorme e já é manhã.

É manhã; mas o sol não surgiu. Ele abre a janela; uma luz fria e cinzenta infiltra-se na sala. Nem é luz de sol, nem é luz de lua. Mas clareia e ele pode ver.

Uma rua passa diante da casa. Um pedaço de rua, que surge do nevoeiro e termina nele. Não há casas; pelo menos, ele não consegue vê-las. Diante do bangalô há um terreno baldio, onde descansa, meio coberto pela vegetação, o esqueleto enferrujado de um velho Ford.

De repente, um animal pula do terreno baldio para a estrada. É um bicho estranho: parece um rato, mas tem quase o tamanho de um cavalo. “Que bicho será?” — pergunta-se o homem, irritado. No ginásio, gostara muito de zoologia. Estudara em detalhe o ornitorrinco e a zebra; os roedores também. Quisera ser zoólogo, profissão que, como o bom senso sobejamente demonstra, não existe.

Esquisita emoção tem o homem ao ver o curioso espécime. E nem bem se recuperara, quando ouve alguém assobiando. Da neblina vem saindo um homem. Um homem baixo e moreno, com cara de índio. Caminha devagar, batendo nas pedras com um cajado; e assobiando sempre.

— Bom-dia!

O nativo não responde; para, ficou olhando e sorrindo.

Um tanto desconcertado, o homem insiste:

— Mora por aqui?

O outro continua a sorrir; murmurou algumas palavras em idioma
bizarro e desaparece.

“É um idioma bizarro” — pensa o homem. Então, é outro país. Bem
que o corretor lhe avisara! Mas isso fora há longo tempo.

O homem corre para o bangalô, sobe as escadas velozmente (“E não me dá angina!”), galga os degraus do torreão e abre a janelinha. Já a névoa se dissipava e ele pode ver. Rios brilhando ao longo das planícies, lagos piscosos, florestas imensas, picos nevados, vulcões fumegantes. Nos portos, as caravelas atracadas, os marinheiros subindo pelos mastros e soltando as bujarronas. E o mar; muito longe.

Nem se escuta o bramir das vagas contra os rochedos.

O homem suspira.

“Sim, é outro país” — pensa — “e tenho de começar de novo”.

Seriam dez horas da manhã — se é que o tempo ainda existia — e a
temperatura estava agradável.

O homem começa tirando o sobretudo.

Fonte:
Moacyr Scliar. Melhores contos. 
(Seleção de Regina Zilbermann) Edição digital: Global, 2012.

Alvitres do Professor Renato Alves - 4 -

30.
Escrita num pequeno cartaz, a trova abaixo foi colocada sobre a urna mortuária de João Freire Filho. Segundo uma de suas irmãs, ela foi feita logo após o seu primeiro AVC, pois ele julgava ter chegado sua hora. Enganou-se, para a nossa alegria, que ainda pudemos desfrutar o tesouro de sua companhia por mais quatro anos. Enganou-se também na modéstia de seu autojulgamento, porque, na realidade, foi um excelente poeta e trovador.
    
Fui poeta... trovador...
Mas não fui tão bom assim!
Por isso, peço o favor
De não chorarem por mim!
João Freire Filho
(21/6/08)

3l.
Em criança, para eu poder ver o desfile dos blocos e Escolas de Samba na Avenida (Nos anos quarenta o carnaval carioca ainda era do povo...), meu pai me punha nos ombros. Para mim, aquilo era um deleite!... Vejam, na trova abaixo, como a sensibilidade do trovador conseguiu captar e traduzir esta sensação tão gostosa!
    
Pra ver o mundo de cima
da lembrança não me sai,
torre alguma se aproxima
do cangote do  meu pai!
Moacyr  Sacramento


32.
Depois de um dia inteiro de indisposição, o poeta José Lucas de Barros quis dar a boa notícia da melhora em sua saúde aos apreensivos trovadores que hospedava na casa de Pirangi. Ainda na cama, ao acordar, fez esta trova para recitá-la no café da manhã. Mesmo improvisada, a trova saiu com ótima qualidade e duas expressivas antíteses: ontem/hoje, compra/venda.
    
Nada de dor nem de tédio,
sinto quase a juventude:
Ontem, comprando remédio;
hoje, vendendo saúde!
José Lucas de Barros


33.
Nesta bela trova, vencedora nos  Jogos Florais de Niterói em 2007,  vejam como a sensibilidade do trovador retoma a metáfora de Deus-poeta, que a cada manhã reescreve o “poema da alvorada” para presentear Seus  filhos.

 De exuberância suprema,
que nos encanta e extasia,
cada alvorada é um poema
que Deus compõe todo dia.
João Costa


34.
O SÍMILE (ou comparação) é uma figura de linguagem semelhante à metáfora, porém bem mais direta. Ela exige apenas o uso claro de uma partícula comparativa (como, qual, tal, etc).   Na trova abaixo, por exemplo, o poeta se compara à cana, da qual se extrai o doce caldo com a “dor” do esmagamento. Assim é também o poeta: quanto mais sofre, mais produz doçura em seus versos...

Veja como o uso desta figura tão simples no 1º verso propiciou a preparação para o achado contido no belo  fecho de ouro dos 3º e 4º versos.

Sou como a cana do engenho...
Quem dera que assim não fosse!
Quanto mais dores eu tenho,
o meu cantar sai mais doce!
Luiz Otávio


35.
A língua é o instrumento de expressão da arte literária e, por consequência, da trova, um de seus gêneros poéticos.  Por isso, a correção gramatical é uma preocupação constante dos trovadores e, às vezes, serve até de tema para a criação de algumas trovas.  

Observem que os erros na pronúncia da palavra “poliglota” e na flexão de plural da palavra “degrau” constituem o ponto central dos achados das trovas humorísticas abaixo:

Sempre contando lorota,
diz que fala até chinês,
e, ao dizer-se “poligrota”,
assassina o português.
Maria Nascimento S. Carvalho

"CUIDADO COM OS DEGRAIS!"
- dizia o aviso ao freguês.
E ninguém tropeçou mais...
A não ser no português!
Renato Alves


36.
Calmamente vem o rio deslizando em seu leito... De repente, suas águas agitam-se, tornam-se esbranquiçadas, e ele despenca em queda livre, oferecendo-nos um imponente espetáculo visual como um véu de noiva. Mais adiante, retoma a calma e continua tranquilamente a fluir no seu curso... Esta é a descrição de uma cena linda, mas prosaica, como qualquer pessoa comum a vê.

Observemos, agora, como a sensibilidade de um poeta-trovador recria a mesma imagem  visual, através de bela metáfora no primeiro verso para compor uma linda trova:

Vestem-se as águas de prata,
saltam no espaço vazio.
Findo o show da catarata,
sereno refaz-se o rio...
A. A. de Assis


37.
O importante poeta pré-modernista brasileiro, Augusto dos Anjos,  é conhecido por transmitir em sua poesia uma reflexão amargurada da vida. Tornou-se muito popular principalmente por usar temas  inusitados e bem sombrios. Por isso, passou a ser  chamado de “O poeta da Morte”.  

Reparem que, na trova abaixo, dentro desta mesma linha temática do pessimismo, o poeta cria uma metáfora inusitada onde um “coração-coador” filtra as alegrias da vida e retém todas as tristezas:

Pobre de mim! Por desgraça,
meu coração é um coador...
Nele, o riso escorre... e passa...
E fica tudo que é dor...
Augusto dos Anjos


38.
A metáfora é uma figura de linguagem que consiste numa  espécie de comparação implícita. Por mais simples que seja, a metáfora sempre valoriza o texto poético onde é usada.
 
Vejam, no exemplo abaixo, como as palavras “chegada”, significando nascimento, e “partida”, significando morte, valorizaram o achado da trova  onde são cotejadas a dor da mãe (no nascimento do filho) e a dor do filho (na morte da mãe).

Mãe, se dor fosse julgada,
não sei qual a mais doída:
Se a que te dei na chegada,
se a que me dás na partida.
José Fabiano


Fonte:
Textos/trovas enviadas pelo prof. Renato

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) A versatilidade da crônica como gênero literário

O termo crônica tem origem no latim “chronica” e do grego “Khrónos” (tempo). No início do cristianismo, significava o relato dos fatos em sua ordem cronológica. Com o surgimento da imprensa, no século XIX, a crônica começou a aparecer nos jornais, sendo que a primeira foi publicada no Journal des Débats de Paris, em 1799.

Até hoje, a crônica é um tipo de texto muito comum em jornais e revistas, além dos sites e blogs. São geralmente mais compactos e costumam ser narrados em primeira pessoa, o que dá um ar mais pessoal e próximo do leitor.

A crônica é um dos gêneros literários mais ecléticos e, por essa razão, se apresenta de várias formas:

>> Descritiva: explora a caracterização de seres animados e inanimados em um espaço vivo como uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme publicado;

>> Narrativa: se baseia em uma história, assim como o conto. O que difere é que na crônica existe a opinião do autor embutida. Pode ser narrada em primeira e na terceira pessoa;

>> Dissertativa: opinião explícita, com argumentos mais sentimentalistas do que racionais. Escrita tanto na primeira pessoa do singular quanto na do plural;

>> Narrativo-descritiva: descreve e mostra fatos do dia a dia. Narrada em primeira na terceira pessoa do singular;

>> Humorística: tem linguagem informal e é marcada pela ironia e pela comédia;

>> Lírica: com uma linguagem poética e metafórica, comunica emoções, sentimentos como paixão e saudade, por exemplo;

>> Poética: apresenta versos poéticos em forma de crônica, expressando sentimentos e reações de um determinado assunto;

>> Jornalística: apresenta notícias ou fatos do cotidiano. Pode ser policial, desportiva etc.;

>> Histórica: baseada em fatos reais ou históricos;

>> Crônicas de viagem: narra experiências de viagens vividas pelo autor.

A crônica pode não ser o gênero mais aclamado pela Literatura, mas a verdade é que ela atrai um grande número de fãs pelo mundo. Escritores encontram nela um lugar de conversa com o seu público, em que podem se expressar sem tantas formalidades e regras. Leitores veem na crônica uma oportunidade de estarem mais próximo dos escritores e de saber o que pensam, como se estivessem conversando com eles.

Muitos escritores conseguem se destacar escrevendo este gênero. Um exemplo disso é Mia Couto, um escritor que transita por vários gêneros e que escreve crônicas aclamadas pelo público do mundo todo. Outro escritor conhecido pelas suas crônicas é o Luis Fernando Veríssimo, que usa o humor para tratar de temas do cotidiano com maestria.

Para falar sobre crônicas, entrevistamos o escritor Rubem Penz, professor da Metamorfose e criador da Santa Sede, que ministra cursos e oficinas de crônicas. Confira a entrevista na íntegra:

Na sua opinião, quais as características da crônica que mais atraem o leitor?

A crônica seduz o leitor por diversas razões, e elas estão todas relacionadas com as exigências de seu suporte – a coluna do jornal. A primeira que destaco é a informalidade pois, em função dela, o leitor se vê próximo ao autor. Trocando confidências, até. Isso humaniza a relação, tornando-a equânime, franca, descompromissada. Verdadeira.

A segunda característica que atrai leitores é o estilo: são textos breves, fluidos, sedutores do começo ao final. Como “tomar um cafezinho” com o cronista, alguém bom de papo, é a oportunidade de colocar em dia os assuntos do momento.

A terceira é a promessa. São escritores que marcam dia e hora para o próximo encontro, para quando se comprometem em trazer outra vez pontos de vista surpreendentes e relevantes sobre algo que dialogue com a vida do leitor. Enfim, encanta na crônica a soma de relevância, estilo e informalidade.

Se a crônica pode ser considerada o meio do caminho entre o artigo e o conto, como fazer para reconhecê-la? Quais os elementos que a diferem dos dois gêneros citados?

A crônica é um texto antropofágico por natureza – permite que o autor se alimente de outros gêneros (literários ou não) e, postos em sua coluna, transforme-os em crônica. Porém, com o artigo – ou ensaio – e o conto esse fenômeno é ainda mais profundo, uma vez que carregam duas matrizes diferentes na sua própria gênese.

De um lado, os ensaios dos ingleses (como disse Vinicius de Moraes) se transformaram na crônica artigo. Nela, o escritor apresenta um ponto de vista sobre determinado tema. De outro lado, o flâneur dos franceses inspirou autores como João do Rio a contar histórias colhidas de seu trânsito pela sociedade carioca, em folhetins, retirando das tramas a oportunidade de reflexão – raiz da crônica conto.

Quando comparamos a formalidade do artigo/ensaio (filosófico ou de humanidade) e do conto (literário) com a informalidade da linguagem crônica, somos capazes de perceber com clareza as nuances que os diferenciam. Lembrando sempre: a crônica, antes mesmo de ser um “o quê”, é um “quando” e um “onde”.

Quais os escritores de crônicas que mais te inspiram?

O primeiro de todos, disparado, é Luis Fernando Veríssimo. Dele, sou mais do que leitor: sou discípulo. Sua verve humorística conversa com autores como Woody Allen na arte de criticar a sociedade de modo sutil, ferino e elegante. Além do mais, LFV é o mais criativo do gênero, marca distintiva que persigo em minha produção. Depois, elenco uma tríade formadora da crônica brasileira a partir de meados do século XX: Rubem Braga, Antônio Maria e Paulo Mendes Campos. Outros autores que movem minha inspiração são Drummond, Vinicius, Scliar e Caio F. – este desenhando os contornos da crônica intimista ao lado de Clarice Lispector. Ainda assim, procuro sempre acompanhar todos.

Que dicas você gostaria de dar para quem gosta de crônica e pretende escrever este gênero?

Em primeiro lugar, ler diversos cronistas. Então, perseguir – e encontrar – sua voz própria. Crônica é o autor, um texto com impressão digital em todas as palavras. Ela precisa ser um crime imperfeito: cheio de marcas, modus operandi e rastros para denunciar a autoria. E isso só é possível escrevendo. Muito. Por fim, criar uma rotina e uma periodicidade de produção. Diferentemente do clichê da espera pelas musas, a inspiração jamais virá até o cronista – será dele a iniciativa. E quem ajuda nisso é o prazo. Aliás, eis aí uma das grandes vantagens de cursar uma oficina de crônicas: a imperiosa necessidade de escrever sob demanda. Só isso já ensina muito!

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 15: Safadinha e ordinária

O PACHECO ESTÁ NOIVO de aliança e prestes a se casar com a coisinha mais adorável do bairro. A Puritana da Conceição. Uma moça bonita, de apenas dezessete anos, olhos verdes, alta, esbelta, os cabelos negros, repartidos, sem falar que possui um corpo escultural, de princesa (daqueles saídos dos fantásticos contos de fadas) que parece capaz de pegar fogo na hora e no lugar certos. Pacheco vai para a casa dela, todas as noites, porém, como é um homem evangélico e, acima de tudo respeitoso e consciente, não mantém relações mais íntimas com a jovem. Fica apenas nos abraços e beijos, deixando os finalmentes, para quando estiver devidamente em dia, ou seja, legalmente matrimoniado perante as sagradas leis da sua igreja e as bênçãos de Deus.

Nesta noite, os pombinhos, se acham na varanda do quarto dela, debruçados no parapeito, olhando à rua movimentada, quando cruza, em direção à pracinha da Matriz de Santa Perpétua, a Suzana Pinga Fogo. Pacheco, ao ver a cachopa, chama a atenção de Puritana.

— Amor, veja quem está passando aqui em frente!

Puritana, finge uma distração longe de ser verdadeira, dá uma espiadela breve e reconhece, de pronto, a ex-namorada de seu futuro marido.

— Não é a lambisgoia da Suzana com quem você teve um caso?

— Ela mesma, amor...

— Por quê? Está com saudades?

— Olhando para ela, me lembrei que frequentei a casa de seus pais, por quase um ano e meio...

— E daí?

— Me veio à memória o pensamento de que eu tinha, de fato, vontade me casar com ela, formar uma família, ter filhos...

Puritana, desliza os dedos pelos cabelos que lhe caem, em ondas espetaculares, até à altura da cintura.

— Por que lhe deu na telha remoer isto agora? Acaso está arrependido? Quer pedir arrego para ela?

Pacheco, carinhoso, abraça a garota.

— Não, é nada disto, minha fofa. Eu te amo. De forma alguma... quero pedir arrego ou reatar com a Suzana...

— Então...?

— No começo do nosso relacionamento eu achava ela bastante esperta e inteligente, meio tímida é verdade, mas dava para o gasto. Fiquei em dúvida quando me revelou que contou para a mãe dela —, imagine você, que doideira —, chegou ao ponto de se abrir para dona Pombinha, que sempre que a gente ia para o quarto dela, eu ficava sentado em sua cama até altas horas da noite, e que depois eu ia embora e que rolava somente uns beijinhos...

Toma fôlego e prossegue, muito sério.

— Em razão disto passei a ver nela uma pessoa meio burrinha e sem juízo... Onde já se viu falar destas particularidades logo para a mãe?

— Cá entre nós, vocês ficavam só sentados, ou...?

—... Ora, amor, às vezes eu dava umas deitadinhas. Me espichava... Mas veja bem, sem colocar a carroça diante dos bois. Melhor que ninguém, você sabe como sou e como ajo.

Faz nova pausa e conclui.

— Você tem consciência que jamais abusaria, ou melhor, fosse qual fosse as circunstâncias, euzinho me atreveria a ultrapassar o sinal, tirando algum tipo de proveito. Hoje somos noivos e logo lhe farei a minha esposa. Sua pessoa é a prova viva da minha integridade e de tudo o que estou afirmando...

Puritana se abre num sorriso meio malicioso e completa, com certo desdém na voz:

— Realmente, a sua fulaninha foi mesmo uma idiota. Bem diferente de mim, amor... Não chega nem aos meus pés...

— Por que diz isto, minha princesa?

— Porque eu não sou assim tão vulgar e nunca serei. Tampouco faria o que ela fez. A sua ex deu diploma para ela mesma de bobinha, de tola e sem experiência... O meu vizinho aqui do lado, o Gilberto, tem passado noites inteiras aqui no meu quarto, deitado aqui na minha cama, nós dois estudando para as provas do ENEM, e eu nunca disse nada à mamãe.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.