sexta-feira, 7 de maio de 2021

Célio Simões (Lá vem o morto!...)

Dico era um caboclo prestativo, bem mandado, de fala mansa, que nasceu, se criou, viveu intensamente a sua época e finalmente morreu no Paraná de Baixo, uma região longínqua e desabitada do Baixo Amazonas.

Foi dessas criaturas por demais comuns, sem nada mesmo de especial, que acatava ordens sem obtemperar ou mesmo questionar se eram ou não justas ou se dadas por um adulto, uma criança, um conhecido ou desconhecido.

Era, enfim, como as brisas de verão, alma sem fel e sem malícia, dos que passam pela vida satisfeitos com sua própria desimportância, onde todos estão acima e além dele na escala social. Não tinha mulher, filhos ou parentes próximos e a maioria das criaturas que o conheciam nada sabiam contar a seu respeito, além de que era bem mandado, prestativo e de fala mansa...

Sem algo para marcar sua passagem por esta vida, o destino incumbiu-se de imortalizá-lo, com a confusão que involuntariamente armou por ocasião de seu próprio sepultamento.

Havia suspeitas generalizadas de que o Mundico (daí o apelido de “Dico”) não emplacava o ano seguinte, pois estava muito velho, doente e abandonado à própria sorte, na barraca de aspecto favelar que o abrigara por tanto tempo. E para consternação de todos, um dia chegou a esperada notícia de seu falecimento. Dois vizinhos mais próximos, condoídos pela sua extrema penúria, resolveram propiciar-lhe um enterro digno no cemitério da cidade e não no terreiro do sítio, prática muito comum naqueles tempos. Movidos por esse nobre sentimento, resolveram agir.

Arranjaram uma igarité, estivaram o morto ao fundo sobre umas tábuas, acenderam uma vela próxima à cabeça em sinal de respeito, cobriram o corpo com um lençol branco e... tome remo na direção de Óbidos, onde seria feita a inumação no cemitério local.

O esforço de vencer a brutal correnteza durou a manhã toda, sob um sol escaldante. O Amazonas é um rio de superlativos. É o maior do mundo, com seus 6.868 km de comprimento e mais de mil afluentes que o tornam a mais vasta bacia hidrográfica do planeta, superior a 7 milhões de km² que banha a floresta latifoliada. Seu gigantismo amedronta pelo volume e agitação de suas águas. A vazão rumo ao mar alcança 200.000 m³ por segundo, ficando a parte mais estreita e profunda em frente à cidade de Óbidos, no Estado do Pará.

Foi nesse universo líquido que a tarde chegou e os dois piedosos amigos do finado Dico, um remando na proa e outro na popa da embarcação, começaram a acusar o peso do esforço físico. O corpo latejava. Afinal não era nada mole vencer o remanso sob aquele calor descomunal e além de tudo levando a bordo um homem que já abotoara o paletó.

Na azáfama da saída, não tinham levado nada para a viagem e esse esquecimento haveria de complicar as coisas, sim, porque até a cachaça fora esquecida e com ela, o coió de piracuí e o peixe frito. Tangidos pela fome, ambos queriam parar um pouco, descansar daquela faina, tomar “umazinha para esquentar a mãe do corpo”, porém não ousavam sugerir esse desejo em voz alta, em respeito e comiseração pelo morto.

E tome remo... Lá pelas vinte horas, praticamente extenuados, passaram em frente a uma grande fazenda, onde de longe já vinham ouvindo alarido de festa, com gente rindo, muita música e estouro de rojão. Só então lembraram que o Nhozinho Caranguejo festejava seu aniversário todo ano em alto estilo, com muito churrasco, pinga da boa, mulherada disponível e dança na ramada que durava no mínimo três dias. Depois de pedirem perdão ao impassível defunto pelo abuso, resolveram mesmo parar e participar. O que vinha na proa avisou:

- Compadre, a demora é pouca. É só “matar o bicho” e voltar, senão o homem apodrece.

O da popa, que era o piloto, foi precavido: - Tudo bem. Mas vou esconder a canoa embaixo daquela touceira de capim, pra ninguém ver que o homem tá morto!...

Unindo palavra à ação, manobrou com habilidade e a igarité encalhou mansamente embaixo do improvisado esconderijo. Apagaram a vela e sem mais delongas rumaram para a casa da fazenda, onde a fuzarca fervilhava e a luz de carbureto ofuscava os olhos.

Chegando lá, não puderam evitar os cumprimentos dos amigos, que faziam questão de levá-los para o barzinho debaixo da frondosa mangueira para brindar o evento. Já quase todos “chumbados” pela maldita, contavam piadas, confraternizavam entre si, jogavam “porrinha” apostando dinheiro, enfim, fizeram de tudo para animar os dois recém-chegados sem lograr êxito – e muito menos desconfiarem o porquê de estarem tão cabisbaixos. Até que um deles resolveu puxar para dançar uma cabocla toda dengosa.

Foi a conta. O outro também arranjou vistosa parceira, o lundú comeu no centro, a música animou, a festança pegou fogo, veio a dança da desfeiteira, mais cachaça, mulher pra cá, mulher pra lá, o da proa foi imprensar a muquirana atrás das bananeiras, o da popa a esta altura já estava tocando banjo na orquestra, e assim os dois amigos, motivados por tão profanas alegrias, esqueceram por completo do dever de sepultar o amigo Dico, que jazia sem vida na canoa escondida no barranco.

Lá pelas tantas da madrugada, saiu do baile um sujeito que mal se aguentava em pé de tão bêbado que estava. Foi aos tropeços andando para o porto com intuito de localizar sua própria canoa, eis que desejava de imediato retornar à sua casa.

Procurou em vão... Além da completa escuridão, o barranco estava coalhado de dezenas de outras canoas dos que compareceram àquela festa. Sem saber o que fazer, resolveu dormir ali mesmo, para aguardar a claridade do dia seguinte e assim meio perdido embarcou na primeira que vislumbrou - exatamente aquela onde jazia o corpo sem vida do finado Dico. Deitou-se ao lado dele, puxou para cima de si uma parte do lençol branco e sem saber que o homem era um “defunto morto”, foi logo avisando:

- Arreda pra lá, que eu também vou dormir aqui... E ferrou em pesado sono.

Já eram quase três da manhã quando os dois farristas, saciados em todos os sentidos, resolveram voltar. Arrependidos, mas ainda cambaleantes, retornaram à realidade e decidiram que o que haviam feito era coisa de gente indigna. Afinal, o estimado Dico fôra em vida uma pessoa bondosa e prestativa e não merecia aquele desrespeito. Fazer farra levando um finado para o cemitério... essa não! Como puderam chegar a tanto?

Com esse sentimento de culpa roendo-lhes as entranhas, envergonhados de si próprios, rumaram direto para a canoa, empurraram-na para fora e meteram o remo para recuperar o tempo perdido. Nem prestaram atenção que o bêbado estava embaixo do lençol, desfrutando a aconchegante companhia do falecido.

Horas depois, quando as luzes da cidade já brilhavam à distância, decidiram atravessar o pavoroso Amazonas, de enormes vagalhões que atemorizam até o mais experiente navegador. Balança pra cá, balança pra lá, a canoa subia e descia em gangorra cavalgando a crista das maretas. O vento soprou mais forte, começou a respingar água dentro do barco, o frio e a umidade doeram no couro e o bêbado, não suportando mais aquele desconforto, sentou e falou:

- Pra onde estão me levando?...

Cada qual dos remadores deu um berro de pavor e se borrando nas calças pulou dentro d’água. O bêbado nada entendeu, mas quando no lusco fusco da aurora notou que seu “parceiro de sono” era um defunto, soltou outro grito medonho e saltou atrás dos dois primeiros, no que um avisou ao outro:

- Compadre!! O Dico pulou n’água atrás da gente!

O bêbado não sabia nadar e queria agarrar um deles para salvar a vida. Não deu. Único meio de defesa, um jogava água na cara do outro para enxotá-lo, quando ele se aproximava! E no tumulto que se seguiu, morreram os três sem atinar para o que estava acontecendo. É esquisito afirmar, mas nesse insólito episódio o único que escapou de perecer afogado foi justamente o defunto.

Fonte:
Texto enviado pelo autor, integrante de seu livro “UM POUCO DE MUITAS HISTÓRIAS” (Editora TrêsC, 1.ª edição, 2016, pg. 65/68).

A. A. de Assis (88 Poeminhas) – 3 –

Ebook enviado pelo poeta quando da comemoração de seus 88 anos, em 21 de abril de 2021.

45.
Posso viver
sem ter nada,
porém jamais
sem ter / nura.

46.
Dissolve-se a nuvem
em finos fios de chuva.
Benze o trigo,
benze a uva.

47.
Velho e doce apreço.
Menino da roça,
da roça inesqueço.

48.
A lua e as estrelas,
tão belas.
E no entanto, para vê-las,
só o poeta abre as janelas.

49.
Quem nada
tem tudo.
Somente os peixes,
para salvar-se,
puderam dispensar a Arca.

50.
Era um riozinho,
e doce.
Cresceu, virou mar,
salgou.

51.
Gritarias, tiroteios.
Onde andam
os passarinhos
com os seus gorjeios?

52.
Há pedras
nos caminhos, há.
Caminhos nas pedras
há porém também.

53.
Ploque
ploque
ploque.
Passa um cavalo
levando
o passado embora.

54.
Os lírios dos campos.
Plateia de gala
para o show
dos pirilampos.

55.
Quero-quero-quero,
que queres tu tanto assim?
– Quero a quera-quera.

56.
Fantástico evento:
o fascinante momento
em que o botão
vira rosa.

57.
Tão pobrinha
a lua.
E todavia doa
o luar.

58.
Deveras,
deveras.
Na ausência
as horas são eras.

59.
No quintal vizinho
tinha um pé de pinha. Tinha.
Nem quintal tem mais.

60.
Agenda do dia:
encher de bem
o em redor da gente.

61.
Não se traz de volta
a ovelha
lhe puxando a orelha.
Dê-lhe amor e a mão.

62.
Mais que o prédio,
o morador.
O que dá valia ao vaso
é ser a casa da flor.

63.
Pergunte às crianças
se há vida
onde ninguém brinca.
Polegar pra baixo.

64.
Andorinha sobe,
andorinha
sobe e desce,
faz um “s” e some.

65.
Casal de velhinhos
na varanda
olhando a lua.
Tão longe a de mel...

66.
As cinzas da mata,
que dó.
Lágrimas em pó.

Continua…

Imagem: montagem por José Feldman com fotos obtidas no livro de Assis, "Vida, Verso e Prosa" e enviadas pelo poeta.

Sammis Reachers (Lourival na Troca dos Leões)

Lourival, ainda muito jovem, decidiu ingressar na carreira de rodoviário. Naquele tempo era bem mais fácil tirar a carteira na categoria D. Era possível tirá-la direto, sem ter que passar pela B. Assim, com menos de 20 anos Lourival já era motorista. E numa das melhores (e também mais exigentes) empresas do estado: a Viação 1001.

Certa feita a empresa decidiu-se por colocar Lourival para dirigir numa linha importante: Rio de Janeiro x Governador Valadares (em Minas Gerais). Além de ser bem jovem, nosso amigo ainda era novo na empresa, e sentiu o peso da responsabilidade. Não podia dar mole.

O primeiro e segundo dias na nova linha foram tensos, mas transcorreram sem problemas, Mas, no terceiro dia... O ônibus estava parado no ponto final da Rodoviária Novo Rio. Os passageiros embarcavam normalmente.

Após algum tempo, Lourival, que estava no banheiro, se dirigiu ao veículo, e tranquilamente sentou-se em sua posição. Aí os problemas começaram. Um senhor já grisalho, grande e de voz grossa, levantou-se do meio do salão e dirigiu-se para a frente do veículo. Deu então uma boa olhada de cima a baixo no franzino Lourival e disse:

– Com você eu não viajo!

Em seguida, voltando-se para os outros passageiros já assentados, berrou:

– Eles vão colocar um moleque para pilotar esse ônibus. Querem arriscar nossa segurança nas mãos de um garotão que nem barba tem!

Antes que o pobre Lourival pudesse gaguejar alguma coisa, a confusão estava armada: outros passageiros, influenciados pelo velho encrenqueiro que não parava de falar, também se levantaram e começaram a matraquear.

E agora??? O pacato Lourival não sabia o que fazer. Ele era novo na empresa e mais novo ainda naquela muito boa linha; não poderia de jeito nenhum arrumar problema, mesmo sendo inocente.

Enquanto isso, o falatório continuava. Lourival já começara a suar de tão nervoso, quando de repente uma ideia veio lhe iluminar, no momento em que ele viu um outro companheiro rodoviário passando tranquilamente pela plataforma da rodoviária. Saltando do banco, Lourival contou sua estória, mandou seu "caô";

– Queridos, fiquem tranquilos que eu não vou dirigir este ônibus não. Sou só o manobrista. O motorista é aquele ali – disse, apontando para    o desavisado companheiro que andava do lado de fora do veículo.

Imediatamente Lourival desceu e, abraçando o rodoviário que ele nunca vira na vida, não perdeu tempo e foi logo contando sua história triste e também seu pequeno plano para o companheiro. O cidadão, mesmo um pouco contrariado, resolveu salvar a pele do nosso amigo. Entrou no veículo, cumprimentou os passageiros, que se acalmaram. Em seguida, pediu licença e fechou a pequena portinhola, que em muitos ônibus de viagem, separam a cabine do motorista da parte de trás (o salão) do ônibus.

A seguir, sem que pudesse ser visto pelas janelas, Lourival se esgueirou de volta ao ônibus, trocou de lugar com o tal motorista, que saiu de fininho enquanto Lourival dava a partida no veículo.

E assim lá foi seguindo sua viagem o bom Lourival. Rodou por ininterruptas cinco horas, quando então se aproximou o primeiro ponto de parada, momento em que os passageiros podiam descer para esticar as pernas e comer alguma coisa. Era a hora da verdade. Lourival voltou a suar frio.

Ao encostar no pequeno posto de paragem, Lourival abriu a porta, mas sem colocar sua cara à vista. Os passageiros começaram a descer, aparentemente sem reparar em Lourival, que olhava para o outro lado. Mas aí chegou a vez do velho encrenqueiro descer. Já nas escadas, ele parou e voltou-se para Lourival. Percebeu então que aquele era o "menino" com quem ele dissera que não iria viajar.

– Ei, é você!! – disse o velho.

– Sim, sou eu, senhor.

– Venha, vamos descer!

Assustado, o pacato Lourival levantou-se e desceu as escadas. Imaginava que tipo de coisa iria acontecer.

– Amigo, até que você dirigiu muito bem. Me equivoquei a seu respeito; me perdoe. Você é um grande condutor.

Surpreso e aliviado, Lourival respirou mais tranquilo. Mas não era tudo.

– Venha, rapaz – disse o coroa. – Venha que vou lhe pagar o almoço. Venha!

E assim o bom Lourival, que achou que iria até apanhar, ganhou um amigo e um fiel pagador de almoços...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Varal de Trovas 498

 


Aparecido Raimundo de Souza (Parte 40) Rebordo do chapeuzinho

EU NÃO ME CHAMO TOB. Foi, todavia, este nome que me dei, por conta própria, de mentirinha. Sou um gato. Um gato de verdade. Um pequeno felino com pelos bonitos, bem cuidados e bem tratados. Apesar disto, não gosto deste meu nome que achei ou li não me recordo onde. Nem um pouco ele me atrai. Acho que Tob não pega bem para um doméstico da minha envergadura.

Se eu pudesse ser batizado, mudaria, ou escolheria um patronímico mais simpático, mais atraente, mais chamativo, mais condizente com a minha raça. Embora viva dentro de casa, e tenha uma vida maravilhosa, de rei, não sou nenhum destes bichanos gorduchos e preguiçosos. Nem durmo no saco. Não caço ratos. Minha comida é de primeira e meus donos (principalmente a Luaninha, no albor dos quinze anos, com aquele adorno na cabeça, em forma de barrete, cobrindo os longos cabelos em cachos, única filha de dona Rita e seu Moisés) me tratam como se eu pertencesse à família.

Outro dia comentei com meu amigo que mora na praça aqui perto. Ele é um gato sujo, sarnento, cheio de pulgas, carroceria corrida, anda todo torto, e descadeirado. Não tem nome de batismo, eu o chamo de Chico. Chico, coitado, um dia come, outro passa fome. Um dia bebe outro não. Anda miando de déu em déu, o infeliz, jogado à sorte, ao Deus dará.

Quando falei em trocar de nome, ele se virou para mim e argumentou com a sapiência dos animais que, embora sem um pingo de sorte nos costados, têm uma larga experiência de vida, pelos maus momentos que traz grudado pelos escaldados horríveis da vida.

— Que nome gostaria de ter?

— Pensei em Salem...

— Isso lá é nome de gato? O que me diz de Tom?

— Já existe um montão, Chico. Sem contar que temos um simpático muito famoso. Lembra do Jerry da televisão? O que me diz de Tim?

— Tim? Ki...ki...ki... você acabaria virando alvo de piadinhas de mau gosto...

— Como assim?

— Seus amigos, menos eu, claro, lhe alcunhariam de Fim, Mim, Sim, Quim, Vim... Imagine, “e ai, amigo Pim! Tudo bem?”.

— Restaria, então, Bob!

— Bob, meu chapa, é nome de gato preguiçoso e lerdo. E você não me parece um gato molenga. Pelo menos na aparência. Você é gato de “madame”, de família abastada. De boa família, por sinal. E o mais importante: tem pedigree.

— Mesmo assim eu queria mudar de nome. O que eu mesmo me dei, por conta, Tob, está me deixando incomodado...

— Deixa de bobeira, Tob. Tira isto da cabeça. Procure se espelhar em mim, como exemplo.

— Como exemplo? Estou voando. Desenha!

— Filtra de novo!

— Como disse?

— Esquece, Tob. Veja minha situação. Nem nome tenho. Você que me arranjou este tal de Chico. Pois bem. Sem falar, mas já falando, não tenho um lar. Vivo ao relento, jogado, em busca de restos de comida e camundongos. Na moral, colega. Preferiria mil vezes ser chamado de Tob e desfrutar de um cantinho só meu, que ser este Chico aqui que você tão bem conhece e vive assim, como eu vivo, aliás, como vegeto. Pobre, maltratado, precisando, como se diz aí no mundo dos humanos: “Matar um leão a cada dia para sobreviver”. Desculpe o que vou dizer, Tob. Você chora de barriga cheia. Deus, meu prezado, não dá asas à cobra.

— Tudo bem. Estou de acordo com o que disse. Mas quero mudar de nome.

— Tob!...

— Falo sério, Chico. Nunca falei tão sério em minha vida. Me ajuda aí, vai!...

— Calma.

— Estou calmo.

— Relaxa.

— Estou relaxado.

— Um... ah... sim... claro...

— Desembucha, Chico.

— O que me diz de Stuart Little?

— Stuart Little?

— Sim, meu amigo. Era aquele pequeno gato... ou era rato...?... não me recordo...! No filme “O pequeno Stuart, dublado pelo grande ator Rodrigo Santoro.

— Stuart Little? Acho meio americanizado.

— Como disse?

— Filtra de novo!

— Aprendeu, hein malandro? Estou gostando de ver...

— Não tem outro, Chico?

— Sim, me veio à mente agora. Como não pensei nisso antes? Burro, como sou burro!

— Deixa de se mimosear, cara. Fala. No que pensou?

— No gato Snowbell!

— Sei... sei... e quem dublou este gato? O Rodrigo Santoro?

— Não, Snowbell quem dublou foi o Miguel Falabella. Como ele tem cinco gatos, ou pelo menos, na época possuía cinco persas, Flora, Nicoleta, Scarlet, Zípora e Farac...

— Chico, como sabe de tudo isto?

— Velha história, meu chapa. Nem gosto de lembrar...

— Fala ai, mano velho. Se abre comigo...

— Ta legal. Namorei Scarlet. Meu Pai amado, que gata!...

— E por que não ficou com ela?

— Porque o Caco Antibes foi mais esperto.

— Quem, Gato Antibes?

— Caco, seu besta. Caco. Caco Antibes. Era um personagem do Falabella em “Sai de baixo”. Mas deixa pra lá. Vamos focar no nome. Stuart Little ou Snowbell?

— Stuart Little cairia melhor...

— Não simpatizou com Snowbell?

— Stuart Little, como você relatou aí, foi dublado pelo Rodrigo Santoro, o grande.

— Certo, meu camarada. Só não recordo se Stuart era um gato ou um rato... ou as duas coisas ao mesmo tempo...

— Pois é... bem... acho que vou ficar com esse Stuart mesmo. Ainda que a contragosto, por ser, como disse, bastante americanizado.

— Papagaios, mano. Não gostou do Snowbell?

— Não é isto, Chico. É que estou me recordando agora. Snowbell era meio... meio abichalhado. “Gato-gata”. Não iria pegar bem. De mais a mais, na minha idade, entrar no armário, sair do armário... dar uma desmunhecada... fora de cogitação. Como Luaninha me veria? Decidido! Ficarei com o Rodrigo Santoro, O Grande.

— Você quer dizer, adotará o Stuart Little?

— Com certeza!

— Mas Little é um rato ou um gato? Que droga, sinceramente não me recordo com precisão. Rato, gato, gato, rato? Faz tempo! Ainda estava nos braços de Scarlet. Ah... bons tempos, aquele... não fosse o Miguel Falabella... Alto lá... quem é Luaninha?

— Uma gata, Chico. E que gata! Pense numa gata “maneira”, tipo cheguei...!

— Você nunca me falou dela...

— Chico, esquece. A partir de hoje, deixo de ser o Tob para ser o grande Stuart Little.

— OK. Só para lembrar. Grande foi o Rodrigo Santoro que dublou o bicho, mano. Não confunda.

— Foi mal. Não confundirei. Pode estar certo. Snowbell não me cairia bem. Fora de cogitação. De mais a mais, a Luaninha, minha dona... ei, alto lá, para seu governo, não quero lhe falar dela. Esquece a moça, digo a gata. Fique longe da minha beldade. Você com ela, ao lado dela... Credo em cruz, nem morta, Chico, nem morta... Ouviu?

— Como disse, Tob, digo Stuart?... A Luaninha, nesta confusão toda, é uma moça, ou é uma gata? Fiquei confuso. Responda, abre o jogo. Gata ou moça?  

— Filtra de novo, Chico. Filtra de novo!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘COMÉDIAS DA VIDA NA PRIVADA’ – 
Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 8 –

A mais sublime alegria
que vi, confesso e não nego:
– Foi ver um cego de guia
sendo guia de outro cego!
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Aos olhos de tantas cores,
da estação que mais se espera,
Deus põe nos botões das flores
as cores da primavera!
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A saudade que se sente,
não tem cor, forma e nem aba;
mas deixa na alma da gente
mancha que nunca se acaba!
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As notas de antigos gongos,
que escuto quando medito,
soam quais velhos ditongos
na cadência do infinito!
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A vida com seus desvelos
e, o tempo com seus desvãos,
vão deixando em meus cabelos
as marcas de suas mãos!
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É tarde!... E, as almas cansadas,
ao canto dos peregrinos,
um sino dá badaladas
despertando os outros sinos!
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Eu queria que meus gritos
ecoassem nas noites mansas,
levando a paz aos aflitos
que não têm mais esperanças!
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Já curvo ao peso da idade,
nos ombros, o velho ancião,
carrega tanta saudade
que entristece a solidão!
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Liberdade é um grande voo,
quando alguém ainda acredita,
que, na palavra "perdoo",
há liberdade infinita!
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Meu filho, um beijo roubado,
não pode ter punição;
que o sabor desse pecado,
ofusca a luz da razão!
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Meu rosário me enternece;
e entre os mais crentes e ateus,
vou deixando em cada prece,
as preces dos versos meus!
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Na madrugada orvalhada,
por sobre as relvas pagãs...
Vão meus pés pisando a estrada,
dos sóis de minhas manhãs!
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Não se fere uma floresta,
sem preservar-se uma flor...
E a mata que nos empresta,
do verde, o pulmão do amor!
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No banco da velha praça,
a solidão se revela...
Quando uma sombra que passa,
se assusta com a sombra dela!
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Noite adentro e, que surpresa
ao ver na sombra da cruz,
a chama do amor acesa,
na noite escura e sem luz!
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Nossa casinha é singela,
tão simples por onde for,
que o quebra-cabeça dela
é a regra de três, do amor!
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O sol, da manhã, traduz
na luz tosca da alvorada,
um terno beijo de luz
nos lábios da madrugada!
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O tempo deixa na gente,
entre as rugas do desgosto...
Restos de sonhos na mente,
marcas da vida no rosto!
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Ó, tempos de primavera,
como foi bom te esperar...
E a esperança dessa espera,
era a luz do teu olhar!
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O velho mar, entre as brumas,
aos beijos da lua cheia,
escreve em flocos de espumas
lindos poemas na areia!
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Ó, viola que me acalma,
o teu dengo me consola;
parece até que tem alma
no dengo dessa viola!
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Pobre mesmo é aquele alguém,
que é rico e nada produz;
e, diante da Luz do bem,
suplica esmolas de luz!
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Que exemplo, o do passarinho,
que não poupa um só vintém;
mesmo com fome, no ninho,
não quer nada de ninguém!
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Se amai-vos, disse o Senhor,
Deus no amor, tudo permite!...
Pois, o limite do amor,
é se amar, sem ter limite!
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Se aos teus pés tudo eu deponho,
sigo os passos de teus passos,
que o amor, que eu sinto em meu sonho,
seja o que dorme em teus braços!
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Se a solidão desconforta,
à noite, ela me apavora;
mas, quando a aurora abre a porta,
a solidão vai embora!
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Sinto saudade da infância,
boba, do jeito da gente!
Mas a dor, dessa distância,
na saudade é que se sente!
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Toda ausência, tem seus ais!
E, entre nós dois, se deduz,
que somos presos fatais
dos braços da mesma cruz!
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Transponho pedras e espinhos,
feliz entre os manacás,
em busca da paz dos ninhos
onde cantam sabiás!
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Vi, quanto a dor maltratava
aquela mãe maltrapilha
que, com fome, amamentava,
matando a fome da filha!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Melo Moraes Filho (A Festa da Moagem) – 2, final

Na varanda de sua habitação, o fazendeiro e a família, desde muito cedo, lombrigavam os convidados que se aproximavam. O fazendeiro, com seu rodaque e calça de brim pardo, seu chapéu-de-chile ou manilha, pondo ao lado a xícara de café, estendia a mão sobre a testa, para melhor distinguir os vultos; a mulher e as meninas, penteadas e prontas, cresciam da ponta dos pés, alongavam o pescoço, aventurando nomes, recordando apelidos. E os primeiros chegavam, os escravos tomavam os animais, as famílias apeavam-se. O fazendeiro e os seus os recebiam, entre gracejos e abraços, riso franco, proporcionando-lhes hospitalidade proverbial e antiga.

Até alto dia era a mesma lufa-lufa: progressivo concurso de povo, a alegria mais sincera, os deveres obsequiosos mais distintos... O bando de moças, as gentis roceiras, tagarelavam, riam de qualquer coisa, fazendo contraste com as que não se levantavam das cadeiras, conservando-se mudas, apalermadas.

As moças da corte e as mais interessantes e inteligentes e da freguesia falavam em namoro com os rapazes, recitavam a balada da Moreninha do Dr. Macedo, tinha de cor as poesias sentimentais dos poetas do tempo.

A fazendeira, com seu vestido de musselina, trepa-moleque, e lencinho ao pescoço, desfazia-se em delicadezas, em oferecimentos aos convidados, procurando-lhes o conforto, a sem-cerimônia mais cordial. Neste ínterim a casa da moenda acabava-se de armar, os escravos estavam a postos, os caldeirões areados e espelhantes, o forno provido de lenha.

A um momento inesperado, a música da vila tocava ao longe, assomando em um carro de bois, todo enfeitado de flores e ramagens, trazendo o guia o chapéu circulado de flores do mato, lindas e vistosas. O prazer, que com as harmonias, mesmo longínquas, se espalhava na fazenda, era indizível: todos corriam às varandas; as mucamas e as crias desciam à porta; os foreiros saíam de suas casas de sapé, chegando-se ao terreiro.

Apesar do prodigioso número de convidados, da parentela sem fim dos donos da casa, do povo que se reunia em festivo convívio, uma nota discordante se percebia, causando geral inquietação e sensível impaciência: a ausência do vigário!

Era da tradição que, não se benzendo o engenho em cada safra do ano, tudo corria mal: os escravos morriam ou decepavam as mãos nas moendas; um desastre qualquer perturbava a paz da família; um acontecimento fatal punha em atraso a vida do fazendeiro.

No pleno domínio desta superstição, que acreditamos uma verdade, o não comparecimento do vigário importava a transferência da festa, ou a procura de outro sacerdote, que nem sempre era fácil, concorrendo esse expediente, embora autorizado, para ressentimentos da parte daquele: o que cumpria evitar.

Como é de prever, as moças faziam promessas, acendiam a Nossa Senhora, pediam a todos os santos para que nada lhe tivesse acontecido, sendo logo enviados pajens a cavalo à freguesia, a fim de indagar do motivo da tardança.

E a música descia... E de um dos carros cobertos de colchas de chita, que se encaminhavam após, apeava-se o folgazão e nédio vigário, trazendo consigo a esparramada comadre e a récua de afilhados...

A recepção, debaixo de vivas, tornava-se estrepitosa; e o velho fazendeiro e sua mulher, as pessoas mais gradas e os primeiros personagens políticos da localidade batiam palmas, dirigiam-se a ele, aos apertos de mão, aos abraços, em expansivas manifestações.

Pouco depois, o vigário e seu sacristão tiravam de uma caixa de folha-de-flandres os seus paramentos, a gente toda seguia para a missa e depois para a casa da moenda, formando um derradeiro grupo o fazendeiro, o vigário o juiz do termo, o juiz de paz, e suas competentes famílias.

Uma vez na casa do engenho, a gente toda ficava embaixo, na grande área ocupada pela almanjarra, as caldeiras, os alambiques, os cochos, o orno, etc., indispensáveis ao fabrico de açúcar e da aguardente.

O vigário, de batina, sobrepeliz e estola, tendo ao lado o sacristão, abria o livro sagrado, ao passo que muitos dos circunstantes recebiam tochas enfeitadas e acesas. As moças e as matronas, em fileiras sucessivas, com seu séquito de belas mucamas, assistiam igualmente ao ato vestidas à moda, sobressaindo em suas vestimentas e nos cabelos lacinhos de fitas verdes e amarelas, flores nativas. E o vigário começava a bênção do engenho, finda a qual fechava o livro e afastava-se, cedendo espaço à cerimônia da inauguração.

A música, em desafinação constante, atroadora a fazer despertar um cataléptico, passava-se da celebração religiosa para a festa profana, ao estouro dos foguetes que se atacavam lá fora, das girândolas que sibilavam intermitentes até a conclusão da cerimônia.

Nesta ocasião, muitos dos circunstantes, homens, senhoras e crianças, subiam para as varandas interiores, aparatosamente ornadas, e dali gozavam da festa da moagem, propriamente dita, da inauguração anual dos trabalhos da fábrica, segundo o ritual observado por nossos lavradores...

E as moças aos cochichos, às risadinhas, nos requebros desconfiados, adiantavam-se para a almanjarra, passando a cada uma delas sua vistosa mucama um feixinho de canas raspadas, presas por laços de fitas, que eram delicada e cuidadosamente colocadas por suas senhoras dentro dos cilindros da moenda.

A música atordoava ainda mais, as palmas choviam, e um molequinho, de roupa bonita e chapéu entremeado de folhas e flores, trepava na boleia fixa a uma das hastes do triângulo da almanjarra, tocava a parelha de burros, fazendo girar todo o maquinismo.

Os escravos empregados nesse trabalho debandavam, cada qual para seu mister especial, com grandes escumadeiras e outros utensílios da indústria.

Então o vigário, o fazendeiro, o madamismo e mais circunstantes, que presidiam a inauguração, reuniam-se aos convidados, que se achavam nas varandas, seguindo todos em ruidosa folia para a casa de vivenda, onde lauta refeição, opípara merenda era servida, trocando-se brindes calorosos, entusiásticos.

E o engenho moía ativíssimo, esgotado o primeiro caldo, lavados os condutores. Em seguida, em riquíssimos bules de prata, levavam as escravas saboroso caldo de cana, geralmente apreciado, sobretudo por ser o da primeira moagem.

Toda a escravatura, os foreiros em tropa e os conhecidos destes, apreciavam, no terreiro e na fábrica, o caldo que se distribuía a granel, em cuias de cabaço amargoso, ao uso da roça.

Nesse dia, à exceção da gente do engenho, ninguém mais trabalhava: os escravos batucavam depois do jantar; os foreiros dançavam e cantavam; os senhores moços presenteavam as crioulas e as mulatas de estimação com belos cortes de vestidos de chita e de cassa, fios de corais, brincos de ouro, etc.

Desde o anoitecer a música preludiava o baile, que começava às nove horas e findava de manhã.

Aos que haviam assistido à inauguração era de costume mandar-se potes de melado e rapaduras, como lembrança da festa.

E enquanto o baile estuava nos salões dos senhores, enquanto a sorte coroava de bens a opulência, à luz fumarenta dos candeeiros do muro externo das senzalas, ao fogo de pequenas fogueiras que ardiam tímidas, os escravos dançavam as suas danças, cantavam as suas toadas, aos tinidos das violas, dos urucungos e das marimbas, tangidas na solidão:

A vida do preto escravo
É um pendão de penar:
Trabalhando todo dia
Sem noite pra descansar.

E um morador, sapateando na chula animada e fervente:

A cachaça é moça branca
Filha de pardo trigueiro:
Quem bebe muita cachaça
Não pode ajuntar dinheiro...

Cana verde, cana verde,
Cana do ca navial,
Eu já fui mestre d’açúcar,
Hoje sou oficial.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Uma semana mais tarde tudo estava mudado. A fazenda, adormecida à meia-noite, tomava um aspecto sinistro e aterrador. Os vaga-lumes faiscavam no campo e nos tetos das senzalas; a fornalha do engenho, como o olho esbraseado de um demônio, golfejava chamas nas trevas que fugiam espavoridas; e o silêncio, pesado como uma mortalha, caía sobre a planície e a colina.

De espaço a espaço, porém, uma melodia em voz rouca, monótona e cadenciada como o coaxar dos remos na travessia das canoas, feria o ar, despertando os ecos dos ermos... Era um velho africano, sonolento e alquebrado, que, sentado na almanjarra, tocava os animais que a rodeavam lerdos e fatigados:

Eh-bango!
Bango-eh!
Caxinguelê...
Come coco no cocá...
Tango, arirá...
Tango, arirá...

E o chicote estalava, completando a onomatopeia desta toada que terminava silábica, pausada, admirativa e estacando de súbito:

Eh – ah!...

Uma vez inaugurada a moagem, os escravos trabalhavam dia e noite, em turmas alternadas, mas sem parar.

O tempo da safra durava por meses.
 

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. 
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Manuel de Oliveira Paiva (Da pena atrás da orelha)

A vidraça tinha batido na casa fronteira, sacudindo um relâmpago pelo quarto adentro, e foi como a voz do patrão que o despertasse com todas as peripécias de um carão em regra.

Depois de ter percorrido o quarto, com o lençol de chita forradinho de branco arrastando como uma capa de rei, à procura do paletó de alpaca, do colete de fustão, da calça de gazineta, da gravata e do chapéu cinzento, desenterrando tudo isso do meio da desordem geral, como de uns escombros, enfiou a bota. Esta parecia ter o rosto inchado, como o do dono, sem lustro, como se lhe houvessem esfregado uma lixa, ela, a bota que ontem à noitinha luzia como uns olhos negros!

Quando ele alçou a perna, enfiando o dedo na presilha do cano suarento, o solado amostrou uma grande parte roída que punha em evidência os pontos até à palmilha.

Aquele sapato nem mais rangia! Coitado, era como a maior parte dos rapazes, depois que se casam. Ai da rangedeira, do lustro, do tacão, do elástico, da integridade da sola e do couro!...

O rapaz filosofava assim, cochilando sobre a outra bota, que apanhou, de perna estirada, e o pé já na meia cor de café com a pontinha branca.

O poder gigante da inércia calcava-o; e o dedo magnético dos sonhos descia-lhe de novo as cortinas dos olhos. Como num engenho d'água o fio de magro corrente, caindo, incute o giro veloz à ingente rodeira, assim, breve a modorra foi despertando a espantosa engrenagem daquele cérebro.

As ideias da gente ficam, às vezes, como fogo de monturo...

Vinham-lhe, como em ópera mágica, as apreensões de antes da festa, quando o carnaval era ainda o amanhã. As comoções do primeiro momento. As emoções, os desvarios, a espécie de abstração, de alheamento, que nos assalta em dados instantes no forte, do bom do prazer.

Sonhando a dormir repetiam-se-lhe episódios do sonhar acordado... E, como se fosse passado, intrometia-se por ali mefistofelicamente o futuro, isto é, o escritório, o pavoroso, o soturno escritório com a sua carteira bestial, com os seus livros sem inteligência e a sua pena sem luz...

Do cantinho da prensa do copiador, entretanto, saía, distintamente, uma senhora... aquele escritório era dele agora... que ventura, ele se transformava no patrão... aquela era a esposa dele que vinha reforçá-lo com os segredos do seu ser... chamava-o para almoçar, e ele voltava-se risonho:

— Já vou.

Os livros e as penas agora para ele chegavam a sentir: não tinham inteligência, nem luz, mas eram os seus amigos...

E tinha rancor a tudo que não fosse ela. Qual baile, qual nada...

0 sapato caiu-lhe da mão... Diabo, o salto bateu oco, indiferente, maquinal, frio como um aviso de despedida... O coração bateu... Faltava banhar o rosto e passar a escova nos dentes, pentear-se, escovar-se... porque enfim até isso a casa exigia.

A bacia e a moringa apresentavam-se na janela, por onde entrava o ruído da vida ressurgida na quarta-feira de cinza...

O sol parecia ondular com o vento por cima dos telhados como no pano de um circo...

Ao contato da água fria nos dedos, à carícia do ar exterior, o rapaz, esfregando os dentes na sua janela, vestido como um tresnoitado boêmio, foi que começou a acordar apenas... o sangue, chamado às gengivas pela fricção da escova, a mucosa da boca vasculejada pela água, o movimento do braço, — como um cheiro que se aplicasse ao nariz, numa síncope, — chamavam-no à vida muscular...

Porém as ruas ainda estavam caladas.

No meio do quarteirão parava uma velha carroça roxo-terra; e sentia-se asperamente o chiado seco da vassoura da limpeza pública.

Pausadamente caminhavam os caixeiros, em número escasso a abrir as lojas. Ouvia-se espaçadamente grunhirem as lingüetas, rosnarem os gonzos, em um quase silêncio. Passavam rareados convalescentes para as vacarias; e distribuidores de pão com as cestas de vime ao ombro com a costumeira manta encarnada.

Assanhava-se a bem-aventurada sonaria dos sinos, tocando ao descarrego das consciências.

E desapareciam na esquina rezadeiras apressadas.

Raparigas de vestido simples e cabelo penteado com água, as mãos Caídas sobre o ventre, com o lenço, o rosário e o manual, os sapatos comidos para um lado, de elástico esgadelhudo; a vista para o chão como se atravessassem uma região impudica; a tez empalidecida, iam, com o erotismo abafado de quem sorve a nevrose do templo por lhe ser inacessível a nevrose do mundo...

Os caixeiros sacudiam as trancas de ferro, e varriam os interiores.

Via-se, deles, alvos, robustos, de mangas arregaçadas. Defronte uns arrumavam peças de chita, com o olhar tresnoitado o pequenino.

Um belo dia que se alevantava na rua! Longe ouvia-se o bater de uma enxó e o chiar intermitente de uma serra. Um caixeiro moreno Por demais, de cabelo à escovinha, novato, muito puxado no serviço, parecia notar longamente os transeuntes, com a vassoura em descanso, e manifestava a presença desanuviada de quem conservasse ainda a doce brutalidade do sertanejo. O arzinho de chuva, que ameaçava, devia lembrar-lhes que habitar nos matos, bebendo e jantando arroz com carne odorante a queijo, respeitado não só pelo cabroeiro, que costumava tratar a meninos de família por seu cadete, como pelas autoridades e funcionários que soíam passar as mãos pela cabeça do filho do doutor fulano, e do capitão sicrano, era preferível a sujeitar-se aos apelidos de cabeça de toicinho, cabelo de espeta-caju, a suportar os carões do patrão e a aguentar o mau-trato dos colegas...

Enfiavam para o Mercado vários vendilhões, entre os quais destacavam-se os de hortaliça, com a luzente bacia de zinco donde repolhava o setim das alfaces, o crespo das couves, e repontavam os biquinhos dos quiabos, dentre a púrpura dos tomates... coentros de palminhas bordadas, e molhos de cebolas... Lá iam mulatas de xale a tiracolo com as vasilhas para as compras; marchantes, de roupa asseada e passo ligeiro com o guarda-sol debaixo do braço; meninos a distribuir jornais: pedreiros; carpinas: homens do ganho com o uru vazio: donos de casa, em pessoa para a feira... e cegos mendigos, com a mão no ombro dos guias de roupa suja e rota...

Apertando o gargalo da moringa, o rapaz encheu a bacia, e, quando a fisionomia sentiu as primeiras mãos-cheias de água, a rede elétrica dos nervos transmitiu por todo o corpo a verdadeira e definitiva sensação do despertar. Foi como se retumbasse a voz de — sentido! — por um batalhão em forma que estivesse em descanso.

E breve, no impedimento da toalha de rosto, que ele não sabia onde parava, enxugou-se no lençol."

Ensaiou os primeiros passos na direção da saída, mesmo porque já um relógio batera placidamente as sete horas. Aquilo é que era suar um coração agoniado. Sete horas, hora de horror...

"Hora de febres fatais
Hora em que gemem saudades
Dos tempos que não vêm mais!
Quando os pálidos precitos
Requeimam lábios malditos
Em taças de negro fel!...”

Mas, enfim, saiu como um doido.

Maldita caneta, livros cínicos do comércio! A Inquisição não se lembrou desse tormento pavoroso!

E naquela negação absoluta pelo trabalho, ele suspirava ardentemente, imprecativamente, como o desgraçado rico, do inferno vendo Lázaro no céu:

— Deus, oh Deus! por que não me fizeste empregado público?!

Momento depois ouvia-se ainda o ganir dos armadores ao balanço decrescente da rede, no quarto deserto e desordenado, onde as manchas de sol iam insensivelmente caminhando por cima dos trastes e das roupas e das estampas coladas na parede.

(Texto publicado em 1888)

Fonte:
Obra Completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993. 

A. A. De Assis (88 Poeminhas) – 2 –


Ebook enviado pelo poeta quando da comemoração de seus 88 anos, em 21 de abril de 2021.

23.
Bandinha de gênios
brincando ao piano e rindo.
Mozart, Beethoven, Chopin
dó-ré-mi-fá-sol-lá-sindo.

24.
O fruto é fruto do amor.
Quis Deus até
que antes de fruto
ele fosse flor.

25.
Na aguinha da bica
molha o bico o tico-tico.
Depois bica a tica.

26.
Nobre flamboyant.
O facho
que traz nos cachos
acende a manhã.

27.
Doce portuñol.
Para los niños
los nidos.
Y los abuelos.

28.
Ouro, incenso e mirra.
Que será que fez Jesus
com tais luxozinhos?

29.
Ah, os homens.
Os homens
moem-se.

30.
Cuidado, cordeiro.
Por enquanto
é cedo ainda
para confiar no lobo.

31.
Calma, irmão,
vamos sem susto.
Há sempre um anjo,
amigo e bom,
que ajuda o justo.

32.
Abaixo a vingança.
A lei do dente por dente
faz tempo ficou banguela.

33.
Século-cabeça.
Mais que a força dos Golias
vale o gênio dos Davis.

34.
A semente, grá-
vida,
leva a vida impá-
vida
para a frente.

35.
Um homem
deitado
no gelado chão.
Por que não
samaritamos?

36.
O ego é o vilão.
Só quem dele se liberta
limpa o coração.

37.
Era transromântica.
A poesia anda indagando
que coisa é
física quântica.

38.
Tão meninas elas,
as meninas dos teus olhos.
Pedem colo,
ainda.

39.
Do cérebro ao coração:
– Somente unidos, irmão,
daremos bom rumo
à história.

40.
De que nome o chamo:
pirilampo ou vaga-lume?
Tanto faz: é luz.

41.
Um raio de lua
deita no colo da rosa.
Namorinho antigo.

42.
Havia a via,
havia ação,
havia o espaço,
aviação.

43.
Voa a gaivota,
voa.
Voa, voa, voa,
vira um anjo azul.

44.
Florzinha silvestre
no jardim
do shopping-center.
Êxodo rural

Continua…
 
Imagem: montagem por José Feldman com fotos obtidas no livro
de Assis, "Vida, Verso e Prosa" e enviadas pelo poeta.

Melo Moraes Filho (A Festa da Moagem) – 1 –

(PROVÍNCIA DO RIO)


No Norte e no Sul do Brasil, as festas do trabalho, os jubileus da lavoura tinham sobre a fronte grinal das frescas e odoríferas, enramadas ao gosto dos estilos selvagens.

Aos harpejos bárbaros da floresta, ao rumor sacrílego que acordava os ermos, os fazendeiros, em suas casas de vivenda, faziam os cálculos sobre os proventos de suas plantações e consideravam no dia da inauguração da moagem, traçando planos alegres e realizáveis.

No Rio Bonito, em Capivari, na Boa Esperança, em Macacu e em toda a província do Rio de Janeiro, a começar de abril, alguma coisa de estranho se passava nas fazendas, desusada atividade punha em alvoroço foreiros e escravos.

A gente da redondeza, convidada ou não, dispunha-se a comparecer à festa anual agrícola do mês de maio, época em que todos os engenhos principiavam a funcionar.

Abandonando por toda a duração da moagem as suas magníficas e confortáveis moradias, alguns senhores, acompanhados por vezes da família, vinham residir nos engenhos, fiscalizando diretamente o trabalho. Desde maio, porém, as enxadas e as foices dos escravos lampejavam ao sol, procedendo-se à capina geral do terreiro e de suas proximidades, que abrangiam o inteiro perímetro, o quadrilátero extenso ocupado pelas construções principais e rústicas da grande propriedade.

A casa de vivenda, a do engenho, os paióis e depósitos, as senzalas extensas eram caiadas e limpas; a escravatura recebia timões de baeta azul e roupa de algodão para o gasto do ano; e, de oito a quinze dias antes da moagem, procedia-se ao corte das canas, que chegavam em carros de bois e ficavam sob os alpendres ou em depósitos especiais. Quem passava então pela estrada desfrutava um espetáculo aprazível, encantava-se diante de uma paisagem larga e pitoresca, própria do nosso clima e do nosso meio, e de acordo com o desenvolvimento relativo dos nossos proprietários rurais.

Aninhada debaixo de um céu sem névoas e quente de esplendores, a bela casa de vivenda do fazendeiro opulento dominava em uma eminência, elegante e avarandada, sobre um terreno amplo, arborizado e varrido.

À curta distância, a fábrica do açúcar levantava-se vasta, da altura de dois andares comumente, com suas varandas compridas, com seus alpendres contornantes. Os paióis e as senzalas, em planos variáveis, acentuavam o tom característico desses núcleos agrícolas, outrora tão florescentes e hoje quase infecundos.

Pontes atravessando córregos, rebanhos e bois nas pastagens, casinhas de sapé, ranchos dispersos, e uma ou outra senzala de cujo teto um esteio rompente se abria em ramas e flores – eis mais ou menos um quadro das nossas antigas fazendas, monótonas até ao enfado, à força de serem semelhantes.

Desde escura madrugada, entretanto, a vida nelas se reanimava, especialmente no tempo da moagem e da safra.

Os escravos, saudados pelo cântico das aves, pelo murmúrio dos rios, pelo espadanar das cascatas, surpreendiam as auroras do sol que os encontravam no eito; os carreiros seguiam à frente dos tardos bois, ao guincho dos carros; e os cantos dos negros em turmas eram acompanhados em surdina pelo cicio dos canaviais às virações do amanhecer:

’Sta va na praia escrevendo
Quando o vapô apitou:
Foi os olhos mais bonitos
Que as ondas do mar levou!...

Minha senhora, me venda,
Aproveite seu dinheiro;
Depois não venha dizendo
Qu’eu fugi do cativeiro.


Eram os pobres escravos do Norte que carpiam as suas saudades!

Era um pensamento talvez de suicídio, uma ideia de morte tarjando de luto a esplêndida aquarela da natureza!...

Mas o dia da festa estava marcado, e com antecedência ultimavam-se os aprestos. De véspera, a casa do engenho e as mais construções adornavam-se, interna e externamente, de troféus, de pendões vegetais entremeados de flores selvagens, de ramagens e palmas, de festões e arcadas de folhagens; no terreiro, as bandeiras, colocadas de distância em distância, flutuavam na extremidade dos bambus flexíveis e verdes; e aqui e ali os moleques e negrinhas, saltando e brincando, olhando espantados, chusmavam em algazarra, aqueles com a camisa aberta no peito, mostrando ao colo uma figurinha suspensa, um bentinho ou um rosário de devoção materna.

Matava-se um boi para o banquete dos senhores e ração dos escravos, carneiros, galinhas, etc., incumbindo-se a dona da casa, a família do agricultor, da direção das escravas doceiras, das que arranjavam o necessário para os convidados e hóspedes.

De véspera também, já se achavam na fazenda os compadres e os amigos do estimado senhor e que tinham vindo de longe com suas famílias.

Os foreiros ajudavam os escravos nos preparativos, a música se achava avisada, e os foguetes, comprados na cidade, enchiam o recanto de um aposento, para a ocasião oportuna.

As moças românticas, impressionáveis e meigas, sonhavam com os primos bacharéis; os coronéis da Guarda Nacional conversariam sobre eleições; e as influências locais não perderiam a vasa para a cabala, para apresentar o seu candidato ao futuro pleito eleitoral.

No dia da moagem, apenas a luz da manhã estava em casa de Cristo, lá vinham convidados a cavalo, famílias em carros de bois com toldos de esteiras ou de chitão lavrado, indivíduos de toda a casta, muitos dos quais descalços, trazendo às costas sapatos enfiados no ipê.

No dia da moagem...
__________________________
Continua…

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

Estante de Livros (Porteira Fechada, de Cyro Martins)

I- O Autor:


Cyro Martins nasceu em Quaraí/RS, em 1908. Médico psicanalista, foi contista, ensaísta e romancista. Pertenceu ao grupo de autores do chamado 'romance de 30', na medida em que sua obra se adequou às características levantadas para os escritores que produziram narrativas 'em que são apresentadas de forma direta os modos de existência de sociedades concretas ou supostamente concretas'.

Enquanto nos apresenta o monarca dos pampas, personagem épica na conquista e defesa da terra, Cyro fornece a outra visão do gaúcho: o trabalhador descapitalizado, pobre, desempregado, que substitui o trabalho do campo por um subemprego na cidade - o gaúcho a pé. Não há nada de épico, portanto, nas personagens de Cyro Martins.

O Autor morre em 1995.

II- Trilogia do gaúcho a pé

Quero salientar que nunca quis contribuir com a ampliação da mentira do monarca das cochilas. Nunca trarei o gaúcho como personagem em estilo ufanista. Pelo contrário, procurei ser realista, para poder ser útil de alguma forma” [Cyro Martins].

A temática do gaúcho a pé, cujo aspecto nuclear é a lenta expulsão dos peões da estância e sua inexorável pauperização nos cinturões da miséria das cidades da campanha, não foi apenas um achado casual. A temática surgiu a partir de um modo de viver os problemas, da sua circunstância social. Como médico em São João Batista do Quaraí, cenário de todos os seus romances, conheceu de perto e muito cedo as diferenças sociais e a miséria instituída pelos latifúndios.

Deste modo, na trilogia do gaúcho a pé, composta de Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova, Cyro Martins faz uma operação dolorosa, um corte vertical e profundo nos problemas sócio-econômicos que afligem a campanha a partir de 1910/20 e que vêm se avolumando.

Contexto histórico da obra Porteira Fechada

O Rio Grande do Sul dos anos 30 vive uma época de intensa efervescência política, a Revolução de 30 coloca o estado no cenário político nacional com Getúlio Vargas, que após o golpe de 37, cria o Estado Novo, decretando uma Constituição fascista, fecha o Congresso, suspende as eleições, proíbe partidos e censura a imprensa.

No cenário econômico, o Rio Grande do Sul, ainda em expansão no setor agro-pastoril, perde força no mercado nacional, competindo com produtos do centro do país. Reduzida a renda familiar e atingida drasticamente a pequena propriedade, começa a aparecer o excedente populacional nas colônias. É o primeiro passo para o fluxo migratório e o surgimento dos sem-terra.

1. Porteira fechada

Em 1944, a sua trilogia do gaúcho a pé, com Porteira fechada.

Apesar de ser um romance autônomo, que pode ser lido separadamente dos demais, continua a temática do gaúcho sem terra, iniciada em Sem rumo, e que vai terminar com Estrada nova.

Décio Freitas, na introdução que faz à Porteira fechada, comenta a consciência aguda de Cyro Martins em pintar com talento determinadas relações sociais de produção, uma das 'mais belas tentativas de romance social já realizadas entre nós'. Décio Freitas, neste mesmo prefácio, situa Cyro Martins entre os maiores romancistas rio-grandenses. Exige do autor, no entanto, um passo à frente na construção do romance, na penetração psicológica, ou seja, realização integral das suas possibilidades: “já tem experiência e equilíbrio em tal grau, que o que lhe falta em vigor artístico talvez venha a ser complementado quando Cyro Martins acertar de todo na sua vida sociológica da campanha sul-riograndense.

Porteira fechada configura a tirania econômica da classe dominante sobre a massa de trabalhadores rurais. O problema básico é - e continua sendo - o da distribuição, o da exploração das massas. A tirania econômica impõe um assalto à pequena estância; ocasiona a crise, que se traduz no êxodo contínuo às cidades do interior e à capital.

João Guedes, gaúcho pobre, com meia quadra de campo arrendado, criava e cultivava para sobreviver. Mas a miséria, antes tolerável na estância, alcança situação extrema e terrível quando o proprietário se vê obrigado a vender a quadro e o novo dono a requer para engorde do seu gado. Expulso do seu chão, João Guedes vai para os ranchos que cercam a cidade de Boa Ventura. A decadência econômica, psicológica e moral de João Guedes empurra-o para o roubo. Quase não reage, quando uma de suas filhas morre de tuberculose e a outra se prostitui. A família de João Guedes chega ao último grau da degradação humana e sua morte miserável constitui apenas o corolário deste desajuste social.

Cyro Martins, com um toque irônico, conclui: “Que engorde dava aquela invernada! Para um fim de safra, então, já com caídas para o inverno, não havia campo que se igualasse. Seiscentos novilhos pastavam folgadamente entre as altas cercas de sete fios e madeirame de lei que a tapavam. O sol entrou sem grandes esplendores. A noite caiu suavemente. Que paz naqueles campos!

2. As coxilhas sem monarca

Monarca das coxilhas= símbolo de hombridade, bravura e fortaleza de espírito.

Cyro Martins detecta e passa a analisar o problema da gradativa marginalização do gaúcho, sua expulsão da estância e seu servilismo. As causas vêm à tona aos poucos. Em Sem rumo o autor opõe de modo muito simples a ideia de um campo agradável e protetor, ainda que pobre, e de uma cidade desumana. Já em Porteira fechada, a crise econômica é causa direta dos desequilibrados, conflitos e traumas, da miséria de toda a família de João Guedes. Os personagens permanecem num total servilismo em relação ao sistema que lhes foi imposto.

Os temas de proporções épicas não correspondiam mais à realidade da desalentadora década de 1930/40. Os temas clássicos do regionalismo estavam gastos e estereotipados e Cyro Martins trouxe à tona a transição da estrutura econômica, política e social.

As personagens que porventura possamos extrair das entranhas do processo histórico a que estão subordinadas possuem uma estrutura mental primária, tanto que nem se capacitam da própria desgraça. E como essas coroas de miséria que circundam as cidades constituem uma população doente, desnutrida, consequentemente, desanimada, não possuem nem sequer o elã do protesto.

Poucos são os escritores que possuem uma visão tão clara de sua obra, dos limites e de suas potencialidades. Cyro Martins recriou um mundo, uma época de crise e de intensas transformações. Resgatou-a com empenho e talento e tornou-a viva para sempre. Além de perseverança e talento, Cyro Martins teve sorte: a vida deu-lhe cancha. E ele soube aproveitá-la.

III- Resumo:

A marginalização do gaúcho a pé, o gaúcho pobre que foi obrigado a refugiar-se, sem eira nem beira, nos arredores das cidadezinhas. Ali perde o interesse pelo trabalho, o gosto de viver, emborracha-se, adoece e morre na miséria. Esse gaúcho desenraizado, inconforme, encurralado no rancherio miserável, é apresentado na figura de João Guedes que encarna todos os sem-rumos da campanha que vêm dar nos arrabaldes das grandes cidades, onde eles, aos poucos, sentem que não encontrarão maneiras de subsistir.

Um livro apaixonadamente humano, exato e sincero na descrição das condições horríveis em que está sendo atirada a massa dos nossos trabalhadores rurais. João Guedes, o gaúcho honesto e sofredor, era pobre, com a sua meia quadra de campo arrendado. Naquela meia quadra, ele criava e cultivava, com frutos mais do que parcos e miseráveis. Mas um dia a coisa piorou mais ainda, porque o proprietário da meia quadra teve que vendê-la e o novo proprietário quis o campinho para um 'engorde'. E João Guedes é expulso do seu pedaço de terra, atirado sem rumo na estrada nova, indo para os ranchos que cercam Boa Ventura, uma típica cidadezinha do interior. Ali ele vai sofrer um processo implacável de decadência material e moral que culmina com a prática do roubo, a morte por tuberculose de uma das filhas, a perdição da outra. Um rosário de miséria, o deboche total dum punhado de seres humanos. João Guedes e a sua família chegam ao último grau de desajustamento social.

Fontes:
Algo sobre.
Passeiweb

terça-feira, 4 de maio de 2021

Adega de Versos 18: Hipólito Moura

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 23

Escrito nas estrelas que a comunicação é uma forma de transmitir conhecimentos. E não é à toa que o século vinte e um é chamado de era da comunicação - estendida para era do conhecimento.

A explosão das redes sociais nos dá a chance de buscar conhecimentos e saber de toda espécie. Não tenho notícia de outras civilizações que tenham tido a democratização do conhecimento como a atual. Mas assim como temos as tecnologias a serviço da informação e do conhecimento, muita gente também usa os meios tradicionais de buscar e disseminar cultura.

Sou dessa casta que usa os correios incessantemente, encaminhando livros e versos e prosas - meus pássaros perdidos -, assim como escrevo e recebo cartas há décadas, algumas sazonais, outras semanais, como é o caso de dois missivistas com quem troco envelopes há quase três décadas.

E quem não gosta de receber o agente do correio, entregando algo esperado, e também o não esperado ? A surpresa até parece mais gostosa, aguça a expectativa . . . E quem não fica contente quando chega um pacote maior amarrado com barbante, sabendo que chega um livro, dois livros ou mais ? Comunicação à vista, cultura chegando, saber tocando a campainha.

Alvíssaras sempre ! Delícias perenes !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Olavo Bilac (O Pecado)

A Anacleta ia caminho da igreja, muito atrapalhada, pensando no modo porque havia de dizer ao confessor os seus pecados... Teria a coragem de tudo? E a pobre Anacleta tremia só com a ideia de contar a menor daquelas coisas ao severo padre Roxo, um padre terrível, cujo olhar de coruja punha um frio na alma da gente. E a desventurada ia quase chorando de desespero, quando, já perto da igreja, encontrou a comadre Rita.

Abraços, beijos... E lá ficam as duas, no meio da praça, ao sol, conversando.

— Venho da igreja, comadre Anacleta, venho da igreja... Lá me confessei com o padre Roxo, que é um santo homem...

— Ai! comadre! — gemeu a Anacleta — Também para lá vou... e se soubesse com que medo! Nem sei se terei a ousadia de dizer os meus pecados... Aquele padre é tão rigoroso...

— Histórias, comadre, histórias! — exclamou a Rita — vá com confiança e verá que o padre Roxo não é tão mal como se diz...

— Mas é que meus pecados são grandes...

— E os meus então, filha? Olhe: disse-os todos e o Sr. padre Roxo me ouviu com toda a indulgência...

— Comadre Rita, todo o meu medo é da penitência que ele me há de impor, comadre Rita...

— Qual penitência, comadre?! — diz a outra, rindo — as penitências que ele impõe são tão brandas!... Quer saber? contei-lhe que ontem o José Ferrador me deu um beijo na boca... um grande pecado, não é verdade? Pois sabe a penitência que o padre Roxo me deu?... Mandou-me ficar com a boca de molho na pia de água benta durante cinco minutos...

— Ai! que estou perdida, senhora comadre, ai! que estou perdida! — desata a gritar a Anacleta, rompendo num pranto convulsivo — Ai! que estou perdida!

A comadre Rita, espantada, tenta em vão sossegar a outra:

— Vamos, comadre! que tem? então que é isso? Sossegue! Tenha modos! Que é isso que tem?

E a Anacleta, chorando sempre:

— Ai, comadre! é que, se ele me dá a mesma penitência que deu á senhora, não sei o que hei de fazer!

— Porque, filha? Porque?

— Porque... porque... afinal de contas... eu não sei como é que... hei de tomar um banho de assento na pia!…

Fonte:
Olavo Bilac. 7 melhores contos (seleção por August Nemo).Tacet books.

Alvitres do Prof. Renato Alves – 5 –

39.
Trovas de rima simples (rimando apenas o 2º com o 4º verso) foram muito cultivadas por grandes trovadores no passado, inclusive Luiz Otávio, o fundador da UBT.  Algumas destas trovas, além de nos remeterem à origem popular do gênero, são tão bem feitas em conteúdo e métrica, que em nada ficam a dever às trovas com o formato hoje exigido nos concursos.

Reparem que a trova abaixo, além de possuir um belo achado, usa figuras como a Prosopopeia (personificação) da “saudade” (que não “gosta” da pessoa) e uma bela Antítese repetida em dois versos, com inversão da ordem dos termos comparados.
 
Desconfio que a saudade
não gosta de ti, meu bem.
- Quando tu vens, ela vai...
Quando tu vais, ela vem!
(Luiz Otávio)

40.
Além do português castiço que se observa no uso das flexões verbais de 2ª pessoa do plural - rireis, saberdes, pousais - esta trova apresenta uma outra peculiaridade semântica bem interessante.

Reparem que o trovador, com muita criatividade, emprega no 3º verso a palavra “verde” com carga semântica dupla: “verde” tanto pode ser a cor dos olhos da amada, como pode significar “jovem”, em oposição aos olhos “maduros” (= velhos) do poeta.

Rireis talvez ao saberdes
como eu me sinto em apuros
se pousais os olhos verdes
nos meus olhos já maduros!
(José Fabiano)

41.

O valor de uma trova nunca está somente na qualidade das rimas ou na  métrica  impecável. Às vezes, rimas consideradas pobres, por exemplo, não diminuem em nada o efeito literário da trova, se ela for rica no achado ou no conteúdo metafórico empregado pelo trovador.

Observem que a trova abaixo usa rimas simples (“adas/indo”), não tem  um  achado inusitado  porque  é meramente descritiva e, no entanto,  deu a um tema sério como “cemitério”, um belo efeito poético através do uso de três criativas metáforas:
terra do sono infindo (cemitério)
casas fechadas (túmulos)
todos dormindo (mortos)

Nas brancas ruas caiadas
da terra do sono infindo,
as casas estão fechadas
e todos estão dormindo...
(João Rangel Coelho)

42.

Quando uma trova é avaliada separadamente apenas por um de seus aspectos (forma ou conteúdo) de per si, corremos o risco de não  atribuir o verdadeiro valor ao mais importante:  O conjunto forma e achado poético.  Às vezes, circulam entre nós “regras” excludentes, cuja paternidade desconhecemos, e que, sem qualquer embasamento técnico, condenam certos usos de linguagem. Exemplo: NÃO SE PODEM USAR FLEXÕES VERBAIS SEMELHANTES EM TODAS AS RIMAS!

No entanto, observemos que, na conhecida e louvada trova ao lado, e em muitas outras, o uso dessa prática em nada prejudicou a beleza poética da composição.

Sobre a mulher não discutam,
seus trejeitos  não se medem,
as mais fracas também lutam,
as mais fortes também cedem!
(Nydia Iaggi Martins)

43.

Podemos dizer que os TEMAS propostos para concursos de trovas nunca são bons ou ruins por si mesmos. Muitas vezes um tema que à primeira vista nos parece “difícil”, quando passa pelo crivo de um trovador criativo, pode gerar uma excelente trova.

Reparem como o trovador Sérgio Fonseca encontrou um ótimo achado de humor para o tema VIGIA proposto  nos Jogos Florais de Nova Friburgo/2017.

Observem também a riqueza das rimas usadas nos 2º e 4º versos:  sublimas (verbo) / primas (substantivo)

Finalmente, vejam a habilidade do trovador, ao passar do clima lírico dos primeiros versos para um desfecho humorístico perfeito nos 3º/4º versos, uma autêntica chave de ouro na trova.

Eu era, na infância dura,
quando, Amor, tudo sublimas,
vigia  da  fechadura
do quarto das minhas primas!

(Sérgio Fonseca)

44.

Há, na literatura, muitas formas de se prestar homenagem às MÃES. Escrevem-se sobre elas textos de vários gêneros (crônicas, sonetos, canções) para a justa exaltação de suas virtudes. Creio, porém, que o que deve calar mais fundo na sensibilidade materna sejam as manifestações dos filhos que, às vezes, expõem com simplicidade, em pequeninas recordações da infância, um autêntico gesto de amor filial.

Reparem, na singeleza da trova abaixo, a delicadeza de um filho, que resgata da memória afetiva esta deliciosa imagem, pedindo à mãe que lhe “sopre um vento” para aliviar uma dor.

Voa longe o pensamento...
Ah, que saudade me dói:
–Assopra, mãe! Sopra um vento
para  curar  meu  dodói
...
(Gilvan Carneiro)

45.

O “ACHADO” em qualquer obra literária é aquela maneira pessoal, peculiar, de tratar o assunto ou tema. É aquele algo original, inusitado, diferente  do que outros já fizeram. O achado é aquilo que faz valer a pena ter sido escrita a trova.
 
Na trova, o “ACHADO” pode estar não somente na exploração de uma ideia nova, mas também no uso de um jogo de palavras, na escolha de um vocabulário com sonoridade diferente, na maneira criativa de colocarem-se as ideias ou no emprego dos variados recursos estilísticos de que a língua dispõe.

Vejamos, nos exemplos a seguir, como o uso de jogos de palavras criativos valorizaram as trovas:

Poucos sabem que não sabem
tudo o que dizem saber.
Maiores saberes cabem
nos que sabem sem dizer.
(Aparício Fernandes)

Há coisas boas e más
que, para viver feliz,
a gente diz... e não faz,
a gente faz... e não diz.
(Guimarães Barreto)

Fonte:
Renato Alves. Comentando trovas.
Enviado pelo trovador.

Carla Rejane Silva (Insensata loucura)

Dia destes resolvi, num impulso, mudar um pouco a minha rotina diária. Pensei com meus botões: hoje não farei nada que antes me era habituável, ou seja, lavar passar cozinhar etc. Naquele momento o meu desejo, ou melhor, uma ânsia quase sexual, me direcionou a sair daquela mesmice. Peguei meu celular, o carregador, o notebook, passei a mão na minha mochila contendo algumas peças básicas, e parti alegre e saltitante rumo ao destino previamente programado.

Cheguei horas depois em um condomínio com apartamentos particulares alugados, tanto nas modalidades anual, mensal como, igualmente, diária. Em face da reserva feita em programação antes de sair do aconchego do meu lar, apenas me identifiquei na portaria. Fui prontamente atendida por um homem super educado, dono de um sorriso maravilhoso e cativante, de nome Orlando.

Após as apresentações pessoais e documentais, seu Orlando chamou um funcionário, que gentilmente me acompanhou até as dependências do loft que eu havia alugado. Ao adentrar no edifício, me encantei com o nome do prédio. Era uma construção de três andares e fora batizado com o nome de ‘Saudade’. De imediato, gostei deste nome. Saudade. Saudade, sempre me trazia doces recordações de um passado não muito distante. Havia uma centena de vasos de plantas espalhados em derredor, o que contribuía para formar um jardim florido, acolhedor e muito elegante por sinal.

Ao adentrar por um corredor comprido, percebi que por todo o hall, até próximo dos dois elevadores, mais plantas existiam.  Na cabine do social, o moço de nome Eusébio, apertou o terceiro. Este andar se constituía numa cobertura elegantemente bem aconchegante com uma banheira jacusi.  Ao ser aberta a porta da unidade na qual eu ficaria, dei de cara com uma poltrona marrom, de três lugares, ao lado de uma mesinha de centro com alguns bibelôs enfeitando.

Havia também um aparelho de televisão, uma mini geladeira, a cama de casal em formato de coração e um guarda roupas de duas portas. Agradeci a gentileza do rapaz e mandei-lhe uma gorjeta modesta. O funcionário agradeceu com um gesto mais de gentileza que pelo valor do dinheiro que metera correndo no bolso da calça.  Porta fechada, passei uma rápida ‘de visu’ no apartamento. Na verdade não se constituía exatamente naquilo que eu imaginava, se fazia muito melhor.

Espiei tudo, canto por canto, cômodo por cômodo. O quarto escolhido, possuía uma pequena varanda que, por sinal, me permitia ter uma visão maravilhosa do que havia à minha frente. Diante dos meus olhos, se apresentava algo esplendoroso. Um mar imenso e sem fim,  um oceano de águas calmas que se confundia com o azul do céu. Um azul infinitamente glorioso e belo. Desfiz minha pequena bagagem, guardei os pertences, no banheiro e o resto, numa das gavetas do guarda-roupas.

Para relaxar um pouco mais, tomei um gostoso banho de quase uma hora, coloquei um biquini confortável, e me preparei para ir até a praia.  Antes de sair, liguei meu notebook  para ver as novidades. Na caixa de mensagens do zap, talvez alguns e-mails deixados pelos amigos, me fariam  mais feliz do que eu já estava. Liguei o Wi-Fi e nada, sem conexão local. Tentei o roteador do meu note, igualmente, uma mensagem me pediu para harmonizar  com o aparelho do meu uso, no caso, meu celular. Nada.

Uma outra gravação lembrou que o número a e senha não existiam. Procurei insistentemente várias outras maneiras de me conectar e tudo redundou sem sucesso. Corri ao telefone fixo e disquei o ‘UM’ da recepção. À jovem que me atendeu, expliquei a situação. A resposta dela foi lacônica e em resumo, esclarecia o seguinte: ‘Senhora, a senha e o número de seu aparelho, só a senhora possui. Nós aqui não podemos ajudá-la neste infortúnio. Todavia, iremos mandar um de nossos funcionários para tentar ajudá-la’.

Agradeci e aguardei. Cinco minutos depois, de fato, o funcionário que o Condomínio me disponibilizou tentou, de várias formas me conectar ao mundo virtual, e como das vezes anteriores, sem sinal. Dispensei o cidadão bastante chateada. Me senti meio que desnorteada, abusada no que considerava uma de minhas necessidades básicas, a Internet. Por mais que a beleza que me rodeava e me ofuscava lá fora, além da varanda, perdi o colorido do passeio, foi para o beleléu. Nesse interregno, o telefone da sala do apartamento tocou. Ao atendê-lo, a mesma funcionária que há pouco falara comigo, me informou que a ‘Internet fora desligada por problemas técnicos, e que só retornaria na segunda feira, por ser final de semana’.

Foi a gota d’água que transbordou o copo. Para aumentar a minha ira, alavancar meu desespero interior, e bolinar de forma abrupta, no meu estresse virtualizado, me vi sem chão. Ato contínuo, voltei a contactar com a moça da recepção pedindo a ela que fechasse a minha estadia, sem muitas delongas. Em troca, recebi um calhamaço de desculpas e um abatimento na diária que eu havia pago. Dos males, o melhor nesta confusão toda. Desliguei tudo, refiz as minhas bugigangas, peguei meu aparelho, até então ‘apareado’ sem estar parido e voltei triste e infeliz ao meu  destino, à minha rotina e, principalmente, à minha vida extra virtual.

Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Varal de Trovas 497

 

Mia Couto (Falas do velho Tuga)


Quer que eu lhe fale de mim, quer saber de um velho asilado que nem sequer é capaz de se mexer da cama? Sobre mim sou o menos indicado para falar. E sabe porquê? Porque estranhas névoas me afastaram de mim. E agora, que estou no final de mim, não recordo ter nunca vivido.

Estou deitado neste mesmo leito há cinco anos. As paredes em volta parecem já forrar a minha inteira alma. Já nem distingo corpo do colchão. Ambos têm o mesmo cheiro, a mesma cor: o cheiro e cor da morte. Morrer, para mim, sempre foi o grande acontecimento, a surpresa súbita. Afinal, não me coube tal destino. Vou falecendo nesta grande mentira que é a imobilidade.

Também eu amei uma mulher. Foi há tempo distante. Nessa altura, eu receava o amor. Não sei se temia a palavra ou o sentimento. Se o sentimento me parecia insuficiente, a palavra soava a demasiado. Eu a desejava, sim, ela inteira, sexo e anjo, menina e mulher. Mas tudo isso foi noutro tempo, ela era ainda de tenrinha idade.

Este lugar é a pior das condenações. Já nem as minhas lembranças me acompanham. Quando eu chamo por elas me ocorrem pedaços rasgados, cacos desencontrados. Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a certeza que morro de uma só única vez. Mas não: mesmo para morrer sofro de incompetências. Eu deveria ser generoso a ponto de me suicidar. Sem chamar morte nem violentar o tempo. Simplesmente deixarmos a alma escapar por uma fresta.

Ainda há dias um desses rasgões me ocorreu por dentro. É que me surgiu, mais forte que nunca, esse pressentimento de que alguém me viria buscar. Fiquei a noite às claras, meus ouvidos esgravatando no vão escuro. E nada, outra vez nada. Quando penso nisso um mal-estar me atravessa. Sinto frio mas sei que estamos no pico do Verão. Tremores e arrepios me sacodem. Me recordo da doença que me pegou mal cheguei a este continente.

África: comecei a vê-la através da febre. Foi há muitos anos, num hospital da pequena vila, mal eu tinha chegado. Eu era já um funcionário de carreira, homem feito e preenchido. Estava preparado para os ossos do ofício mas não estava habilitado às intempéries do clima. Os acessos da malária me sacudiam na cama do hospital apenas uma semana após ter desembarcado. As tremuras me faziam estranho efeito: eu me separava de mim como duas placas que se descolam à força de serem abanadas.

Em minha cabeça, se formavam duas memórias. Uma, mais antiga, se passeava em obscura zona, olhando os mortos, suas faces frias. A outra parte era nascente, reluzente, em estreia de mim. Graças à mais antiga das doenças, em dia que não sei precisar, tremendo de suores, eu dava à luz um outro ser, nascido de mim.

Fiquei ali, na enfermaria penumbrosa, intermináveis dias. Uma estranha tosse me sufocava. Da janela me chegavam os brilhos da vida, os cantos dos infinitos pássaros. Estar doente num lugar tão cheio de vida me doía mais que a própria doença.

Foi então que eu vi a moça. Branca era a bata em contraste com a pele escura: aquela visão me despertava apetites no olhar. Ela se chamava Custódia. Era esta mesma Custódia que hoje está conosco. Na altura, ela não era mais que uma menina, recém-saída da escola. Eu não podia adivinhar que essa mulher tão jovem e tão bela me fosse acompanhar até ao final dos meus dias. Foi a minha enfermeira naqueles penosos dias. A primeira mulher negra que me tocava era uma criatura meiga, seus braços estendiam uma ponte que vencia os mais escuros abismos.

Todas as tardes ela vinha pelo corredor, os botões do uniforme desapertados, não era a roupa que se desabotoava, era a mulher que se entreabria. Ou será que por não ver mulher há tanto tempo eu perdera critério e até uma negra me porventurava? Me admirava a secura daquela pele, 0 gesto cheio de sossegos, educado para maternidades. Enquanto rodava pelo meu leito eu tocava em seu corpo. Nunca acariciara tais carnes: polposas mas duras, sem réstia de nenhum excesso.

Os dias passavam, as maleitas se sucediam. Até que, numa tarde, me assaltou um vazio como se não houvesse mundo. Ali estava eu, na despedida de ninguém. Olhei a janela: um pássaro, pousado no parapeito, recortava o poente. Foi nesse pôr do Sol que Custódia, a enfermeira, se aproximou. Senti seus passos, eram passadas delicadas, de quem sabe do chão por andar sempre descalço.

– Eu tenho um remédio, disse Custódia. É um medicamento que usamos na nossa raça. O Senhor Fernandes quer ser tratado dessa maneira?

– Quero.

– Então, hoje de noite lhe venho buscar.

E saiu, se apagando na penumbra do corredor. Como em caixilho de sombra a sua figura se afastava, imóvel como um retrato. Na janela, o pássaro deixou de se poder ver. Adormeci, doído das costas, a doença já tinha aprisionado todo meu corpo. Acordei com um sobressalto. Custódia me vestia uma bata branca, bastante hospitalar.

– Onde vamos?

– Vamos.

E fui, sem mais pergunta, tropeçando pelo corredor. Dali parei a tomar fôlego e, encostado no umbral da porta, olhei o leito onde lutara contra a morte. De repente, estranhas visões me sobressaltaram: deitado, embrulhado nos lençóis, estava eu, desorbitado. Meus olhos estavam sendo comidos pelo mesmo pássaro que atravessara o poente. Gritei Custódia, quem está na minha cama? Ela espreitou e riu-se:

– É das febres, ninguém está lá.

Fui saindo, torteando o passo. Afastamo-nos do hospital, entramos pelos trilhos campestres. Naquele tempo, as palhoças dos negros ficavam longe das povoações. Caminhava em pleno despenhadeiro, o pequeno trilho resvalava as infernais e desluzidas profundezas. Me perdi das vistas, mais tombado que amparado nesse doce corpo de Custódia.

Voltei a acordar como se subisse por uma fresta de luminosidade. Aquela luz fugidia me pareceu, primeiro, o pleno dia. Mas depois senti o fumo dessa ilusão. O calor me confirmou: estava frente a uma fogueira. O calor da cozinha da minha infância me chegou. Escutei o roçar de longas saias, mulheres mexendo em panelas. Saí da lembrança, dei conta de mim: estava nu, completamente despido, deitado em plena areia.

– Custódia!, chamei.

Mas ela não estava. Somente dois homens negros baixavam os olhos em mim. Me deu vergonha ver-me assim, descascado, alma e corpo despejados no chão. Malditos, se preparavam para me degolar? Um deles tinha uma lâmina. Vi como se agachava, o brilho da lâmina me sacudiu. Gritei: aquela era a minha voz? Queriam me matar, eu estava ali entregue às puras selvagerias, candidato a ser esquartejado, sem dó na piedade. Me desisti, covarde, desvalido. De nada lucrava recusar os intentos do negro. O homem cortou-me, sim. Mas não passou de uma pequena incisão no peito. Sangrei, fiquei a ver o sangue escorrer, lento como um rio receoso.

Um dos homens falou em língua que eu desconhecia, seus modos eram de ensonar a noite, a voz parecia a mão de Custódia quando ela me empurrava para o sonho. Voltei a deitar-me. Só então reparei que havia uma lata contendo um líquido amarelado. Com esse líquido me pintavam, em besuntação danada. Depois, me ajeitaram o pescoço para me fazerem beber um amargo licor. Choravam, pareceu-me de início. Mas não: cantavam em surdina. Dores de morrer me puxavam as vísceras. Vomitei, vomitei tanto que parecia estar-me a atirar fora de mim, me desfazendo em babas e azedos. Cansado, sem fôlego nem para arfar, apaguei.

No outro dia, acordei, sem estremunhações. Estava de novo no hospital, vestido de meu regulamentar pijama. Qualquer coisa acontecera? Eu tinha saído em deambulação de magias, rituais africanos? Nada parecia. Verdade era que eu me sentia bem, pela primeira vez me chegavam as forças. Me levantei como uma toupeira saída da pesada tampa do escuro. Primeira coisa: fui à janela. A luz me cegou. Podia haver tantas cores, assim tão vivas e quentes?

Foi então que eu vi as árvores, enormes sentinelas da terra. Nesse momento aprendi a espreitar as árvores. São os únicos monumentos na África, os testemunhos da antiguidade. Me diga uma coisa: lá fora ainda existem? Pergunto sobre as árvores.

Quer saber mais? Agora estou cansado. Tenho que respirar muito. Há tanto tempo que eu não falava assim, às horas de tempo. Não vá ainda, espere. Vamos fazer uma combinação: você divulga estas minhas palavras lá no jornal de Portugal – como é que se chama mesmo o tal jornal? – e depois me ajuda a procurar a minha família. É que sabe: eu só posso sair daqui pela mão deles. Senão, que lugar terei lá no mundo? Traga-me um qualquer parente. Quem sabe, depois disso, ficamos mesmo amigos.

Você sabe como eu confirmo que estou ficando velho? É da maneira que não faço mais amigos. Aqueles de que me lembro são os que eu fiz quando era novo. A idade nos vai minguando, já não fazemos novas amizades. Da próxima vez venha com um parente. Ou faça mesmo o senhor de conta que é meu familiar.

Fonte:
Mia Couto. Contos do nascer da terra.