terça-feira, 30 de novembro de 2021

Contos e Lendas do Paraná - 7 (São José dos Pinhais: As Cruzes da Ponte Velha)


Em 1930, na antiga estrada que ligava a cidade de São José dos Pinhais a Curitiba, uma mãe e sua filha, uma criança de cerca de um ano de idade, retornavam da capital quando logo após a ponte do rio Iguaçu, o cavalo, possivelmente assustado por uma cobra, disparou, causando acidente no qual morreram as duas ocupantes da charrete.

Pessoas bastante conhecidas na pequena comunidade de São José, as finadas receberam o pranto da cidade e a homenagem do marido e pai, que para assinalar o local da tragédia mandou ali erigir cruzes, como ainda hoje é costume. Entretanto, como forma de evidenciar a amplitude do desastre, do braço direito da cruz maior edificou-se uma menor, simbolizando portanto a mãe com a filha ao colo. A partir daí, o local tornou-se estéril ao ponto de não se ouvir sequer um passarinho, embora esses cantassem a poucos metros além. As árvores tornaram-se ressequidas e o lugar revestiu-se de um clima lúgubre, invocando luto e dor.

Não se sabe quem foi o passante que ouviu, primeiramente, os lamentos das mortas, mas a expressão de pavor com que chegou à cidade demonstrou desde logo que não se tratava de pilhéria. O lugar, triste durante o dia, tornava-se horripilante à noite, pois os cavalos assustavam-se e seus condutores ouviam nitidamente o choro da mulher e da criança, seus gemidos de dor e a angústia que suplantava a morte.

Os sãojoseenses passaram a evitar a estrada à noite, os menos corajosos utilizavam um contorno de muitas horas pela estrada da Cachoeira, quando não conseguiam retornar à luz do dia; mesmo os mais bravos passavam com os cavalos à toda brida, não obstante o risco de acidentes. Conta-se que até os raros automóveis existentes na época apresentavam problemas ao passar por ali. Muitas foram as pessoas, todas de integral credibilidade, que chegaram a ver a mulher com a filha nos braços, envoltas, ambas, em fantasmagóricas brumas e chorando copiosamente.

A cidade, já naturalmente pequena, fechou-se por completo. Quando, após o cair da noite ouvia-se o tropel de cavalos vindos de Curitiba, automaticamente concluía tratar-se de forasteiros, que, desconhecendo o fato, chegavam esbaforidos e apavorados.

Vários meses passaram em tal situação, até que um sãojoseense, ausente da região há muito tempo e portanto desconhecedor da crise, passou pelo local. Apenas havia cruzado a ponte, sentiu o cavalo tornar-se amedrontado e indócil, como que querendo retroceder; habituado ao animal, não compreendeu a atitude, até que viu, à esquerda da estrada e poucos metros à frente, o vulto fantasmagórico, que com a criança no colo vinha em sua direção. Certamente, foi o susto que o fez distrair-se da montaria, que num salto súbito jogou ao chão o cavaleiro e fugiu, a todo galope na direção de São José.

Ninguém soube ao certo, se foi por coragem que o homem dialogou com a morta, ou se foi o medo que, paralisando-lhe as pernas, impediu sua fuga. Mas o fato é que depois de meses de terror finalmente alguém aproximou-se dos fantasmas e indagou o motivo de suas penas, a razão de não se encontrarem no repouso eterno.

“Tirem a criança de meu braço, ela é muito pesada, já não suporto mais”. Foi a resposta do espírito. Nada mais disse, apenas continuou chorando e segurando a criança, que também chorava.

Dizem que aquela noite ninguém dormiu em São José dos Pinhais, a notícia trazida pelo passante espalhou-se como fogo na pólvora e os notáveis do lugar viram o dia amanhecer na casa do viúvo, onde haviam ocorrido para a busca da realização do desejo da morta, cuja solução libertaria não somente os espíritos, mas também a cidade de sua sina.

O preguiçoso nevoeiro de inverno ainda não começava a levantar quando, trêmulos pela falta de sono, ou pelo justo receio, mais de vinte sãojoseenses, acompanhando o viúvo desceram da cidadezinha em direção ao Iguaçu. As mulheres rezavam o terço liberadas pelo vigário, os homens iam silenciosos, talvez pensando se lhes valeriam de alguma coisa as pistolas ocultas sob os paletós. A pequena multidão, rezando, postou-se em frente às cruzes, até que alguém, olhando-as, lembrou-se das palavras da finada e sugeriu que fossem desmanchadas, já que efetivamente eram a mãe com a criança ao colo e talvez essa fosse a causa do sofrimento. Após alguma discussão, finalmente resolveu-se pela retirada das cruzes, já que nada custava tentar.

Foi a solução. Segundo as testemunhas, um momento após o desmanche das cruzes, o lugar pareceu ganhar vida, todos sentiram uma leve brisa e os passarinhos, até então ausentes, encheram de sons o anteriormente lúgubre local. As cruzes foram posteriormente substituídas por uma minúscula capela e as madeiras que as confeccionaram atiradas ao rio. Após algumas semanas de desconfiança, finalmente concluíram os habitantes que a assombração havia desaparecido e a cidade voltou ao normal, embora todos apressassem o passo quando transitavam pelo local.

Algumas décadas mais tarde, com a construção da avenida Marechal Floriano, o local passou a chamar-se Ponte Velha e foi caindo em desuso, até que a própria ponte ruiu. Reparada anos depois, tornou a envelhecer e desapareceu. Hoje, não existe mais a estrada e o mato tomou conta de tudo, da ponte velha restaram apenas alguns vestígios de estacas cravadas no Iguaçu.

Do episódio pouca gente se lembra, embora ninguém entenda porque aquela região tão antiga nunca foi convenientemente povoada. Há, atualmente, pouquíssimas testemunhas da crise, além do velho rio e algumas das árvores antigas. Contudo, mesmo sem conhecer a história, há quem jure que em certas noites de lua pode-se ouvir por ali o riso inocente e alegre de uma criança, mas isso não sabemos se é verdade.

Fonte:
Paulino Siqueira Cortes Neto. Tertúlia & Causos Lendas Sãojoseenses; coleção Autores da Terra, v. 4, 1996. Disponível em Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Versejando 90


 

A. A. De Assis (Maringá Gota a Gota) O ontem, eterno hoje

No prefácio do livro “A história dos normandos”, do querido amigo professor Thomas Bonnici (Maringá: Edições Diálogos, UEM, 2021), o professor Leandro Rust, da Universidade de Brasília, escreve que “ler (sobre ‘o que um dia existiu') seria trazer o ontem para perto”. Fiquei com essa ideia na cabeça, pensando no extraordinário valor da memória.

O cérebro humano tem sido descrito como o que há de mais fantástico em matéria de “computador”. Graças a ele preservamos um capital preciosíssimo – todas as nossas lembranças, guardadinhas como se fosse num livro que podemos reler a qualquer momento.

No meu “livro” não há nada minimamente comparável à grandiosa história dos normandos, tão bem narrada pelo Doutor Thomas. Tem, todavia, completa, a história de minha vida.

Já nas primeiras páginas me reencontro menino na paisagem rural onde nasci, na região montanhosa do município de São Fidélis-RJ. Nossa casa ficava num vale chamado “Bela Joana”. Na frente havia o terreiro e logo acima a área cultivada – o pasto e as plantações: café, milho, feijão, mandioca etc. No fundo, a horta, o galinheiro, a ceva de porcos e o pomar cheio de fruteiras e passarinhos. Um pouco abaixo passava o rio. No outro lado do rio começava uma grande mata, que cobria toda aquela banda da serra. Até onça tinha.

Nas páginas seguintes estou eu adolescente já morando na cidade. Nitidamente me revejo jogando bola de meia na Vila Nova; nadando no rio Paraíba do Sul; levando pito de Dona Morgada no Grupo Escolar Barão de Macaúbas; recitando latim nas aulas do professor Expedito; assistindo missa do padre Augusto; torcendo pelo Esportivo contra o Tabajaras...

Mais adiante me reflagro chegando a Maringá, janeiro de 1955. Foi muito legal já no primeiro dia conhecer um dos grandes ícones da geração pioneira – Ângelo Planas. Depois, pouco a pouco, fui conhecendo todos os outros.

Vou folheando o “livro” e trazendo de volta outros ontens que tive a alegria de partilhar, especialmente como jornalista, na fascinante história deste maravilhoso lugar. Lá estou eu entrevistando o primeiro prefeito, Villanova Júnior; entrevistando o primeiro bispo, Dom Jaime, na primeira semana após sua chegada à diocese; convivendo com os primeiros caciques do jornalismo local – Aristeu Brandespim, Manoel Tavares, Ivens Lagoano Pacheco; reportando a inauguração do Grande Hotel, da Catedral, do Parque do Ingá, da Universidade. Depois, como professor, convivendo e aprendendo com dezenas de valorosos e queridíssimos colegas e participando da formação de centenas de alunos que aí estão brilhando em todos os campos.

Bendita seja a memória da gente – o riquíssimo “livro” em cujas páginas os nossos ontens sobrevivem como eternos hojes. Lá estão tantos rostos que um dia para nós sorriram, tantas mãos que de algum modo um dia nos ajudaram, tantos familiares e amigos com os quais repartimos a graça de existir. Lá estão, facilmente reprisáveis, os nossos melhores momentos. Um tesouro habitualmente chamado saudade.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 04–11–2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas) – 4 –

Acabou-se o nosso amor,
e restou-me as cicatrizes,
e aquele amargo sabor
das bocas dos infelizes!
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A nostalgia transforma
o seu semblante singelo,
em um fantasma sem forma,
para assombrar meu castelo!
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Aquele aceno no porto,
pausei em minha memória:
você foi... Deixou-me morto,
mas não matou nossa história.
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Despreza a mim com fervor;
faz-me de marionete.
Compete a ela o dissabor
e a dor que não me compete.
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Deusa de beleza infinda,
és grande sendo pequena,
e, em verdade, és mais linda
que qualquer flor de açucena!
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Dói, corrói e me consome;
fere-me... E quando anoitece,
recrudesce em mim seu nome,
e o faço de minha prece.
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Dois meses de amor intenso,
e hoje esse lenço em meu rosto
enxugando o pranto imenso
que me causou o desgosto.
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Em passos lentos prossigo
nessa minha extrema estrada,
levando sempre comigo
saudades dela, e mais nada!
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Engano a mim quando digo
que lhe esqueci de repente,
e não sei como consigo,
se vivo a pensar na gente!
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Esse seu sorriso lindo,
seus olhos celestiais,
deixam minha alma sorrindo
e eu, amor, lhe amando mais!
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És meiga, amável, singela...
tens um sorriso incomum;
para mim és a mais bela
rosa de Cafarnaum!
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Estou de volta ao começo,
mas pareço estar no fim...
De saudade, assim, padeço,
e me esqueço mais de mim.
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Eu cansei! Mas tudo passa,
e se tratando de amor:
hoje quero ser a caça;
cansei de ser caçador.
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"Eu... você... as confidências..."
E aquele amor de nós dois,
tornou-se duas ausências:
você primeiro, eu depois!
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Irei lhe esquecer; eu juro!
E lhe asseguro ao dizer:
hoje não mais me aventuro
só por noites de prazer!
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Longe de ti eu padeço
em meu ranchinho de palha,
e a saudade, com apreço,
corta-me como navalha!
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Longe de você padeço,
e alimentando o teor,
lembro-me mais do que esqueço
nossos momentos de amor.
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Nada aplaca a dor deixada
e a tristeza renitente,
quando uma pessoa amada
vai para longe da gente!
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Não sei, amor, até quando,
suportarei sua ausência,
e a solidão me abraçando
com a cruel competência!
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Na solidão do meu quarto,
procurei você, em vão;
não lhe achei e fiquei farto
desta cruel solidão.
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Nosso amor de primavera,
perdeu de vez o seu trono.
Hoje ele é o que não era:
folhas caídas no outono.
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Nosso amor morre aos pouquinhos:
é roseira envenenada,
sem rosa e cheia de espinhos,
secando à beira da estrada!
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Nosso amor virou romance,
depois filme no cinema;
hoje não passa de um lance
que não vale meu poema!
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O meu frágil coração
não irá suportar mais
a grandiosa solidão,
que fica quando te vais.
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O meu peito é um casarão
com dimensão infinita.
Nele habita o coração
onde a solidão habita.
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Por você daria a vida
e aguentarei qualquer dor;
não deixe esvair, querida,
nossos momentos de amor!
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Quando lhe busco em meu sonho,
encontro você em meus braços,
e com amor - e risonho -
lhe encho de beijos e abraços.
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Quando meus olhos castanhos,
encontram os vossos verdes,
sinto fulgores tamanhos
que me agitam todo ao verdes!
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Saber que não esqueceu
nossa noite de ternura,
você me faz pensar que eu
sou o que você procura.
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Sempre eu a acordo beijando,
e ela me sorri feliz,
e no jardim vai tocando
a orquestra de colibris.
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Sempre que o dia amanhece,
com seu sol resplandecente,
pássaros cantam em prece
bendizendo o amor da gente.
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Sem você meu dia é triste,
tudo foge dos compassos,
mas uma esperança existe:
adormecer em seus braços.
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Seu corpo é um templo sagrado,
e da perfeição é exemplo.
Eu o contemplo ajoelhado
feito um fiel em seu templo.
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Todo dia eu me indisponho
com essa saudade sua,
que transformou o sonho
em uma noite sem lua!
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Venha, Amor, venha depressa,
vamos juntos ver a lua;
e caminharmos, sem pressa,
de mãos dadas pela rua.
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Você partiu de repente,
e eu sofri! Mas não importa.
Há muito esqueci da gente
e para mim está morta!
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Você pensa que este pranto
que eu estou chorando agora,
é de tristeza, portanto,
falo-lhe não ser, senhora.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor.

Milton Hatoum (Segredos da Marquesa)

Outro dia soube que morreu uma mulher querida. Tinha um nome meio pomposo, de marquesa, mas não era nobre nem frequentava os salões dos decadentes barões da borracha. Com ela morreu a memória de uma época.

A Marquesa era uma amazonense que sonhava com o Rio de Janeiro. Realizou o sonho e morou mais da metade de sua vida num pequeno apartamento de Copacabana. Quando você se dá conta -, o tempo já deu suas voltas e foi embora, veloz e matreiro como uma distração.

Era mãe de uma amiga minha, mas destoava de outras mães, tão convencionais e carolas, tão donas de casa e voltadas apenas para o marido, o lar, os filhos. A Marquesa convidava crianças humildes para brincar com sua filha: crianças que moravam em palafitas na beira dos igarapés próximos do nosso bairro. Esse gesto generoso irritava certas mães, que proibiam os "indiozinhos" de conviver com seus filhos, mas não podiam viver sem as mãos serviçais das mães desses mesmos curumins (1)* e cunhantãs (2)*.

Aos sábados, brincávamos e merendávamos no quintal da casa da Marquesa; às vezes nos levava para assistir a um filme no cine Guarany, o antigo teatro Alcazar. Éramos oito ou dez crianças na matinê de sábado, nossa noite de sonho e fantasia no meio da tarde. Depois da sessão, tomávamos tacacá (3)* na barraca de d. Vitória, ali na calçada do cine Odeon, uma das maravilhas de Manaus.

Ao meio-dia, quando eu chegava do Ginásio Pedro II, ia visitar minha amiga e encontrava a Marquesa na sala, lendo uma revista francesa, ouvindo Bach ou Villa-Lobos; às vezes ela entrava em casa para conversar sobre música com a professora de piano da minha irmã caçula. E entrava também na roda dos homens para falar de política. O marido dela, um homem rígido e poderoso, sumia quando ela falava. Não sei por que casaram, talvez por amor, mas os dois amantes pareciam inimigos, como no poema de Drummond.

Na primeira semana de abril de 1964, ela reuniu os amigos da filha e disse que o país estava nas "garras dos bárbaros". Eu tinha doze anos e não entendi; mas memorizei essas palavras: nas garras dos bárbaros. Aos poucos, ela percebeu que o marido bajulava os milicos, recebia políticos servis e interesseiros, raposas que passaram a frequentar a sala e o quintal de sua casa. Quando eles chegavam com garras afiadas e inchados de empáfia, ela saía ou se trancava no quarto para não ver essa gente.

Foi nessa época que começou a beber, e, quando bebia muito, era capaz de desafiar até o diabo, com ou sem farda. Por desamor ou indiferença - ou por algo mais -, ela se viu sozinha no casamento e decidiu viajar com a filha para o Rio. Calhou de conversarmos a sós em várias ocasiões; em algum dia de 1967 lhe disse que eu também queria partir.

E então, na despedida, me revelou que era amante de um homem que eu conhecia: queria viver com ele em Copacabana. Esse era o algo mais. Ou alguém a mais na vida da Marquesa: uma história de amor, movida por encontros esporádicos, que duraram mais de duas décadas.

Ela se confinou em Copacabana e eu dei voltas pelo Brasil, sempre pensando em visitá-la, curioso por saber o nome do amante que, segundo a Marquesa, eu conhecia. Até simulava uma conversa com ela antes desse encontro prometido e tantas vezes adiado.

Enfim, visitei-a em 1978, quando lancei no Rio um livrinho de poesia. Almocei em seu apartamento de Copacabana, depois andamos até o Forte, onde conversamos sobre sua filha, minha amiga de infância, que estava morando em Londres.

"Ela fugiu das garras dos bárbaros?"

A Marquesa deu uma risada:

"E das garras da mãe."

No fim da tarde, revelou que seu amante - o homem que eu conhecia – era um dos meus tios solteiros.

A revelação me deixou mudo por um momento. Mas não resisti e perguntei qual deles.

"O galã sonhador", disse, sem hesitar. "De vez em quando a gente namora aqui no Rio. Não piso mais em Manaus."

Revelou outras coisas de sua vida, e contou detalhes da história amorosa com o galã sonhador. Nunca os imaginei juntos, nem desconfiei do caso entre os dois. Foi uma história de amor clandestina, que resistiu ao mau olhado da província e, depois, à velhice. No fim do nosso encontro, disse que eu podia aproveitar tudo o que ela havia me contado.

"Aproveitar?"

"Se um dia tu escreveres um romance..."

Mais de vinte anos depois do nosso encontro no Forte de Copacabana, me lembrei das histórias da Marquesa e, de fato, fiz de alguns lances de sua vida uma ficção.

Quando leu o romance, me telefonou para dizer que eu havia exagerado e inventado tanta coisa que mal se reconheceu na personagem da mulher adúltera.

"Ainda bem", eu disse. "Se tivesse sido fiel à tua história, qual teria sido a reação da tua filha e do teu ex-marido?"

"Minha filha teria adorado, porque ela sabe de tudo. E meu ex-marido já virou pó. Não sabias? Morreu de infarto. Deve estar no inferno, limpando as botas dos amigos dele."

Ia lamentar a morte do pai de minha amiga, mas decidi não dizer nada. Depois de uns segundos de silêncio, a Marquesa completou: "Além disso, ele nunca gostou de literatura. Por que iria ler o teu livro?".
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* Vocabulário:
(1) CURUMINS = garotos, rapazinhos, meninos de pouca idade.
(2) CUNHANTÃS = moças, meninas.
(3) TACACÁ = sendo de origem indígena, é uma comida típica da região amazônica. O caldo amarelado à base de mandioca, chamado de tucupi, preparado com goma, camarão e jambu é servido bem quente em cuias.


Fonte:
Revista EntreLivros n. 31. Ed. Duetto, nov. 2007.

Minha Estante de Livros (“Um solitário à espreita”, de Milton Hatoum)

A literatura, os afetos e a realidade examinados com lirismo e inteligência por um dos maiores ficcionistas brasileiros da atualidade. O amazonense Milton Hatoum é um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea, traduzido no exterior, reconhecido por um vasto número de leitores e admirado pela melhor crítica.

Além de ficcionista, Hatoum também é cronista de mão cheia, espraiando seu texto leve e inteligente por diversas publicações. É o caso das crônicas selecionadas para este volume, noventa e seis amostras do texto sensível e arguto do autor de Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e outros títulos.

Dividido em quatro seções que dão conta de temas como língua e literatura, a realidade, a memória e os afetos, além de pequenas fabulações, Um solitário à espreita traz para a forma da crônica, este gênero tradicionalmente praticado por alguns dos melhores autores brasileiros, a visão de mundo e as opiniões de Milton Hatoum. O futuro da literatura, a dureza dos anos vividos sob o regime militar, a realidade cambiante das nossas grandes cidades - tudo isso vem embalado numa prosa tão gentil quanto especulativa, tão sagaz quanto calorosa. Um passeio delicioso, em suma.

Na coletânea Um solitário à espreita o autor sempre relaciona  algumas  crônicas  com sua  infância  e  adolescência  em  meio  ao  cenário  manauara, Manaus  tem  uma  grande importância para o autor, pois ele faz questão de relata-la de maneira que se fixe bem para seu leitor  os valores  culturais  e  arquitetônicos, a modificação  do  espaço  geográfico,  com  o abandono  e destruição  do cenário histórico o  inquieta, talvez  por  isso percebe-se  nestas crônicas,a tamanha importância de retomar o passado, para deixar registrado que Manaus foi algo  deslumbrante  e  que  hoje,  assim  como  toda  grande  metrópole,  teve  e  vem  sendo modificada drasticamente perdendo um pouco sua identidade ou buscando uma.

Em Segredos da Marquesa, por exemplo, podemos perceber algumas palavras típicas da região e que provavelmente irá despertar a curiosidade do leitor e que retrata a Manaus antiga, rica, porém contrastava com a pobreza de seus moradores. o autor retoma a infância para falar de uma mulher, e busca palavras da região, assim como comidas típicas, a riqueza citando cinemas e teatros. O leitor, não sendo da região amazônica, nunca irá saber o que é curumins e cunhantãs, tacacá, a grandeza que era o cine Guarany e Odeon, a menos que se busque na história, na época da borracha, o qual significante ela foi para a região. Utilizou-se do tema de adultério do qual a marquesa era o centro da crônica, para narrar como era a vida urbana em Manaus, o seu despontar na época da borracha, o que se refletia nos cinemas e teatros.

Outro ponto principal, é que a crônica além de registrar fatos do cotidiano, ela fixa época, e para Hatoum a fixação na maioria das vezes vem acompanhada de ficção, na qual deixa para que o leitor essa escolha (realidade ou ficção) dos fatos que registram estes acontecimentos socioculturais da época, já que os eventos narrados estão situados no contexto histórico, em determinados lugares, espaço e tempo, hora psicológico, hora cronológico.

Para Hatoum ao falar de sua mãe, o ser mais afetuoso que maioria de nós a cultuamos, para ele não é diferente, mais a coloca de forma também de lembrança, como em um retrato, em um telefonema, indo ao dentista, a feira, coisas simples que a torna admirável e por quem se criou afeto.

No livro ele demonstra outros afetos, como por exemplo, pela cidade de Manaus, ao lembrar-se da sua infância e vindas depois de alguns anos fora, pelos familiares e amigos, por seu papagaio de estimação, a vizinhos, a professores, aos lugares que viveu, enfim, realmente Hatoum é um ser afetuoso e que não esconde isso, pelo contrário, o expõe de maneira simples e bem deliciosa de se ler, seria a forma de retribuir seu afeto ao público.

Um Solitário à Espreita é um livro desafiador, devido sua forma híbrida: meio crônica, meio conto, meio tábua de memória, com a reunião do que de melhor Hatoum escreveu em revistas, jornais e sítios literários pelo Brasil e mundo afora nos últimos anos. O título do livro por si só, Um Solitário à Espreita, desafia-nos a pensar no ato de um sujeito que sonda o cotidiano, trazendo para o lado do autor, seria ele como o criador, o solitário, com seus pensamentos que é terra de ninguém somente dele, transpondo para a escrita o que vê, as pessoas, a natureza, a vida. E ao mesmo tempo o leitor sem a solidão, pois diante de um livro ninguém é solitário, mesmo que para isso se esteja em silêncio, pois na verdade, é o silêncio que nos espreita, fazendo-nos transportar, pensar, concordar ou discordar, viver o que está ali registrado.

Algo bem interessante do livro é a metalinguagem que permeia a maioria dos textos. O livro Um Solitário à Espreita é um espelho, pode servir como uma espécie de modelo para quem almeja a escrita, como belo exemplo de roteiro podemos citar, as crônicas “Um Inseto Sentimental” e “Celebridades, Personagens e Bananas”. Sua humildade e maturidade faz com que Hatoum se importe em transparecer, na sua escrita, essa “cartilha” o passo-a-passo aos que se interessam em aprender a dominar a escrita. Somado a isso ele deixa no rastro de sua escrita um rol de autores, livros e personagens: J. L. Borges, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Max Martins, Charles Baudelaire, Nicolas Behr, João Cabral de Melo Neto, Juan Carlo Onetti, Gustave Flaubert, entre outros.

Não é a toa, que Hatoum é considerado um dos principais ficcionistas brasileiros da atualidade, nada pretensioso ele mescla, ficção e realidade, leituras e autores marcantes, bem como seus personagens inesquecíveis. Ao falar de política, trata com ironia e critica; ao falar da pobreza e miséria, aflora sua revolta e humanismo; ao relembrar suas viagens, é como se retomasse as aventuras e experiências que o fizeram melhorar; também fala do exílio e migração assuntos que percebemos a solidariedade e o lado sensível para com seus amigos e desconhecidos.

Porém o que mais chama atenção no livro é o fato de que pode ser lido como uma coletânea de textos de experiências que se fez fixadora na memória de Hatoum. Manaus tem uma grande oportunidade de fixação de seus valores culturais e arquitetônicos, a destruição do passado histórico percebe-se nas páginas, incomoda sobremaneira o cronista. Com narrativas curtas, também característica da crônica, é como se o que está escrito houvesse a finalidade fixar-se na mente e no imaginário de quem a ler, de maneira rápida, porém duradoura.

Embora Manaus (e os arredores do Rio Negro) funcione como uma espécie de eco simbólico da infância do autor, Belém também tem seus momentos de citação, em quatro crônicas do livro. Enfim, Um Solitário à Espreita é uma obra que nos toca e nos faz lembrar e ter um olhar diferente diante de coisas que outrora eram despercebidas, como a simplicidade do vendedor de frutas, um inseto, uma conversa, a ida ao médico, a chuva ou um dia de sol, tudo que se espreitar, que é o observar atentamente, pode ter a dimensão que se quer e se tornar inesquecível ao ser registrado através da escrita.

Fontes:
Companhia das Letras.
– Trechos do artigo de Manoela da Silva Rodrigues. Análise sobre as crônicas de Milton Hatoum: Um solitário à espreita. Revista Decifrar. vol. 04, n. 07. Manaus/AM: Universidade Federal do Amazonas – UFAM, Janl/Jun-2016.

domingo, 28 de novembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 19

 


Aparecido Raimundo de Souza (Xeque-Mate)


O APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE TERREMOTO reside possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampa cinza e, no meio, um buraquinho redondo, com duas pernas de fios soltas. Quando chega alguém à cata do morador (que nunca ninguém viu, nem mais gordo, nem mais magro, nem mesmo Terremoto), existe abaixo do olho mágico uma caixinha dessas modernas, ou melhor, a campainha de verdade, para que seja comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há gente a sua espera do lado de fora.

Sempre que surge uma pessoa no corredor, Terremoto logo fica sabendo, não porque bisbilhote o tempo todo mas, simplesmente, porque o alarme sonoro do subir e descer do elevador disparava um“plim” e, corroborando com a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da velha porta da engenhoca começam a ranger desesperadamente.

Nessas ocasiões, Terremoto aproveita para espiar pelo olho mágico e ver quem é a visita que anda em busca do vizinho fantasma. Curiosidade de quem já trabalhou muito na vida, se aposentou com um bom salário por mês e não tem, realmente, o que fazer, além de dormir e não fazer nada. Contudo, um excelente exercício para matar o tempo ocioso, vez que se depara com as situações mais engraçadas e inusitadas possíveis.

Dias atrás, uma moça com os cabelos vermelhos elegantemente vestida, procurava pela campainha. Como todos os demais, ela não viu diante de si a caixinha, abaixo do olho mágico e, por essa razão, começou a futucar aqui e ali, na esperança de enfiar um dos dedos no orifício da tampa cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada. Talvez fossem as unhas compridas ou os anéis que atrapalhassem. Quem sabe nem uma coisa nem outra. Em seguida, ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de, a qualquer custo, fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Um faniquito repentino a fez sair furiosa, cuspindo marimbondos.

Não foi diferente com um cidadão baixinho, de chapéu na cabeça e uma bolsa dessas 007. Possivelmente cobrador. O infeliz chegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas, meter o nariz no olho mágico, objetivando ver se enxergava alguma coisa no interior do apartamento. Também teve problemas com os fios. Quase certo que pelo ar desagradável que se fechou em seu rosto, tomou uma tremenda descarga. Desistiu, pois, da empreitada. Resmungando, deu meia volta e desapareceu.

Terremoto chegou à conclusão de que as pessoas, de um modo geral, são levadas e expostas ao ridículo por pura comodidade. Ninguém para por alguns instantes com a intenção de analisar o que está posto e visível diante do óbvio. Pensar numa solução simples que desencadeie algum resultado prático. Às vezes, uma insignificância de solução clara está logo ali, atropelando, mas a pressa e o nervosismo juntos, de mãos dadas com a velha burrice botam tudo a perder.

O cômico na história do vizinho extravagante se resumia num só objetivo. Quem quer que pintasse no pedaço, se via logo às voltas com os fios da campainha. Talvez, no fundo, fosse essa a verdadeira intenção do engraçadinho. Dar choque nos chatos que não desistiam de vir até sua residência perturbar o sossego. Com certeza, o canastrão deveria rir um bocado e se divertir às expensas dos apalermados. De qualquer forma, deixava claro que não queria, decididamente, ser incomodado por ninguém. Pairava no ar uma dúvida cruel. E essa dúvida deixava Terremoto com a pulga atrás da orelha. Por que o cidadão divulgava aquele endereço, se não queria ser encontrado nele? E se espalhava com qual objetivo? Fazer pouco caso? Tirar sarro? Zombar dos seus semelhantes? Mais cômodo seria indicar um local público, um shopping, ou marcar um barzinho.

Perto dali havia um café expresso espetacular, com garçonetes lindas de serem vistas. Tudo bem que as pessoas devam preservar a sua individualidade, resguardar a sua privacidade com unhas e dentes. Com fios desencapados, certamente, o cúmulo do absurdo. As duas pernas de fios soltas da suposta campainha, de certa forma, instigavam a atenção dos que acampavam diante da entrada, fossem quais fossem os motivos que os levassem a estar ali. Pelo sim, pelo não, os que se aventuravam, esqueciam de atentar para um detalhe insignificante, qual seja, fazer soar o botãozinho politicamente correto, e à vista de um cego, logo abaixo do tal olho mágico.

Terremoto percebeu, nessas olhadelas, que cada ser humano reagia de uma maneira diferente. Uns xingavam, outros faziam caretas, alguns chutavam as paredes. A maioria olhava para os lados, desconfiada. Teve um visitante que se deu ao trabalho de encarar o olho mágico de Terremoto. Não se sabe com qual finalidade. Levou um baita susto. Ficou evidente que se descobrira com a boca na botija. As mulheres eram as mais interessantes de serem reparadas: puxavam a calcinha, penteavam os cabelos, retocavam a maquiagem do rosto, refaziam o batom dos lábios.

Os homens, como sempre, menos exigentes com a aparência, limitavam-se a corrigir o nó da gravata, dar uma ajeitadinha nos óculos, e uma batidinha discreta no paletó, para afastar algum cisco por ventura deixado como vento. Pensavam em tudo, esses ilustres visitantes, mas esqueciam do mais trivial: Premir com o indicador o botãozinho da segunda campainha, logo abaixo do olho mágico ou, por outra, de bater suavemente, com os nós dos dedos, produzindo um leve toc, toc, toc, no sisudo e silencioso portal do esquisito morador.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A outra perna do saci. SP: Ed. Sucesso, 2009.
Livro enviado pelo autor.

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 1

A BUSCA


Procuro respostas
Entre o ser e o existir.
Olho em volta
E só percebo revolta
Misturada com prazer,
Dentro desse vasto mundo vazio
Do haver e do sentir.
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ALMA DE MULHER

Sou feita de risos e sorrisos
Beijos, olhares, sensações e emoções.
Sou feita de aço que quebra
E se dilui de uma lágrima à queda,
Sou feita de sonhos e abraços,
Sou feita de amor...
Mas de que adianta sonhar?
Se as noites são vazias...
De que adianta amar?
Se o coração é frio...
De que adianta sorrir?
Se são lágrimas
Que insistem em cair...
De que adianta querer?...
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A PRIMEIRA VEZ

(Poema para meu filho Enzo)

Seus olhinhos curiosos
Atento a tudo e todos.
Procurando...
Você sempre foi assim...
De poucas palavras, porém
Observador, sagaz...
O primeiro sorriso que me deu
Jamais esquecerei.
Naquele momento senti nossa ligação
Senti que você sabia...
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CONTRASTES

Um quarto a céu aberto...
Na escuridão sinto
Estrelas a me contemplar.
Um campo florido...
Onde rostos espreitam
Por entre vãos.
Um coração triste, angustiado.,
Com nós desfeitos...
Saudade que não existe mais.
Um silêncio gritando no peito.,
Agitação tranquila, serena...
Um vazio bom de sentir.
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COTIDIANO

Sempre haverá um novo amanhecer,
Por mais difícil que possa parecer,
Sempre haverá um olhar e
Um sentimento
Impossíveis de controlar.
Sempre haverá um medo,
Uma incerteza,
Uma lágrima...
Algo novo a nos amedrontar.
Sempre haverá novos caminhos,
Amores não correspondidos.
Passos inseguros,
Incertas certezas...
Sempre haverá,
Um modo de amar.
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DECLARAÇÃO AO MEU AMOR
EDSON ROSSATTO


Mesmo que a lua deixe
De iluminar as noites,
Mesmo que as estrelas
Deixem de brilhar
E se o chão um dia me faltar...
Nunca deixarei de te amar.
Você é o arco-íris
Da minha nuvem,
O nó desfeito em meu peito
E quando querem minha paz tirar
É você, meu amor,
Quem está sempre ao meu lado
A me amparar.
Quando a velhice chegar
Nossa cumplicidade sempre existirá
E nossa luminosidade interior
Nunca se apagará.
Se o vento quiser passar
E nossas lembranças levar
Nunca esqueça...
É você...
Quem sempre irei amar.
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DEVANEIOS

Procuro respostas
Para perguntas
Que ainda nem fiz.
Me sinto só
No meio da multidão.
Sentimento estranho
Mãos suadas
Coração acelerado
Alma vazia de impurezas...
A saudade se mistura
Com as lembranças
De momentos...
Sorrio...
E a imaginação flui...
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DIVAGAÇÕES

Sou pura transparência
Como em um oceano
De emoções.
Sou calmaria agitada,
Sou serena, sou leve,
Meiga em meio a explosões.
Sou sentimento,
Sou palavras,
Sou nada...
Apenas mais alguém perdida em divagações...
Procurando soluções...
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SÃO PAULO - CARAS, CHEIROS E SABORES

O barulho que me acalma, é o mesmo que me agita.
Quando cai a noite, minha alma se aquieta,    
Enquanto a movimentada e iluminada cidade se excita    
Cheia de charme, com sua acelerada
E rica vida, que a tantos irrita.

Uma menina acolhedora, diversificada e cultural.
E mesmo quando fica cinzenta e nublada
Não perde sua peculiaridade natural.
Com tantos problemas...
Mas sempre mantendo o bom humor e alto astral.

Fonte:
Solange Colombara. Dançando com as palavras. SP: Futurama, 2018.
Livro enviado pela autora.

Contos e Lendas do Mundo (O marido invisível)

* Nota:
O conto de fadas literário surgiu na Europa da Idade Moderna como tradição oral levada ao público infantil. As histórias eram contadas de um adulto para uma criança, registrando lições, experiências, em que geralmente os heróis superavam situações desfavoráveis através de algum segredo mágico. Por se tratar de narrações fictícias, as ações dos contos de fadas desenrolam-se em países imaginários, povoados por objetos e personagens mágicos e estranhos, onde o narrador e o seu público não acreditam na realidade da história.

A grande aceitação do conto de fadas teve, pelo menos, duas consequências importantes sobre a evolução da literatura infantil. Em primeiro lugar, impôs o predomínio do lúdico sobre o instrutivo. Em segundo, contribuiu para a definição de um gênero especificamente voltado para as crianças.

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Era uma vez um rei e uma rainha, como tantos outros, que tiveram três filhas, todas lindas, mas a mais bela era a caçula, chamada Anima.

Um dia, as três irmãs brincavam no campo, e Anima avistou um arbusto com lindas flores. Como queria levá-lo para casa e plantá-lo no próprio jardim, ela colheu as flores puxando os galhos pela raiz, uma a uma. Finalmente, o arbusto cedeu e revelou uma escada debaixo dele que descia fundo na terra. Sendo corajosa e muito curiosa, sem avisar as irmãs, Anima desceu as escadas e percorreu um caminho muito longo, até que, por fim, chegou a céu aberto novamente, em uma terra que nunca vira antes, e dali avistou um palácio magnífico bem à frente, não muito distante de onde estava.

Anima correu até lá e, assim que chegou, bateu a aldrava, e a porta se abriu sozinha, sem que ninguém estivesse ali. Quando entrou, viu uma decoração luxuosa, com paredes de mármore e adornos valiosos, e, ao dar mais um passo, uma música adorável começou a tocar de repente e passou a acompanhá-la aonde quer que fosse. Por fim, Anima chegou a uma sala com sofás aconchegantes e, cansada de explorar, logo se jogou em um deles.

Mal havia se deitado, quando uma mesa, deslizando sobre rodas, surgiu em sua direção, sem que ninguém a empurrasse, e sobre ela havia deliciosas frutas, bolos e bebidas frescas de todos os tipos. Anima comeu e bebeu até se saciar, depois caiu no sono e só acordou ao anoitecer. Então, surgiram dois grandes castiçais, cada um com três velas acesas, que pairaram no ar para, em seguida, pousar sobre as mesas perto de Anima, iluminando o ambiente para ela.

– Nossa, preciso voltar para a casa dos meus pais. Como farei isso? Como voltarei? – perguntou Anima a si mesma, muito preocupada.

– Fique comigo, seja minha noiva e terá tudo o que seu coração desejar – falou uma voz suave perto dela.

– Mas quem é você? Quem é você? Aproxime-se para que eu possa vê-lo! – gritou Anima,
tremendo de medo.

– Não, não, é proibido. Nunca poderá ver meu rosto ou teremos de nos separar, pois minha mãe, a rainha, não quer que eu me case.

Tão doce era aquela voz e tão triste Anima ficou, que consentiu com o casamento, e eles viviam felizes juntos, embora o marido nunca aparecesse antes de escurecer para que ela não pudesse vê-lo.

Mas, depois de um tempo, Anima ficou aborrecida, mesmo vivendo com tanto esplendor e sentindo-se feliz, pois sentia saudade de sua família.

– Por favor, posso ir para casa para ver meu pai, minha mãe e minhas queridas irmãs? – perguntou Anima ao marido.

– Não, não, minha pequena – respondeu ele. – Se vir sua família outra vez, o mal cairá sobre nós e teremos de nos separar.

Mas ela continuou suplicando ao marido que a deixasse voltar até sua terra para visitar a família ou que, pelo menos, deixasse que viessem até lá para vê-la. Finalmente, ele consentiu e enviou uma mensagem convidando o pai, a mãe e as irmãs de Anima para passar alguns dias com ela, intervalo de tempo em que ele teria de se ausentar.

O rei, a rainha e as duas irmãs foram até lá e ficaram maravilhados com o esplendor da nova casa de Anima e, principalmente, muito surpresos ao ver que eram servidos por mãos invisíveis, que faziam tudo o que desejassem. Mas logo as irmãs ficaram curiosas e com ciúmes, não podiam imaginar sobre o misterioso marido de Anima, além de invejá-la por ter um lar tão maravilhoso.

– Mas, Anima, como concordou em se casar com um homem sem nunca tê-lo visto antes? Deve haver alguma razão para ele nunca se mostrar, talvez seja deformado ou, então, em um monstro foi transformado. – disse uma das irmãs.

– Ele não é um monstro. Disso tenho certeza. Precisam ver como é gentil comigo. Não me importa se não é tão bonito quanto imagino. – disse Anima depois de rir.

Mesmo assim, as irmãs insistiam que tinha algo errado, já que havia um segredo, e, finalmente, conseguiram fazer com que sua mãe, a rainha, conversasse com Anima antes de partirem.

– Anima, acho justo e importante saber quem é o seu esposo. Espere até que ele durma, acenda uma lamparina e veja com seus próprios olhos. – disse a mãe.

Depois, todos se despediram e partiram. Naquela mesma noite, o marido invisível retornou, mas Anima já havia providenciado uma lamparina a óleo e deixado uma brasa pronta para acendê-la.

Assim que percebeu que o marido dormia a seu lado, ela acendeu o pavio para espiá-lo. Anima ficou encantada ao ver que ele era muito bonito, além de ter um corpo robusto e atraente. Mas, enquanto o admirava, sua mão tremeu de emoção e três gotas de óleo escorreram da lamparina que segurava e pingaram no rosto dele. Ao acordar e vê-la, o marido logo soube que ela quebrara a promessa.

– Oh, Anima! Oh, Anima! Por que você fez isso? Aqui nos separamos até que convença minha mãe, a rainha, a permitir que me veja de novo.

Depois disso, um estrondo de trovão ressoou, a lamparina se apagou e Anima caiu no chão, desfalecida. Ao acordar, o palácio havia sumido, e ela estava em um pântano muito sombrio. Anima caminhou sem parar até chegar a uma casa na beira da estrada onde uma velhinha a recebeu e lhe ofereceu algo para comer e beber, depois perguntou como ela tinha ido parar lá. Então, Anima lhe contou tudo o que havia acontecido.

– Casou com meu sobrinho, filho de minha irmã, e temo que ela nunca a perdoe. Mas seja corajosa, vai até lá e reivindica o seu marido. A rainha terá de abrir mão dele se você conseguir fazer tudo o que ela exigir de você. Pega este galho. Se minha irmã lhe pedir o que acredito que vá pedir, bate no chão com ele três vezes e receberá ajuda. – orientou a senhora.

Depois, ela indicou à Anima o caminho a seguir até encontrar a mãe do marido e, como era muito distante, deu-lhe instruções de onde poderia encontrar uma outra irmã que a ajudaria também.

Então, no meio do caminho, Anima parou em outra casa onde havia outra velhinha, a quem ela contou toda a história, e aquela senhora, irmã da rainha, entregou-lhe uma pena de corvo e explicou como usá-la.

Finalmente, Anima chegou ao palácio da rainha, mãe do marido invisível, e exigiu vê-lo assim que se apresentou diante dela.

– Oh, relés mortal! – censurou a rainha. – Como ousaste casar com meu filho?

– Foi escolha dele. – respondeu Anima – E agora sou sua esposa. Decerto vai me deixar vê-lo de novo.

– Bem, – disse a rainha – se conseguir fazer o que vou exigir de você, então verá meu filho novamente. Primeiro, vá até aquele celeiro onde os idiotas dos meus criados juntaram todo o trigo, a aveia e o arroz em um único monte enorme. Se até o anoitecer conseguir separar todos os grãos em três montes, talvez eu possa atender seu pedido.

Anima foi levada até o grande celeiro da rainha e lá estava o enorme monte de grãos, todos misturados, então a deixaram ali sozinha e trancaram a porta. Ela se lembrou do galho que a irmã da rainha lhe dera e bateu com ele no chão por três vezes. Milhares de formigas surgiram do solo e começaram a trabalhar no monte de grãos, algumas delas carregavam o trigo para um canto, outras carregavam a aveia para outro, e o restante carregava os grãos de arroz para um terceiro canto.

Ao cair da noite, todos os grãos estavam separados e, quando a rainha foi até lá para liberar Anima, viu que a tarefa fora cumprida.

– Você teve ajuda! – esbravejou ela. – Veremos amanhã se conseguirá fazer algo sozinha.

No dia seguinte, a rainha a levou até um grande sótão no topo do palácio, abarrotado de penas de gansos, patos e cisnes, e do armário pegou doze colchões.

– Vês esses colchões? Até o final do dia deverás encher quatro deles com penas de cisne, quatro com penas de pato e o restante com penas de gansos. Faça isso e, então, veremos.

Deixou Anima lá e trancou a porta atrás. Anima se lembrou de que a outra irmã da rainha lhe dera uma pena de corvo, então a pegou e a agitou três vezes no ar. Sem demora, pássaros e mais pássaros entraram pelas janelas, cada um deles pegava um dos diferentes tipos de penas e as colocava nos colchões, assim, muito antes de anoitecer, os doze colchões estavam cheios como a rainha tinha ordenado.

Mais uma vez, ao cair da noite, a rainha foi até lá e viu que a segunda tarefa estava cumprida.

– De novo recebeu ajuda! Amanhã, terá uma tarefa que só você poderá realizar. – disse ela.

No dia seguinte, a rainha a convocou novamente e lhe entregou um pequeno frasco e uma
carta.

– Leva isso para minha irmã, a rainha do Submundo, e traz de volta em segurança o que ela lhe entregar. Então, talvez eu a deixe ver meu filho.

– Como posso encontrá-la? – perguntou Anima.

– Deve descobrir sozinha. – respondeu a rainha e se foi.

A pobre Anima não sabia para onde ir, mas, enquanto caminhava, a voz de alguém invisível sussurrou:

– Leve uma moeda de cobre e um pão contigo. Desça aquele enorme desfiladeiro até chegar a um rio profundo. Lá verá um homem velho transportando pessoas para o outro lado do rio. Põe a moeda entre os dentes, deixa que o velho a pegue e ele a levará para o outro lado, mas não lhe dirija a palavra. Então, do outro lado, encontrará uma caverna escura com um cão selvagem na entrada. Dê-lhe o pão, e ele a deixará passar, e logo você encontrará a rainha do Submundo. Pegue o que ela lhe entregar, mas tome cuidado para não comer nada nem se sentar enquanto estiver dentro da caverna.

Ela reconheceu a doce voz do marido e fez tudo o que ele lhe dissera até chegar à rainha do Submundo, que logo leu a carta que Anima lhe entregou. Então, a rainha lhe ofereceu bolo e vinho, mas ela recusou, balançando a cabeça, sem dizer nada. Depois, entregou-lhe um porta-joias curioso, de metal forjado.

– Peço-lhe que leve isso para minha irmã, mas cuidado para não o abrir durante o percurso ou um mal poderá lhe acontecer – disse a rainha do Submundo, depois a dispensou.

Anima começou a jornada de volta, passou pelo grande cão e cruzou o rio sombrio. Quando estava atravessando a floresta, não conseguiu resistir à tentação de abrir o porta-joias e, ao fazer isso, saltaram dele várias bonequinhas, que começaram a dançar ao redor de Anima e a divertiram muito com suas peraltices.

Como logo iria anoitecer, ela quis colocá-las de volta no porta-joias, mas as bonecas fugiram e se esconderam atrás das árvores, então logo percebeu que não conseguiria pegá-las de novo. Anima se sentou no chão e chorou e chorou e chorou, mas finalmente ouviu a voz do marido de novo.

– Viu só o que a curiosidade mais uma vez lhe custou? Não poderá levar o porta-joias para minha mãe do jeito que o recebeu de minha tia, a rainha do Submundo. Por isso, não nos veremos de novo.

Ao ouvir aquilo, Anima começou a chorar e se lamentar de forma tão comovente que ele teve pena dela.

– Vê o galho de ouro naquela árvore ali? Arranca-o e bate no chão com ele três vezes e vê o que vai acontecer. – disse a voz do marido.

Anima fez o que ele disse e logo as bonequinhas voltaram correndo atrás das árvores e pularam de livre vontade para dentro do porta-joias; Anima, sem demora, fechou-o e levou-o para a rainha.

A rainha abriu a caixa e, ao ver todas as bonequinhas dentro dela, riu bem alto.

– Sei quem te ajudou. Não há mais nada que eu possa fazer. Suponho que deve mesmo ficar com meu filho! – disse ela.

Assim que a rainha disse aquilo, o marido de Anima apareceu, levou-a de volta ao palácio, e eles viveram felizes para sempre.

J. Jacobs. Contos de fadas europeus. Principius, 2021.

sábado, 27 de novembro de 2021

Adega de Versos 59: Luiz Antonio Cardoso (Taubaté/SP)

 

Rita Marciano Mourão (Quarto mandamento)

Confesso que sou meio nostálgica. Vivo a escarafunchar o baú das minhas lembranças, sem contudo, me deixar prender ao passado. A vida deve ser vivida cada minuto, sem pressa. Procuro vivê-la assim, com a consciência apegada aos menores acontecimentos, para que mais tarde eu não venha sentir na pele os espinhos do remorso.

Hoje, bem no fundo dos meus guardados, encontrei uma mulher que marcou para sempre meu jeito de viver. Nunca mais deixo para depois o que posso fazer agora. O depois é uma palavra que apazigua, mas pode se transformar na metáfora de um nunca mais.

Era essa mulher uma pessoa iluminada! Mãe extremosa, forte, exemplar. Seu nome era Matilde, mas, naquele sertão mineiro em que vivia, todos a conheciam como Dona Tide.

Passara a vida ali, cuidando do sítio e dos quatro filhos que lhe deixara o marido.

“Dona Tide é uma mulherzinha forte” – diziam as pessoas que presenciavam a sua luta e conheciam a sua história. “Qualquer outra se queixaria, mas dona Tide, não. É conformada, resistente. Uma árvore boa que não se curva aos vendavais”. Tinha um olhar distante, procurando (quem sabe) entender o passado e conformar-se com o presente. Acreditava firme que, se não houvesse curvas no caminho, não existiriam surpresas boas.

Quando seu homem se foi embora com a loira do povoado, ela ignorou o fato e nunca falou a ninguém sobre seus desencantos, suas preocupações. E não se acomodou diante da dura lida. Cuidava sozinha dos afazeres do sítio, das poucas vacas leiteiras e, ainda, fazia doces, biscoitinhos de nata e muitas outras guloseimas que vendia na venda do seu Justino.

“Tenho que trabalhar dobrado e dar aos meus filhos um pouco mais de estudo. Eles serão melhores do que eu” – dizia para todos. Como se no mundo pudesse haver alguém melhor do que dona Tide. Mas ela se referia ao duro trabalho que lhe pesava o corpo, às duras frustrações que lhe arranhavam a alma, guardando só para si o cansaço e as dores que a ingratidão provocara.

Os anos foram se passando e tudo foi fugindo do seu controle, do seu alcance. E uma lembrança doce foi ocupando o velho espaço de um tempo de sonhos, semeaduras. As imagens dos filhos pequenos, porém, continuavam vivas, tagarelando dentro dela. Eles haviam crescido e foram para a “cidade grande” aperfeiçoar os estudos, melhorar a vida. O último a se despedir foi Cláudio, o filho caçula. Ah, como doeu em dona Tide essa despedida! Ela sabia que acabava de perder o último carinho que lhe restara, o último companheiro para o café da manhã e para as conversas, à noite, ao pé do fogão à lenha.

Mais uma vez, dona Tide engoliu seco aquela dor e guardou-a só para si. Resignada, continuou dizendo que eram separações necessárias. A vida exigia isso.

No começo, em datas especiais, os filhos apareciam. Então era aquela festa. Nessas ocasiões o trabalho era redobrado. Fazia doces e mais doces, punha flores na jarra e ajeitava até a própria aparência. Tinha que se mostrar elegante, para as noras, para os filhos e netos. O cansaço? A chegada dos seus “meninos”, a alegria da família reunida vencia tudo. Depois, as visitas foram ficando raras, as saudades mais intensas. Dentro de dona Tide chegava a doer de tanta saudade, mas só ela sabia da existência dessa dor. Os vizinhos diziam: “Ingratos, será que se esqueceram da mãe? Qualquer dia ela morre e eles nem vão ficar sabendo”. E dona Tide, de cabeça erguida, nos lábios um sorriso que só ela sabia o quanto lhe custava, sempre encontrava meios para justificar a ausência dos filhos. “Eles ainda me amam, eu sei disso. Filhos são como pombos-correios. Vão, às vezes demoram, mas sempre voltam trazendo um ramo verde para nos ofertar”.

Naquela tarde de dezembro, dona Tide não cabia em si de tanta felicidade. Depois de muito tempo sem dar notícias, os filhos mandaram-lhe dizer que viriam passar o Natal com ela. Logo que recebeu o telegrama, dona Tide trabalhou, trabalhou que até a semana lhe pareceu mais curta. Encheu os potes de doces, biscoitinhos de nata e de tudo o que pudesse agradar o apetite dos seus “meninos”. Caprichou nos arranjos da casa e até a talha em que mantinha a água sempre fresquinha recebera cuidados especiais. Era uma velha talha impregnada de passado, mas ficara bem mais bonita depois daquele banho com sapólio. Embora sentisse que o trabalho mexera com seus oitenta e cinco anos, dona Tide estava feliz, realizada. “Tudo preparado, no capricho, agora é só esperar” – disse-me quando fui visitá-la.

Tomou um banho reconfortante, vestiu uma roupa florida e foi sentar-se na frente da antiga casinha de pau-a-pique. Dona Tide estava pronta para abraçar os filhos que não tardariam. Tudo nela era só alegria. O sorriso solto, as vestes coloridas, o diadema dourado sobre os cabelos grisalhos. Da cozinha, o cheiro das carnes e dos quitutes se espalhava pelos arredores do enorme terreiro.

Sentada e reflexiva, ela contemplava o por-do-sol mais bonito que já vira. Era um por-do-sol diferente, com cores de esperança.

Com os olhos fixos no horizonte e a respiração meio ofegante, dona Tide esperava paciente, cansada, sonolenta. Lá longe, na curva da estrada, uma tira de poeira vermelha anunciou a surpresa há muito desejada. As buzinas dos carros repicavam e um burburinho confuso foi se apossando de todos os sentidos de dona Tide.

Seus olhos pesados, ainda vislumbraram os carros e os acenos dos filhos, das noras, dos netos. Aos poucos, as imagens foram se desintegrando das suas retinas e foram se transformando em um sonho profundo, sonho bom, animado pela tagarelice dos seus meninos.

Quando chamaram por ela, dona Tide não quis mais acordar. Teve medo de sair daquele sonho grande, daquela felicidade sublime e perder de novo os filhos queridos.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XX

A nossa felicidade
não está só no prazer,
tem prazer que é falsidade
e apenas dor vem trazer.
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Ao chegar o entardecer
e o fim da estrada chegar,
pode à vida acontecer
não ter flores pra regar.
= = = = = = = = = = =

Ao contarmos os segundos
para sermos os primeiros,
sonhemos com novos mundos,
sem jamais ser prisioneiros.
= = = = = = = = = = =

A praia não serve apenas
pro veranista nadar,
tem banhistas às centenas
nas margens a descansar.
= = = = = = = = = = =

As águas do mar bravio
chegam a praia inundar,
batem no velho navio
quase fazendo-o afundar.
= = = = = = = = = = =

As gavetas de um arquivo
do memorável passado,
talvez tem mantido vivo
o sonho mais cobiçado.
= = = = = = = = = = =

A vida não deve ser
feita só pra batalhar,
trabalhamos pra viver,
mas não só pra trabalhar.
= = = = = = = = = = =

Cavalgo a manhã serena
para a tarde atravessar,
às portas da noite amena
vejo o percurso cessar.
= = = = = = = = = = =

Do nascer ao pôr do sol
faz a vida um festival,
lança à noite seu lençol
sobre seu leito estival.
= = = = = = = = = = =

Em que mundo nós vivemos
que nem temos liberdade?
Segurança, já não temos,
só o que vemos é maldade...
= = = = = = = = = = =

Está no favo de mel
a doçura singular,
se a vida parece um fel
mude em mel o próprio lar.
= = = = = = = = = = =

Eu não posso dar um passo
sem recordar do passado,
se eu lembrar só do fracasso…
serei mais um fracassado.
= = = = = = = = = = =

Madrugada lenta e calma
dá lugar pro alvorecer,
é alvorada dentro d'alma
quando a vida renascer.
= = = = = = = = = = =

Na retaguarda não temos
nossos velhos precursores,
pela frente apenas vemos
imbatíveis contendores.
= = = = = = = = = = =

No cantar do Uirapuru,
tão sublime melodia,
contrasta com o Inhambu
que traduz melancolia.
= = = = = = = = = = =

No céu, de cada estrelinha,
contemplamos seu fulgor,
tendo a lua por madrinha
e o luar por precursor.
= = = = = = = = = = =

Nunca pense estar perdida
a luta por mais intensa.
Quem participa da vida
sempre tem a recompensa.
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Os solos agonizantes
sem os micronutrientes
requerem fertilizantes
pra germinar as sementes.
= = = = = = = = = = =

Pode ser que alguém não queira
ouvir a voz de quem grita,
mesmo assim há uma maneira
de alegrar uma alma aflita.
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Pra se tornar um herói
basta um gesto praticar,
mudando tudo o que dói
em razões para lutar.
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Quando o Sol for tua meta
na mira não falte a fé,
siga teus passos à seta
condutora do teu pé.
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Se não for bicho, nem gente,
e fantasma também não,
poderá ser simplesmente
fruto da imaginação.
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Se toda a saudade ocorre
no seio da humanidade,
cada lágrima que escorre
faz nascer nova saudade.
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Sonhar é muito importante
tanto quanto conquistar,
se o sonho estiver distante,
tão pouco vale sonhar!
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Tantos reinados mundanos
caíram, mesmo os normais,
mandai, Senhor, aos humanos
o que acabará jamais...
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Tem frango se apresentando
com ar de galanteador,
de galo já vem cantando
no terreiro sem pudor.
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Uma vida tem certas crises
que sempre são superadas,
muitas delas são reprises
das que foram enfrentadas.
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Vida: tênue vela acesa
que perdura a vida inteira,
não cessa se for coesa
tendo a morte por fronteira.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Márcio Furrier (O menino e o tempo)

Talvez nenhuma imagem seja mais permanente em mim que a daquele velho…

Nove ou dez anos de idade, eu matava o tempo observando as pessoas por trás das grades de ferro da garagem da casa de minha avó. Área apertada, destinada ao fusquinha da minha tia, sempre vazia durante o dia, recoberta de cacos vermelhos de azulejo caprichosamente quebrados pelo meu avô, um a um, e juntados de maneira aleatória para compor um mosaico frio. Sobre o nicho do registro de água, eu, insuspeito do que me reservara a vida naquele dia.

Na tranquilidade da tarde, aquele era o meu espaço. Após a aula e o almoço, quando me cansava do ócio, timidamente olhava por entre o portão, à espreita das pessoas que desciam a longa rua de terra em direção ao outro lado do rio, ainda não canalizado. Olhava não, analisava, ria e me estranhava com a gente, sem dar-lhes a mesma chance de fazerem isso comigo. Aquele era meu cosmos, até onde minha experiência de menino podia alcançar.

Mas vamos ao fato. Não sei o quanto a imagem foi real e o quanto deixei que fosse retocada em meu inconsciente... Era uma tarde já com sol baixo, sinto o calor na face como se fosse agora. Meu espetáculo de periferia arrastava-se sem novidades, pessoas indo e vindo, algumas virando o rosto para o portão e me surpreendendo, ao que eu rapidamente me contraía em meu nicho e lhes negava o rosto. Tímido, indevassável como continuaria sendo por muito tempo. Talvez a moça da Avon ou do Yakult já tivessem passado, e eu já respondido que minha mãe não estava, nem estava a empregada (que nunca tivemos).

Lembro-me que meus olhos esquadrinharam aquela imagem depois da minha consciência. Súbito me notei congelado, sem atinar a razão. Dobrando a esquina de baixo, passando pela casa da Dona Sofia e atravessando a rua em minha direção, um velho, setenta anos, no mínimo. Terninho preto puído, bem justo de outros tempos de vacas ainda mais magras, camisa pretensamente branca de gola alta, ornada por uma gravatinha borboleta preta, sapatos maculados pela terra da rua e chapéu daqueles que não se usavam mais. Carregava uns dez porta-retratos de moldura espartana, mostrando uma foto preto-e-branco do Francisco Cuoco, naquela época já um ator veterano da Globo. Um movimento lento e vacilante. Andava como se pedisse licença pelo chão de terra batida. Confesso que aquela imagem caiu em mim como uma bomba. Pelo inusitado, pela força, pelo rompante da revelação. Improvável, mesmo aos olhos de um menino de 10 anos, acreditar que ele iria conseguir vender um porta-retrato daquele em uma rua pobre dos confins de São Paulo. Que razão louca ele teria para achar que tal iniciativa iria lhe prover sustento? Eu não tinha ainda lido Quixote, mas ali certamente reconheceria um.

A força dele eram seus olhos. Dignos, dignos, dignos. Os olhos castanhos se apertavam contra o sol e contra a face marcada, espreitando alguma alma para oferecer seu produto. Olhos sofridos; poder-se-ia dizer que todo o sofrimento do mundo estava lá, incontido, óbvio. Parecia que a cada passo se penitenciava de seu destino, mas não se abalava com as recusas, ou porque também desconfiava de seu absurdo, ou talvez porque só quisesse continuar caminhando pelas ruas.

Eu continuava congelado. E sim, ele tinha me visto e vinha agora me oferecer aquilo. Acho que nunca fui tomado de tanta compaixão. Ao mesmo tempo penava o coração, dava-me vontade de abrir o cadeado para abraçar aquela figura frágil. Queria talvez dizer a ele que tudo ia melhorar, talvez fazer aqueles olhos rirem uma vez que fosse. Tive também ímpetos de correr na carteira da minha mãe e pegar o que fosse necessário para comprar um porta-retrato do Francisco Cuoco. Tudo isso num segundo. Ele me olhou de maneira tímida, as mãos surradas pelo tempo me fizeram um leve movimento de oferta. Eu fitava aquele homem mas não o compreendia; estava assustado, triste e imobilizado. O máximo que consegui, juntando minhas forças, como que ele ainda me olhasse, foi um balançar negativo de cabeça. Então aqueles olhos se voltaram à rua, e nos despedimos para sempre. Sabia que não voltaria a vê-lo, que não teria mais chance de comprar seu produto, nem lhe poderia dar alento. Vendo-o já pelas costas, o magro terninho preto se afastando e ficando menor, me despedi dele em silêncio.

Só hoje faço justiça àquele velhinho ambulante: naquele exato momento deixei de ser menino. Pela primeira vez tinha entendido o poder do tempo. Tempo irreversível. A força daquela imagem me mostrou pela primeira vez a existência da velhice sem retoques, sem cortes. E que a vida não era necessariamente justa, nem nunca nos prometera isso.

Essa imagem ficou comigo e vivia me pedindo para sair, para ser compartilhada. Se não comprei o retrato nem lhe dei apoio, presto-lhe agora a mais sincera e pura das minhas homenagens. Imagino que outros profetas, velhinhos disfarçados de homem-sanduíche, vendedores de loteria, engraxates, amoladores de faca, devem vagar por São Paulo, provocando sensações parecidas em novas gerações de meninos atrás de grades.

Jaqueline Machado (Olhos de mar e de esperança)

O mar mesmo sendo de sal, consegue ser mais doce do que um profundo poço de mel. Ele é misterioso, perigoso e inquieto. Ainda assim, todos querem adentrar suas águas para pescar, se banhar e, quem sabe, se a maré for de sorte, avistar sereias... Isso acontece porque o corpo do mar é composto por sais, mas sua alma é de açúcar.

E foi percorrendo os mares da vida que um certo pescador chamado Santiago, personagem do conto, O Velho e o Mar, do notável Ernest Hemingway deixou à humanidade uma nobre lição. Ele era muito idoso, magro, sua face e pescoço eram marcados por manchas e profundas rugas. Sinais dos anos de exposição ao sol. O pescador era sozinho, pobre, sem estudos. Tudo nele parecia ser muito velho. Menos os olhos cor de mar. Ainda lúcidos, luminosos e cheios de esperanças. Sim. De esperanças. E olha que o seu mar não estava para peixe. Há oitenta e quadro dias o velho velejava e nada pescava.

Santiago tinha um amigo. Um jovem rapazinho chamado Manolin, que aos cinco anos, aprendeu com ele as primeiras lições de como ser um bom pescador. Os pais do rapaz disseram ao garoto que o velho estava definitivamente e declaradamente "salão", que é a pior forma de azar, e o rapaz fora por ordem deles para outro barco que na primeira semana logo apanhou três belos peixes. Mas o menino era um amigo fiel, e mesmo proibido de participar das pescas junto ao ancião, o visitava em sua humilde casa.

A choupana era feita de duros ramos de palmeira, a que chamam guano, e havia nela uma cama, uma mesa, uma cadeira, e um lugar no chão para cozinhar a carvão de choça. Nas paredes escuras, de achatadas e sobrepostas folhas do grosseiramente fibroso guano, havia uma gravura a cores do Sagrado Coração de Jesus e outra da Virgem de Cobre. Eram relíquias de sua mulher. Noutro tempo havia ainda uma fotografia dela na parede, mas ele tirara-a por se sentir muito só ao vê-la, e estava agora na prateleira do canto, por baixo da camisa lavada”.

Descreveu o autor em sua obra: Apesar de todos os pesares, o velho não abandonava os seus sonhos. Deseja provar o seu valor pescando um enorme peixe. O maior que o oceano pudesse lhe proporcionar. Parecia loucura almejar realizar um sonho tão grande, tendo a vida tão próxima ao fim. Mas ele não pensava no fim... Apenas nas novas oportunidades que sempre raiam junto ao sol a cada novo amanhecer. “É pecado não ter esperança” dizia ele. Até que certo dia, o mar o surpreende e a oportunidade de realizar o seu grande desejo, começa a ganhar ares de realidade. No 85º dia de espera, a maré de sua sorte muda. Um agulhão gigante, com mais de cinco metros, encosta em sua embarcação. Sendo o peixe maior que o barco, o velho e o animal travam uma intensa e honrada luta. Três dias depois, Santiago vence a batalha e consegue rebocar o peixe para o abate final.

Quando a vitória parecia garantida, surgem tubarões seguindo o rastro do sangue derramado. Mas Santiago, mesmo exausto, machucado, cambaleante, não desiste. E a luta recomeça. A essa altura do confronto qualquer outra pessoa que estivesse em seu lugar, terminaria por desistir. Mas desejando superar o improvável, mesmo depois dos tubarões terem devorado bastante a carne da grande pesca, ele vence a batalha novamente. Ao regressar a sua ilha, todos maravilharam-se ao ver a enorme carcaça do peixe capturado por aquele simplório senhor a quem ninguém depositava a menor fé. Exceto Manolin, é claro.

Apenas porque ousou crer, persistir e recomeçar, Santiago, com seus olhos de mar e de esperança, tornou-se lenda na aldeia.

Eis aí a prova do quê a força e determinação podem conseguir.
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Nota do Blog:
Com um enredo tenso que prende o leitor na ponta da linha, Hemingway escreveu uma das mais belas obras da literatura contemporânea. Uma história dotada de profunda mensagem de fé no homem e em sua capacidade de superar as limitações a que a vida o submete. Com a linguagem simples mas poderosa das fábulas, Hemingway trata de temas universais e atemporais como a perseverança em meio às adversidades e as lições que podemos tirar da derrota neste magnífico clássico do século XX.Escrito em 1952, O velho e o mar venceu o Prêmio Pulitzer de Ficção e foi fator decisivo para a premiação de Hemingway com o Nobel de Literatura em 1954. Ao lado de contemporâneos como F. Scott Fitzgerald e John Steinbeck, Ernest Hemingway foi um dos escritores mais importantes da chamada “Geração Perdida” e inspirou as gerações subsequentes de escritores americanos.


Fontes:
Texto enviado pela autora.
Nota do Blog: Amazon

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Varal de Trovas n. 536: Luiz Carlos Abritta (1935 - 2021)


Luiz Carlos Abritta, procurador de justiça aposentado, nasceu em Cataguazes, MG, a 24 de janeiro de 1935, filho do poeta e magistrado Oswaldo Abritta e de Yolanda Nery Abritta. Foi presidente da Associação Mineira do Ministério Público. Eleito Conselheiro da OAB/MG onde permaneceu por seis anos e exerceu as funções de Presidente do Tribunal de Ética daquela entidade. Presidente e Conselheiro Nato do Instituo de Ciências Penais, membro do Conselho Penitenciário de Minas Gerais.

No dia 09 de junho de 2006, o Presidente da República escolheu-o em lista tríplice e o nomeou para o cargo de Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, categoria de jurista.
      
Foi presidente da UBT de Belo Horizonte, e Presidente da UBT/Minas Gerais. Exerceu a presidência da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais por oito anos, onde ocupou a cadeira n.150, tendo por patrono Oswaldo José Abritta. Abritta foi eleito o 5º Presidente Nacional da União Brasileira de Trovadores, para o biênio 2012 / 2013.

Foi membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, cadeira n. 82 e seu patrono é o Senador Levindo Coelho. Tem alguns livros publicados, entre eles, “Críticas criticáveis”, “Entre Montanhas e Trovas”, “Tata, Tati e Tininha”, “Um Homem Plural – A vida de Oswaldo Abritta” e “Aurora Plena”.

Participação na Antologia poética bilíngue (francês/português) de 33 escritores mineiros, lançado no Salão do Livro, em Paris, em 2012, sendo condecorado pela Academia Francesa em reconhecimento ao trabalho pela literatura.
      
Medalhas: da Inconfidência; Santos Dumont; do Ministério Público de Minas Gerais; da Justiça Federal; do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, e da Societé Académique des Arts, Sciences et Lettres – Paris – França.
    
Foi casado com a escritora Conceição Parreiras Abritta, com dois filhos: Sérgio, Procurador de Justiça e Dramaturgo, e Luís Carlos Parrreiras Abritta, Advogado e Presidente do Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais.

Faleceu em Belo Horizonte, em 18 de novembro de 2021, aos 86 anos.

Odenir Follador (A aposta)

Acredito que é do conhecimento de muitos as histórias sobre superstições populares que eram contadas em muitas regiões do país. Principalmente quando se tratava do interior do Brasil.

Era época da colonização interiorana ocupada na maioria por imigrantes que aqui vieram se instalar, na ânsia de conseguirem melhores condições de vida em relação as de suas pátrias, que deixaram para trás e aqui vieram como verdadeiros e corajosos desbravadores, trazendo pouca bagagem, mas com um grande sonho de realizações e prosperidade nestas terras ainda virgens, como as do sul do país.

Haviam muitas descontrações nessas localidades, como reuniões nos armazéns e contíguo aos mesmos, onde existia uma bodega, na qual se jogava baralho, cachola, e outras competições típicas de suas origens, sempre acompanhados de cachaça e de cerveja. Esta era armazenada na terra através de um alçapão sob o assoalho, para proporcionar uma temperatura adequada, pois só mais tarde pôde-se contar com geladeiras a querosene. Contudo, as principais atrações eram os festejos realizados em homenagem aos Santos daquelas paróquias. Essas localidades, bastantes afastadas dos grandes centros, com suas casas distantes umas das outras. As estradas disponíveis eram para carroças ou cavalos, não havia nem mesmo iluminações nos caminhos, eram somente utilizados lampiões ou lamparinas para quebrar o negrume da noite no interior das casas. Clima este que propiciava a muitas superstições, na maioria ouvida de antigos moradores: caboclos do lugarejo. E neste contexto formado da localidade, era comum serem contados causos de assombrações. Um a um, os mais falantes iniciavam as histórias que se delineavam pela tarde até o sol se esconder no horizonte.

Firmino, o primeiro a tomar a palavra falou:

– Eu quero fazer uma aposta com qualquer um de vocês! Quero ver quem tem mais coragem! O que foi, Casimiro? Você levantou a mão para participar?... Ou é outra coisa?

- Nada não, Firmino! Só fui arrumar o chapéu.

– Então é o seguinte pessoal: Aqui perto tem um cemitério. Eu vou apostar um conto de réis que ninguém tem coragem de ir até lá, pegar de qualquer túmulo do chão a cruz que está enterrada e trazer até aqui para nos mostrar.

- Pois é comigo mesmo, Firmino... Eu vou! - gritou o sr. Fagundes - Sou cabra-macho!

- Só acredito vendo. – falou o amigo – vou até lhe separar um conto de réis.

E lá se foi o Fagundes... Era um homem de seus sessenta e poucos anos, baixo e de barriga saliente, já grisalho nas têmporas, pois lhe faltava acima o resto dos cabelos. Mas compensava pelo vasto bigode também grisalho.

Nesse meio tempo formou-se um temporal, que era um aguaceiro só. Mas não intimidou o Fagundes. Este colocou o seu enorme ponche, para proteger-se da chuva e seguiu rumo ao cemitério.

Chegou, olhou pros lados e para trás como que meio arrependido. “Cabra-macho!?” Pensou ele. “O que não faz uns goles a mais... Agora não adianta, vamos lá!” E abaixando-se sobre um túmulo no chão, agarrou a cruz e puxando com força retirou-a do lugar. Rápido como podiam ajudar as suas pernas, veio ter com os amigos e a se vangloriar da sua proeza e valentia.

- Olha aqui, Firmino!... Serve esta cruz? Ou quer que vá buscar outra? – ele ria-se todo, mostrando os poucos dentes caninos que ainda insistiam em permanecer, um de cada lado.

Todos aplaudiram o sr. Fagundes. “Esse é cabra-macho mesmo!”

- Tudo bem! – falou Firmino - Trato é trato. Sou homem de uma palavra só! Aqui está o seu dinheiro. Mas só lhe dou depois que você colocar a cruz de volta no lugar.

- É comigo mesmo, Firmino! Segure o dinheiro que já volto.

E partindo em direção ao cemitério, entrou e foi em direção à dita cova e abaixando-se empurrou com força a cruz de volta ao seu buraco. Mas eis que o destino sempre está a espreita. O ponche, devido ele haver se abaixado, ficou sobre o buraco e a ponta deste foi enterrada junto com a cruz. Ao levantar-se viu que não podia sair do lugar... Um grande terror se apoderou dele, pois achou que o defunto o segurava pelo ponche. Tomado de imenso pavor e horror por ser crédulo às superstições e histórias do além, ficou em agonia passando muito mal.

Como demorava muito para voltar, os amigos foram verificar achando tratar-se de alguma brincadeira do sr. Fagundes. Mas... quando eles chegaram ao local, qual não foi o espanto de todos? Encontraram-no já sem vida.

Um fulminante ataque cardíaco foi a causa! Caiu morto ali mesmo sobre aquele túmulo.
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Odenir Follador, nasceu em 31 de maio de 1948, em Taquaruçu, Distrito de Palmeira-PR, filho de Ricardo Guido Follador e Amandina Corsi Follador.

Formado como Técnico de Contabilidade em 1975, Licenciado em Ciências em 1979, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Licenciado em Letras – Português/Inglês em 2017, pela UniCesumar de Maringá-PR. Pós-graduação “Lato Sensu” em Neuroaprendizagem, pela UniCesumar em 2019.

Atuou como Militar no 13º Batalhão de Infantaria Blindado de 1967 a 1977, e como Economiário na Caixa Econômica Federal, em Castro e Ponta Grossa, nas funções de Escriturário, Caixa Executivo, Gerente de Núcleo e Supervisor, até sua aposentadoria.

Atuou por algum tempo como professor de Matemática, e como professor de Ciências. Teve experiência por algum tempo com professor de música.

Membro correspondente da ACLAB – Academia de Ciências Letras e Artes Belforroxense, Rio de Janeiro-RJ; Membro correspondente da ALB – Academia de Letras Brasil/Suíça; Membro da ALCG - Academia de Letras dos Campos Gerais, Ponta Grossa-PR; Membro Correspondente da ALPAS 21 - Academia Internacional de Artes, Letras e Ciências ‘A Palavra do Século 21’; Membro Correspondente da ALTO – Academia de Letras de Teófilo Otoni – MG; Membro Efetivo da APLA - Academia Ponta-grossense de Letras e Artes, Ponta Grossa-PR; Membro efetivo da ARTPOP – Academia de Artes de Cabo Frio -RJ; Membro correspondente do CONINTER – Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes, Rio de Janeiro –RJ; Membro correspondente da FEBACLA – Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes, Niterói-RJ; Membro efetivo do MNEL - Movimento Nacional Elos Literários, Salvador – BA; Membro correspondente da OBCH – Ordem dos Benfeitores Culturais da Humanidade, Rio de Janeiro-RJ; Membro efetivo da OMDDH da OMDDH -Organização Mundial dos Defensores dos Direitos Humanos.

Figurante do filme Cafundó em Ponta Grossa em 1999, lançado no Brasil em de 2005. Premiado em concursos de trovas, poesias e contos no Brasil e exterior. Em 2015, a Câmara Municipal de Ponta Grossa lhe confere o Título de Cidadão Honorário de Ponta Grossa, pelos relevantes serviços prestados á Comunidade e ao Município. Em 14 de maio de 2016, o Colegiado Acadêmico da ARTPOP-RJ, outorga-lhe o título Personalidade 2015, reconhecendo, distinguido, premiando e homenageando-o, por suas iniciativas durante o ano de 2015 no cenário cultural, se destacando em nossa sociedade com excelência na gestão de sua carreira, contribuindo assim, efetivamente para o desenvolvimento da Cultura de nosso país. Em 2016, O Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes do Rio de Janeiro, lhe confere a Medalha no Grau Oficial “Ordem do Mérito Conìnter Artes”. Em 2016, recebe a Medalha Elos Literários. Ainda neste ano, o Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes & o Instituto Comnène Palaiologos de Educação e Cultura, lhe concede a Medalha e outorga a presente Comenda da Paz Nelson Mandela, com direito ao uso do Título Honorífico de Comendador, em reconhecimento de Suas contribuições de destaque nas diversas áreas de trabalho, bem como os Seus Atos que contribuíram através de Serviços Prestados à Humanidade, através da Influência Intelectual, Científica e Artística.

Livros publicados:
Memórias de infância e outros relatos (Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2012) e Associação dos Militares da Reserva–ASMIRE (Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015).

Faleceu em 23 de novembro de 2021, em Ponta Grossa.

Mais detalhes sobre as premiações e honrarias, veja em https://www.alpas21.com/odenir-follador

Fonte:
Texto enviado pelo autor.