sexta-feira, 15 de abril de 2022

Sílvio Romero (Cova da Linda Flor)

Folclore do Rio de Janeiro.

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HOUVE NOUTRO TEMPO um rei que tinha o hábito de jogar, e todos com quem jogava perdiam. Uma vez convidou a um outro rei para jogar, e, no dia marcado, este se apresentou; mas perdeu todas as mãos do jogo, até que se desenganou e despediu-se para se ir embora. O dono da casa, que o desejava matar, marcou-lhe um outro dia para ir a palácio, o que era seu costume fazer com todos com quem jogava.

O outro foi avisado disto, e dirigiu-se a um ermitão para lhe aconselhar o que havia de fazer para evitar a morte. Este, não sabendo o conselho que lhe havia de dar, mandou que fosse ter com outro segundo seu irmão, que ainda o enviou para terceiro. Este último aconselhou ao rei que se pusesse debaixo de uma árvore, que lhe indicou, e que tivesse cuidado nos pássaros que nela se assentassem, afim de apanhar um escrito que um deles levaria no bico e largaria no chão, e que ele seguisse o que o tal escrito ensinasse.

Assim fez. Encaminhou-se à árvore indicada, sentou-se debaixo, e daí a uma hora vieram chegando os pássaros, até que também chegou um que tinha o peito amarelo que trazia o escrito, e o largou. O rei apanhou o papel, e leu as seguintes palavras: “O rei com quem jogaste tem três filhas encantadas, que hão de ir se lavar no rio, virando-se em três patas. Põe-te escondido na beira do rio até que elas cheguem; depois que elas tirarem a roupa para se banharem, deves apanhar a roupa da última que se despir e esconder-te com ela. Depois do banho as princesas hão de procurar a sua roupa, e a mais moça, não encontrando a sua, há de ficar muito aflita e prometer livrar de todo o mal a quem lha restituir.”

Assim fez. Seguindo para a beira do rio, se escondeu até que chegaram as três princesas irmãs; tiraram todas três as suas roupas, puseram-se nuas, viraram-se em três patas e atiraram-se ao rio. Depois que se fartaram de banhar-se saíram da água para se vestirem e tornarem para o palácio.

As duas que tinham roupa vestiram-se; a mais moça, como faltasse a sua para fazer o mesmo, ficou desesperada por não poder seguir suas irmãs. Como desconfiasse que lhe tinham escondido a roupa, e não enxergando pessoa alguma, pediu a quem lhe a tivesse tirado que lhe entregasse; porém o rei se fez surdo e não apareceu. Pediu a princesa pela segunda vez e nada; pediu pela terceira, prometendo a quem lha entregasse de livrar do mal que tivesse de lhe acontecer.

Então saiu o rei do esconderijo onde estava e dirigiu-se para a princesa, dizendo: “Aqui está a vossa roupa que eu tinha escondido afim de me livrar, por vossos conselhos, da morte que vosso pai me quer dar.”

A moça respondeu: “Tenho por costume cumprir o que prometo, e disto não me afasto; meu nome é Cova da Linda Flor; hoje é o dia que tendes de ir à casa do rei meu pai; chegando lá batei na porta, ela vos será aberta; assobiareis até chegardes à porta da sala, a qual achareis também fechada; batei, por dentro vos abrirão, ao abrir encostai-vos na parede para vos esconder a dita porta; não vos assusteis com um foguetão que há de sair da sala, que é para dar fim à vossa vida; passando o foguetão, entrai na sala e falai com o rei, meu pai”.

Assim fez. Quando o rei julgava que o foguetão tinha dado cabo do outro, foi que este se apresentou em sua frente. Ficou o pai das princesas muito chateado por ser aquele o primeiro que tinha escapado daquele trama. Ordenou-lhe então que fizesse amanhecer o seu palácio no meio do mar, sob pena de perder a vida. O rei jurado recolheu-se ao seu aposento no palácio muito triste e pensativo, temendo perder a vida no dia seguinte.

Dirigindo-se então a princesa para onde estava ele, perguntou-lhe a causa da sua tristeza. Respondeu que tinha de perder a vida no dia seguinte, se não fizesse aparecer o palácio no meio do mar, conforme seu pai lhe tinha ordenado.

Ela  lhe prometeu que dessa vez ainda não morreria; que dormisse descansado, que quando amanhecesse estaria no meio do mar. O que tudo aconteceu com admiração de todos.

Como o pai da Cova da Linda Flor não pudesse desta segunda vez matar o rei, seu companheiro, ordenou-lhe que desse conta dum anel que sua mulher tinha perdido no mar, com pena de perder a vida no dia seguinte.

Retirou-se o hóspede ao seu aposento outra vez triste e pensativo; o que sabendo a princesa, para lá se dirigiu e perguntou-lhe o motivo. “Tenho de morrer amanhã se não der conta de um anel que a rainha vossa mãe perdeu no mar.” A moça prometeu-lhe que estivesse descansado, que tinha de achar o anel. Deu então ao rei uma varinha, indicando-lhe uma laje que havia no mar, que, quando amanhecesse, se dirigisse à dita laje e batesse com a varinha, que havia de começar a sair os peixes que estavam no fundo da laje, que havia de ver um de papo amarelo, que o agarrasse e o abrisse que dentro encontraria o anel.

Assim foi. Tudo se passou como a princesa ensinou; arranjado o anel o rei foi levá-lo ao outro que logo o reconheceu e percebeu que isto eram artes da Cova da Linda Flor, e resolveu acabar também com ela. Porém a moça adivinhando isto foi ter ao aposento do seu protegido e lhe disse que fosse à estrebaria de seu pai, que lá encontraria três cavalos, um muito gordo e grande que andava como a água, outro mais abaixo na figura que andava como o vento, e outro ainda mais abaixo que andava como o pensamento, que ele pegasse neste e viesse para fugirem ambos.

Indo o rei à estrebaria, não encontrou o que lhe disse a moça e pegou no cavalo do meio, que andava como o vento, o que desagradou bastante a princesa. Como já fosse perto do dia, montaram-se ambos no cavalo, e fugiram.

Amanhecendo, o rei achou falta de sua filha e indo ao quarto do outro rei, também o não encontrou, indo também à estrebaria não encontrou o cavalo que andava como o vento. Mandou aparelhar o cavalo que andava como o pensamento, e seguiu atrás dos fugitivos. Quando os estava para alcançar, a princesa fez virar o cavalo em que fugia num estaleiro, a sela num toro de pau, o freio numa serra, o rei em cima do estaleiro e ela embaixo, ambos com a serra na mão a serrar.

Chegando o rei,  perguntou se tinham visto passar um homem com uma moça na garupa. A resposta que teve foi: “Serra, serra, serrador. Eu também sei serrar.”

Cansado de perguntar e sem ter uma resposta, o rei voltou desapontado. Chegando contou à rainha o que tinha encontrado, ao que ela disse: “És muito inocente; o estaleiro é o cavalo, o toro a sela, o freio a serra, e os dois eram o rei e a nossa filha.”

O rei volta para ver se os pegava; no caminho já não encontrou mais os serradores. Seguiu, e quando já estava a pegar os fugitivos, estes se viraram numa ermida, dentro dela um altar, no altar uma imagem, ao pé do altar um ermitão rezando em um rosário. Perguntando-lhe o rei se tinha visto passar um homem com uma moça na garupa, a resposta do frade era: “Padre Nosso, Ave Maria.”

Cansado o rei de perguntar, voltou de rédea, e foi-se embora. Chegando à casa contou à rainha o acontecido, ao que esta respondeu: “És muito tolo; a ermida era o cavalo, o altar a sela, a imagem a princesa, o ermitão o rei, que voltes quanto antes.” O rei partiu, e pelo caminho não encontrou mais ermida, nem ermitão.

Depois de muito andar encontrou num cercado uma roseira com uma rosa, e uma mamangaba beijando a rosa; perguntou à mamangaba se tinha visto passar por ali um homem a cavalo com uma moça na garupa. A mamangaba voou em torno da rosa; assim uma segunda vez. Na terceira pergunta ela voou em cima do rei e deu-lhe uma ferroada.

O rei voltou desapontado, contou à rainha o que se tinha passado, e ela lhe respondeu: “És ainda muito tolo; a roseira era a sela, a rosa nossa filha, o cercado o cavalo, a mamangaba o rei, portanto volta quanto antes.”

O rei não quis voltar, e a rainha de zangada pediu a Deus que o rei fugitivo fosse ingrato com sua filha e a desprezasse.

Assim aconteceu. Depois que estiveram residindo numa cidade por algum tempo se separaram, e o rei esqueceu de todo a Cova da Linda Flor. Então ele contratou casamento com outra princesa, e quinze dias antes do casamento mandou fazer anúncios para se apresentarem as pessoas que melhores doces soubessem fazer. Entre as que se apresentaram apareceu uma moça que se encarregou de fazer um casal de pombas que falassem, com a condição de serem postas em cima de uma mesa diante de todo o povo na véspera do casamento.

O rei concordou e no dia marcado mandou chamar todo o povo da cidade para presenciar aquela fonção*. Estando todos presentes, disse a pomba para o pombo: “Pombo, não te lembras quando o rei, meu pai, te convidou para jogar, para procurar um meio de te matar, e tu para te livrares escondeste a minha roupa, quando fui me banhar no rio, e eu te prometi livrar de todo o perigo se me desses a roupa? Pombo, não te lembras quando meu pai te chamou ao seu palácio para te tirar a vida, e te salvaste por meus conselhos? Não te lembras quando ele te ordenou que fizesses amanhecer seu palácio no meio do mar, e depois que lhe desses conta de um anel que minha mãe tinha perdido também no mar, sob pena de perderes a vida, o que tudo conseguiste por meus conselhos? Não te lembras quando fugimos, para escapar da morte, no cavalo que corria tanto como o vento, e, sendo perseguido por meu pai, nos salvamos por meus encantos? Não te lembras que isto aconteceu por três vezes, que na última nos viramos numa roseira com uma rosa, e uma mamangaba, que tudo fiz para te salvar a vida, e tu ingrato me esqueceste e vais te casar com outra?”

O pombo ia levantando a cabeça à proporção que o rei se ia lembrando do que se tinha passado com ele, e o rei desfez o trato do casamento e recebeu por mulher aquela que o tinha livrado da morte.
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* Função, no sentido de festa, brincadeira, pagode. [N. do A.]

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 1

 

Dorothy Jansson Moretti (Amigo até debaixo d’água)

Mil novecentos e trinta e dois, em plena Revolução.

Minha família foi uma das poucas que permaneceram na cidade. O pânico geral fazia com que todo mundo a abandonasse.

Apesar dos protestos de Seu Victorino que também não queria sair, a insistência de seu sogro fez com que ele finalmente se decidisse, levando Dona Davina e Odette a refugiar-se no sítio do sogro.

Estava, contrariado. Não conseguia dormir à noite, devido ao ronco dos porcos, e não conseguia suportar o odor que vinha do chiqueirão. Mas em atenção a Seu Emídio, ali estava, firme.

A saúde de Seu Victorino era delicada. Passava às vezes a noite inteira puxando o fôlego em penosas crises de bronquite asmática. E por esse motivo era extremamente cauteloso, não tomava sol, não tomava chuva, nem vento, garoa, sereno...

No terceiro ou quarto dia de sítio, alguém levou-lhe uma notícia: seu amigo Claro Jansson estava doente. Não quis saber de mais nada. Partiu imediatamente em socorro do amigo.

O tempo era de chuvas intermináveis e as estradas eram péssimas. Ele encapotou-se como pôde para empreender a longa caminhada a pé. Ao chegar ao ribeirão, viu que a pinguela que o atravessava havia rodado com a enchente.

Sem hesitar um minuto, Seu Victorino — que não tomava sol, não tomava chuva, nem vento, garoa, sereno — tirou os sapatos, arregaçou as calças e corajosamente enfrentou a correnteza, passando o ribeirão e continuando a penosa jornada até o fim.

Chegando à nossa casa, viu com satisfação que meu pai já estava melhor. Dr. Onofre Di Giacomo, médico veterinário que havia ficado na cidade com a família, e que residia ao lado da farmácia de Seu Victorino, já o havia medicado. Ele arrombara uma das portas da farmácia e de lá tirara os remédios necessários. Meu pai estava fora de perigo, e até brincou com Seu Victorino, fazendo piada por ter sido tratado por um veterinário...

Eram assim as amizades daquele tempo.

Era assim o nosso querido Seu Victorino. Amigo - literalmente — até debaixo d'água!

(Tribuna de Itararé- 25/12/84)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Luiz Carlos Abritta (Álbum de Trovas)


A natureza se vinga
de toda agressão sofrida
e essa revolta respinga
no centro de nossa vida!
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Aos jovens dou um conselho,
nesta vida tão incerta:
não se olhem tanto no espelho
pois Narciso é morte certa!
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Ao teu prazer eu me entrego
- seja lá o que quiseres –
pois te escolhi, eu não nego,
entre todas as mulheres.
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As tuas mãos - que brancura
 - que bonito de se ver,
 pois elas têm a ternura
 dos lírios do amanhecer.
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Busco de novo a verdade
na aspereza dos caminhos,
e só encontro a saudade,
a solidão dos sozinhos!
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Casaste... triste eu sofria,
pois vestiste, bem contente,
a camisola macia
que eu te dera de presente!
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Depois de fazer a ronda,
o galo ficou danado:
a galinha, tão redonda,
quis botar ovo quadrado!
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Desde que tu foste embora,
 tua saudade é açoite
 que já começa na aurora
 e dói mais durante a noite!
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Dessa forma Cristo pensa:
"maior será o perdão
quanto maior for a ofensa".
- Que bela e sábia lição!!
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De todo "não" que me deste,
 o que mais triste me fez
 foi aquele que disseste
 disfarçado num "talvez".
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Do meu verso é sempre a fonte
 essa cidade lendária
 chamada Belo Horizonte,
 a Capital centenária!
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Do simples pó eu procedo,
sei que a ele hei de voltar;
a vida não tem segredo:
é um eterno retornar.
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Em cada nota eu receio,
na pauta que a vida escreve,
que transformem nosso enleio
numa simples semibreve.
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É muito estranho, meu bem,
 o relógio do destino:
 vai de manso, vai e vem,
 depois bate em desatino!
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E se em tupi é “kiri”
e lá na Itália “bambino”,
no sul só falam “guri”:
diabruras de “menino’!
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Essa vitória alcançada
 nos obriga a meditar:
 sem o povo não há nada,
 que verdade singular!
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Eu bem sei que tu me esperas
 e, se te vejo, ao sol-posto,
 projeto um céu de quimeras
 na moldura do teu rosto!
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Eu confesso abertamente,
e disso não me envergonho,
que tu foste, simplesmente,
o amplo portal do meu sonho.
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Eu sei que o belo e a verdade
 caminham juntos na vida
 e atinjo a felicidade
 se a ternura é dividida.
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Eu te agrado, tu me agradas,
e, no doce cativeiro,
sem algemas, sem ciladas,
tu me prendes por inteiro!
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Eu te amo tanto, mas tanto
que já pus num pedestal
toda a glória desse encanto,
que se tornou imortal.
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Eu te digo, com alegria,
e a realidade comprova
que o melhor da poesia
é a beleza de uma trova.
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Eu tenho perseverança
e à tristeza me anteponho:
garimpeiro da esperança,
sempre vivi do meu sonho.
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Foi no tempo da janela
e do namoro à distância
que a vida, muito mais bela,
tinha tão grande importância!
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Jamais eu temo o fracasso
 pois me deste o teu amor
 e a simples força do abraço
 me transforma em vencedor!
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Na magia desse sonho,
 nessa noite calma e pura,
 a sonata que componho
 tem as notas da ternura.
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Não foi perto, nem distante:
o nosso amor, ideal,
nasceu da luz de um instante
e se tornou imortal!
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Não me queres... pouco importa...
Só penso no alvorecer,
pois ele sempre abre a porta
à sedução de viver!
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Nas horas mortas da noite,
sem luar e bem-querer,
tua ausência é puro açoite
que duplica o meu sofrer.
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Na tessitura do sonho,
vou cortar, sem mais tardança,
esse nó górdio que imponho
a um amor sem esperança.
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Navegador solitário,
singrando as águas do mar,
jamais pensa em numerário,
mas conjuga o verbo amar!
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Nem o sofista profundo
esta verdade falseia:
quem se julga rei do mundo
é um pequeno grão de areia!
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Nenhum amor se constrói
só com flores e ternura,
pois aquele que mais dói
certamente é o que mais dura.
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Nessa vereda que é a vida,
vou de tropeço em tropeço,
pois cada nova subida
é sempre um novo começo.
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Nesse exílio que me imponho,
não senti que era miragem
e dos pedaços de sonho
eu recompus tua imagem.
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Nosso amor já teve história
e, por isso, eu te proponho
seja posto na memória
do relicário do sonho.
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Novo estatuto vigora
nas leis do amor hoje em dia:
sei que vale mais o agora
do que a mais bela utopia!
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Numa alquimia de nume,
 à tristeza me anteponho,
 transformando teu perfume
 no perfume do meu sonho!
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O açougueiro viu passando
 a mulher que é só pele e osso
 e disse, a faca afiando:
 "Isso é carne de pescoço".
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Olhando o tempo passar,
no relógio da memória,
eu senti coisa invulgar,
pois revivi nossa história!
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O que conta nessa vida
não é tempo nem idade,
mas a procura renhida
da deusa felicidade.
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O tempo passa depressa
e tão rápido ele flui
que nunca mais recomeça:
– sou a sombra do que fui.
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Quando o cãozinho e o menino
se abraçam por um segundo,
solto o canto peregrino:
- Há salvação para o mundo!
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Quis esquecer-te... não pude:
 a saudade é traiçoeira
 e ela sempre nos ilude,
 pois nos prende a vida inteira!
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Quis retratar um romance
 que fosse mesmo um primor,
 e fiz, com tinta e nuance,
 uma aquarela de amor.
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Sempre foste minha amada
e, no doce cativeiro,
sem algema e sem mais nada,
tu me prendes por inteiro.
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Se não me dás teu carinho,
se não me queres amar,
sou barco triste e sozinho,
que já não quer navegar.
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Se navegar é preciso
e viver nem tanto assim,
vou partir com teu sorriso,
em busca do mar sem fim!
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Se todos temos defeitos,
se o mistério vem de Deus,
se nem os bons são perfeitos,
o que dizer dos ateus?
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Somos poeira que a vida
 sempre leva de roldão;
 em sua sanha atrevida,
 ela não vê coração.
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Só se louva a juventude,
porém jamais alguém disse
que só se atinge a virtude
quando se alcança a velhice.
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Tira o véu da hipocrisia,
joga longe esse teu manto,
e verás que a noite fria
se transforma em puro encanto.
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Todos querem sufocar,
 com disfarces atrevidos,
 e sordidez invulgar,
 o grito dos excluídos .
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Tudo ele faz com amor
e traz o céu na bagagem;
na verdade, o trovador
de Deus na Terra é a imagem.
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Tu partiste... e essa magia
 que deixaste no meu peito
 vai fazer que certo dia
 tu voltes de qualquer jeito.
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Vejo o mar em ondas mansas
- foto de rara beleza -
e, reforçando as lembranças,
um céu chamado Veneza!
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"Veredas, grandes sertões"...
a nossa vida é uma estrada
toda cheia de senões,
do início ao fim da jornada.
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Vou definir a saudade
e não sei se estarei certo:
saudade é aquela vontade
de que o longe fique perto.
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quarta-feira, 13 de abril de 2022

Adega de Versos 77: Carolina Ramos

 

Carlos Leite Ribeiro (Um Banco de Jardim)

O "Tio Paulo", como em todos os dias que o tempo lhe permitia, encontrava-se sentado no seu habitual banco de jardim, a ler o jornal...

- Ó homenzinho, chegue-se um pouco para lá, para eu me poder sentar.

O "Tio Paulo", muito surpreendido, olhou para uma jovem que estava na sua frente e pretendia partilhar consigo aquele banco de jardim.

– É para já, menina ... menina quê ...?.

– O meu nome é Antonieta - respondeu-lhe a jovem desembaraçadamente, e continuou: olhe lá homenzinho, você por acaso não sabe de ninguém que precise de uma empregada?

O "Tio Paulo" voltou a encarar aquela jovem de modos e de expressões descontraídas.

Já meio divertido, respondeu-lhe: – Olhe lá menina, ou não sou nenhum homenzinho - ouviu?

– Ah, não?!... pois olhe que eu estava convencida que era!

Pelos vistos, a resposta fácil estava sempre na ponta da língua da jovem.

– O meu nome é Paulo, mas também me chamam "tio".

E ele a dar-lhe!

– Olhe, se você é "tio" eu não sou sua sobrinha - ouviu?!

Pela máscara facial, Antonieta notou que o velhote não tinha ficado nada agradado por aquilo que ela lhe tinha dito. Para suavizar a situação, a jovem perguntou ao "tio Paulo":

– Senhor Paulo, quer comer da minha merenda? ... é chouriço e queijo que me mandaram lá da minha terra, no Minho.

– Muito obrigado, menina Antonieta. Que lhe faça bom proveito !

E já mais bem disposto, o "Tio Paulo" continuou: – A propósito, a Antonieta não tem emprego?

A jovem encarou o bondoso velhote e, com tristeza respondeu-lhe:

– Presentemente não. Vim do Minho para trabalhar numa casa, mas o patrão era muito abusador. Mais parecia um polvo do que um homem. Chateei-me e dei-lhe uma "toutiçada" na cabeça e com uma mocada, deitei-lhe uma asa abaixo. Resultado, fui despedida.

O "Tio Paulo" começou também a viver o drama da jovem.

– Olhe lá, Antonieta, então você não tem casa onde ficar enquanto não conseguir arranjar outro emprego?

– Pois não tenho. Esta noite terei que ficar a dormir neste banco. - disse-lhe a jovem.

O ancião olhou para ela horrorizado, e avisou-a:  – Tenha juízo, menina, pois é muito perigoso ficar aqui sozinha de noite!

– Eu não tenho medo e além disso, sei defender-me! - atalhou logo a jovem.

Mas o "Tio Paulo" não se deu por vencido e continuou: – Antonieta, eu moro sozinho, sou viúvo e os meus filhos estão casados e não moram cá. Se quiser podia ir para minha casa.

Não pôde terminar a frase, pois logo a jovem retorquiu-lhe:

– Mas você pensa que eu queria ir para sua casa?!... Você deve estar a pensar que eu sou....

Ao ouvir isto, o bom velhote "atirou-se" ao ar...

– Olhe, que eu não estou a pensar em ser um "polvo" como você diz que era o seu antigo patrão. Ofereço-lhe a minha casa, em troca de... de, por exemplo, de você arrumar a minha casa e de passar-me a roupa a ferro - valeu?!

A jovem hesitou, mas por fim acedeu ao amável convite do bom velhote.

– Está bem, aceito. Mas o "Tio Paulo" terá de tomar banho todos os dias, pois esses pés... (que cheiro!) e tem de deixar andar agarrado a essa bengala.

E lá foram os dois. Curiosamente, o "Tio Paulo" já não se apoiou na bengala para poder andar.

Angela Togeiro (Poemas Escolhidos)

DO SER POETA...


Ser poeta
É caminhar nos extremos,
do riso à lágrima, do amor ao ódio
galgando a plenitude efêmera da palavra.
É ter o verbo que alimenta o outro
sem sequer se alimentar primeiro,
é consolar e nunca se sentir consolado.
É dormir sobre espinhos e ver brilhar as estrelas
num céu onde lidera o sol. Inverter a natureza.
É invejar-se por ser tão insatisfeito
sentir-se total neste desconforto,
matéria do seu pulsar.
É orgulhar-se de se sentir mediador
ao cantar do mundo
os seus mandos e desmandos.
É ter gula de absorver dores não sentidas
os sonhos não sonhados. As perdas não havidas.
É ter preguiça de olhar para fora de si
e sofrer o não sofrido.
A luxúria dos amores não vividos
e gozar o não sabido.
É viver a ira, socar o vento
quando impotente de tocar o falso
e torná-lo verdadeiro.
É ter a avareza de poder tomar da palavra
fazê-la sua num verso único
perdido das letras, fugido dos dicionários,
vergonha às vezes das gramáticas.
Ser poeta é viver de eterna penitência
transitar nos vales sombrios dos pecados capitais,
nos sabidos e nos ocultos
nas prisões da alma, e
tantas vezes morrer-se em pecado e graça
e renascer na esperança,
somente porque se sente um ser...
ser poeta... o que vive o além e o aquém da Paz
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ESSA...

Essa que me cuida sempre à noitinha,
Toma e relaxa meu corpo cansado,
Faz tranquilo o meu sono de soldado,
O que chega ao ninho feito andorinha.

Essa que vai comigo e que me aninha
Se de guerra falam em qualquer lado,
Cura a dor do meu peito desolado,
Põe nele a esperança que a tudo alinha.

Essa por todos é capaz de tudo.
É a que põe luz nas trevas; sobretudo,
Brilha no sonho que mais nos apraz.

Essa vive de amor, toda ternura,
Essa que se augura, que se procura,
É essa que se oferece ao mundo: a Paz.
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MULHER

Sou mulher,
sou todas as mulheres:
sou Afrodite, Amélia, Angela, Eva, Diana, Joana,
Madalena, Maria, Raquel, Rita, Sara,
Salomé, Tereza, Vênus, Zênite...
Tenho na genética
a herança dos tempos,
que me dá todos os nomes,
que me tira todos os nomes,
quando me desdobro em outra mulher.
Nasci em todas as raças,
tenho todas as cores puras e miscigenadas.
Pratico todos os credos.
Nasci em todos os cantos deste planeta.
Vivi em todas as eras.
Registrei meus gritos em todos os rincões,
mesmo se expulsos da alma
no mais profundo silêncio.
Vim de todos os lugares,
nasci em berço de ouro, em choupana,
na rua, nas matas, hospitais, templos...
Fui vestida, fui enrolada,
despida, jogada.
Gerada num útero que me amou,
ou num que me recusou.
Pouco importa, se rica ou pobre,
se esculpida no Belo ou no Feio,
preciso cumprir meu destino,
meu destino de Mulher.
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NASCER DE UM POEMA

Olho a folha branca,
vazia,
querendo um poema.
Olho a caneta,
com tinta
azul? vermelha? preta?
Olho a lapiseira. A borracha.
Uma inquietação me domina,
quero, preciso de um poema meu
nascendo sobre este papel branco...
feito de árvores mortas...
Escuto o meu silêncio...
Dentro de mim há um livro,
um livro de poemas
como este,
que espera o momento sideral
de conjunturas numerais,
espirituais, cabalísticas
de que não entendo nada,
para vir a lume.

Sorvem de mim
a alma,
e no papel
parecem libertados.
Tento em vão fechar meu livro
prender meu poema.

É tarde,
outro poema já está a caminho.
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POESIA DE VIVER

O viver é uma inédita poesia
Que cada ser escreverá ao nascer.
O parto, o verso puro então seria,
À dor, o prazer faz desaparecer.

Na infância do José ou na da Maria
Há alegrias, dores. Crer e querer
Ser sol, ser lua, ser amor, e o poder
Dá à juventude uma aura de magia.

Nos tropeços e acertos haveria
Combinar os sentimentos, perceber
Que o ódio é noite escura e o amor é dia

Que tudo rima e gira em torno do Ser.
E o poeta imitando a vida se inspira,
Escreve poemas que sente viver!

Silmar Böhrer (Croniquinha) 51

Domingo, tarde amena, sol radioso, saio a caminhar. Aos costumes de duas décadas, a arrecova leva os ingredientes do andar nosso de cada dia - papel, caneta e celular para fotos.

O trecho e o imaginário têm nuances, tonalidades, cores há tempo conhecidas na constância dos andares por estas veredas. Mas de vez em quando o constante muda alguma coisa, como acontece no mês de março.

Mudança de estação. O calorão passou, flores murcharam, o ambiente colorido do verão dá margem a novos matizes, folhas caem, outros frutos surgem.

Assim é que no caminho da bica d'água fui surpreendido e presenteado com os primeiros pinhões deste ano. E vieram bem cedo. E já maduros. E pus-me a juntar a boa-nova, os quarenta e oito pinhões que despencaram dá pinha lá no alto. Escurinhos. No ponto.

Noitinha já quando sementes da araucária foram para a chapa quente, satisfazendo os primeiros desejos de uma sapecada, aquela que traz de novo a culinária tradicional do sul para as casas, os ranchos do interior, as sapecadas com grimpas junto aos pinheiros.

Nem precisamos comentar que é sempre delicioso um pinhão com sabores e odores de cinza, fumaça e carvãozinho no local da colheita.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Sammis Reachers (A pouca valentia de Anésio)

O hoje motorista Carlos Pompeu era então cobrador, trabalhava na linha 62, na parte da tarde, tendo por parceiro o motorista Anésio. Anésio, por sua vez, era um grande zoador.

Certa feita, tarde da noite, eis que dá sinal para o ônibus uma moça aparentemente muito bonita. Mas, ao encostar o veículo para o embarque, Anésio percebe que aquela moça não tinha selo de originalidade...

A roleta era na parte de trás, Anésio, que nunca perdia a chance de sacanear o cobrador, não perdoou e lá da frente foi logo zoando o Carlos, rapaz tranquilo e pacato:

- Aêê, hein, Carlos, ganhou pra hoje!!! Já não vai perder de zero!!!
 
Carlos ficou muito sem graça. Mas a menina, na verdade um enorme travesti, percebeu que a zoação envolvia a sua distinta pessoa.

- O que ele está dizendo lá? - perguntou.

-Acho que ele tá dizendo que eu vou ficar com você...

- Ah, é, né, ele então é o espertão...

Dito isto, a 'menina' foi lá para a frente, sentou-se próxima ao    motorista e se espreguiçou no banco, fingindo dormir.

Anésio olhou pelo retrovisor, e viu a figura aparentemente dormindo. Era a chance de ele continuar a zoar.

- Como é que é Carlos, levanta daí. Sente-se ao lado da moça, rapaz. Seja macho! Vem dar um beijinho nela, cê tá solteiro mesmo...

De repente, a 'moça' se endireitou no banco, e olhou fixamente para o espelho central do carro, olhos nos olhos de Anésio. Só então que o sacana do piloto reparou que a menina era bem grande, e tinha ombros largos e braços grossos.

O ponto da moçona descer se aproximava, e ela levantou-se. Chegou ao lado de Anésio e falou com uma até ali insuspeita voz grossa e rouca:

- Seu velho babaca, o que você estava falando de mim aí?

- Eu? Eu nada... Só disse que o cobrador precisava de uma namorada...

- E porque você não namora ele, seu babaca?!!

- Ei, olha como você fala comigo, hein! Tá me faltando com o respeito!!!

- Respeito é o caramba! Onde estava seu respeito quando eu subi no ônibus? Levanta daí desse banco que eu vou te mostrar meu respeito!

- O quê, o quê???!!! Tá me chamando pra porrada? Se eu levantar eu arrebento contigo!!!

- Então levanta, seu babaca!!!

Nesse ponto, o pacato (e perdoador) Pompeu já havia se levantado e ido até a frente, para apartar as duas 'meninas'. O ônibus parou, e por fim o travesti maior desceu no seu ponto.

Num momento de rara sinceridade, Anésio olhou para seu parceiro e falou:

- Sabe Carlinhos, que bom que você não deixou eu brigar com aquele traveco. Eu estava reparando o tamanho dele daqui, e se eu entrasse numa acho que ia é entrar na porrada! Com aquele tamanho e aquele bração, ela ia bater em mim e em você!!!

- Eêê, para! Em mim não, cara-pálida, o espertão aqui é você. Agora, veja que coisa! O zoador deu mole, o valentão do volante amarelou para um traveco, imagine o que a galera vai dizer...

- Qué isso, Pompeu, faz isso não, cara, sabe que somos amigos e tudo aqui é na brincadeira...

- Pois se você me fizer passar vergonha só mais uma vez, eu vou explanar a sua amarelada pr'aquela boneca...

E, enquanto durou aquela simpática dupla, nunca mais o valente e zoador Anésio sacaneou o pacato Carlos…

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 12 de abril de 2022

Versejando 108

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 56 , 57 e 58


A MUDANÇA


O homem voltou à terra natal e achou tudo mudado. Até a igreja mudara de lugar. Os moradores pareciam ter trocado de nacionalidade, falavam língua incompreensível. O clima também era diferente.

A custo, depois de percorrer avenidas estranhas, que se perdiam no horizonte, topou com um cachorro que também vagava, inquieto, em busca de alguma coisa. Era um velhíssimo animal sem trato, que parou à sua frente.

Os dois se reconheceram: o cão Piloto e seu dono. Ao deixar a cidade, o homem abandonara Piloto, dizendo que voltaria em breve, e nunca mais voltou. O animal inconformado procurava-o por toda parte. E conservava uma identidade que talvez só os cães consigam manter, na Terra mutante.

Piloto farejou longamente o homem, sem abanar o rabo. O homem não se animou a acariciá-lo. Depois, o cão virou as costas e saiu sem destino. O homem pensou em chamá-lo, mas desistiu. Afinal, reconheceu que ele próprio tinha mudado, ou que talvez só ele mudara, e a cidade era a mesma, vista por olhos que tinham esquecido a arte de Ver.
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ANDORINHAS DE ATENAS

As andorinhas de Atenas são descendentes em linha direta daquelas que viviam no tempo de Anacreonte e que pousavam no ombro do poeta quando ele libava nas tavernas.

Esta informação, ministrada ao turista pelo guia, não mereceu crédito. Anacreonte (ponderou o visitante) não era de frequentar tavernas. Sentava-se à mesa dos poderosos e gozava de alta cotação social.

O guia não se impressionou com os conhecimentos biográficos:

— Pois olhe. Essas andorinhas foram trazidas de Samos pelo próprio Anacreonte, que por sinal selecionava as mais gordinhas para almoço. Era doido por andorinha no espeto.

— Como pode saber disto? — objetou o turista.

— Bem se vê que o senhor não conhece a Antologia palatina.

— Conheço-a, foi objeto da minha tese de mestrado, e não vi no texto uma linha que conte essa fábula.

— Meu caro senhor, peço licença para me retirar. Quem não acredita nas minhas histórias dificilmente levará uma boa impressão de Atenas.

E afastou-se com a maior dignidade.
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A NOITE

Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções, tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pelas horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo, no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é Fantástica.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Filemon Martins (Escadas de Trovas) II

FELICIDADE


NO TOPO:
"Felicidade não é
Despejada como o vinho,
Vem de dentro, como a fé,
Pondo flores no caminho..."

Carlos Ribeiro Rocha
Ipupiara/BA, 1923 – 2011, Salvador/BA


SUBINDO:

"Pondo flores no caminho"
o Amor presente se faz
e mesmo estando sozinho
planta a semente da Paz.

"Vem de dentro, como a fé"
em silêncio, ela aparece,
é preciso estar de pé
que a bondade vem, floresce.

"Despejada como o vinho"
a Verdade humildemente
traz a Luz e de mansinho
ilumina a nossa mente.

"Felicidade não é"
impossível a ninguém,
é tão simples, pode até
ser a prática do Bem.
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MÃE    

NO TOPO:
Minha mãe - como eu quisera
do meu amor dar-te prova,
e o meu carinho - pudera
enviar-te numa Trova.
Filemon F. Martins
São Paulo/SP


SUBINDO:

Enviar-te numa Trova
toda esta minha paixão,
pois meu amor se renova
quando beijo tua mão.

E o meu carinho - pudera
dar-te sempre de presente,
qual eterna primavera
que faz a vida contente.

Do meu amor dar-te prova
nesta profunda saudade,
pois hoje na vida nova
já tens luz, felicidade!

Minha mãe - como eu quisera
falar-te do meu amor
Tua ausência é longa espera
que aumenta mais minha dor
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SAUDADE

NO TOPO:
A distância é que nos mata
porque vem logo a saudade;
saudade - presença ingrata
de antiga felicidade.

Filemon F. Martins
São Paulo/SP


SUBINDO:
De antiga felicidade

que o tempo tentou levar,
meu coração tem vontade
de outra vez recomeçar.
    
Saudade - presença ingrata
que no coração perdura,
minha imagem não retrata
0 meu viver de amargura.

Porque vem logo a saudade
morar em meu peito agora?
Antes que tudo se acabe
quero ver a luz da aurora.

A distância é que nos mata
e o castigo tem sabor:
- quanto mais forte a chibata,
mais aumenta o nosso amor.
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SERTÃO

NO TOPO:
"No Sertão é tanta paz
Que eu chego a ouvir, da soleira,
O esforço que o vento faz
Tentando abrira porteira".

José Ouverney
Pindamonhangaba/SP

SUBINDO:

"Tentando abrir a porteira"
que prende meus velhos sonhos,
ouço a saudade matreira
falando em dias risonhos.

"O esforço que o vento faz"
farfalhando no telhado
dá-me a sensação de paz
que ficou !á no passado.

"Que eu chego a ouvir, da soleira,"
uma canção de ternura
que a brisa sopra, ligeira,
tangendo a doce ventura,

"No Sertão é tanta paz"
e a vida para, intrigante,
que o coração é capaz
de sorrir, mesmo distante.
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SONHO

NO TOPO:
"Naquele dia, tristonho,
Pousaste os olhos nos meus:
- Vivi na tarde do sonho,
Morri na noite do adeus!"

Maria Thereza Cavalheiro
São Paulo/SP , 1929 – 2018

SUBINDO:

"Morri na noite do adeus"
quando de casa, saíste,
meu sofrimento só Deus
sabe que ainda persiste.

"Vivi na tarde do sonho"
quando entraste em minha vida,
tornei-me um homem risonho,
mas, chorei na despedida.

"Pousaste os olhos nos meus"
dando-me luz e esperança,
quase fui um semideus
e sorri como criança.

"Naquele dia, tristonho"
como doeu, ao saber,
que foste embora, suponho,
por deixar de me querer.

Fonte:
Filemon F. Martins. Sonetos & Trovas. RJ: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2014. 
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Daniel Maurício (Poética) 28

 

Baú de Trovas XLVI


Pôr do sol, campos desertos,
e o pinheiro então parece
estar de braços abertos
a sussurrar uma prece ...
Adílson de Paula
Joaquim Távora/PR

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Senti, no suave cheiro
que o vento me trouxe agora,
que o vento passou primeiro
pela rua onde ela mora!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG

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Quando a noite se desata
e o véu de sombras descerra,
a lua derrama prata
sobre as misérias da terra.
Carolina Ramos
Santos/SP

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Diz um fantasma ao colega:
Hoje, a moda é dadivosa
lençol branco, como é brega,
chique mesmo é ... cor de rosa!
Dirce Davenia Guayato
Londrina/PR

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Torno os meus dias risonhos,
apesar da alma sofrida,
sendo alpinista de sonhos
pelas montanhas da vida!...
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ

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A página amarelada
de um álbum, quase esquecido,
tem a lembrança velada...
De tanto tempo perdido.
Elisa Alderani
Ribeirão Preto/SP

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O sol que é fonte de luz
e dá vida à plantação,
se torna calvário e cruz
quando seca o meu sertão!
Eugênio Carvalho Jr.
João Pessoa/PB

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Quando o sol, em tons vermelhos,
se põe em lenta agonia,
põe-se a tarde de joelhos,
chorando a morte do dia.
Ferreira Nobre
Fortaleza/CE

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Esta saudade me deixa
sozinho na contramão.
Meu coração já se queixa
de viver na solidão.
Filemon Francisco Martins
São Paulo/SP

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A ponte é sempre quem liga
as margens, fazendo o bem!
Que nesta vida eu consiga
ser uma ponte também!…
Harley Clóvis Stocchero
Almirante Tamandaré/PR, 1926 – 2005

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Dobrando esquinas a esmo,
correndo ruas sem fim,
eu vou buscando a mim mesmo,
perdido dentro de mim...
Izo Goldman  
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP    

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Amor, dádiva Divina,
semente humilde e perfeita;
a luz que nos ilumina
pela caminhada estreita.
João Batista Xavier Oliveira.
Bauru/SP

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Em pleno outono do adeus
nesse meu céu tão tristonho,
fazei surgir, ó bom Deus,
a lua cheia do sonho!
José Valdez de Castro Moura
Pindamonhangaba/SP

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É na surdina, eu suponho,
juntinho à mulher querida,
que a vida se torna sonho
e o sonho se torna vida.
Julimar Andrade Vieira
Aracajú/SE

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Cada trova que concebo
- e que tanto te extasia -
é nova taça que bebo
na fonte da fantasia!
Lacy José Raymundi
Garibaldi/RS

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Nossos pinheiros, brilhantes,
sobre a serra e em meio ao ar,
lembram taças borbulhantes
fazendo um brinde ao luar!
Lucilia Alzira Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

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Espera…! Que eu te proponho,
pois a ausência é triste sina:
- Sê a musa do meu sonho,
que o meu sonho não termina…!
Mara Melinni Garcia
Caicó/RN

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Cativa dos teus encantos,
a saudade traiçoeira
pôs em meus olhos mais prantos
que as águas da cachoeira!
Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes/PR

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O que dói, às vezes sara.
O que sara, não castiga.
A ponte que nos separa
pode ser a que nos liga.
Miguel Russowsky  
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC  
 
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A saudade, de mansinho,
sorrateira... vai chegando
sempre que vê no caminho
um lenço branco acenando...
Milton S. Souza   
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

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Neste abraço em que te aperto,
com a beatitude de um monge,
sinto meu amor tão perto...
Minha esperança tão longe!
Nilton da Costa Teixeira  
Monte Alto/SP, 1920 – 1983, Ribeirão Preto/SP

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Meu coração suburbano
tu conheces muito bem!
Tem muito do amor humano
que preenche o teu também!
Paulo Roberto Oliveira Caruso
Rio de Janeiro/RJ

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Busquei no universo um dia,
uma resposta eficaz;
que transformasse a poesia
num hino de amor e paz!!!
Professor Garcia
Caicó/RN

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Ao te encontrar, velha agenda,
lá no fundo da gaveta,
meu passado se desvenda...
És a minha “caixa-preta”!
Renato Alves
Rio de Janeiro/RJ

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Escrevo, reluto... E assim
da tristeza eu vou fugindo.
O escritor que habita em mim
me ensina a sofrer sorrindo.
Rita M. Mourão
Ribeirão Preto/SP

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Por dentro, a dor que não diz;
no rosto, um sorriso aberto;
quem demonstra ser feliz,
tem sempre amigos por perto!
Selma Patti Spinelli
São Paulo/SP

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Chove há hora... Choro tanto...
Eu e o céu somos iguais...
- Cada qual vertendo um pranto,
já nem sei quem chora mais!...
Sérgio Bernardo
Nova Friburgo/RJ

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Ubiratã*, você traz
entre as suas tradições,
a vocação para a paz
vinda de antigas nações.
Sinclair Pozza Casemiro
Campo Mourão/PR

* Para a cidade de Ubiratã, interior do Paraná.
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Minhas flores na varanda
guardaram beijos do vento.
Seu perfume de lavanda
desfolhou meu pensamento.
Solange Colombara
São Paulo/SP

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A montanha neblinada,
quando foge à nossa vista,
é a natureza enciumada
que esconde o quadro do artista.
Tharcílio Gomes de Macedo
Taubaté/SP

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Hoje, há desdém em teu riso
e desamor em teus atos!...
E em busca do teu sorriso,
procuro velhos retratos!
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP

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Navegamos todos nós
em água desconhecida,
sem conhecermos a foz
da imensa fonte da vida...
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba/PR

Júlia Lopes de Almeida (A nevrose da cor)

Desenrolando o papiro, um velho sacerdote sentou-se ao lado da bela princesa Issira e principiou a ler-lhe uns conselhos, escritos por um sábio antigo. Ela ouvia-o indolente, deitada sobre as dobras moles e fundas de um manto de púrpura; os grandes olhos negros cerrados, os braços nus cruzados sobre a nuca, os pés trigueiros e descalços unidos à braçadeira de ouro lavrado do leito.

Pelos vidros de cores brilhantes das janelas, entrava iriada* a luz do sol, o ardente sol do Egito, pondo reflexos fugitivos nas longas barbas prateadas do velho e nos cabelos escuros da princesa, esparsos sobre a sua túnica de linho fino.

O sacerdote, sentado num tamborete baixo, continuava a ler no papiro, convictamente; entretanto a princesa, inclinando a cabeça para trás, adormecia!

Ele lembrava-lhe:

– “A pureza na mulher é como o aroma na flor!”

“Ide confessar a vossa alma ao grande Osíris! para a terdes limpa de toda a mácula e poderdes dizer no fim da vida: Eu não fiz derramar lágrimas; eu não causei terror!”

“Quanto mais elevada é a posição da mulher, maior é o seu dever de bem se comportar.”

“Curvai-vos perante a cólera dos deuses! Lavai de lágrimas as dores alheias, para que sejam perdoadas as vossas culpas!”

“Evitai a peste e tende horror ao sangue...”

– Notai bem, princesa: E tende horror ao sangue!

A princesa sonhava: ia navegando num lago vermelho, onde o sol estendia móvel e quebradiça uma rede dourada. Recostava-se num barco de coral polido, de toldo matizado sobre varais crivados de rubis; levava os pés mergulhados numa alcatifa* de papoulas e os cabelos semeados de estrelas...

Quando acordou, o sacerdote, já de pé, enrolava o papiro, sorrindo com ironia.

– Ainda estás aí?

– Para vos repetir: Arrependei-vos, não abuseis da vossa posição de noiva do senhor de todo o Egito... lavai para sempre as vossas mãos do sangue...

A princesa fez um gesto de enfado, voltando para o outro lado o rosto; e o sacerdote saiu.

Issira levantou-se, e, arqueando o busto para trás, estendeu os braços, num espreguiçamento voluptuoso.

Uma escrava entrou, abriu de par em par a larga janela do fundo, colocou em frente a cadeira de espaldar de marfim com desenhos e hieróglifos na moldura, pôs no chão a almofada para os pés, e ao lado a caçoula* de onde se evolava, enervante e entontecedor, um aroma oriental.

Issira sentou-se, e, descansando o seu formoso rosto na mão, olhou demoradamente para a paisagem. A viração brincava-lhe com a túnica, e o fumo da caçoula envolvia-a toda.

O céu, azul-escuro, não tinha nem um leve traço de nuvem. A cidade de Tebas parecia radiante. Os vidros e os metais deitavam chispas de fogo, como se aqui, ali e acolá, houvesse incêndio; e ao fundo, entre as folhagens escuras das árvores ou as paredes do casario, serpeava, como uma larga fita de aço batida de luz, o rio Nilo.

Princesa de raça, neta de um Faraó, Issira era orgulhosa; odiava todas as castas, exceto a dos reis e a dos sacerdotes. Fora dada para esposa ao filho de Ramazés, e, sem amá-lo, aceitava-o, para ser rainha. Era formosa, indomável, mas vítima de uma doença singular: a nevrose da cor. O vermelho fascinava-a.

Muito antes de ser a prometida do futuro rei, chegava a cair em convulsões ou delírios ao ver flores de romãzeiras, que não pudesse atingir, ou as listas encarnadas dos kalasiris* dos homens do povo.

A medicina egípcia consultou as suas teorias, pôs em prática todos os seus recursos e curvou-se vencida diante da persistência do mal. Issira, entretanto, degolava as ovelhinhas brancas, bebia-lhes o sangue, e só plantava nos seus jardins papoulas rubras.

Na aldeia em que nascera e em que tinha vivido, Karnac, forrara de linho vermelho os seus aposentos; era neles que ela bebia em taças de ouro o precioso líquido.

Princesa e formosa, a fama levou-lhe o nome ao herdeiro de um Ramazés; e logo o príncipe, curioso, seguiu para essa terra.

O seu primeiro encontro foi no templo. Ele esperava-a no centro do enorme pátio, entre as galerias de colunas, ansiosamente. Ela vinha no seu palanquim de seda, coberta de pérolas e de púrpura, passando radiante e indolente entre as seiscentas esfinges que flanqueavam a rua.

Dias depois morria o pai de Issira, último descendente dos Faraós, após a sua costumada refeição de leite e mel. O príncipe Ramazés solicitou a mão da órfã e fê-la transportar para o palácio real, em Tebas.

A beleza de Issira deslumbrou a corte; a sua altivez fê-la respeitada e temida; a paixão do príncipe rodeou-a de prestígio e a condescendência do rei acabou de lhe dar toda a soberania. O seu porte majestoso, o seu olhar, ora de veludo ora de fogo, mas sempre impenetrável e sempre dominador, impunham-na à obediência e ao servilismo dos que a cercavam.

Esquecera a placidez de Karnac. Lamentava só as ovelhinhas brancas que ela imolava nos seus jardins das papoulas rubras.

A loucura do encarnado aumentou.

Os seus aposentos cobriram-se de tapeçarias vermelhas. Eram vermelhos os vidros das janelas; pelas colunas dos longos corredores enrolavam-se hastes de flores cor de sangue.

Descia às catacumbas iluminada por fogos encarnados, cortando a grandiosa soturnidade daqueles enormes e sombrios edifícios, como uma nuvem de fogo que ia tingindo, deslumbradora e fugidia, os sarcófagos de pórfiro*ou de granito negro.

Não lhe bastava isso; Issira queria beber e inundar-se em sangue. Não já o sangue das ovelhinhas mansas, brancas e submissas, que iam de olhar sereno para o sacrifício, mas o sangue quente dos escravos revoltados, conscientes da sua desgraça; o sangue fermentado pelo azedume do ódio, sangue espumante e embriagador!

Um dia, depois de assistir no palácio a uma cena de pantomimas e arlequinadas, Issira recolheu-se doente aos seus aposentos; tinha a boca seca, os membros crispados, os olhos muito brilhantes e o rosto extremamente pálido.

O noivo andava por longe a visitar províncias e a caçar hienas.

Issira, estendida sobre os coxins de seda, não conseguia adormecer. Levantava-se, volteava no seu amplo quarto, desesperadamente, como uma pantera ferida a lutar com a morte. Faltava-lhe o ar; encostou-se a uma grande coluna, ornamentada com inverossímeis figuras de animais entre folhas de palmeira e de lodão* e aí, de pé, movendo os lábios secos, com os olhos cerrados e o corpo em febre, deliberou mandar chamar um escravo.

A um canto do quarto, estendida no chão, sobre a alcatifa, dormia a primeira serva de Issira. A princesa despertou-a com a ponta do pé.

Uma hora mais tarde, um escravo, obedecendo-lhe, estendia-lhe o braço robusto, e ela, arregaçando-lhe ainda mais a manga já curta do kalasiris, picava-lhe a artéria, abaixava rapidamente a cabeça, e sugava com sôfrego prazer o sangue muito rubro e quente!

O escravo passou assim da dor ao desmaio e do desmaio à morte; vendo-o extinto, Issira ordenou que o removessem dali, e adormeceu. Desde então entrou a dizimar escravos, como dizimara ovelhas.

Subiam queixas ao rei; mas Ramazés, já velho, cansado e fraco, parecia indiferente a tudo. Ouvia com tristeza os lamentos do povo, fazendo-lhe promessas que não realizava nunca.

Não queria desgostar a futura rainha do Egito; temia-a. Guardava a doce esperança da imortalidade do seu nome. E essa imortalidade, Issira poderia cortá-la como a um frágil fio de cabelo. Formosa e altiva, quando ele, Ramazés, morresse, ela, por vingança, fascinaria a tal ponto os quarenta juízes do julgamento dos mortos, que eles procederiam a um inquérito fantástico dos atos do finado, apagando-lhe o nome em todos os monumentos, dizendo ter mal cumprido os seus deveres de rei!

Não! Ramazés não oporia a sua força à vontade da neta de um Faraó! Que a maldita casta dos escravos desaparecesse, que todo o seu sangue fosse sorvido com avidez pela boca rosada e fresca da princesa. Que lhe importava, e que era isso em relação à perpetuidade do seu nome na história?

As queixas rolavam a seus pés, como ondas marulhosas e amargas; ele sofria-lhes o embate, mas deixava-as passar!

Issira, encostada à mão, olhava ainda pela janela aberta para a cidade de Tebas, esplendidamente iluminada pelo sol, quando um sacerdote lhe foi dizer, em nome do rei, que viera da província a triste notícia de ter morrido o príncipe desastrosamente.

Recebeu a princesa com ânimo forte tão inesperada nova. Enrolou-se num grande véu e foi beijar a mão do velho Ramazés.

O rei estava só; a sua fisionomia mudara, não para a dolorosa expressão de um pai sentido pela perda de um filho, mas para um modo de audaciosa e inflexível autoridade. Aceitou com frieza a condolência de Issira, aconselhando-a a que se retirasse para os seus domínios em Karnac. A egípcia voltou aos seus aposentos, e foi sentar-se pensativa no dorso de uma esfinge de granito rosado, a um canto do salão.

A tarde foi caindo lentamente; o azul do céu esmaecia; as estrelas iam a pouco e pouco aparecendo, e o Nilo estendia-se cristalino e pálido entre a verdura negra da folhagem. Fez-se noite. Imóvel no dorso da esfinge, Issira olhava para o espaço enegrecido, com os olhos úmidos, as narinas dilatadas, a respiração ofegante.

Pensava na volta a Karnac, no seu futuro repentinamente extinto, nesse glorioso amanhã que se cobrira de crepes e que lhe parecia agora interminável e vazio! Morto o noivo, nada mais tinha a fazer na corte.

Ramazés dissera-lhe:

– Ide para as vossas terras; deixai-me só...

Issira debruçou-se da janela – tudo negro! Sentiu rumor no quarto, voltou-se. Era a serva que lhe acendera a lâmpada. Olhou fixamente para a luz; a cabeça ardia-lhe, e procurou repousar. Deitando-se entre as sedas escarlates do leito, com os olhos cerrados e as mãos pendentes, viu, em pensamento, o noivo morto, estendido no campo, com uma ferida na fronte, de onde brotava em gotas espessas o seu belo sangue de príncipe e de moço.

A visão foi-se tornando cada vez mais clara, mais distinta, quase palpável. Soerguendo-se no leito, encostada ao cotovelo, Issira via-o, positivamente, a seus pés. O sangue já se não desfiava em gotas, uma a uma, como pequenas contas de coral; caia às duas, às quatro, às seis, avolumando-se, até que saía em borbotões, muito vermelho e forte; Issira sentia-lhe o calor, aspirava-lhe o cheiro, movia os lábios secos, buscando-lhe a umidade e o sabor.

A insônia foi cruel. Ao alvorecer, chamando a serva, mandou vir um escravo.

Mas o escravo não foi. Ramazés atendia enfim ao seu povo, proibindo à egípcia a morte dos seus súditos. Um sacerdote foi aconselhá-la.

– Cuidado! A justiça do Egito é severa, e vós já não sois a futura rainha...

Issira despediu-o.

Perseguia-a a imagem do noivo, coberto de sangue. A proibição do rei revoltava-a, acendendo-lhe mais a febre do encarnado.

Como na véspera, o sol entrava gloriosamente pelo aposento, através dos vidros de cor. A princesa mordia as suas cobertas de seda, torcendo-se sobre a púrpura do manto. De repente levantou-se, transfigurada, e mandou vir de fora braçadas de papoulas, que espalhou sobre o leito de púrpura e ouro...

Depois, sozinha, deitou-se de bruços, estirou um braço e picou-o bem fundo na artéria. O sangue saltou vermelho e quente. A princesa olhou num êxtase para aquele fio coleante que lhe escorria pelo braço, e abaixando a cabeça uniu os lábios ao golpe.

Quando à noite a serva entrou no quarto, absteve-se de fazer barulho, acendeu a lâmpada de rubis, e sentou-se na alcatifa, com os olhos espantados para aquele sono da princesa, tão longo, tão longo…
= = = = = = = = = = = = = = = = =
* Vocabulário:
Alcatifa = tapete grande, geralmente com desenhos e cores variadas, usualmente para cobrir pavimentos ou ser colocado nas janelas em dias festivos.
Caçoula = recipiente para queimar substâncias ou misturas aromáticas.
Iriada = que possui as cores do arco-íris.
Kalasiris = túnica longa usada por homens e mulheres no Egito antigo.
Lodão = é uma espécie de árvore do Oriente Médio. É possível que se trate da árvore a que os autores clássicos como Heródoto e Dioscórides chamaram lótus.
Pórfiro = qualquer pedra que apresente partículas muito brancas em fundo escuro.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

domingo, 10 de abril de 2022

Varal de Trovas n. 555

 

Renato Frata (Um pensamento, uma viagem)

O mormaço da tarde varou a noite em plantão à minha janela, talvez para que não me esquecesse de que é verão, aliás, dos mais quentes que se tem notícia. Empurrado pelo vento morno, passou a noite a escorregar de manso pelas gretas da veneziana e com isso aqueceu meu quarto.

Na madrugada, com a fronha umedecida de suor, depois de revirar na cama qual bife em frigideira quente, me acomodei; e quietinho esperando pelo sono, um pensamento saído de não sei onde me alcançou; e com ele tomado de um quase êxtase, pude enxergá-la.

Olhos fechados na noite, a vi deitada em sua cama, emoldurada pela penumbra silenciosa do quarto sob olhares cuidadosos dos móveis que como vigilantes imobilizados, faziam a vigília.

Nesse passeio rápido de pensamento, atrevi movimentar-me pelo seu aposento. Aliás, reputo mais à curiosidade que me impulsionou que ao atrevimento propriamente dito. Tateei as paredes velando não esbarrar nos móveis-sentinelas e a passo de gato com gestos medidos, levantei do chão uma ponta caída do lençol. Aproveitei e a estendi sobre seu corpo, preocupado em não acordá-la, momento em que se mexeu e melhor se aninhou como a agradecer pela gentileza. Olhei-a com atenção apreciando sua face que estava tranquila, o que me deixou satisfeito porque seus lábios descontraídos quase sorriam. Parecia feliz no descanso após o dia de trabalho.

Não sei por que, mas da mesma forma que havia entrado, saí. Quando me vi lá fora, porém, senti-me vazio e temeroso, momento em que a sombra da solidão se aproximou com sua cara horrenda e desdentada a querer me absorver como faz todos os dias. Seus dedos finos e magros empunhavam unhas compridas que riscavam o ar em minha direção como garras de animal feroz. Como enfrentá-la se ela é muito mais forte? Inquiri.

Num lapso de covardia (ou de sabedoria?) fugindo dela, expugnei as paredes e voltei ao quarto, sondei o ambiente envolvido pelo aroma gostoso de seu perfume, aliás, que enebria e encanta, voltando a percorrê-lo devagar. O corpo, meio encolhido, parecia se comprazer sob o lençol. Talvez se deliciasse com os feixes de sonhos bons da noite.

Em pé ao seu lado, conjecturei sobre a graça e a tristeza da vida, quando uma sempre compensa a outra: não fosse o calor e a insônia, não teria havido o pensamento. Não fosse o pensamento, não teria havido a aventura noturna; e nem a consciência da necessidade de fugir do sentimento da solidão. Não fosse a aventura imaginada, perigosa, imprópria e arriscada, não teria havido o encontro, mesmo que de maneira sorrateira.

Como o pensamento viaja sem se importar com barreiras e limites e nem com acidentes geográficos, a invasão, por si só deixa de ser pecado, afinal, ninguém consegue segurá-lo.

O fato é que passei ali tempão aos pés do leito a cuidar de seu sono, querendo e não podendo me aproximar, sofrendo com a impossibilidade e me deliciando com a presença, até quando o sol se infiltrou também pelas frestas e trouxe a realidade de um novo dia.

Sorri sabendo que a solidão se afugentou com a claridade e se misturou às pouquíssimas gotículas de orvalho que a noite de verão permitiu formar.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XLI

OUTRA VEZ?


MOTE:
No amor, minha aprendizagem
com tantos erros se fez,
que não tenho mais coragem
de aprender tudo outra vez...
Sebas Sundfeld
(Pirassununga/SP, 1924 – 2015, Tambaú/SP)


GLOSA:

No amor, minha aprendizagem
foi difícil, fez chorar,
parecendo uma viagem
sem hora para voltar.

Essa aprendizagem louca,
com tantos erros se fez,
que os lábios da minha boca
sentiam a embriaguez!

Me lanço numa sondagem
e percebo torturado,
que não tenho mais coragem
não sou mais o do passado!

Pra dentro de mim, olhando,
eu vejo com nitidez:
não tenho força sobrando
de aprender tudo outra vez…
= = = = = = = = = = =

SE...

 
MOTE:
Se tens um sonho desfeito,
se a vida perdeu o encanto,
solta a angústia do teu peito,
desamarra o nó do pranto!
Selma Patti Spinelli
(São Paulo/SP)


GLOSA:

Se tens um sonho desfeito,
tenta sonhar outra vez,
sonhar nos traz, com seu jeito,
uma doce embriaguez!

Não sejas pra sempre triste
se a vida perdeu o encanto,
em nosso existir existe,
cada dia, outro acalanto!

Não fiques insatisfeito,
deixa o teu pranto rolar,
solta a angústia do teu peito,
que, um dia, ela vai findar!

Grita o teu pranto de dor,
faz dele o teu doce canto,
enche tua vida de amor,
desamarra o nó do pranto!
= = = = = = = = = = =

SOU PRAIA DESERTA

MOTE:
Tua ausência me desperta
a impressão de ser deixada...
como uma praia deserta
quando passa a temporada.
Vanda Alves da Silva
(Curitiba/PR)

GLOSA:

Tua ausência me desperta
uma saudade sem fim,
parece uma porta aberta,
que se fecha para mim!

Sinto, em tristeza tão minha,
a impressão de ser deixada...
para sempre, assim, sozinha,
pelo amor – abandonada!

A amargura enorme é certa
e eu me sinto a soluçar
como uma praia deserta
que chora a ausência do mar!

Assim, me sinto, também,
uma praia, sem pegada,
onde não passa ninguém,
quando passa a temporada.
= = = = = = = = = = =

VALEU A PENA...

MOTE:
É feliz quem vive a paz,
de uma velhice serena,
capaz de olhar para trás
e dizer: - Valeu a pena!
Vanda Fagundes Queiroz
(Curitiba/PR)


GLOSA:

É feliz quem vive a paz,
é feliz quem faz o bem,
é bem mais feliz, quem faz
o bem, sem olhar a quem!

Tem-se, então, a garantia
de uma velhice serena,
com muita, muita alegria
como fundo dessa cena!

É uma atitude que apraz,
que nos faz sentir felizes,
capaz de olhar para trás
e não ver só cicatrizes!

E quando o inverno chegar
em nossa vida terrena
podermos tudo lembrar
e dizer: - Valeu a pena!
= = = = = = = = = = =

SOZINHA AO LUAR...

MOTE:
Olho a rua... A noite avança,
tudo adormece ao luar...
Dorme até minha esperança,
pois cansou de te esperar!
Wanda de Paula Mourthé
(Belo Horizonte/MG)


GLOSA:

Olho a rua... A noite avança,
agora o Sol se escondeu
e a noite, quase criança,
aos poucos, apareceu!

É lindo, mais que magia!...
tudo adormece ao luar...
É tudo envolto em poesia
nos convidando a sonhar!

É bonita essa lembrança,
mas sob o luar prateado,
dorme até minha esperança,
na saudade do passado!

Meu coração, pobrezinho,
triste de tanto chorar,
segue só, o seu caminho,
pois cansou de te esperar!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2005.

Contos e Lendas do Mundo (Índia: Harisarman, o mago)

Era uma vez um brâmane chamado Harisarman. Ele era pobre e ignorante, precisava muito de um emprego, e tinha tantos filhos que talvez estivesse colhendo os frutos dos erros cometidos em alguma vida passada.

Ele perambulava pedindo esmola com a família até que chegou a uma cidade e começou a trabalhar para um proprietário rico de terras, chamado Sthuladatta. Seus filhos cuidavam das vacas e de outras propriedades de Sthuladatta, sua esposa tornou-se criada dele, e ele próprio morava perto da casa e tornou-se seu empregado.

Um dia, houve um banquete pelo casamento da filha de Sthuladatta, no qual estiveram presentes muitos amigos e convidados do noivo. Harisarman esperava poder se encher de manteiga, carne e outras guloseimas e conseguir o mesmo para sua família. Ele aguardou ansiosamente que lhe levassem alguma comida, mas ninguém se lembrou dele.

Ficou aflito por não receber nada para comer, então disse à esposa:

– Aqui me tratam com tanto desrespeito porque sou pobre e ignorante, então fingirei ter conhecimentos de magia, assim conquistarei o respeito de Sthuladatta. Quando houver oportunidade, diga-lhe que tenho conhecimentos de magia.

Depois de pensar sobre o assunto enquanto todos dormiam, ele roubou da casa de Sthuladatta um cavalo que o genro do senhor costumava cavalgar. Escondeu-o a certa distância e, de manhã, os amigos do noivo não encontraram o cavalo, mesmo depois de procurar por todas as partes.

Enquanto Sthuladatta estava angustiado com o mau agouro e tentando encontrar os ladrões que tinham levado o cavalo, a esposa de Harisarman disse-lhe:

– Meu marido é um homem sábio, conhecedor de astrologia e ciências mágicas. Ele pode recuperar o cavalo. Por que não pede a ele?

Quando o Sthuladatta ouviu aquilo, chamou Harisarman, que disse:

– Ontem fui esquecido. Mas hoje, agora que o cavalo foi roubado, sou lembrado.

E Sthuladatta o apaziguou com essas palavras:

– Não lembrei de você, peço-lhe perdão! – e pediu que ele contasse quem havia levado o cavalo.

Harisarman desenhou diversos diagramas falsos e respondeu:

– O cavalo foi escondido por ladrões no extremo sul do terreno. Deve buscá-lo logo, antes que o levem para mais longe, o que deverá acontecerá ao fim do dia de hoje.

Ao ouvirem aquilo, muitos homens correram e rapidamente recuperaram o cavalo, elogiando o discernimento de Harisarman e o proclamando um sábio.

Assim, ele ficou vivendo lá, feliz, respeitado por Sthuladatta.

Os dias se passaram e um grande tesouro, composto por ouro e joias, foi roubado do palácio do rei. Como não conheciam quem era o ladrão, o rei chamou Harisarman, famoso por seus conhecimentos de magia.

Tentando ganhar tempo, ele disse:

– Eu lhe direi amanhã.

O rei o colocou em aposentos muito bem vigiados e Harisarman arrependeu-se de ter fingido conhecer magia. No palácio, havia uma criada chamada Jihva, que significa “língua”, que, com auxílio do irmão, havia roubado o tesouro do palácio. Preocupada com o que Harisarman saberia, à noite ela foi até o cômodo em que ele estava e encostou o ouvido na porta para tentar descobrir o que ele estava fazendo. Harisarman, sozinho lá dentro, naquele exato instante culpava a própria língua por ter feito aquela vã declaração de conhecimento. Ele disse:

– Língua, o que foi fazer em nome da cobiça? Perversa, logo será castigada.

Quando Jihva ouviu aquilo, pensou, horrorizada, que havia sido descoberta pelo sábio e entrou onde ele estava, jogando-se aos seus pés, disse ao suposto mago:

– Brâmane, cá estou, a Jihva que roubou o tesouro, como já descobriu. Depois que o levei, enterrei-o no jardim que fica atrás do palácio, sob uma romãzeira. Então poupe minha vida e receba a pequena quantidade de ouro que tenho comigo.

Quando Harisarman ouviu aquilo, disse a ela com orgulho:

– Vá embora, sei de tudo isso. Conheço o passado, o presente e o futuro. Não a denunciarei, criatura infeliz, por ter implorado por minha proteção. Mas deve entregar a mim todo o ouro que possuir.

Quando ele disse isso, ela concordou e partiu imediatamente. Harisarman refletiu, surpreso: “Assim como no jogo, o destino traz coisas impensáveis. Com a calamidade tão próxima, quem pensaria que o acaso traria o sucesso? Enquanto eu culpava minha jihva, a ladra Jihva de repente se jogou aos meus pés. Crimes secretos se manifestam por meio do medo”.

Assim, jubiloso, ele passou a noite no quarto. Pela manhã, levou o rei, com um desfile hábil de conhecimentos fingidos até o jardim e o conduziu ao tesouro, enterrado sobre a romãzeira, dizendo que o ladrão havia escapado com uma parte. O rei ficou satisfeito e lhe recompensou com muitas aldeias.

Mas um ministro chamado Devajnanin sussurrou no ouvido do rei:

– Como um homem pode ter um conhecimento tão inatingível sem ter estudado livros de magia? Pode ter certeza de que se trata de alguém desonesto, que confabula em segredo com ladrões. Seria melhor testá-lo de outra forma.

Deste modo, o rei trouxe uma jarra coberta, dentro da qual havia colocado um sapo, e disse a Harisarman:

– Brâmane, se conseguir adivinhar o que há nesta jarra, eu lhe farei uma grande honraria hoje.

Ao ouvir aquilo, o brâmane Harisarman pensou que havia chegado sua hora e lhe veio à cabeça o apelido “Sapinho”, que seu pai tinha lhe dado na infância. Compelido a lamentar a má sorte em voz alta, ele disse:

– É uma pena, Sapinho, que uma jarra tão bonita seja a sua destruição.

Os presentes o aplaudiram, pois sua fala harmonizara perfeitamente com o objeto apresentado e murmuram:

– Ah, que grande sábio! Sabe até sobre o sapo!

O rei, achando que aquilo era devido ao dom da adivinhação, ficou exultante e deu a Harisarman mais aldeias, além de ouro, um guarda-chuva e várias carruagens.

Assim Harisarman prosperou para sempre.

Fonte:
Contos e lendas do mundo. Conto publicado originalmente em 1880.