quinta-feira, 28 de abril de 2022

Hans Christian Andersen (O Sino)


Isto se passou em uma grande cidade de ruas estreitas.

À hora do lusco-fusco, em que as nuvens brilhavam como ouro entre as chaminés, algumas pessoas ouviam um som singular, como o de um sino de igreja. Ora um, ora outro o  ouvia, mas sempre durava apenas um momento, porque era tanto o estrépito dos carros e o barulho das vozes , que os ruídos mais leves eram abafados. E o povo dizia:

– O sino da tarde está tocando. O sol vai entrar.

Os que andavam pelos arredores da cidade, onde as casas eram mais raras e tinham jardins e quintaizinhos de permeio, podiam apreciar melhor a beleza e a amplidão do céu à hora do crepúsculo e ouvir o sino muito mais distintamente. O som parecia vir de uma igreja escondida nas profundezas da floresta, e o povo olhava naquela direção, sentindo que a hora era solene.

Passou-se algum tempo, e as pessoas diziam muitas vezes:

- Haverá alguma igreja no meio do mato? O sino tem um som tão suave e tão lindo... E se fossemos escutá-lo de mais perto?

E foram.

Os ricos iam de carro, os pobre a pé, mas parecia-lhes que o caminho não acabava nunca. E quando alcançaram um grupo de salgueiros que ficavam na orla da mata, sentaram-se para descansar e, olhando para aqueles longos galhos pendentes, pensavam que já  estavam no coração da floresta.

Um confeiteiro da cidade foi também, e armou ali uma tenda, veio um rival e armou também a sua, pendurando no alto uma sineta, previamente alcatroada, por causa da chuva - mas não tinha badalo. E quando toda aquela gente voltou para casa dizia que tudo era muito romântico e que não era apenas um piquenique, era uma coisa muito melhor do que tomar chá no campo, simplesmente. Três pessoas declararam que tinham explorado a floresta até o outro lado, e que sempre ouviam o som peculiar daquele sino, mas que agora parecia vir da cidade. Um deles escreveu um poema, dizia que o sino parecia a voz de uma mãe falando a um filho bem-amado, e que não havia no mundo melodia mais suave do que o som daquele sino.

Até o imperador começou a interessar-se por aquele caso, e declarou que daria o título de "Sineiro Universal" a quem descobrisse de onde procedia o estranho som, ainda que não houvesse sino algum no caso.

Muita gente correu para a floresta, na esperança de obter a nomeação, mas só um apresentou uma espécie de explicação do mistério. Nenhum deles tinha ido até o interior do mato - nem ele próprio, ainda assim, podia dizer que o som provinha de uma grande coruja que vivia no oco de uma árvore. Era  uma coruja sábia, que batia continuamente a cabeça na árvore. Contudo se o som resultante vinha da cabeça da ave ou do tronco oco, era coisa que ele não pudera distinguir. Foi, então, nomeado "Sineiro Universal", e todos os anos escrevia um tratado sobre a coruja. Mas ninguém se achou mais esclarecido com isso.

Chegara o dia da confirmação. O pastor falou com muita eloquência e os que se confirmaram ficaram muito impressionados - porque era um dia solene para todos. Era como se aquelas crianças se tivessem transformado de repente em gente grande, como se  dissesse que seus espíritos infantis assumiam de um instante para outro os atributos de pessoas de juízo maduro. Transformavam-se assim em seres responsáveis.

Era um dia de sol ardente. Os jovens que haviam confirmado, foram dar um passeio fora da cidade, e ouviram o som do grande sino desconhecido que vinha da floresta. Tinha um cunho de solenidade excepcional. Sentiram-se as crianças tomadas do desejo de ouvi-lo de mais perto, e assim resolveram ir lá – todas, menos três.

Uma destas tinha de ir para casa para provar o vestido de baile, porque o único motivo que a levara à confirmação fora justamente esse: a festa e o traje de baile. A não ser por isso, não teria tomado parte na cerimônia desta vez.

Outro - um menino pobre - tinha pedido emprestados o casaco e os sapatos do filho do senhorio, para a confirmação, e tinha de devolvê-los a uma hora determinada.

O terceiro declarou que nunca ia a lugares estranhos sem os pais, que sempre fora menino obediente, e agora, que estava confirmado, assim queria permanecer, e que ninguém devia rir dele por isso - o que não impediu, afinal, que todos os outros se divertissem à sua custa.

Houve três, portanto, que desistiram de ir, mas os outros empreenderam a jornada fatigante. O sol brilhava no firmamento, os passarinhos cantavam, e as crianças recém-confirmadas também cantavam, e iam de mãos dadas, porque nenhuma delas tinha ainda emprego importante, e todas eram de igual categoria aos olhos de Deus.

Aconteceu, porém, que dois dos meninos menores cansaram e voltaram para cidade. Duas meninas sentaram-se para tecer grinaldas e não continuaram a viagem. E quando os outros chegaram aos salgueiros, onde ficava a tenda do confeiteiro, disseram:

- Chegamos à floresta! Não há aqui sino nenhum, era apenas ilusão daquela gente!

Mas naquele mesmo instante o sino tangeu no mais profundo da floresta, e o som era tão lindo, tão solene, que cinco ou seis crianças resolveram penetrar mais adentro. As árvores eram tão copadas e tão juntas que se tornava difícil andar entre elas; os narciso e as anêmonas cresciam a grande altura, e as ipomeias floridas e as framboesas pendiam em longos festões, unindo entre si as árvores, em cujos galhos brincavam os raios do sol e cantavam os rouxinóis. Era muito lindo, tudo aquilo, sim - mas não era lugar para  as meninas, que iriam rasgar os vestidos a cada passo. Grandes blocos de pedra cobertos de musgo de variadas cores, surgiram por toda a parte; e o fresco arroio murmurava, parecendo cantarolar um gorjeio.

- Será isto o sino, afinal? - disse uma das crianças, deitando-se para escutar. - Creio que vale a pena estudar isto!

E ali ficou, enquanto os outros continuavam a andar .

Chegaram a uma cabana, feita de galhos e de casca de árvores. Uma grande macieira silvestre estendia os galhos por cima do chalézinho, como se quisesse chover bênçãos sobre o teto, coberto por uma roseira em flor. Os galhos floridos enroscavam-se no beiral, onde estava amarrada uma sineta.

- Seria aquele o sino que as pessoas ouviam? Sim! Todos concordaram, exceto um, que achou a sineta muito pequena e muito frágil para ser ouvida a tão grande distância. E disse ainda que o som era muito diferente daquele outro, que tocava, que tocava tão profundamente o coração humano.

Era um principezinho o que falara, e os outros disseram que aquela espécie de gente sempre quer ser mais entendida do que as outras pessoas.

Deixaram-no, pois, prosseguir sozinho, e quanto mais se internava na floresta, tanto mais o impressionava aquela solidão. Mas ainda ouvia a sineta que tanto tinha agradado aos outros. De vez em quando o vento soprava do lado da tenda do confeiteiro, ouvia, também os cantos dos que ficara lá tomando chá. Mas o som profundo do sino elevava-se, mais alto, parecia que havia um órgão a acompanhá-lo. E aqueles sons vinham do lado esquerdo, quer dizer, do lado em que fica o coração.

Ouviu-se um rumor nos arbustos e um menino parou na frente do filho de rei, um menino de tamanquinhos e com um  casaco tão curto, que deixava aparecer todo o punho da camisa.   Ambos se conheciam: o que trajava modestamente era aquele que não pode reunir-se aos outros, porque tinha  de voltar para restituir o casaco e os sapatos que lhe emprestara o filho do dono da casa. Feito isto, voltara, com seus tamanquinhos e a roupa surrada, porque o sino estava tocando com um som tão profundo e com tamanho poder que ele não pode resistir.

- Pois então, - disse o filho de rei – podemos agora ir juntos.

Mas o menino pobre estava muito envergonhado; olhou para os pés, puxou as mangas da jaqueta e disse que talvez não pudesse caminhar mais longe, além disso achava que o sino devia ser procurado para o lado direito, porque naquela direção ficava a parte mais bela da floresta.

- Então provavelmente não tornaremos a nos encontrar. - disse o filho de rei, cumprimentando o menino pobre.

Este entranhou-se nas profundezas do mato, onde os espinhos lhe rasgavam a roupinha pobre, arranhando-lhe o rosto, as mãos e os pés, até fazer sangue. O filho de rei também não se livrou de algum arranhão, mas o sol brilhava no caminho, e vamos segui-lo, porque é um rapaz excelente e resoluto.

- Eu tenho de achar, e hei de achar o sino! - disse ele. - Nem que precise ir ao fim do mundo!

Uns macacos muito feios, que estavam encarrapitados nas árvores, fizeram-lhe caretas, dizendo uns para os outros:

- Nós não vamos dar-lhe pancadas? Não vamos dar nele? É o filho de rei!

Mas ele continuou a andar, destemeroso, cada vez mais para o interior da floresta, onde vicejavam as mais estranhas flores. Ali havia lírios alvos, com estames vermelhos como sangue; tulipas da cor do céu, que brilhavam , quando a brisa as roçava; e macieiras, cujas frutas pareciam grandes e brilhantes bolhas de sabão. Imagine como não cintilavam aquelas árvores ao sol! Ao redor de lindos prados verdes, onde os veados brincavam, erguiam-se carvalhos e faias magníficos, e nas fendas da casca das mais antigas brotavam trepadeiras e aninhavam-se musgo. Haviam ainda lagos serenos, onde nadavam cisnes brancos, que batiam as asas no ar. O filho de rei parou muitas vezes, ficando quieto, a escutar. Julgava que o som do sino vinha daqueles lagos, mas verificou então que procedia de muito mais longe, do fundo da mata.

Já o sol declinava. O ar era agora flamejante e a floresta profundamente silenciosa, ele caiu de joelhos, fez a sua oração da noite e disse:

- Nunca acharei o que procuro! A noite, a noite escura se aproxima. Mas... quem sabe se ainda poderei ver por um instante o sol vermelho antes que se suma no horizonte! Vou subir aquele rochedo, que é tão alto como as árvores mais altas.

Segurou-se, conforme pode, às raízes e trepadeiras, e foi escalando as pedras escorregadias; viu ali cobras-d'água enroladinhas e sapos do mato que pareciam coaxar para ele. Mas alcançou o pico antes  que o sol mergulhasse no horizonte.

E que vista magnífica daquela altura! O mar, o mar imenso, sem limites, que atirava suas ondas à praia, estendia-se diante dele. E além, no ponto onde mar e céu se encontram, o sol, como um grande altar resplandecente, fundia tudo quanto o cercava em cores maravilhosas. A floresta cantava, o oceano cantava, e o coração do menino juntou também o seu cântico aqueles hinos de louvor.

Toda a natureza era como um vasto templo sagrado: pilares eram as árvores, e as nuvens flutuantes, o musgo e as flores, magníficas tapeçarias de veludo, abóbada, o céu sem limites. Agora as cores brilhantes iam desmaiando, mas milhões de estrelas se acendiam - milhões de lâmpadas de diamante, iluminado a cúpula gloriosa.

E o filho do rei estendeu os braços para o céu, e para o mar, e para a floresta.

Justamente nesse instante, do caminho que ficava à direita, surgia o rapaz pobre, o das mangas curtas e dos tamanquinhos. Viera por outro caminho, mas chegara ao mesmo tempo que o filho de rei.

Correram então um para o outro, e ali ficaram, de mãos dadas, no vasto templo da natureza e da poesia. E acima deles, e por toda a parte, soava o sino invisível e solene. Espíritos sagrados flutuavam ao redor deles, erguendo suas vozes em um cântico de aleluia!

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 06

 

Machado de Assis (Uma Visita de Alcibíades)

Carta do Desembargador X... ao chefe de polícia da corte

Corte, 20 de setembro de 1875.

Desculpe V. Ex.ª o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entende-los-á daqui a pouco.

Hoje, à tardinha, acabado o jantar, enquanto esperava a hora do Cassino, estirei-me no sofá e abri um tomo de Plutarco. V. Ex.ª, que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que V. Ex.ª lhe dava, e tão intensa que me ia fazendo reprovar em outras disciplinas. Abri o tomo, e sucedeu o que sempre se dá comigo quando leio alguma coisa antiga: transporto-me ao tempo ao meio da ação ou da obra. Depois de jantar é excelente. Dentro de pouco acha-se a gente numa via romana, ao pé de um pórtico grego ou na loja de um gramático. Desaparecem os tempos modernos, a insurreição da Herzegovina, a guerra dos carlistas, a rua do Ouvidor, o circo Chiarini. Quinze ou vinte minutos de vida antiga, e de graça. Uma verdadeira digestão literária.

Foi o que se deu hoje. A página aberta acertou de ser a vida de Alcibíades. Deixei-me ir ao sabor da loquela ática; daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos atenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia reger as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos. Imagine V. Ex.ª se vivi! Mas, o moleque entrou e acendeu o gás; não foi preciso mais para fazer voar toda a arqueologia da minha imaginação. Atenas volveu à história, enquanto os olhos me caíam das nuvens, isto é, nas calças de brim branco, no paletó de alpaca e nos sapatos de cordovão. E então refleti comigo:

— Que impressão daria ao ilustre ateniense o nosso vestuário moderno?

Sou espírita desde alguns meses. Convencido de que todos os sistemas são puras niilidades, resolvi adotar o mais recreativo deles. Tempo virá em que este não seja só recreativo, mas também útil à solução dos problemas históricos; é mais sumário evocar o espírito dos mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor do ato. E tal era o meu caso desta noite. Conjeturar qual fosse a impressão de Alcibíades era despender o tempo, sem outra vantagem, além do gosto de admirar a minha própria habilidade. Determine portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe que comparecesse em minha casa, logo, sem demora.

E aqui começa o extraordinário da aventura. Não se demorou Alcibíades em acudir ao chamado; dois minutos depois estava ali, na minha sala, perto da parede; mas não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às grandes assembleias de Atenas, e também, um pouco, aos seus pataus (ignorantes). V. Ex.ª, tão sabedor da história, não ignora que também houve pataus em Atenas; sim, Atenas também os possuiu, e esse precedente é uma desculpa. Juro a V. Ex.ª que não acreditei; por mais fiel que fosse o testemunho dos sentidos, não podia acabar de crer que tivesse ali, em minha casa, não a sombra de Alcibíades, mas o próprio Alcibíades redivivo. Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e...

— Que me queres? — perguntou ele.

Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático. Era ele, não havia duvidar que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão. Era claro que, sem o pensar, acabava eu de dar um grande passo na carreira do espiritismo; mas, ai de mim! não o entendi logo, e deixei-me ficar assombrado. Ele repetiu a pergunta, olhou em volta de si e sentou-se numa poltrona. Como eu estivesse frio e trêmulo (ainda o estou agora) ele que o percebeu, falou-me com muito carinho, e tratou de rir e gracejar para o fim de devolver-me o sossego e a confiança.

Hábil como outrora! Que mais direi a V. Ex.ª? No fim de poucos minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessário, de um incêndio.

Escusado é dizer a V. Ex.ª que abri mão da ideia de o consultar acerca do vestuário moderno; pedira um espectro, não um homem “de verdade”, como dizem as crianças. Limitei-me a responder ao que ele queria; pediu-me notícias de Atenas, dei-lhas; disse-lhe que ela era enfim a cabeça de uma só Grécia, narrei-lhe a dominação muçulmana, a independência, Botzaris, lord Byron. O grande homem tinha os olhos pendurados da minha boca; e, mostrando-me admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada, explicou-me que à porta do outro mundo afrouxavam muito os interesses deste. Não vira Botzaris nem lord Byron — em primeiro lugar, porque é tanta e tantíssima a multidão de espíritos, que estes se fazem naturalmente desencontrados; em segundo lugar, porque eles lá congregam-se, não por nacionalidades ou outra ordem, senão por categorias de índole, costume e profissão: assim é que ele, Alcibíades, anda no grupo dos políticos elegantes e namorados, com o duque de Buckingham, o Garrett, o nosso Maciel Monteiro etc. Em seguida pediu-me notícias atuais; relatei-lhe o que sabia, em resumo; falei-lhe do parlamento helênico e do método alternativo com que Bulgaris e Comondouros, estadistas seus patrícios, imitam Disraeli e Gladstone, revezando-se no poder e, assim, como estes, a golpes de discurso.

Ele, que foi um magnífico orador, interrompeu-me:

— Bravo, atenienses!

Se entro nestas minúcias é para o fim de nada omitir do que possa dar a V. Ex.ª o conhecimento exato do extraordinário caso que lhe vou narrando. Já disse que Alcibíades escutava-me com avidez; acrescentarei que era esperto e arguto; entendia as coisas sem largo dispêndio de palavras. Era também sarcástico; ao menos assim me pareceu em um ou dois pontos da nossa conversação; mas no geral dela, mostrava-se simples, atento, correto, sensível e digno. E gamenho (malandro), note V. Ex.ª, tão gamenho como outrora; olhava de soslaio para o espelho, como fazem as nossas e outras damas deste século, mirava os borzeguins, compunha o manto, não saía de certas atitudes esculturais.

— Vá, continua — dizia-me ele, quando eu parava de lhe dar notícias.

Mas eu não podia mais. Entrado no inextricável, no maravilhoso, achava tudo possível, não atinava por que razão, assim, como ele vinha ter comigo ao tempo, não iria eu ter com ele à eternidade. Esta ideia gelou-me. Para um homem que acabou de digerir o jantar e aguarda a hora do Cassino, a morte é o último dos sarcasmos.

Se pudesses fugir... Animei-me: disse-lhe que ia a um baile.

— Um baile? Que coisa é um baile?

Expliquei-lhe.

— Ah! Ver dançar a pírrica*!

— Não — emendei eu —, a pírrica já lá vai. Cada século, meu caro Alcibíades, muda de danças como muda de ideias. Nós já não dançamos as mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX não dançará as deste. A pírrica foi-se, como os homens de Plutarco e os numes de Hesíodo.

— Com os numes?

Repeti-lhe que sim, que o paganismo acabara, que as academias do século passado ainda lhe deram abrigo, mas sem convicção, nem alma, que as mesmas bebedeiras arcádicas,

Evohé! padre Bassaréu!
Evohé! etc. 
 
honesto passatempo de alguns desembargadores pacatos, essas mesmas estavam curadas, radicalmente curadas. De longe em longe, acrescentei, um ou outro poeta, um ou outro prosador alude aos restos da teogonia pagã, mas só o faz por gala ou brinco, ao passo que a ciência reduziu todo o Olimpo a uma simbólica. Morto, tudo morto.

— Morto Zeus?

— Morto.

— Dionísios, Afrodite?...

— Tudo morto.

O homem de Plutarco levantou-se, andou um pouco, contendo a indignação, como se dissesse consigo, imitando o outro: — Ah! se lá estou com os meus atenienses! Zeus, Dionísios, Afrodite... — murmurava de quando em quando. Lembrou-me então que ele fora uma vez acusado de desacato aos deuses e perguntei a mim mesmo donde vinha aquela indignação póstuma, e naturalmente postiça. Esquecia-me — um devoto do grego! —, esquecia-me que ele era também um refinado hipócrita, um ilustre dissimulado. E quase não tive tempo de fazer esse reparo, porque Alcibíades, detendo-se repentinamente declarou-me que iria ao baile comigo.

— Ao baile? — repeti atônito.

— Ao baile, vamos ao baile.

Fiquei aterrado, disse-lhe que não, que não era possível, que não o admitiriam, com aquele traje; pareceria doido; salvo se ele queria ir lá representar alguma comédia de Aristófanes, acrescentei rindo, para disfarçar o medo. O que eu queria era deixá-lo, entregar-lhe a casa, e uma vez na rua, não iria ao Cassino, iria ter com V. Ex.ª. Mas o diabo do homem não se movia; escutava-me com os olhos no chão, pensativo, deliberante. Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu século.

— Quero ir ao baile. — repetiu ele. — Já agora não vou sem comparar as danças.

— Meu caro Alcibíades, não acho prudente um tal desejo. Eu teria certamente a maior honra, um grande desvanecimento em fazer entrar no Cassino, o mais gentil, o mais feiticeiro dos atenienses; mas os outros homens de hoje, os rapazes, as moças, os velhos... é impossível.

— Por quê?

— Já disse; imaginarão que és um doido ou um comediante, porque essa roupa...

— Que tem? A roupa muda-se. Irei à maneira do século. Não tens alguma roupa que me emprestes?

Ia a dizer que não; mas ocorreu-me logo que o mais urgente era sair, e que uma vez na rua, sobravam-me recursos para escapar-lhe, e então disse-lhe que sim.

— Pois bem — tornou ele levantando-se —, irei à maneira do século. Só peço que te vistas primeiro, para eu aprender e imitar-te depois.

Levantei-me também, e pedi-lhe que me acompanhasse. Não se moveu logo; estava assombrado. Vi que só então reparara nas minhas calças brancas; olhava para elas com os olhos arregalados, a boca aberta; enfim, perguntou por que motivo trazia aqueles canudos de pano. Respondi que por maior comodidade; acrescentei que o nosso século, mais recatado e útil do que artista, determinara trajar de um modo compatível com o seu decoro e gravidade. Demais nem todos seriam Alcibíades. Creio que o lisonjeei com isto; ele sorriu e deu de ombros.

— Enfim!

Seguimos para o meu quarto de vestir, e comecei a mudar de roupa, às pressas. Alcibíades sentou-se molemente num divã, não sem elogiá-lo, não sem elogiar o espelho, a palhinha, os quadros. — Eu vestia-me, como digo, às pressas, ansioso por sair à rua, por meter-me no primeiro tílburi que passasse...

— Canudos pretos! — exclamou ele.

Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio, o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V. Ex.ª, ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...

— Feia, mas séria — disse-lhe. — Olha, entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição.

E vendo que ele abanava a cabeça:

— Meu caro — disse-lhe —, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, belo à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodos (poetas, vates) recitando os seus versos, nem os oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...

— Desgraçado! — bradou ele atirando-se a mim.

Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue (pálido de susto). A causa era uma ilusão. Como se passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata, e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-me. Atei-a enfim, depois vesti o colete.

— Por Afrodite! — exclamou ele. — És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite, uma noite com três estrelas apenas — continuou apontando para os botões do peito. — O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos...

Não pôde concluir a frase; eu acabava de enfiar a casaca, e a consternação do ateniense foi indescritível. Caíram-lhe os braços, ficou sufocado, não podia articular nada, tinha os olhos cravados em mim, grandes, abertos. Creia V. Ex.ª que fiquei com medo, e tratei de apressar ainda mais a saída.

— Estás completo? — perguntou-me ele.

— Não! Falta o chapéu.

— Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! — tornou Alcibíades com voz suplicante. — Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está reduzida a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não posso crê-lo! Venha alguma coisa que corrija isso. O que é que falta, dizes tu?

— O chapéu.

— Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.

Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pus-o na cabeça.

Alcibíades olhou para mim, cambaleou e caiu. Corri ao ilustre ateniense, para levantá-lo, mas (com dor o digo) era tarde; estava morto, morto pela segunda vez. Rogo a V. Ex.ª se digne de expedir suas respeitáveis ordens para que o cadáver seja transportado ao necrotério, e se proceda ao corpo de delito, revelando-me de não ir pessoalmente à casa de V. Ex.ª agora mesmo (dez da noite) em atenção ao profundo abalo por que acabo de passar, o que aliás farei amanhã de manhã, antes das oito.
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* Pirricas = nas antigas Atenas e Esparta, dança guerreira de origem dórica realizada com armas na mão, e na qual os homens se exercitavam desde cedo.

Fonte:
Publicado no Jornal das Famílias, outubro de 1882.  In Machado de Assis. Papéis Avulsos. 1882.

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 6 =

CAMPO


CAMPO da minha saudade:
vai crescendo, vai subindo,
de tanto jazer sem nada.

Desvelo mudo e contínuo
que vai revestido os montes
e estendendo outros caminhos.

Mergulhada em suas frondes,
a tristeza é uma esperança
bebendo a vazia sombra.

Águas que vão caminhando
dispersam nos mares fundos
mel de beijo e sal de pranto.

Levam tudo, levam tudo
agasalhado em seus braços

Campo imenso — com o meu vulto...

E ao longe cantam os pássaros.
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DISTÂNCIA

QUANDO o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.
Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve seco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)
Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria…
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GUITARRA

PUNHAL de prata já eras,
punhal de prata!
Nem foste tu que fizeste
a minha mão insensata.

Vi-te brilhar entre as pedras,
punhal de prata!
— no cabo, flores abertas,
no gume, a medida exata,

a exata, a medida certa,
punhal de prata,
para atravessar-me o peito
com uma letra e uma data.

A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.
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RENÚNCIA

RAMA das minhas árvores mais altas,
deixa ir a flor! que o tempo, ao desprende-la,
roda-a no molde de noites e de albas
onde gira e suspira cada estrela.

Deixa ir a flor! deixa-a ser asa, espaço,
ritmo, desenho, música absoluta,
dando e recuperando o corpo esparso
que, indo e vindo, se observa, e ordena, e escuta...

Falo-te, por saber o que é perder-se.
Conheço o coração da primavera,
e o dom secreto do seu sangue verde,
que num breve perfume existe e espera.

Verti para infinitos desamparos
tudo que tive no meu pensamento.
Por onde anda? No abismo. Dada ao vento...
Era a flor dos instantes mais amargos.
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RIMANCE*

ONDE é que dói na minha vida,
para que eu me sinta tão mal?
quem foi que me deixou ferida
de ferimento tão mortal?

Eu parei diante da paisagem:
e levava uma flor na mão.
Eu parei diante da paisagem
procurando um nome de imagem
para dar à minha canção.

Nunca existiu sonho tão puro
como o da minha timidez.
Nunca existiu sonho tão puro,
nem também destino tão duro
como o que para mim se fez.

Estou caída num vale aberto,
entre serras que não têm fim.
Estou caída num vale aberto:
nunca ninguém passará perto,
nem terá notícias de mim.

Eu sinto que não tarda a morte,
e só há por mim esta flor:
eu sinto que não tarda a morte
e não sei com é que suporte
tanta solidão sem pavor.

E sofro mais ouvindo um rio
que ao longe canta pelo chão,
que deve ser límpido e frio,
mas sem dó nem recordação,
como a voz cujo murmúrio
morrerá com o meu coração.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Rimance = pequeno canto épico. xácara, seguidilha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = 
 SOM

ALMA divina,
por onde me andas?
Noite sozinha,
lágrimas, tantas!

Que sopro imenso,
alma divina,
em esquecimento
desmancha a vida!

Deixa-me ainda
pensar que voltas,
alma divina,
coisa remota!

Tudo era tudo
quando eras minha,
e eu era tua,
alma divina!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

VINHO


A TAÇA foi brilhante e rara,
mas o vinho de que bebi
com os meus olhos postos em ti,
era de total amargura.

Desde essa hora antiga e preclara,
insensivelmente desci,
e em meu pensamento senti
o desgosto de ser criatura.

Eu sou de essência etérea e clara:
no entanto, desde que te vi,
como que desapareci...
Rondo triste, à minha procura.

A taça foi brilhante e rara:
mas, com certeza enlouqueci.
E desse vinho que bebo
se originou minha loucura.

Fonte:
Cecília Meirelles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.

Zenobia Collares Moreira (A Armadilha, de Murilo Rubião)


É uma das 11 histórias que compõe o livro "A Casa do Girassol vermelho", escrita em 1965.
 
“A armadilha” é uma das narrativas mais enigmáticas de Murilo Rubião. Construída com base na ambiguidade e no suspense, ela desconstrói os esquemas da lógica do senso comum, instaurando, desde o seu início, a incerteza própria do gênero fantástico. A personagem Alexandre Saldanha Ribeiro, mesmo carregando uma mala pesada, rejeita o elevador e usa as escadas para chegar ao décimo andar de um prédio desabitado, sujo e decadente. Ao entrar na sala que buscava, uma grande surpresa o aguarda: um velho está a sua espera empunhando um revólver na sua direção. Este fato inesperado gera no leitor a justificada expectativa de que Alexandre seria assassinado.

 Isto não é o que ocorre, mas sim um inusitado diálogo entre o velho e Alexandre, iniciado pelo velho: “... esperava a sua vinda. Há dois anos, desta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.” A partir daí, uma sequência de fatos inverossímeis vão se sucedendo, instaurando a incerteza que caracteriza as narrativas "fantásticas", nas quais o elemento “misterioso” intervém no curso normal dos fatos, resultando em uma ruptura, em um “suspense” instigantes: a arma descarregada, as janelas fechadas com tela metálica, a porta de aço trancada eliminando qualquer possibilidade de fuga para Alexandre, tirando-lhe a chance de escapar à situação de prisioneiro, de vítima de uma armadilha, na qual ficará para sempre: “Aqui ficaremos, um ano, dez, cem ou mil anos.”

O desvendamento do mistério não ocorre no final do conto. A ambiguidade permanece até o final da história, deixando que o leitor faça a dedução dos fatos finais.

 Em “A Armadilha”, nenhuma explicação é dada aos fatos estranhos e o final da história é inconcluso e ambíguo. Todavia, não estamos diante de um texto que pretende ser mera diversão ou passa tempo vazio de significado.

Como costuma acontecer nas obras murilianas, este conto veicula uma crítica de cunho moralizante à realidade do mundo contemporâneo. Suas personagens tipificam a condição absurda em que vive o homem, prisioneiro de uma sociedade na qual imperam a incomunicabilidade e a solidão, como inapelável consequências da existência humana. 
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Zenóbia Collares Moreira possui graduação em Letras (vernáculas) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte(1975), mestrado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco(1981), doutorado em Doutorado em Literatura Portuguesa pela Universidade de Nova Lisboa(1992) e pós-doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco(1999). Professora adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


sexta-feira, 22 de abril de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 2

 

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 5

Antes que tu me respondas,
me antecipo, ao confirmar,
que a cabeleira das ondas
são as cãs brancas do mar!
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Ao vê-la assim, debruçada,
na janela, olhando ao léu...
Lembra-me o olhar da alvorada
nos olhos azuis do céu!
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A vida em muitas propostas,
nos atos mais arredios..,
foge e não deixa respostas
para os grandes desafios!
= = = = = = = = = = =

Derramam pranto de molhos,
esses verdes olhos teus;
e o verde desses teus olhos,
é a luz desses olhos meus!
= = = = = = = = = = =

Em silêncio, eu lhe proponho,
ó entardecer que me afeta:
Nunca!... Jamais roube o sonho
do coração de um poeta!
= = = = = = = = = = =

Eu peço sempre de joelhos,
que a sorte não vire as costas;
quem pede santos conselhos
quer sempre santas respostas!
= = = = = = = = = = =

Minha alma, mesmo à distância,
na velhice, não reclama,
por manter vivo, da infância,
o coração de quem ama!
= = = = = = = = = = =

Não temo a velhice... Enfim,
percebi que não há fuga,
quando o rosto riu de mim
mostrando a primeira ruga!
= = = = = = = = = = =

No parque, todas cantando,
e eu, brincando entre as crianças,
vi minha infância passando,
num carrossel de esperanças!...
= = = = = = = = = = =

Nos sonhos, tantos desejos,
na vida, mil sonhos vãos;
e entre os restos, vis sobejos
da maldade de outras mãos!
= = = = = = = = = = =

Num berço humilde de palha,
no olhar da pobre criança,
brilha uma luz que se espalha
e enche a vida de esperança!
= = = = = = = = = = =

O espelho do meu passado
que ria tanto ao me ver...
Ao ver meu rosto enrugado
não quis me reconhecer!
= = = = = = = = = = =

O olhar de um velho descrente
que à justiça não se apega...
Percebe que, humanamente,
a humanidade está cega!
= = = = = = = = = = =

O poeta nunca se cansa
de enfrentar o entardecer;
se é feliz como criança,
é criança até morrer!
= = = = = = = = = = =

O tédio que te agrilhoa
é o mesmo que te entedia.
Esquece-o, que o tédio voa,
e ao teu lar volta a alegria!
= = = = = = = = = = =

Passei a vida ensinando
a velhos, crentes e ateus,
que a vida, é um ventinho brando
soprando das mãos de Deus!
= = = = = = = = = = =

Pelo afeto que nos tinha,
por teu amor tão profundo,
és mãe eterna rainha
em qualquer trono do mundo!
= = = = = = = = = = =
Quando a infância apressa os passos
de nossa vida se afasta,
prende a canseira nos braços
da cruz que a velhice arrasta!
= = = = = = = = = = =

Se for loucura, que importa!
Parece as palmas de alguém!...
Corro e depressa abro a porta,
olho e não vejo ninguém!
= = = = = = = = = = =

Se o teu pensamento é vário,
não te diz coisa nenhuma...
Segue o teu itinerário
mesmo sem resposta alguma!
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Se quem canta afasta as penas
das mágoas do coração...
Eu canto as mágoas pequenas,
que as grandes, nunca se vão!
= = = = = = = = = = =

Sobre os braços da tristeza,
no topo da velha cruz,
há sempre uma vela acesa
chorando gotas de luz!
= = = = = = = = = = =

Tapera!... Por teus lamentos,
teu pranto!... E, neste abandono...
Até no sopro dos ventos,
ouve-se a voz do teu dono!
= = = = = = = = = = =

Um galanteio, uma flor,
às vezes, um olhar qualquer,
pode despertar o amor
nos olhos de uma mulher!
= = = = = = = = = = =

Um velho sino plangente,
tange na velha abadia.,.
Notas de sonhos da gente
nas preces finais do dia!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Luís da Câmara Cascudo (O frade e a freira)

(Lenda do Sudeste)


QUANDO A REGIÃO se povoava no trabalho da terra, vieram também os semeadores da Fé, pregando e sofrendo ao lado dos homens pecadores.

Um frade ali missionou, ensinando orações e espalhando exemplos de esperança. Era moço, forte, soldado da milícia que vencia o mundo, batalhando por Jesus Cristo.

Na aldeia, não mais acampamento indígena e ainda não Vila-del-Rei, freiras divulgavam a ciência do esforço e do sacrifício, silenciosa e contínua como o correr de um rio na solidão.

Aqueles que se deram a Deus, só a Ele pertencerão eternamente. O amor divino é absoluto e completo. Nada restará para a esmola a outros amores.

Frade e Freira, servo e esposa de Cristo, amaram-se, tendo os sinais visíveis do juramento a um outro amor, inviolável e severo.

Foram amando e padecendo, abafando no coração a chama alta do desejo fremente, invasora, sonora de paixão. As razões iam desaparecendo na marcha alucinante de um amor tão vivo e maravilhoso como a terra virgem que o acolhia.

De furto, orando, chorando, penando, encontravam-se para um olhar mais demorado e uma recordação mais cruel e deliciosa. Nas margens do Itapemirim andavam as duas sombras negras, juntas, numa procissão de martírio, resistindo às tentações da floresta, do silêncio e da vontade envolvedora.

Se foram ou não um do outro, num milagre humano de esquecimento, não recorda a memória popular. Apenas, uma vez, não voltaram às suas casas. Faltou um frade nas matinas e houve um lugar vago entre as freiras.

Às margens do Itapemirim, claro e rápido, sobre fundamentos de granito, ergueu-se o casal, num diálogo que atravessa os séculos, ouvido pelas tempestades e compreendido pelos passarinhos.

É o grupo do Frade e a Freira...

Transformou-os Deus em duas estátuas de pedra-, reconhecíveis, identificáveis, perfeitas. Não os separou nem os uniu num abraço perpétuo à face dos homens.

Deixou-os próximos e distanciados, nas atitudes de meditação e de reza, de sonho e de resignação, frente a frente, imagem da imóvel fidelidade, da obstinação amorosa, esperando o infinito.

E assim, eternamente, ficarão...

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

Antologia Literária “Mitos e Lendas do Brasil” (Prazo: 30 de abril)


ORGANIZADOR: Glaucio Oliveira e Bianca Oliveira

Não há nenhum mal em apreciar aspectos culturais de outros povos, no entanto passa a ser preocupante quando notamos que parcela substancial das gerações mais jovens o faz em detrimento de sua própria cultura. Podemos enxergar esse fenômeno claramente quando nos lembramos do nosso folclore.

Embora práticas e eventos regionais são preservados diligentemente — sobretudo no Norte e no Nordeste —, tudo que compõe as lendas (mesmo as mais famosas) está se perdendo. Os adolescentes mais sabem sobre mitos gregos e até mesmo nórdicos, do que sobre a "mitologia brasileira". O que é uma lástima, tendo em vista que a nossa — baseada na amálgama dos povos que as originou: europeu, indígena e africano — além de vasta é bastante peculiar, com personagens e causos com originalidade de invejar qualquer estrangeiro.

Essa modesta obra surge como uma forma de mitigação desse fenômeno e valorização das nossas raízes. Um legítimo convite ao mundo folclórico brasileiro. Inicialmente aos autores, que redigirão contos, poemas e crônicas sobre as peripécias do Saci, o magnetismo e sedução do Boto cor-de-rosa e da Iara, a impetuosidade do Boitatá e do Curupira em defesa de seu habitat, entre outros. E posteriormente ao leitor, que terá mais uma publicação disponível em circulação, que resgata mitos tão interessantes e que dizem tanto sobre nossas origens como nação e povo autodeterminado.

A antologia intitulada “Mitos e Lendas do Brasil” tem como objetivo publicar um E-book a fim de divulgar trabalhos de diversos autores de diferentes regiões do Brasil (e por que não do mundo?) que enalteçam os personagens do folclore brasileiro.

A participação é aberta para escritores acima de 16 anos, com inscrição gratuita, sendo necessário o pagamento de R$30 por texto selecionado para custos de editoração.

CRONOGRAMA

10/11/21 - 30/04/22: Inscrições abertas.

— Período de recebimento de inscrições (podendo ser prorrogado);

— Notificação de aprovação e pagamento da taxa de participação;

— Envio de certificados e divulgação dos selecionados nas redes sociais.

01/05/22 - 31/05/22: Publicação da obra.

— Envio do livro diagramado para aprovação dos selecionados;

— Envio do E-book e publicação de versão impressa sob demanda no Clube dos Autores.

REGULAMENTO

1. A INSCRIÇÃO


1.1. Para participar, o autor deve encaminhar uma mensagem de e-mail contendo até 3 textos (sendo poesias e/ou contos) em anexo para inscricao@bandeiranteeditorial.com.br, com o assunto “INSCRIÇÃO – MITOS E LENDAS DO BRASIL”. O total de páginas por autor deve ser de até 5 páginas seguindo a formatação do arquivo (veja item 3).

1.2. No corpo da mensagem, exige-se a inclusão das seguintes informações: Nome completo, pseudônimo (se houver), quantidade de textos, títulos dos textos e telefone/WhatsApp.

1.3. Além do texto autoral, o participante deve enviar uma foto pessoal e uma breve biografia de até 600 caracteres escrita em terceira pessoa. Seja em anexo como arquivos separados, ou incluídos dentro do pdf/doc.

1.4. A princípio serão disponibilizadas 30 vagas, havendo a possibilidade de menos ou mais autores dependendo da procura por parte dos participantes e a composição da obra durante o recebimento de inscrições.

2. O AUTOR

2.1. Esta antologia destina-se a autores de qualquer nacionalidade, desde que sejam maiores de 16 anos e proficientes em português.

2.2. Todos os participantes selecionados receberão gratuitamente o certificado de participação por e-mail e terão seus nomes/pseudônimos divulgados tanto nas redes sociais da Bandeirante Editorial, quanto em diversos grupos de antologias literárias.

3. O TEXTO

3.1. Os textos enviados não precisam ser necessariamente inéditos, podendo ser de qualquer estilo e estruturação, incluindo versos livres no caso de poesias, desde que respeitam as margens do arquivo exemplo.

3.2. Os arquivos devem ser enviados com extensão doc, docx ou pdf.

3.3. Devem estar formatados em fonte Arial, tamanho 12.

3.4. Devem estar redigidos em língua portuguesa e previamente revisados, embora enviemos o livro para apreciação e aprovação dos autores antes de sua publicação.

3.5. Devem ser enviados dentro do prazo de inscrição, para que sendo selecionados por nossa equipe a tempo, possam compor a obra.

3.6. Respeitando estritamente o tema abordado nesta obra, ou seja, homenageando, narrando ou fazendo referência às lendas do folclore, como Saci, Curupira, entre outros.

4. OS CUSTOS

4.1. Embora a inscrição seja gratuita, os selecionados comprometem-se a pagar a quantia de R$ 30 (trinta reais) por texto enviado visando custear as despesas de editoração, diagramação, capa e artes de divulgação, registro de ISBN e afins.

4.2. A forma de pagamento deverá ser via depósito, transferência bancária ou pix mediante apresentação de comprovante, em uma das seguintes contas:

Caixa Econômica Federal - Ag. 1942, Op. 001, C. C. 75460-1
Nome: Bianca de Oliveira Santos CPF: 396.125.918-65

Nubank - Ag. 0001, C. C. 4328672-3 ou Pix via chave 396.125.918-65
Nome: Bianca de Oliveira Santos CPF: 396.125.918-65

4.3. Encerraremos o prazo estabelecido para pagamento da taxa de participação no dia do término das inscrições, com o intuito de manter o cronograma original de publicação da obra.

5. DIREITOS AUTORAIS

5.1. Os selecionados estarão cientes de que não há remuneração de direitos autorais.

6. FORMATO DA OBRA E PUBLICAÇÃO

6.1. A antologia intitulada “Mitos e Lendas do Brasil” será publicada em formato digital (Ebook) e enviada em formato pdf por e-mail para cada participante selecionado.

6.2. Atendendo ao interesse dos que assim preferem, será também publicada para venda em formato físico sob demanda na plataforma Clube de Autores, não sendo obrigatória a aquisição. Vale ressaltar que embora sempre nos coloquemos a disposição para ajudar em caso de dúvidas ou necessidades no trato com essa plataforma, não temos nenhuma relação comercial com a referida.

7. ORGANIZADOR

Glaucio Oliveira tem 28 anos, é casado, natural de Ribeirão Preto – SP e viveu durante quatro anos em Boston (EUA) até recentemente. Embora seja um profissional que trabalhe com TI há vários anos, sempre escreveu desde a mais tenra idade. Há dois anos passou a compartilhar seus textos autorais por meio de coletâneas de poesias e contos, sendo selecionado em inúmeras obras. Além dos trabalhos de coautoria supracitados, possui um livro de terror zumbi intitulado “Tutor — Sobrevivendo entre Irmãos”, publicado em formato físico e digital, um livro de poemas — prestes a ser disponibilizado — sobre sua experiência imigratória denominado “Tropical Forasteiro”, além de quatro antologias previamente publicadas (“Belezas de Santa Cruz”, “Pátria Mãe Gentil”, “Arroz Feijão & Brasil” e “Tributo à Noite Feliz”).
Sua esposa, Bianca Oliveira, tem 30 anos, é extremamente dedicada, organizada, metódica, e possui vasta experiência no setor administrativo/financeiro. Por esse motivo, juntou-se à Bandeirante de modo a ajudar na organização e nas relações públicas, atuando como gerente de projetos, para que Glaucio possa dedicar-se exclusivamente à parte literária/editorial.
Valendo-se dos conhecimentos de ambos — sobretudo nas áreas de design gráfico e TI — e o amor pela leitura, desempenham essas atividades como uma forma de participar ativamente do ramo literário ajudando mais pessoas a terem espaços de divulgação de seus textos em livros publicados com extremo zelo e qualidade. Além de trazer à voga, projetos com temas pouco abordados por grandes editoras.

8. DISPOSIÇÕES FINAIS

Em caso de dúvidas não hesite em contatar o responsável pela obra através de um dos seguintes canais de comunicação:

E-mail: contato@bandeiranteeditorial.com.br

WhatsApp: +55 (16) 98193-5293

Site: bandeiranteeditorial.com.br

Facebook/Instagram: /bandeiranteeditorial
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Nota do Blog Singrando Horizontes: Somos meros divulgadores dos concursos e antologias, qualquer problema ou dúvida que venha a ter, contate os organizadores do concurso/antologia.

Fonte:
https://bandeiranteeditorial.com.br/bandeirante-editorial/

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Adega de Versos 78: Amilton Maciel Monteiro


 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXIX

A fortuna acumulada
no decurso da existência,
não pode ser comparada
com a eterna providência.
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Aos gritos, se multiplica,
dos seus ecos, o ruído,
ressoando identifica
a fonte que o tem gerido.
= = = = = = = = = = =  

À terra a semente desce,
pra vida então renascer,
no seu verdor transparece
a promessa de crescer.
= = = = = = = = = = =

A um perfumado jardim
possa o mundo se igualar,
misto de rosa e jasmim
num sem fim, céu singular.
= = = = = = = = = = =

Cada gesto tem seu preço
pago no tempo aprazado,
às vezes, noutro endereço,
ou com juros e atrasado.
= = = = = = = = = = =

Como um pássaro voando
na mais plena liberdade,
nos campos sigo espalhando
mensagens à humanidade.
= = = = = = = = = = =

Em toda a oportunidade
o ladrão se manifesta,
tão ruim pra sociedade,
a humanidade o detesta.
= = = = = = = = = = =

Entre o corredor da morte
e o leito da extrema dor,
o homem deixa de ser forte
pra ser frágil sofredor.
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Luz crepuscular se pondo
fim de tarde, volta ao lar,
o poeta, em paz compondo,
a ode, ao sol crepuscular.
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Muito obrigado. Senhor!
Pelo que tem concedido,
a esse humilde trovador
mesmo sem ter merecido.
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Muito tenho me esforçado,
em meu sonho transformar,
mesmo sem tê-lo alcançado,
não deixo de me esforçar.
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Na Bíblia, o Livro Sagrado,
vem o Pai falar aos seus,
desde o santo ao desgarrado,
todos são filhos de Deus...
= = = = = = = = = = =

Na mesa, o pão fragmentado,
junto ao vinho, em refeição,
passa a ser um dom sagrado,
força à vida, além de pão.
= = = = = = = = = = =

Nos vastos campos mundanos
deixamos nossos sinais,
de inteligentes e humanos,
ou de simples animais.
= = = = = = = = = = =

Nunca seja um motorista
que vagueia em ziguezague,
mas um condutor na pista,
que a segurança propague.
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Nunca tema em levantar
quando a dor leva a cair,
tem mais Deus para somar
que o maligno a subtrair.
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O sol empresta o suporte
para à noite a lua entrar,
também cede o passaporte
para o seu norte encontrar.
= = = = = = = = = = =

Outrora, à ponta da mesa,
num debate, o pai falava,
no acato e delicadeza,
toda a família o escutava.
= = = = = = = = = = =

Quando uma meta buscares,
ou seguires, dela um plano,
à luz a verás nos ares,
se olhares de forma lhano.
= = = = = = = = = = =

Quão suave como a bruma
da relva, à noite se ascende,
tal lene lençol de espuma
que sobre a terra se estende.
= = = = = = = = = = =

Quem viver cada momento
como sendo o derradeiro,
vê no outro o prolongamento,
numa extensão do primeiro.
= = = = = = = = = = =

Sempre que leres um texto
lê tudo para entenderes,
não fujas do seu contexto
nem do tema enquanto leres.
= = = = = = = = = = =

Sobre a areia movediça
frágil pedra se alicerça,
se pontiaguda ou roliça,
sob os éolos se dispersa.
= = = = = = = = = = =

Terra que não produz fruto
seja com amor tratada,
pra não se tornar reduto
de uma planta rejeitada.
= = = = = = = = = = =

Toda a luminosidade
que da aurora se irradia,
pode ser a claridade
do fulgor de um novo dia.
= = = = = = = = = = =

Toda vez que o ocaso aponta
vem a noite em disparada,
ela apenas fica pronta
depois do fim da jornada.
= = = = = = = = = = =

Todo o fim de uma amizade,
arde igual chama na mente,
transforma em brasa a saudade
e a alma numa cinza ardente.
= = = = = = = = = = =

Tudo o que à vida alcançamos
com trabalho e com suor,
talvez não reconheçamos,
sempre tem algo melhor.
= = = = = = = = = = =
Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Francisco José Pessoa (Na contramão do destino)

Ele era um velho forte, apesar da idade avançada. Seus amigos, coabitantes do Lar Torres de Melo, faziam roda para ouvi-lo. Grande proseador, gabava-se por ter sido um exímio caçador de calangos e bem-te-vis. Cedo, aos quatorze anos, foi pai, fruto de aventuras amorosas infanto-juvenis. Responsabilidade contraída, súbito, torna-se um adulto com cabeça de menino. Foram-se as bolas de gude e a baladeira. Os calangos, com desdém, meneavam em desafio. Os bem-te-vis não mais se esvoaçavam. Precoce aposentadoria para um jovem caçador de sonhos. A lagoa esquivou-se de lhe dar banhos e cangapés*. Não se fizeram valer os sábios conselhos maternos. O menino mostrava-se com a mesma aptidão sexual do avô paterno.

— "Parece que tô é vendo o garanhão do teu avô... Não sei por que não puxaste ao teu pai"... Os conselhos da Dona Santa não ecoavam aos ouvidos de Quintino.

Choro novo com nove meses de preparo. Vagido de quem já nasce prepotente. Um novo homem. E que homem!

A vida continuava que nem antes para os Caetanos. Não houve alvoroço. O filho de Quintino era um Caetano por parte de mãe. Os Caetanos eram a terra, a água, o ar e o fogo do pedaço, Quintino era um sem-terra, sedento, asmático... Mas tinha fogo. Não pôde conhecer o filho. Castigo lhe imposto sem apelação. Humilhado pelos "de posse", tomou o expresso rumo à cidade grande sem nem mesmo se despedir de Quitéria, mãe do seu filho.

A revolta que sentia apagou seu passado. Nem de Dona Santa se lembrava. Morando com um primo bem mais velho, logo se interessou em trabalhar. O primo conseguiu-lhe uma colocação nos serviços gerais na empresa da qual era funcionário. Com o passar do tempo, Quintino decidiu estudar de noite. Esperto, disciplinado, tornou-se querido entre os colegas de turma. Seu interesse no aprendizado era motivo de contentamento entre seus professores. Cada período de estudo era vencido com louvor pelo Quintino. A solenidade de conclusão do nível médio estava para acontecer, Quintino não parou por aí, não! Foi promovido na empresa, teve aumento de salário e continuou mais um período de estudo. Em três anos, concluiria o Segundo Grau.

Resolveu escrever para a mãe convidando-a para visitá-lo. Nunca mais poria os pés naquela terra que foi seu berço. Ainda amargava a dor daquela humilhação, Nem mesmo se lembrava de que era pai. O castigo como que diminuiu sua libido. Já não era mais aquele Quintino que quanto mais comia mais sentia fome. Parece até que se tornara usuário de cilício.

Numa das viagens que Dona Santa fazia para renovar as bênçãos ao filho distante, trouxe-lhe um presente especial... O neto veio para acompanhá-la e conhecer o pai, enfim.

— Oi de casa!... Nenhuma resposta. — Tu estás aí, Tino? E só se ouvia o silêncio vindo de dentro da casa.

Lá pelo cair da tarde, com passos largos de quem tem pressa, chega Quintino. Sua mãe o aguardava pacientemente no banco da pracinha que fazia frente à casa do sobrinho.

— A bênção, mãe! Quintino saudava-a enquanto corria para o rumo da praça. Depois dos longos abraços e beijos saudosos, Quintino muda a vista para o garoto, e se vê como aos dez anos de idade. O recordar daquela humilhação eriça-lhe os pelos. A lembrança de Quitéria adocica-lhe o peito. Seus braços se laçam em torno do filho que herdara seu nome por imposição materna. Direito de posse, de posse roubada.

— E meu... E só meu! Gritava Quintino, perdendo seu tino que não era seu.

E a vida seguiu como de costume. Três dias bastaram para que Quintino tomasse pé do que é a sensação de ser pai. Avô e neto tomaram o caminho de volta à Vila. O aceno incontido de dor de um pai que fica, e a lágrima nos olhos de um filho que se vai... Outro encontro, até quando, só Deus sabe.

Se a vida nos mostra hiatos, é para que possamos construir ditongos. Na antiga Vila dos Caetanos, corria o ano da graça de 2008. Um grande vazio havia entre a vida de Quintino e a de seu filho, que o vira por uma única vez.

O progresso é de uma velocidade tão medonha que já nem tinha jeito de Vila as terras dos Caetanos. Duas Igrejas disputavam dízimos dos que ansiavam por salvação.

Os jegues se aposentaram do serviço de botar água, pois, sob as ruas da Vila, ela corria encamisada em tubos enormes... Promessa de campanha cumprida.

O rádio perdeu terreno para a televisão. As cachimbeiras vestiram brancas batas, pois, uma casa de parto havia sido inaugurada. A Vila crescia sem rédeas. O nome da banca de sanduíches da Dona Mazé mudou para "mequidonalde", A internet sem pedir permissão dava um "enter" nas casas da Vila. E haja progresso!

Os Caetanos, cabisbaixos, apreciavam o desbotar do seu brasão. Famílias abastadas de cidades vizinhas proprietárias de muitas léguas de terra ofuscavam-lhes o poder. Quintino das Chagas Filho, homem dos seus trinta anos, pequeno proprietário, dono de uma nesga de terra molhada que ainda lhe dava sessenta anos de vida. Aquele mundão de terra que era só seu, se encolhera.

Nas caladas da noite, resolve fugir da escravidão que o mantivera até então vassalo nas suas próprias terras.

Toma o rumo da cidade grande, sozinho, pois, sua mãe há dois anos falecera. Não tivera irmãos. Sua mãe nunca se casara. Seu pai havia tempos, poucas lembranças lhe deixara nos seus longínquos dez anos de idade.

Procura um canto onde se fizesse ouvir seu cantar triste, o acauã sofrido. Lar Torres de Melo... eis sua nova gaiola de portas sempre abertas.

Lá, um velho proseador rodeado por seus pares, protegido pela sombra de uma mangueira centenária, sombreia os olhos com a mão direita para enxergar melhor quem se aproxima. Todos se viram na direção do novo hóspede.

“Seja bem-vindo!” Diz Quintino, o pai… – Cante seu canto!... Eu lhe ouço!
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* Cangapé = Ato de mergulhar e dar uma cambalhota com uma das pernas batendo sobre a superfície da água.

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

XXI Concurso de Trovas do CTS e UBT Seção Caicó-RN (Prazo: 31 de Julho)


Nota do Blog: 
Para o envio aos concursos que há a opção de enviar por email, dê preferência a este meio, pois o envio por correios estão com muitos atrasos. No caso de Concursos de Trovas da UBT não são aceitos anexos, tudo deve constar no corpo do email.

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Concurso promovido pelo Clube dos Trovadores do Seridó – CTS e UBT Seção Caicó-RN

Tema Nacional / Internacional
Trova Lírica/Filosófica:   LABIRINTO (S)

Tema Estadual
Trova Lírica/Filosófica: ABRIGO (S)


1. Apenas UMA TROVA por participante;

2. A palavra tema deverá constar na Trova;

3. Deverá haver menção à categoria VETERANO ou NOVO TROVADOR, tanto no âmbito Nacional/Internacional quanto no âmbito Estadual;

4. Enviar a identificação com nome, endereço, telefone e e-mail ;

5. A participação será por Sistema de Envelopes ou por E-mail:

5.1. Para o âmbito Nacional / Internacional Língua Portuguesa

Sistema de Envelopes:
A/C de Eva Yanni Garcia
Rua Major Camboim, 801
Bairro Paraíba
CEP: 59.300-00 Caicó-RN

Por e-mail: Enviar para
franciscoribeiro.natal@gmail.com

5.2. Para o âmbito Estadual
Sistema de Envelopes
A/C de Maria das Dores Monteiro
Rua Joel Damasceno, 367
Bairro Centro
CEP: 59.300-00   Caicó-RN

Por e-mail: Enviar para
jersonbrito.pvh@gmail.com

6. Prazo máximo para recebimento das trovas: 31/07/2022.

Atenciosamente,
Prof. Garcia (Presidente)
Clube dos Trovadores do Seridó (CTS) e UBT Seção Caicó-RN.

Fonte:
Enviado por Solange Colombara

Jaqueline Machado (Morte em Veneza, de Thomas Mann)

Não pensemos jamais que para se obter êxito, precisamos trabalhar feito escravos. O trabalho não deve ser massacrante e, sim, benéfico a nossos sentidos. Fazendo de nós, seres prósperos e felizes. Bendito seja o equilíbrio, a razão e a decência. No entanto, não façamos confusão, tais potências nada têm a ver com moralidade. A Moral é uma senhorinha de óculos e vestido longo cuja a alma usa fio dental. Sua língua dispara veneno. E seus olhos, FOGO!

Não há frase mais falsa que a desculpa usada pelos hipócritas quando em público dizem:  “Salve a moral e os bons costumes”.

Aproximem-se que vou lhes contar um segredinho em surdina: esses que vivem a pregar o que é certo e errado, são os que mais cometem os ditos pecados ...

Vejamos o exemplo do escritor Gustave Aschenbach, personagem da novela: Morte em Veneza, de autoria de Thomas Mann, que só enxergava a sua redenção através da severidade, do trabalho árduo e da busca incessante e obcecada pela perfeição, que de tanto corrigir o próprio comportamento foi abduzido por uma cruel demência.

Com suas células cansadas, implorando por um momento de descanso, ele resolve fazer um passeio por Munique, cidade alemã onde morava. E ao passar por um cemitério, fixa os olhos num homem muito estranho, que tinha uma face esquelética que se assemelhava a uma caveira usando roupas de turistas. A esquisita figura lhe causou um desejo repentino de viajar. E nesse momento enigmático ele começa a devanear imaginando conhecer lugares diferentes e exóticos. Com certa resistência interior, decide acatar a sua vontade, mas sempre comprimindo com as regras de seus instintos limitantes, escolhe um único lugar para tirar férias: Veneza.

Chegando lá, ele conhece um adolescente chamado Tadzio, que de tão belo, arrebata a sua alma. Enfim, seus olhos haviam encontrado de forma inimaginável, através da imagem daquele jovem, ainda menor de idade, a figura de uma perfeição que ele nunca conseguiu encontrar em nenhuma pintura, escultura, música ou fonte literária. Mais do que isso, a imagem do menino lhe remetia a face da perfeição das almas em seu estado de evolução plena. Mas ele nunca ousou tocar em Tadzio. A sua paixão era platônica e vivida apenas no campo das ideias... Pois sendo ele um homem corretíssimo, envergonhava–se dos novos sentimentos que torturavam a sua consciência. Tragicamente ou propositalmente, nessa mesma viagem, Aschenbach contrai cólera e morre.

Morte em Veneza, é uma metáfora que nos remete à seguinte mensagem: – Por traz da nossa consciência comum, existe o subconsciente e depois do subconsciente, existem outras camadas do nosso “eu” oculto. Quando nos reprimimos a todo instante, as células formadoras dessas camadas vão enlouquecendo.

O protagonista se impedia de viver, amar, viajar. Pensava em trabalho e em exatidão noite e dia. Por isso, suas vontades que de início eram sadias, adoeceram, provocando nele um sentimento quase pedófilo pelo tal menino que o estremeceu. Ou seja, quando decidiu relaxar, era tarde demais, já havia enlouquecido.

Pessoas nascem para viver e serem muito felizes, pois as depressões, amarguras, aneurismas, o câncer, crimes e imoralidades nascem justamente de uma certa soberba repressora, e da ilusão em querer atingir uma conduta perfeita. Não somo anjos. Somos meros mortais.

Muito cuidado ao seguir todas as regras ditadas pela MORAL! Ela é uma senhorinha muito distinta, mas TRAIÇOEIRA...

Fonte:
A autora.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Varal de Trovas n. 556

 

Samuel da Costa (A dama do aspirador de pó)

— Tu vais compor uma música pra mim! E só pra mim!

— Como vive dizendo o meu avô: — Que marmota é esta?

— Marmota nenhuma, meu anjo bom, mereço e mais que mereço por ter que te aturar tanto!

— Que tal a letra: Vamos para Itaipava tomar cerveja e escutar música sertaneja?

— Cretino, que letra horrível!

— Que horas são, minha querida amada?

— Por quê?

— Saudades da nobre Dama do aspirador de pó, ora essa!

E o som, que parecia ser de uma turbina de avião a jato, toma conta no ambiente, um estrondo que veio da casa ao lado! Veio acompanhado de a uma cantoria esganiçada, um sucesso descartável do carnaval soteropolitano do ano passado!

Era sempre assim, quando Clarisse Cristal recebia o namorado para passar a noite em casa. A vizinha, parente distante de Clarisse coloca o aparelho doméstico para funcionar ao máximo, pela manhã bem cedo. Faça chuva ou faça sol, independente do dia da semana, sempre assim.

O som estridente vinha junto um martelar infernal, de notas desafinadas de um sucesso instantâneo e descartável qualquer, de uma música popular. E ambos eram acordados pela sinfonia estridente pós-modernista da querida vizinha ao lado. Trazia-os assim, para a dura realidade em que viviam, depois de uma noite de amor.

Antônio, que é músico, poeta e compositor de profissão e se divertia muito com a cara amarrada da namorada, toda a vez que eram acordados com o abrupto som infernal, que variava entre as cinco e seis horas da manhã.

— Sai ou não sai Toninho, a minha música? A minha ode divina, compasso com acordes quatro por quatro com solos de guitarra, baixo estalando, vocal estridente e bateria a mil por hora.

— Vocal power metal creio eu, com passagens de flautas, celos, pianos e violinos!

— Não esqueça de colocar a tal marmota, meu amor! Um vocal speed metal já basta!

Um silêncio mortal se abateu entre o jovem casal depois do diálogo nada frugal. Antônio sabia que ela viria com uma letra da música e depois ele que se virasse para compor a pequena sinfonia em homenagem a sua amada musa.

Os dois se entreolharam e se beijaram ardentemente enquanto lá fora a vida acordava aos poucos. A cantoria e o aspirador de pó que davam o tom, não demoraram a chegar. E assim seria mais um dia na pequena agrovila poeirenta e atrasada.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 1

 

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Automovinho do Reitor

O professor paulistano Pedro Melo, doutor em língua portuguesa, poeta de primeiro time, esteve em Maringá uns anos atrás, juntamente com outros escritores vindos de vários estados. O grupo veio participar de uma festa literária promovida pela nossa Academia e um dos itens do evento foi um almoço oferecido na UniCesumar pelo reitor Wilson Matos. No dia seguinte, ao deixar o hotel para viajar de volta a São Paulo, perguntaram ao poeta Pedro o que mais o emocionara durante sua permanência na cidade. Ele respondeu: “Passear no câmpus no automovinho do reitor”.

O câmpus-sede da UniCesumar é um espaço enorme, daí ser fácil entender que o professor Wilson precise mesmo de um veículo para se locomover de um setor para outro. O que chama, porém, a atenção é observar a alegria dele ao fazer seus giros pilotando um automovinho que parece de brinquedo.

Ele é um homem de posses, portanto pode comprar e pilotar qualquer carro que escolher na vitrina dos mais chiques. Pode também, se quiser, a qualquer momento comprar um jatinho, um helicóptero, o que achar necessário. Tá, mas gosto é gosto, e o que ele gosta com mais gosto é de guiar aquele automovinho charmoso.

Recentemente saiu nos jornais uma foto do reitor Wilson percorrendo as ruas do câmpus no seu carrinho, levando de carona o arcebispo de Maringá, Dom Severino. Pareciam dois meninos brincando numa colônia de férias. Cada qual mais feliz da vida.

Brincar é muito bom. A gente deveria brincar mais. Fazer pelo menos uma pequena pausa por dia para dar corda ao nosso lado criança.

Wilson Matos foi criança na Maringá pioneira. Deve ter galopado bastante pelos carreadores de café montado num cavalo de pau. Deve ter passeado de carro de boi e charrete. Deve ter apostado corrida de bicicleta com a garotada vizinha. Eu também fiz isso, você também talvez. Era gostoso, divertido, saudável.

Então é muito legal a gente agora, já com os cabelos brancos ou sem eles, encontrar alguma desculpa para deixar de lado essas tarefas estressantes de adultos e ocupar algum tempo curtindo as delícias da descontração.

A UniCesumar, além de ser hoje um dos maiores centros de ensino superior do Brasil, tem também uns lances de cultura e arte especialmente enobrecedores, com destaque para o Museu, o Coro e a Orquestra Filarmônica, que mostram o bom gosto e a sensibilidade dos seus diretores.

Mas o simpático automovinho é demais. Passou a ser uma das marcas do câmpus e no futuro deverá ser tombado como patrimônio histórico da instituição, com uma estátua do professor Wilson no volante.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 7-4-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) X

À MINHA MULHER
Lembranças do nosso amor


Da morte o sopro gelado,
Não me apagando a existência,
No coração com veemência
Sinto seu passado apressado.
Ai quando, bem adorado,
Minha alma daqui se for,
Disfarça teu dissabor,
Resiste à força veemente,
Mas nunca risques da mente
Lembranças do nosso amor.

Nada tenho que deixar-te
De fortuna nem de glória,
Nada me aponta a memória
Que possa morto legar-te;
Se nada deve ficar-te
Mais que saudades e dor,
Bálsamo consolador
À dolorosa ferida
Hão de ser-te nesta vida
Lembranças do nosso amor.

Lembrar um bem adorado
Na dor da saudade ausente,
É mesmo sê-lo presente,
Inda que seja passado.
Ser por ti sempre lembrado,
Como em vida morto for,
Por influxo encantador
Deste mistério profundo,
Hão de ser-te nesse mundo
Lembranças do nosso amor
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ANGÚSTIA

Quando morta a f’licidade,
A fé expira também!
Saudades de que se nutrem?
Os suspiros, que alvo têm?

Morta a fé, vai-se a esperança;
Como pois, viver pudera
Saudade que não tem crença,
Saudade que desespera?

Onde as graças do passado,
Se altivo gênio sanhudo
O ceticismo nos brada,
Foi mentira, engano tudo?

Em nada creio do mundo:
Ludibrio da desventura,
A felicidade me acena
Só de um ponto — a sepultura.

Morreram minhas saudades,
E nem suspiros calados
Dentro d’alma pouco a pouco
Vão morrendo sufocados.
= = = = = = = = = = =

O QUE FAZ MINHA DOR

Um pensamento de morte,
Uma lembrança de amor,
Uma esperança perdida,
Eis o que faz minha dor!...


Tive no mundo da mente
Formosos dias serenos,
Como os do céu sempre amemos
Em doce paz inocente.
Dos desgostos a torrente
Em um rápido transporte,
Por má vontade da sorte,
Me fizeram num momento
Do meu feliz pensamento
“Um pensamento de morte!”

A minha alma escureceu-se
Do pensamento nublada,
E a mente desnorteada
Em negro caos converteu-se!
Um mar de pranto — estendeu-se
Naquele mundo de horror;
E no medonho fragor
Da tormenta desabrida
Vaga nas ondas, perdida,
“Uma lembrança de amor!”

Cresce a celeste batalha,
E na vasta escuridade
Sem cessar, da tempestade
O raio o manto retalha
A flutuante mortalha,
Vaga sempre! Convertida
Aquela ideia de vida
Num sudário desta sorte,
Retrata, emblema da morte
“Uma esperança perdida.”

Em pé firme e solitária,
Minh’alma fora insensível
À tempestade terrível,
Contínua, crescente e vária!...
Mas a veste mortuária,
Que das ondas vai na flor,
Mortalha do meu amor,
Dantes saudosa lembrança...
Hoje perdida esperança...
“Eis o que faz minha dor!...”
= = = = = = = = = = =

Mote
Ainda no mar do ciúme
Fervem centelhas de amor.

Glosa
Do amor o ardente lume
Eterno nunca se apaga
Arde por baixo da vaga;
Da suspeita o azedume
Ainda no mar do ciúme.

Não lhe dissipa o fulgor,
Tanto que quando o amador
Chora da ingrata o quebranto,
Por entre as bagas do pranto
Fervem centelhas de amor.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Mote
Dois corações que se amam,
Sem falar se comunicam.

Glosa
A freira, que madre chamam,
E o frade, que é frei Carvalho,
Sustentam com seu trabalho
Dois corações que se amam.

E tão bem se verificam
Com manobras tão seguras
Que, trabalhando às escuras,
Sem falar se comunicam.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas. Ministério Da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional