terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Marvila


As hortas e as pequenas quintas desapareceram em poucas décadas, com o advento da industrialização. As fábricas e as vilas operárias moldaram a paisagem de Marvila e o caráter da sua gente. Hoje, Marvila é um bairro a descobrir com urgência.

O sítio de Marvila, tão velho quanto a fundação da nacionalidade, é dos bairros mais típicos da zona oriental da cidade de Lisboa. Até ao século XlX, sucediam-se agradáveis quintas nesta vasta zona de Lisboa e era grande a fertilidade das terras banhadas pelo Tejo. Por isso, Marvila era, até há pouco tempo, uma freguesia essencialmente rural, onde proliferavam as quintas e as hortas. Ainda hoje, os exemplos são fáceis de detectar: a Quinta dos Ourives, a da Rosa, a das Flores, a das Amendoeiras, a do Leal, a do Marquês de Abrantes ... Estas propriedades eram exploradas, na sua maioria, por gentes originárias do norte do País, e abasteciam os mercados ambulantes espalhados pelo bairro e pela vizinhança. E, mais tarde, por toda a Capital.

Ao antigo mercado da Praça da Ribeira, a mercadoria chegava transportada por carroças. Essa população originária do norte trouxe muitos dos seus hábitos e costumes, nomeadamente, a Feira da Espiga, que poderá ter origem num costume dos hortelões nortenhos. Mas, de zona rural, Marvila transformou-se, com o passar dos anos, em zona urbana de fisionomia bairrista e fabril. Todavia, ainda hoje se veem vestígios de uma grande atividade hortícola.

O Palácio do Marquês de Abrantes, na Rua de Marvila, ou o Palácio da Mitra, na Rua do Açúcar, são verdadeiros exemplares dos vários solares que ali foram edificados. Também os monumentos de caráter religioso abundavam, como o antigo Mosteiro de Marvila. No século XX, continuou a instalação de unidades fabris desde a Rua do Açúcar até Braço de Prata. São deste período as tanoarias da Rua Capitão Leitão e os armazéns de vinhos de Abel Pereira da Fonseca (que, pouco antes de morrer disse aos seus descendentes: “enquanto o Tejo tiver água, nunca deve faltar vinho a Lisboa”).

Hoje, estes armazéns estão transformados em centros culturais. A atual Marvila, freguesia criada em 1959, é bem significativa da zona periférica de uma grande cidade europeia em franco crescimento. Beneficiou, consideravelmente, com a realização do grande evento que foi a Expo 98.

A Sociedade Musical nasceu a 3 de Agosto de 1885, em pleno Poço do Bispo, tendo sido transferida pouco tempo depois para o Pátio Marquês de Abrantes, vulgarmente conhecido como Pátio do Colégio. Esta coletividade centenária tem vindo a assistir, do interior do seu palácio medieval, à vertiginosa transfiguração do seu bairro, em parte devido à realização da Expo 98.

Contudo, no pátio onde está instalada a sua sede, o cariz e as tradições ainda continuam populares. A Sociedade Musical que organiza a Marcha de Marvila, representa orgulhosamente na Avenida da Liberdade toda a área das freguesias de Marvila e do Beato.
 
MARCHA DE MARVILA
(Milenar Marvila)

Letra de Mário Silva
Música de Álvaro Martins


1ª Estrofe
Imaginação, futuro!...
Milênios, passados são!...
Outro tempo e outro mundo:
Marvila, quer tradição!
Foguetão vem do futuro
Pelo tempo viajando.
E, atravessando o “muro”,
Procura a animação.

1º Refrão
Santo António milagreiro
Como amigo e companheiro
Deslumbra’mente surgiu
Com resplendente clarão!
E o santo do passado,
Como um novo coração
Pro futuro é transportado
Já a dar inspiração!
(BIS)

2ª Estrofe
Este foguetão parou
Aterrando no passado!...
Veio ouvir os sons da alma
De novo, ser programado!
E surge um milagre novo!...
E tudo se transformou!...
Os “robots” já são o povo
Que a marcha antiga adotou!

2º Refrão
De joelhos, o futuro
Pede ao Santinho perdão!
Por ter esquecido que a alma
É raiz da tradição.
Marvila aqui presente
Nesta festa popular:
Vê o terceiro milénio
A apar’cer e a raiar !
(BIS)

 
Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

domingo, 11 de dezembro de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 08

 

Arthur de Azevedo (O Galo)


A cena passa-se na roça, a uma légua da estação menos importante da Estrada de Ferro Leopoldina, lugarejo sem denominação geográfica, mas que pertence ao município do Rio Bonito, e aqui o digo, para que os leitores não suponham que estou inventando uma historieta.

 Havia no lugarejo em questão uma palhoça habitada por dois roceiros, marido e mulher, que todos os domingos iam à povoação mais próxima vender os produtos da sua pequena roça e ouvir missa. Assim atamancavam eles a vida, pedindo a Deus que não lhes desse muita fazenda mas lhes conservasse a saúde.

Ora, um belo dia a saúde desapareceu: o marido, apesar de ter a resistência de um touro, foi para a cama atacado por umas cólicas terríveis, que o faziam ver estrelas.

A mulher, coitada! Estava sem saber o que fizesse, pois que já havia em vão experimentado todas as mesinhas caseiras, quando ali passou por acaso, ao trote do seu jumento, o Dr. Marcolino, que exercia a medicina ambulante numa zona de muitas léguas. A roceira agradeceu a Providência que lhe enviava o doutor e pediu a este que examinasse o doente e o pusesse bom o mais baratinho que lhe fosse possível.

O Dr. Marcolino apeou-se, entrou na palhoça, examinou o enfermo, auscultou-o, martelou-lhe o corpo inteiro com o nó do dedo grande e explicou a moléstia com palavras difíceis que aquela pobre gente não entendeu. Depois, abriu o saco de viagem que levava à garupa do animal, tirou alguns vidros, de cujo conteúdo derramou algumas gotas num copo d'água, e disse doutoralmente:

    - Aqui fica esta poção para ser tomada de três em três horas.

    - Ah! Seu doutor, nós aqui não podemos contar as horas, porque não temos relógio!

    - Regulem-se pelo sol. O sol é um excelente relógio quando não chove e o tempo está seguro.

    - Não sei disso, seu doutor, não entendo do relógio do sol...

    - Nesse caso não sei como... Ah!...

    Este ah!, com que o doutor interrompeu o que ia dizendo, foi produzido pela presença de um galo que passava no terreiro, majestosamente.

    - Ali está um relógio, continuou o doutor: aquele galo. Todas as vezes que ele cantar, dê-lhe uma colher do remédio. E adeus! Não será nada: Depois de amanhã voltarei para ver o doente.

    Foi-se o médico, e daí a dois dias voltou ao trote do seu jumento.

    Quem o recebeu foi o marido:

    - Que é isto?... já de pé...

    - Sim, senhor: estou completamente bom, não tenho mais nada. E não sei como agradecer...

    Mas a mulher interveio com ar magoado:

    - Sim, ele não tem mais nada, mas o pobre galo morreu.

    - Morreu? Por quê?.

    - Não sei, doutor... ele bebeu todo o remédio.

    - Quem?... o galo?...

    - Sim, senhor; todas as vezes que ele cantava, eu, segundo a recomendação do doutor, abria-lhe o bico, e derramava-lhe uma colher da droga pela goela abaixo! Que pena! Era um galo tão bonito!

José Paulo Corrêa de Souza (Jardim de Trovas)


A criação, sabiamente,
fez num mundo desigual,
que olhos de cor diferente
enxerguem de forma igual.
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A criança usa um pincel
e com traços de emoção,
numa folha de papel
pinta os sonhos que virão.
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Ainda que ao despertar
os seus sonhos desapontem
insista sempre em sonhar
e deixe as mágoas pra ontem.
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A inteligência é uma arma,
um fuzil que salva ou mata.
Quando o alvo não se alarma
é caça na mira exata.
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A quem pinta, eu aconselho
o que o pincel me revela;
quem insiste no vermelho
morre de febre amarela.
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A "sofrência", sem desculpa,
nunca larga do meu pé.
Mas, por certo, é toda a culpa
do "radinho" do Seu Zé!
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Ciúme é um erro que encerra
males de efeito voraz.
No amor, jamais faça a guerra,
sem ter bandeiras de paz.
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É muito triste saber
que a mentira repetida
acaba por esconder
a verdade acontecida.
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E no silêncio da gente,
que a mente planta e renova,
ideias como semente
para colher uma trova.
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Levei tanta chinelada
por rebeldia e, hoje, é belo
sentir saudade encantada
do que ensinava o chinelo.
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Liberdade aprisionada,
consciência adormecida!
Acorda! Não deixe nada
ser corda que enforque a vida!
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Meu coração repartido
por entre o ódio e o amor
leva a vida sem sentido
algemado à própria dor.
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Minha sogra faz intriga
e inda diz que só fofoca,
mesmo assim acaba em briga
e a filha dela me soca.
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Nem sob pressão, me calo
vendo o que justo suspenso.
Se me prendem por que falo,
libertam tudo o que penso.
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Nem vacinas dão respostas,
nem há ninguém resistente,
a sentir vento nas costas
e enfrentar sogra de frente.
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Num pomar abandonado,
no solar da solidão,
sempre busco, amargurado,
doce fruto temporão.
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Nunca feche os olhos! Veja!
Enfrente até o que lhe dói,
pois, a omissão sempre enseja
a mentira que destrói.
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O egocêntrico em perigo
finge que é mudo e que é cego,
e sempre protege o umbigo
na escuridão do seu ego.
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Os culpados sempre negam
e a verdade esconder tentam.
Mas, na mentira carregam
um peso que não aguentam.
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Passa o tempo, tudo muda
e deixa nua a saudade.
O tempo só não desnuda
a verdadeira amizade.
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Pintor velho sempre pinta
pintura documentada,
por um carimbo sem tinta
que tenta dar carimbada.
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Quando a gente sonha, sente,
e a razão sempre socorre
a quem crê, sinceramente,
que a esperança nunca morre.
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Quando o idoso se escancara
co’ uma jovem muito boa,
pergunta-se: – Eu sou o cara?
— Se não for cara, é coroa!
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Seria o fim do perfume,
do doce enleio, do amor,
se o beija-flor, por ciúme,
no jardim matasse a flor.
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Tem rico que fala tudo
pra salvar a pátria amada,
de repente, fica mudo
pra não perder a bocada.
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Todo castelo de areia,
que no sonho alguém constrói,
ou some na maré cheia,
ou vem o vento e destrói.

Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Livro enviado por Lucília Trindade Decarli

II Concurso de Trovas de Nossa Sra. Aparecida/SE (Prazo: 31 de dezembro)


Prêmio Maria Lourdes Barreto

NACIONAL/INTERNACIONAL


01 trova inédita por concorrente

a) Veteranos: Roça (L/F)

b) Novo Trovador: Sertão (L/F)

c) Humor (todos os trovadores independentes da categoria):
Tema: Chapéu

– É obrigatório constar a palavra tema na trova;

– Entende-se por Novo Trovador: aquele que não obteve até a divulgação deste regulamento  03 classificações entre os 5 primeiros colocados em 3 concursos oficiais da  em âmbito Nacional.

Prazo: 31/12/2022

Enviar para :

ubtaparecida2021@gmail.com

fiel depositário Ademarcos Dantas Santana.
 
– Acima da trova o autor deve colocar a categoria na qual está concorrendo.
– No mesmo corpo do e-mail com as trovas, deverá constar o endereço completo do Trovador (sem anexo).

– A premiação, composta de certificados, será enviada diretamente aos premiados via e-mail.

Carlos Leite Ribeiro (Marchas Populares de Lisboa) Bairro da Madragoa


À beira do Tejo, Madragoa sempre foi um local de cruzamento de raças e culturas diferentes, sem distinção, albergava os negros que amanhavam os campos e dava abrigo aos pescadores que fainavam no rio, e, na memória dos mais velhos, ainda ecoa o pregão das varinas.

A lenda conta que o bairro nasceu dos milhares de grãos de areia que as gaivotas transportaram para ali. A origem do nome perde-se no tempo. Há quem afirme que a palavra corresponde ao apelido de uma fidalga madeirense “Mandragam” ou que vem de “Madre de Goa”. Antes do terremoto, no século XVll, o bairro tinha o nome de “Moçambo” e não era mais do que uma pequena póvoa habitada essencialmente por pessoas de origem africana.

No passado, parte da Madragoa foi um aglomerado de conventos e palácios, onde viveram as Trinas, as Bernardas ou as Inglezinhas. Mas foram os trabalhadores que deram vida ao bairro. Entre os séculos XVlll e XlX, a população sofreu grandes alterações. Nessa altura, veio para Lisboa muita gente da região da ria de Aveiro, em especial de Ovar, daí o nome ovarinas. Comercializavam legumes frescos e peixe. Posteriormente, grande parte destas pessoas optou por ficar na Madragoa. Na maioria, eram casais de pescadores e varinas. Era habitual ouvi-las apregoarem o peixe de canastra à cabeça.

De entre muitas das obras arquitetônicas da Madragoa, destaca-se o Palácio dos Duques de Aveiro, a Casa dos Marqueses de Abrantes e a mais antiga e modesta das capelas lisboetas, a Capela dos Mártires. Também lá se encontra a Embaixada de França, onde Gil Vicente (depois do Castelo de São Jorge), deu início ao teatro português.

No coração do bairro, está a sede do Esperança Atlético Clube, fundado a 16 de Agosto de 1936. O clube organiza muitas iniciativas no campo cultural, como é o caso da Festa de São Martinho, do Dia da Criança ou da Festa de Natal. E desde 1982, o Esperança Atlético Clube é responsável pela organização das marchas populares da Madragoa. Em 1988, alcançou o Primeiro Prêmio de Canto e o segundo lugar na classificação global. No ano a seguir, o clube atingiu o quarto lugar da global e o Primeiro Prêmio de Coreografia.

MARCHA DA MADRAGOA
(Marcha Nova da Madragoa)

Letra de Frederico de Brito
Música de Raúl Ferrão


Hoje é que a marcha vai
Que a Madragoa é linda
Vai de chinela vai
Pois é varina ainda.
Leva um arco e um balão,
Perna ao léu, e toca a andar,
É que a Madragoa
Corre Lisboa
Sempre a cantar.

Uma varina tem
Um riso bom que alastra;
Se uma tristeza vem,
Cabe-lhe na canastra.
Arraiais de São João,
Quem os tem para nos dar?
Só este bairro infindo
Que é o mais lindo
Da beira mar.

Andam balões no ar,
Quem é que não alcança
A espr’ança de os achar,
Aqui na velha Espr’ança.
Dê a volta pelas Madres,
P’lo Castelo do Picão,
Venha bailar com ela,
À luz da vela
Do meu balão.

E se quiser cantar
O vira das varinas,
Já não precisa andar
Cantando pelas esquinas;
Vai pedir ao Guarda-Mor
Que lhe guarde uma qualquer,
Que lhe guarde uma qualquer,
Que tenha nos olhitos,
Os mais bonitos
Balões que houver.

(refrão)

Cabe toda a Lisboa
Na Madragoa
Que é pequenina;
E a Madragoa calma
Cabe na alma duma varina.

Sem que ninguém a gabe,
Tem não sei quê no jeito.
Só o meu bairro sabe,
Como ela cabe
Dentro do peito.

Colo da ave marinha
Olhos de tentação,
Sempre tão maneirinha
Cabe inteirinha
Num coração.


Fonte:
Este trabalho teve apoio de EBAHL – Equipamento dos Bairros Históricos de Lisboa F.P.
http://www.caestamosnos.org/autores/autores_c/Carlos_Leite_Ribeiro-anexos/TP/marchas_populares/marchas_populares.htm

Aparecido Raimundo de Souza (Velhice)


LONGE, BEM LONGE, tinha se perdido tudo. Tudo mesmo. Veio, então, um vento forte e irritadiço, ofensivo e severo devastando as plantações. E não só elas. Tudo o que encontrava pela frente. A certo momento, fez as águas calmas e tranquilas do arroio se encresparem e até tremerem de frio. Era imensa a fúria do deus natureza, oculto atrás de uma daquelas muitas rochas esquecidas na vastidão verde da paisagem intocável. Os pássaros, em bandos, bem como outros animais, se retiravam. Fugiam, apavorados, desembestados, porque sabiam que em breve... em breve, uma tempestade medonha e incontrolável viria lavar toda a Terra e, de roldão, afugentaria o mavioso aprazente daquele paraíso multicolorido.

A tristeza contagiante da noite também se aproximava numa lerdeza enervante e debilitada. O pouco, bem pouco, que restava do sol, lá no alto, bem afastado, apenas se dava para distinguir uma pequena bola anêmica. Um tantinho assim, ofuscado que muito ligeiramente suportava aquecer a ternura de sua própria imensidão. Simples espectador, sentado embaixo de uma mangueira centenária, tendo em derredor uma vasta coxilha  de outeiros ásperos, eu via naquilo tudo, vislumbrava, na verdade, muito além, quase acolá, uma paisagem perfeita, como se desenhado por uma pintora de traços leves, tendo nas mãos um pincel inteiramente mágico. Ideal mesmo. Mas Ideal exatamente para quê?  

A resposta se fazia simples, tosca, bucólica, quase ingênua, bem sabia. De pronto, pesquei no ar a oportunidade exata e na medida certa, para abrir o coração descalço e chorar junto com a natureza ao meu redor, os sofrimentos de uma alma contaminada pelos dedos negros e longos da solidão. A minha alma, para ser mais preciso. De repente, num ímpeto meio que tomado por uma postura ensaiada, me pus de pé. Juntando as forças, corri ao sabor do barulho vindo de um manancial de águas cristalinas que se agigantava passos à frente, desembocando, por sua vez, num riacho enorme. Olhei sobressaltado para seu leito claro. Nesse momento, fitei meu rosto naquele espelho caminhante. Foi nessa hora, exatamente nesse minuto, que um espanto alongado veio interromper a misteriosa quietude do meu silêncio interior.

Por tudo quanto se fazia esquisito e pudesse parecer estranho e não condizente com a verdade! Não, não poderia ser meu, aquela fisionomia tremulante, refletida no fundo branco e intemerato do remanso. Não poderia ser “meu”, não poderia ser “eu!”. Impossível! Numa atitude nervosa, perturbada, drástica, alisei meu semblante. Senti, então, a aspereza das rugas nele formadas. Os olhos, tomados pela surpresa esbugalhada, exclamaram alguma coisa indistinta, babélica, que de pronto, não consegui ouvir nitidamente. Mas era eu. Quanto a isso, não havia a menor dúvida. Não tinha, de nenhuma forma, como fugir ou debandar, me ocultando daquela realidade gritante que entrementes apareceu e me sufocou o peito.

De fato, sem tirar nem por, “eu”. Em carne e osso. Mais osso que carne. Ali estavam meus farrapos e andrajos, molambos e vestimentas, cicatrizes velhas e rotas de frente para meu espanto assombroso, numa contemplação crescente, avultada, centuplicada e doente. Eu, comigo mesmo, sozinho no meio do nada, de boca aberta feito um débil mental, espiando, atônito e apalermado para uma moldura de feições agourentas e inauditas sufocando, num só tom, objetivando arrancar, num safanão tipo o nó górdio, o que estivesse preso e atravancando os fundilhos da garganta. Tinha que admitir os fatos. Não fugir deles. Me ausentando, tangenteando (*), em retrocesso, bem sabia, estaria me escondendo de mim e seria mais uma estupidez sem precedentes naquelas circunstâncias tentar tapar o sol com a peneira.

Ali estava, portanto, “meu todo” vencido, acanhado e achatado, abatido e indigesto. Um calhau (*) feio e desprotegido. Afinal, coadjuvado pelo peso dos anos de sofrimentos, o tempo inexorável me fez curvar, cansado e flagelado, diante das evidencias inevitáveis. Havia, pois, me transformado num velho aleijão. Não, mais que isso. Em resumo, um ancião, um senhorzinho em adiantado estado de decadência, os medos aflorando, a fuça perdida em algum lugar do passado. Completando a presença do lúgubre, os cabelos poucos e ralos, uma timidez medonha castigando a pele, os refolhos (*) tomando formas, delineando figuras diabólicas numa tez carcomida pelo fracasso. Com certeza, mesmo uma operação de lapidagem nessa altura do campeonato, não me faria alcançar as glórias dos cimos.

Daquele rapaz de tempos idos, apenas incisões restaram. Da mocidade distante, do diamante bem talhado, somente as marcas perpetuadas como lembranças vivas de uma criatura sem passado. Mesmo trilhar, sem história, cheio de altos e baixos, um vovozinho obstruído por visões dantescas e resquícios de horas imorredouras que não voltariam mais. A força motriz da juventude "outroral", não passava de quimeras. Do amor, pedaços, do coração no peito, bem, do coração, no peito, só um músculo atenuado, ofegante... à porta de desmoronar deslustrado e sem expressão, num cárcere como um aborto aprisionado e desfalcado da criação.

Diante desse quadro neurastemicamente esquizofrênico e letal, me vejo como o maledicente que carrega consigo as infortunidades, de se colocar no mesmo patamar dos vermes peçonhentos que se alimentam com os detritos e excrementos do mundo. Em razão dessa fase, e do pano de fundo que se me apresenta, o que me mantém vivo, na verdade, é somente um fato politicamente correto: a certeza absoluta de um dia, ou (quem sabe, daqui a pouco, no passo seguinte), vagar livre, leve e solto por estradas e sendas num viajar etéreo, sem volta e sem fim.

Desembestar, pois, ao sabor do vento, é o que me resta, por essas trilhas. Atabalhoadamente caindo aqui e adiante me levantando por entre bosques e florestas nunca pisados. Molhar os pés em outros tantos rios caudalosos, subir (ou pelo menos tentar) alcançar o cume de árvores cansadas pelo peso dos galhos e, num último suspiro, vagar por planetas de sonhos, como um anjo desgarrado da falange celestial. Nessa curva próxima do final, meu Deus, nessa esquina dos anos percorridos, longinquamente afastado das alegrias efêmeras que correm torcicoladas à minha jornada, num ainda doce florilégio que me inebria, senão mesmo apaixona, embora exaltado e melancólico, enfadado e macambúzio, é só o que me resta fazer. Aliás, grosso modo, é só o que me outorgo a fazer. Afora isso... afora isso, NADA MAIS.
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* Notas:
Calhau – Um pedaço de qualquer coisa inútil ou sem valor.
Refolhos – Rugas e vincos que se formam na pele.
Tangenteando – Sair de algum lugar sem ser notado, meio às escondidas.


Fonte:
Texto e notas enviados pelo autor.

sábado, 10 de dezembro de 2022

Adega de Versos 97: Luiz Poeta (Luiz Gilberto de Barros)

 

Milton S. Souza (Voando alto)


A frase quase grito da minha netinha de três anos fez com que eu tirasse os olhos do livro que estava lendo e me concentrasse naquela semente de furacão que passava correndo: “– Vô, tô  aprendendo a voar...”. E lá se foi ela, dobrando o canto da casa e sumindo entre as flores do jardim, sempre sacudindo as mãos, imitando as asas de um passarinho. E eu fiquei parado, quase petrificado com a beleza daquele quadro, já esperando a volta da menina, que, pelo barulho, senti que estava dando a volta na casa.

Todos nós, quando crianças, “aprendemos a voar” com as nossas brincadeiras, impulsionados pela força da nossa imaginação. E voamos para todos os lados, explorando os espaços que nos cercam e, principalmente, dando rasantes sobre os lugares que mais gostamos. Pouco importa se não conseguimos erguer os pés a mais de um centímetro do chão. O que importa é que estamos aprendendo a voar por conta própria, sem ninguém para dar palpite. As únicas broncas que tomamos é quando os nossos voos terminam em alguma aterrissagem forçada e com alguns arranhões nos joelhos ou em outros lugares. Mas nem estes “acidentes” nos assustam: no outro dia lá estamos nós, voando novamente e aprendendo a voar em lugares desconhecidos.

Que pena que a infância não dura mais tempo. Logo que nós começamos a achar que já somos gente, os medos e as indecisões vão, aos poucos, cortando as nossas asas e nos proibindo de voar. E nos acomodamos e nos transformamos em projetos de adultos, que não voam, que pensam duas vezes antes de tentar fazer qualquer tipo de “aventura perigosa” e que aprendem a se “comportar como gente grande”. Os nossos voos ousados terminam virando lembranças da infância, quase sempre tingidas pelas cores da saudade e do nunca mais...

É por isso que eu presto tanta atenção quando a minha neta, ou qualquer outra criança, passa correndo por mim, tentando, rapidamente, aprender a voar. E é por isso, também, que, sempre que posso, viro controlador de voo para estes pequenos, que decolam guiados pelo instinto, sem plano de voo, sem limites de altitude ou rota para seguir. Eles mesmos traçam os seus rumos. Num minuto estão “voando” entre as flores do jardim e já no segundo seguinte “voam” atrás das sombras das nuvens que o sol e o vento brincam de fazer correr na imensidão do céu.

“Vô, tô aprendendo a voar...”. - Voa, minha netinha. Voa cada vez mais alto. Voa como quem conhece os atalhos do infinito e não se assusta com a força do vento que sopra em direção contrária. Voa por todos os caminhos desta tua infância colorida, inventando rumos e limites para estes teus graciosos voos. E quando a vida vier com aquele papo de que já estás grandinha e que, por isso, precisas cortar as asas e deixar de voar, resiste ao menos mais um pouquinho. E pede para o destino te deixar voar mais um pouco, pois não existe felicidade maior do que estar constantemente aprendendo a voar. Voa, minha netinha, que eu estou aqui pertinho, maravilhado com a perfeição do teu voo e pedindo para todos os anjos da guarda que acredito voarem ao teu lado pela vida inteira…

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) IX


AOS CÃES LANTERNAS

Cadela linda sem nenhum pecado
Logrou a mim ao conceber sem pejo.
Pois, na hora extrema me faltou cuidado
E foi em vão querer frustrar o ensejo.

Ante o cenário me manti calado
Quase perplexo pelo seu desejo.
Minha alegria e a comoção do agrado
Foi ter as vidas que sorrindo vejo.

Sempre ao seu lado vi nascer os sete
Acomodados em macio carpete
Sob o carinho da guardiã materna.

Sei que os caminhos o destino muda
E no futuro eu terei a ajuda
E a proteção da singular lanterna.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

CONFIDÊNCIAS

Não te esqueças, desesperado espero,
Vencer a vida sem morrer primeiro.
Por seres tu a musa que venero
Jamais farei o teu formal letreiro.

Na minha alcova, sabes bem, não quero
Nenhum intruso como meu parceiro!
Pois o lugar é teu, amor, e vero
Desejo antigo do mortal troveiro.

Um pé de murta já plantei. Florindo
Irá sombrear o nosso lar infindo
E perfumar nosso modesto abrigo,

E as nossas almas da estelar altura
Serão autoras do laurel ternura
Sobre o concreto do eternal jazigo.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

O PEREGRINO

Quando nasceu o menestrel maior
No altar de palha recendeu a essência.
Ditosos reis fiéis ao seu redor,
Viram a estrela reluzir clemência.

A natureza a repetir de cor
O musical da divinal regência
E se escutava da capela mor
A anunciação da singular vivência.

Debruça o mundo sobre o berço pobre
Em honrarias ao menino nobre
Que transluzia o seu viver por nós.

E num roteiro de esperança e luz...
Fez alegria e não chorou na cruz,
Nem desprezou a multidão atroz.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

O PODER SUPREMO

Em frente à minha casa tem pinheiro
Apedrejado, mas ninguém reclama!
Tem flor da noite no caminho inteiro
Que ao trovador adora e o peito inflama.

No campo o quero-quero, herói guerreiro,
Defende o ninho na copiosa grama.
Somente o amor do nosso amado Obreiro
Tem o poder de amenizar o drama.

O mundo chora o depravado efeito;
Mas a natura já perdeu o jeito
De castigar a multidão ousada.

Por isto exijo meu espaço justo
Para afrontar o predador vetusto,
Usando o verso - a flamejante espada.
* * * * * * * * * * * * * * * * * *

PRESERVAR! PRESERVAR!

Jacarandá - meu caro irmão nativo,
Tenho-o no meu sítio onde plantei café.
E como filho quero tê-lo vivo
Com devoção, denodo e muita fé.

Toda elegância do seu porte altivo,
Dá sombra amena sobre o meu chalé.
O seu retrato numa tela arquivo
Com a legenda de imortal, até.

Que esta paixão pela floresta cresça
E todo humano da erosão se esqueça
Porque este mal já faz doer a vista.

Que a massa verde seja sempre viva
Sem aceitar qualquer venal deriva,
Para que a vida no futuro exista.

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.

Humberto de Campos (A pedra dos namorados)


Fugindo ao clima intolerável da cidade, os dois amigos inseparáveis resolveram passar, este anuo, o verão em Paquetá. As dificuldades, como era natural, foram enormes. Ao fim de algum tempo encontraram, porém, duas casas na mesma praia, as quais se comunicavam pelo quintal, e foram alugadas, não só entre as demonstrações de alegria de D. Adalgiza, esposa do Dr. Archimedes, como entre as de D. Eleonora, mulher do tenente Pedreira.

- Magnífico! - aplaudiu a primeira, batendo as mãozinhas finas, brancas, de dedos afilados.

- Esplêndido! - confirmou a segunda, com as mesmas demonstrações de contentamento.

Mudados para a ilha encantadora, saíram os dois casais, uma tarde, a passeio, juntando conchas pela praia, até que foram ter ao local em que se levanta, entre a terra e o mar, um penedo de três ou quatro metros de altura, em cujo cimo se amontoava uma infinidade de pedras pequeninas, equilibrando-se com dificuldade.

- Olha, ali! Que é aquilo? - exclamou D. Eleonora, radiante com aquela vida de liberdade, apontando, com a sombrinha fechada, no rumo da pedra.

- Ah! É a "pedra dos namorados"! - explicou o Dr. Archimedes. - Essa pedra tem uma história curiosa.

E contou:

- É corrente aqui, na ilha, que este rochedo anuncia os casamentos. Os namorados que passam por aqui, atiram-lhe ao cimo uma pedra pequena, uma concha, ou coisa semelhante. Se ficar lá em cima, a pessoa terá de casar-se; se não, se a pedra rejeitar o objeto atirado, fazendo-o rolar para o chão, é sinal de que a pessoa não se casará.

- Que graça! - rouxinoleou, rindo, Dona Adalgiza.

E, voltando-se para os companheiros:

- Vamos experimentar?

- Mas... nós já estamos casados! - obtemperou a amiga.

- Não faz mal. Vamos!

Apanhados quatro seixos, aproximaram-se do penedo, e atiraram, cada um por sua vez. O primeiro ficou. O segundo, igualmente. O terceiro, da mesma forma. O quarto, também.

- Todos ficaram! - exclamou, com a sua jovialidade infantil, a linda D. Eleonora.

E acentuou, espichando-se, nas pontas dos pés:

- Olhem: a minha pedrinha ficou junto da do Dr. Archimedes, e a da Aldagiza bem juntinho da do Pedreira!

O tenente olhou, sério, o bacharel. O bacharel fitou, grave, o tenente. Sorriram, os dois.

E continuaram, os quatro, o seu passeio, apanhando, felizes, na areia úmida, as pequeninas conchas da praia…

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 23: Fazenda Velha

 

Baú de Trovas LIX


A vida está numa planta
pintada em cores felizes:
em cima a fronde que canta,
embaixo a dor das raízes.
Anderson Braga
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Sempre que se apresentava,
dizia ser engenheiro;
— é que o pobre trabalhava
num engenho, o dia inteiro...
Antônio de Pádua Pereira
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Quando acaso sinto, crede,
vontade de trabalhar,
deito-me logo na rede,
até a vontade passar...
Augusto Linhares
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Eu venho de longes bandas
e trago em chagas os pés,
mas digas tu com quem andas
que eu te direi quem tu és...
Bernardo Guimarães Filho
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Na penumbra, o berço é um templo...
Ajoelho e em ternura enorme,
entre rendas eu contemplo
meu pequeno deus que dorme!
Carolina Ramos
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Eu sou como a garça triste
que mora à beira do rio.
As orvalhadas da noite
me fazem tremer de frio.
Castro Alves
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Como a idade chega e passa,
e da noite vem a aurora,
a vida passa e repassa
a juventude de outrora.
Cecília Patti Silveira
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Com Deus vão permanecer
as primaveras da vida,
nas quais eu vi florescer
nossa amizade perdida!
Claudia Bergamini
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Meu sonho, em contrapartida,
quando a vida me arruina,
vai, tal qual "mulher da vida"
tentar a vida na esquina...
Divenei Boseli
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A solidão é uma planta
que nos contos aparece.
Só no coração que canta,
solidão jamais floresce,
Elizeu Lacerda
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Vós prometestes, senhora,
voltar um dia; porém,
esperei e, até agora,
inda não veio ninguém...
Emiliano Perneta
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Um epitáfio engraçado
li na tumba de um rapaz:
- Aqui, jazz, contrariado,
quem sempre adorou o "jazz".
Emílio de Mattos Sounis
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Meu sogro é um sacrificado
e, pouco a pouco definha:
não tem sogra, mas, coitado,
de lambuja, atura a minha.
Elton de Carvalho
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Do amor, na infinita gama,
prefiro o suave matiz.
O rubro calor da flama
queima e deixa cicatriz.
Elvira Fontes
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Compreender-me não me queres,
nem me queres perdoar.
Mas só beijo outras mulheres
para melhor te beijar...
Enrique de Resende
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Castigo bem acertado:
se Deus pusesse um letreiro
em todo homem casado
que se passa por solteiro...
Eny do Couto
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Afinal, quem é que canta,
é o galo ou a galinha?...
Se é o galo, cala a boca,
que a razão sempre foi minha!
Eugênio Pereira Cláudio
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Muitas vezes, embebido
em cismas, tenho sonhado
que a vida é um sonho comprido
que a gente sonha acordado!
Ferreira Gullar
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Quando a primeira galinha
o primeiro ovo botou,
certamente a coitadinha
tremendo susto levou!
Fontoura Costa
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É Natal! O amor é pleno!
Deus assume os meus fracassos
e se torna tão pequeno,
que até cabe nos meus braços!
Francisco Assis Menezes
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Nunca digas com firmeza
que a mágoa apenas crucia:
A saudade é uma tristeza
que nos dá tanta alegria!
Gilka Machado
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A saudade rasga o véu
do tempo e traz do passado
minha mãe, que lá do céu
sempre tem me abençoado.
Horácio Ferreira Portella
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Procurei no seu olhar,
encontrei nele uma ponte,
para seus lábios beijar:
o amor vai jorrar da fonte.
Hulda Ramos
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Riem todas, belas flores
quando o Santo Jardineiro
enche de nobres olores
o nosso grande canteiro.
Jerson Brito
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Quanto mais teu corpo enlaço,
mais padeço o meu tormento,
por saber que o meu abraço
não prende o teu pensamento.
Jesy Barbosa
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Leu "Campanha do Agasalho",
quando por ali passou;
o espertalhão ou paspalho
   em vez de deixar, pegou.
Jessé Nascimento
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Erros… brigas… mala feita...
Devolvo as chaves e… adeus!
Dobro a esquina e, já refeita,
volto aos braços que são meus!
Joana D'Arc da Veiga
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Salafrário sem parelha,
esse enfunado do Braz,
quando trota, mexe a orelha
para frente e para trás...
João Rodrigues
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Santo Antônio se benzia,
pensando, sem dizer nada:
– Três filhos já tem Maria!
E ainda não é casada!...
José Coelho de Babo
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E por falar em destino,
seus caminhos desconheço.
Como entender o divino
se nem o humano conheço.
Jota de Jesus
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De bicicleta ou a pé,
quero ganhar teu abraço,
que me ajuda a ter mais fé
nos planos de amor que traço.
Julimar Vieira
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Não basta ter esperança,
nem ciência, nem juízo:
só a inocência da criança
nos conduz ao paraíso.
Juraci Siqueira
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Sonho um mundo de alegria,
cheio de amor e confiança,
onde ninguém perderia
sua inocência de criança!…
Lucília Trindade Decarli
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Num impulso momentâneo,
meio a natureza em flor,
desponta um beijo espontâneo
para selar nosso amor.
Márcia Jaber
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Meu querido piano amigo,
com acordes de veludo…
Quando estou junto contigo
logo me esqueço de tudo!
Marita França
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Quem se despede da vida
sem vontade de partir,
deixa escrito nessa ida,
tarefas para o porvir.
Patrícia Rocco
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Ainda tenho esperança
de ter os carinhos teus,
pois o tempo de bonança
vem sempre após um adeus!
Plácido Amaral
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Nos pedais do coração
e você sempre no pódio,
pedaladas de emoção
vencem a barreira do ódio!…
Regina Rinaldi
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Sem responder pelos atos,
à luz da conveniência,
ainda há muitos Pilatos
crucificando a inocência!
Roberto Resende Vilela
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Não me chames de senhor,
que não sou tão velho assim
e junto a ti, meu amor,
não sou senhor, nem de mim!
Rodrigues Crespo
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cada um por si descobre:
- conheço pobre que é rico;
conheço rico que é pobre!
Rodolfo Coelho Cavalcante
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Enquanto a chuva lá fora
derrama águas no chão
lembranças de amor de outrora
inundam meu coração.
Sara Furquim
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A velhice, quando almeja
um grande amor, é talvez
anoitecer que deseja
fazer-se aurora outra vez.
Sebas Sundfeld
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Se ela sai acompanhada,
falam dela que faz dó!
Se sai sozinha, coitada,
falam por ela andar só!...
Sudra Vana
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Ser pobre não é defeito,
porém a sociedade
demonstra ter muito jeito
para alterar a verdade...
Tassélio de Souza Pereira
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Entre esperas e demoras,
que a solidão descompassa,
já nem sei quantas auroras
vi chegar pela vidraça!…
Vasques Filho
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A mulher apaixonada
é como criança arteira,
que, quanto mais vigiada,
mais gosta da brincadeira...
Venina Jotha
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Passava o mestre, e um brotinho:
— Vês aquele professor?
Dentro da sala é um diabinho,
mas fora dela é um amor!...
Vera Azevedo de Castro
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Blasfema, xinga, pragueja
e fala mal das vizinhas.
Mas à noitinha, na igreja,
canta santas ladainhas...
Vicente de Paula Viotti
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Falam de ti, sempre certos
de que é justo o mau conceito;
mas ficam boquiabertos
vendo o teu corpo bem feito!...
Zedanove Tavares

Irmãos Grimm (Os três anões do bosque)


Era uma vez um homem que perdera a mulher, e uma mulher que perdera o marido, ficando viúvos os dois. O homem tinha uma filha e a mulher outra. As moças se conheciam, passeavam juntas e às vezes a filha do viúvo ficava em casa de sua amiguinha.

Um dia, a mãe desta última falou à outra moça:

   - Dize a teu pai que eu gostaria de casar com ele. Tu passarias, todas as manhãs, a lavar-te com leite e beberias vinho; minha filha, porém, se lavaria com água, só água beberia.

    Chegando em casa, a jovem repetiu ao pai o que lhe dissera a mulher. Ele, então, observou:

   - Que hei de fazer? Casar é bom, mas não deixa de ser um problema.

  Por fim, não sabendo o que fazer, tirou uma de suas botas e disse:

   - Leva esta bota, que tem um buraco na sola, até o sótão e pendura-a no prego grande. Enche-a depois com água. Se a bota conservar a água, casarei de novo; se a água passar pelo buraco, não me casarei.

    A jovem fez o que lhe foi mandado. A água contraiu o couro e a bota ficou cheia até a borda. Correndo, a moça dirigiu-se ao pai para lhe contar o que acontecera. Ela subiu ao sótão e, vendo que a filha dissera a verdade, encaminhou-se à casa da viúva para pedir-lhe em casamento. E celebraram-se as núpcias.

  Na manhã seguinte, quando as duas moças se levantaram, a filha do marido encontrou leite para se lavar e vinho para beber, enquanto a outra não tinha senão água para se lavar e para beber. No outro dia, encontraram água para se lavar e água para beber, tanto a filha da mulher como a do esposo. E na terceira manhã, a enteada da mulher encontrou água para se lavar a para beber, e sua filha, leite para se lavar e vinho para beber. Daí por diante, continuou sendo assim.

A mulher odiava a enteada e não sabia mais o que inventar para tratá-la cada vez pior. Tinha-lhe, também inveja, por ser tão linda e graciosa quanto sua filha era feia e desajeitada.

    Certa vez, no inverno, estando as montanhas e os vales cobertos de neve, a mulher fez um vestido de papel e, chamando a enteada, disse-lhe:

   - Toma, põe este vestido, vai à floresta e enche este cesto de morangos, que estou com vontade de comer alguns.

   - Meu Deus! - exclamou a moça. - Não há morangos no inverno, a terra está gelada e a neve cobriu tudo. E por que devo por este vestido? Lá fora faz um frio horrível! O vento passará  pelo papel e os espinhos arrancarão do meu corpo.

    - Queres desobedecer-me?- gritou a madrasta. - Anda, sai em seguida e não voltes sem me trazer o cesto cheio de morangos!

    Deu-lhe um pedaço de pão, bem duro, e acrescentou:

   - É para passares o dia.

   Estava convencida de que a moça iria morrer de frio e fome e que jamais tornaria a vê-la.

   Obediente, a jovem pôs o vestido de papel e saiu com o cestinho. Fora, tudo estava coberto de neve e não se via ao menos um raminho verde. Chegando ao mato, ela avistou uma casinha, de onde três anõezinhos olhavam pela janela. Deu-lhes "bom dia" e bateu, discretamente, à porta. Eles convidaram-na a entrar e a moça sentou-se num banquinho, junto ao fogo, para aquecer-se e comer sua merenda. Os homenzinho lhe pediram:

   - Dá-nos um pedacinho?

   - Com muito prazer,- respondeu ela, e, partindo seu pedaço de pão, lhes ofereceu a metade. Perguntaram, então, os anões:

  - Que fazes aqui no bosque, no inverno, e com esse vestido tão fininho?

   - Ah!- suspirou ela. - Devo encher este cesto de morangos e não posso voltar para casa antes de colhê-los.

   Depois de comer seu pedaço de pão, os anões lhe deram uma vassoura, dizendo:

   - Varre para nós a neve da porta dos fundos.

  Enquanto a jovem estava do lado de fora, eles se reuniram em conferência:

   - Que lhe daremos por tão obediente e boa que até repartiu seu pão conosco?

Disse o primeiro:

   - Farei com que ela se torne, cada dia, mais bela!

  E o segundo:

   - Farei com que lhe caia uma moeda de ouro da boca a cada palavra que disser!

  E o terceiro:

  - Farei vir um rei que casará com ela.

   Enquanto isto, a menina fez o que os homenzinhos lhe haviam pedido e varreu toda a neve detrás da porta. E o que pensam vocês que ela encontrou? Uma porção de moranguinhos, bem maduros, assomando vermelhos, no meio da neve. Contente, encheu o cestinho e, depois de agradecer aos pequenos hospedeiros e ter dado a mão a cada um, dirigiu-se para casa a fim de entregar à madrasta à sua encomenda.

   Quando entrou em casa e disse " boa noite", cai-lhe da boca uma moeda de ouro. Pôs-se, então, a contar o que lhe sucedera e, a cada palavra, caíam moedas de sua boca, de modo que, em pouco tempo, o chão ficou rebrilhando de ouro.

    - Vejam só! - exclamou a irmã.- Esparramar dinheiro desse modo!

   Por dentro, no entanto, sentia inveja. Por isso, quis ir ao bosque colher morangos. Sua mãe se opôs, dizendo-lhe:

   - Não, filhinha; faz muito frio e poderás morrer gelada.

   Mas a filha insistia sem lhe dar sossego e ela acabou cedendo. Preparou-lhe um magnífico casaco de peles e depois lhe deu uma provisão de pão com manteiga e bolos.

  A jovem foi ao bosque e dirigiu-se, diretamente, à casinha. Os três anõezinhos estavam, novamente, à janela, mas a moça não os cumprimentou e, sem dar-lhes atenção, entrou, sentou-se junto ao fogo e começou a comer pão e bolo.

   - Dá-nos um pouco. - pediram os homenzinhos.

    Ela, entretanto, respondeu-lhes:

    - Nem tenho que chegue para mim. Como posso repartir com outros?

    Quando terminou de comer, eles disseram:

   - Aí tens uma vassoura, varre para nós a neve da porta dos fundos.

   - Ora! Varram vocês! - respondeu ela.- Não sou criada de ninguém!

    Vendo que eles não lhe iam dar presente algum, saiu da casa. Os homenzinhos, então, se reuniram, de novo, em conferência:

   - Que lhe daremos? Ela é grosseira, tem coração maldoso e cheio de cobiça e é incapaz de repartir com outros.

    Disse o primeiro:

   - Farei com que cada dia se torne mais feia!

    E o segundo:

   - Farei, a cada palavra que ela diga, saltar-lhe um sapo da boca.

   E o terceiro:

   - Farei com que tenha uma morte horrível!

   A jovem, lá fora, pôs-se a procurar morangos, mas, não encontrando nenhum, voltou, aborrecida, para casa. Quando abriu a boca para contar  à mãe o que lhe acontecera, eis que, a cada palavra sua, um sapo lhe saltava da boca! E todas as pessoas se afastaram dela, enojadas.

    Aquilo fez com que a mulher  se enchesse ainda mais de ódio e, daí por diante, só pensava num meio de maltratar o mais possível a filha do seu marido, que ia ficando mais bonita dia a dia.

Por fim, pegou uma caldeira e a pôs no fogo para ferver a linha crua, a fim de amaciá-la. Uma vez cozida, colocou-a toda nos ombros de sua enteada, deu-lhe uma machadinha e mandou que ela fosse ao rio congelado, para que lá abrisse um buraco e lavasse a linha. Obediente, a jovem dirigiu-se ao rio e começou a abrir um buraco no gelo. Enquanto fazia isso, passou por ali uma esplêndida carruagem em que viajava o rei. Este mandou parar o carro e indagou?

    - Quem és e o que estás fazendo aí, minha filha?

    - Sou uma pobre moça e estou lavando linha.

  O rei, compadecido, vendo-a tão bela, disse-lhe:

   - Queres vir comigo?

   - Oh, sim! - apressou-se ela em responder, contente por se livrar da madrasta e a irmã.

    Saiu na carruagem e partiu com o rei. E, quando chegaram ao palácio, celebraram o casamento com grande pompa, tal como os anões haviam destinado para a sua amiguinha.

Depois de um ano, ela deu a luz um filho. E a madrasta, a quem havia chegado a notícia de sua grande felicidade, encaminhou-se ao palácio, acompanhada de sua filha, sob o pretexto de fazer uma visita.

Como o rei se ausentara e ninguém estivesse presente, a malvada mulher agarrou a rainha pela cabeça, enquanto sua filha a pegava pelos pés e, tirando-a da cama, a lançaram pela janela a um rio que passava embaixo. Logo depois, aquela horrenda criatura se meteu na cama e a velha cobriu-a até a cabeça. Ao regressar, o rei quis falar com a esposa, mas velha o deteve, dizendo:

    - Silêncio, Silêncio! Agora não! Ela está suando muito e deve deixá-la em paz.

    O rei, sem pensar em nada de mal, retirou-se. Na manhã seguinte voltou e começou a falar com sua falsa esposa. Mas, à medida que ela respondia, sapos iam saltando de sua boca, quando antes o que caía eram moedas de ouro. O rei perguntou o que significava aquilo, mas a madrasta disse-lhe que era devido ao suor excessivo e que passaria sem demora.

    Aquela noite, porém, o ajudante da cozinha viu quando uma pata entrava nadando pelo cano da sarjeta e falava:

– Rei, em que estás ocupado? Estás dormindo ou estás acordado?

    E, como não recebesse resposta, prosseguiu:

   - E o que faz a minha gente?

    O ajudante da cozinha, então, retrucou:

   - Dorme profundamente.

   A pata continuou perguntando:

   - E onde está meu filhinho?

   Respondeu o rapaz:

    - Dormindo no seu bercinho.

   A pata, tomando, então, a forma da rainha, subiu ao quarto da criança, deu-lhe de mamar e arranjou-lhe sua caminha; depois, retomando a aparência de pato, saiu nadando pela sarjeta. Nas duas noites seguintes voltou a apresentar-se e na terceira disse ao ajudante:

    - Vai ao rei e dize-lhe que traga sua espada e que, no portal, dê três voltas com ela em cima da minha cabeça.

   Assim fez o criado; o rei, saindo com sua espada, a brandiu três vezes sobre a pata e, depois de faze-lo pela terceira vez, sua esposa apareceu diante dele, viva e cheia de saúde como antes.

    O rei sentiu uma alegria imensa, mas escondeu a rainha num quarto, onde ela ficou até domingo seguinte. Nesse dia iam celebrar o batizado de seu filho. Depois da cerimônia, ele perguntou:

    - Que merece uma pessoa que tira outra da cama e a joga na água?

    - Nada menos, - respondeu a velha - que a metam num tonel crivado de pregos e o façam rolar do alto da montanha até cair no rio.

    Ao que disse o rei:

     - Pronunciaste a tua própria sentença!

     E ordenou que trouxessem um tonel daqueles, e metessem a velha e sua filha dentro. Depois de o fecharam, fizeram-no rolar montanha abaixo, até cair no rio.

Fonte:
Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Varal de Trovas n. 573

 

Talita Batista (A solidão misteriosa de Alice)


Alice foi minha vizinha por muitos anos, desde os meus dez anos de idade. Na infância e adolescência, ela morou na mesma casa com seus pais, um irmão e uma irmã. Sempre foi discreta e caseira. Não tenho conhecimento de que saía de casa, sequer para trabalhar. Aos poucos, a vida foi-lhe tirando os familiares da convivência doméstica. Seus irmãos se casaram e mudaram, Seus pais faleceram, E Alice continuou residindo ali, só, absolutamente só...

Eu continuei morando na mesma residência, vizinha à de Alice. Sempre preocupada com a sorte das pessoas que moram sozinhas, agora o alvo de meus cuidados era a silenciosa e discreta Alice, por quem desenvolvi espontaneamente uma espécie de responsabilidade moral.

Para mim, a vida também mudara muito, pois eu lecionava em várias escolas e tinha dois filhos para criar. Ainda assim, com essa vida atribulada, nunca pude me furtar a essa responsabilidade.

Afinal, havia apenas um simples muro que separava nossas casas.

Pela manhã, antes de eu sair para o trabalho, falava-lhe, do lado de cá do muro, elevando um pouco o tom de voz:

- Bom dia, Alice!

(Na verdade, queria saber se ela me respondia algo, se estava bem, se precisava de alguma coisa ou, pelo menos, se continuava viva.)

O único sinal que se poderia observar naquela casa era o movimento, ao anoitecer, quando Alice acendia uma lâmpada da cozinha. Eu vigiava atentamente isso, ao observar a claridade, pela parte superior da janela de vidro translúcido de sua cozinha. Só então eu saía para trabalhar despreocupadamente no curso noturno onde lecionava.

Durante alguns anos, quando era mais jovem, Alice costumava vir à noite até o muro da frente de sua casa para ver o movimento da rua. E não é que, certa vez, por ali passou um homem de bicicleta, e parou para lhe fazer a corte? Aí, veio a novidade: Alice arrumou um namorado...

O casal era muito discreto; nunca alguém viu sequer um gesto mais ousado deles. Alice e o ciclista conversavam muito. Ele, posicionado do lado de fora da calçada e ela, do lado de dentro, na frente da casa. Era bonitinho ver que ele vinha todos os dias para conversar com ela e ela se enfeitava toda para aquele encontro!...

Alice não era uma mulher feia, de pele muito alva e olhos extremamente azuis e brilhantes, faziam-na um tipo diferente.

Certa vez, estando eu de férias escolares, fiz uma viagem um tanto longa em companhia de meus filhos. Quando voltei, percebi que Alice tinha-se enclausurado de vez e nem vnha mais à frente de sua casa. Criando coragem, perguntei-lhe pelo muro:

- Alice, por que você não conversa mais à noite, com aquele senhor?

Então, ela me informou que ele tinha falecido, vítima de um atropelamento, tipo de acidente muito comum em nossa cidade, onde há muitos ciclistas.

A partir daí, minha preocupação se redobrou com a enclausuramento de Alice. Ela era uma pessoa determinada e absolutamente livre para só dispensar sua atenção a quem e quando ela quisesse ou até simplesmente se recusar a fazê-lo. Não atendia a quase ninguém que a chamasse ao portão,

Muitas vezes recusava-se a responder até a um empregado de seus familiares, que lhe ia levar algumas compras para a sua subsistência. Quando eu comprava pão para minha casa, comprava também para ela, e ela fazia sempre uma exceção para receber meu filho, que era uma criança/adolescente. Conhecia a sua voz e vinha prazerosamente buscar o seu pãozinho quente. Nos fins de semana, quando eu fazia uma comidinha melhor, sempre arrumava um prato especial e mandava meu filho levar para ela,

E assim se passaram muitos e muitos anos, com Alice fazendo parte da minha vida, O destino foi levando de minha casa muitas pessoas queridas e Alice, de alguma maneira, sempre me fazia companhia. Diariamente, eu continuava observando a luz que Alice acendia na cozinha por cima da bandeira da janela envidraçada.

Mas... Um dia Alice não acendeu a luz da cozinha! Naquela noite não tive condições emocionais de ir lecionar na faculdade! Chamei insistentemente Alice pelo nome. Pedi a meu filho que a chamasse com sua voz bem conhecida e tão prontamente atendida por Alice. Silêncio e preocupação invadiram os nossos corações, à medida que a noite tomava conta de nos. Chamei os vizinhos. Batemos muito à porta de Alice. Só o silêncio respondia aos nossos gritos e aumentava a nossa ansiedade.

Os vizinhos queriam arrombar a porta. Mas não havia ali um parente dela para nos autorizar a fazê-lo e ficamos sem saber que decisão tomar. Deus, então, fez vir à minha mente um número de telefone (ainda que eu nunca guarde de cor o número de telefone de ninguém). Era um número que Alice, vez por outra me dava, pedindo-me o favor de ligar para sua irmã. Como por milagre, me lembrei deste número e do nome dessa irmã dela, que então foi chamada e nos autorizou a arrombar a porta...

Por cima da porta caída entramos, e caminhamos, corações aos pulos, até o quarto de Alice, onde a encontramos morta, deitada na cama, completamente nua!

Até em seu último momento, pela postura em que a vimos, me parecia querer demonstrar, com coragem, sua forma autêntica de ser absolutamente livre para se comportar ou se vestir, imagem forte de que nunca me esqueci. Por Alice até hoje rezo e, por coincidência, ao escrever esta história, encontrei na internet uma "Oração para Santa Alice", da qual eu nunca tinha ouvido falar. Ei-la:

"Faça, Senhor Deus, e nosso Pai, que aspiremos incansavelmente ao descanso que preparastes em Vosso Reino, Dai-nos força e inteligência nesta vida, para suportarmos as agruras que nos rodeiam, para promovermos o Bem e a Justiça e servirmos a nossos irmãos. Santa Alice, rogai por nós! Que assim seja! Amém!"

Fonte:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Livro enviado por Lucília Trindade Decarli.

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 7


MILAGRE


Tão esplêndida foi nossa curta ventura!
Tão rica de emoções - e que emoções grandiosas!
A envolver nossa vida em lençóis de ternura
tecidos de poesia e pétalas de rosas!

A um tempo doce e amarga, essa estranha tortura,
ao vencer a aridez das metas pedregosas,
demarcava o final de uma longa procura,
prenúncio do esplendor das horas mais gloriosas!

E eis que a morte, a exibir seu tétrico sorriso,
invejosa, talvez, desta felicidade,
quis roubar-te de mim, traiçoeira e sem aviso!

Louca de dor, parti a minha vida ao meio!
Por ti, dei parte a Deus, guardando só metade!
- Mas, o milagre, amor… o milagre não veio!
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MILAGRE (2)

Já nem sei se vivia... estava quase morta...
Apenas o dever ao corpo me prendia...
Era triste palmeira a sucumbir, já torta,
ao látego da vida, à intensa ventania!...

E chegaste a sorrir, como alguém que recorta
um retrato, sem cor, de outro alguém que não ria...
E ao retoque sutil da mão que reconforta,
um resquício de vida, incrédulo, surgia.

Morta-viva, trancada em minha tumba escura,
pouco a pouco, senti que o sol ressuscitara
à luz do teu carinho, ao calor da ternura.

Pacientes, pedra a pedra, erguemos o castelo
que o vendaval da vida, um dia, derrubara!
- Um milagre de amor… e que milagre belo!...
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Paladino do amor
Tributo a Martins Fontes

Gota a gota, sorveste as volúpias da Vida,
na embriaguez total de quem sonhos procura.
E em base de Ideal, foste a ânsia incontida,
que arrasta e que arrebata aos vórtices da altura!

Paladino do Amor! Foste, em missão cumprida,
a Bondade que alenta! A Esperança que cura!
Tié-Fogo santista, a Glória é refletida
no perfil que deixaste esboçado em ternura.

Em teus rumos de luz, venceste, Martins Fontes,
com fúria de vulcão, as mais torpes campanhas!
E no céu da Poesia, além dos horizontes,

és astro a fulgurar, com brilho eterno e nobre!
Bem acima da inveja e suas artimanhas,
és Sol que não se apaga! A terra não te encobre!
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O BEIJO DO HOMEM BOM

Eu era pequenina...eu era bem pequena...
três anos, nada mais... e o ver chegar, sorrindo,
aquele homem tão bom, de face alegre e amena,
aos seus braços corria! E com afeto infindo,

colava o rosto ao seu, na entrega pura e plena.
E aquele homem tão bom, o meu rosto cobrindo
de beijos, encantava a minha alma serena…
Era o sol de verão, que o céu fazia lindo!

E a Vilazinha triste, feia e tão modesta,
ganhava nova cor e animação de festa,
aureolada de luz e graças imprevistas!

O homem bom que, em criança, amigo me beijava,
era um grande Poeta, eu soube, e se chamava
Martins Fontes, "Tié-fogo" - orgulho dos santistas!
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PRECE DE PAZ

Senhor, que a angústia imensa bem conheces,
dos que enterram, chorando, os próprios sonhos
e ao fazer do silêncio a voz das preces,
seguem rumos sem luz… frios, tristonhos...

Senhor, que reconheces a amargura
daqueles que ainda clamam por Justiça;
daqueles que, sem pão e sem ternura,
nem sabem porque a Luz se faz omissa...

Senhor, que tens um coração de Pai,
maior, talvez, que o de um Juiz austero,
esquece as trevas Em que o mundo vai,
pela cegueira de Teus filhos! Vero,

é o desencanto que Te envolve! Sábios,
os impulsos que amarram as palavras
de castigo que morrem nos Teus lábios,
na sentença que hesitas... e não lavras!

Tombado sob o peso da incoerência,
o homem sucumbe ao próprio mal que faz!
E a erguer os olhos, grita por clemência,
sacode o mundo! E o mundo pede Paz!

A Paz para poder sonhar e, ainda,
provar uma fatia de Esperança!
A Paz de acreditar que a vida é linda,
e, mesmo tarde, tentar ser criança!

Senhor! Atende ao desespero extremo!
Devolve a Paz à Terra Prometida!
E há de ter prova o Teu Amor Supremo
de haver criado, uma outra vez, a Vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Adega de Versos 96: Auta de Souza

* Devesa = alameda ou arvoredo que circunda um terreno.

Sammis Reachers (Renato e seu cachorro Bugui)


Durante longo tempo de nossas infâncias, Renato possuiu um cachorro – Bugui era o nome dele. Bem, todo mundo tinha ou teve ou tem um cachorro, mas aquele ali era diferenciado, lotado de singularidades.

Saíamos sozinhos em zigue-e-zague, algumas vezes por quilômetros catando reciclagens aqui e ali, entrecruzando ruas, matagais e levantando poeira em três, quatro bairros diferentes, e quando menos esperávamos, Bugui estava atrás de nós. Ou melhor, de Renato.

Amigos, ainda hoje eu só posso atribuir aquilo à esfera do sobrenatural: Como seguir um rastro de cheiro por quilômetros, de ponto em ponto, até chegar ao seu dono?Isso era constante, a um nível em que eu chegava a dizer, não importa em que cafundó estivéssemos, fosse asfalto, chão ou mato: “Daqui a pouco Bugui aparece”. E em minutos o cão brotava, como se teleportado – sem dar sinal de sua presença silenciosa, que só por acaso notávamos.

Aquele vira-latas, negro com faixas brancas e amarelas no peito e focinho, com o couro aqui e ali já marcado pelas agruras da vida, não latia em momento algum. Também não era afável; a relação deles não envolvia carinho baseado em toque, como é o ordinário de acontecer entre um animal e seu dono.

Eu não entendia aquilo, eu miseravelmente não entendia aquilo, pois sempre fui um desavergonhado abraçador de animais. Pelo contrário, aquela era uma relação rude: O dono por vezes até lhe batia para afugentá-lo, e o cão não dava demonstrações de alegria ou contrariedade: era impassível, fizesse o que fizesse, sofresse o que fosse. Que tipo de relação estoica era aquela? Aqueles dois entes espartanos, acostumados aos cardos e abrolhos da vida, que jamais davam demonstrações mais visíveis de amor um pelo outro – como se atraíam naquele nível sobrenatural?

Sempre acreditei que aquele cachorro possuía um elo telepático com o dono. Dono que mais o enxotava do que qualquer outra coisa. “Não trate o cachorro assim”, eu repetia. “Ele não liga”, ouvia em eco.

Para que você tenha uma perfeita ideia, quando brincávamos de pique-esconde na rua, a presença de Renato era denunciada pelo cachorro – que insistia em segui-lo para lá e para cá. Ninguém se escondia perto de Nato, pois o cachorro denunciaria a presença do dono e possivelmente de mais alguém naquele ponto...

Quando Bugui morreu, eu, que talvez jamais o tocara – pois ele não era desses, ele não era do comum dos cachorros – senti um baque que não podia entender. O estranhamento de alguma forma nos vinculara.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Jerson Brito (Magia das Trovas) – 1


A melhor alternativa
para alcançar a vitória
é tornar a tentativa
atitude obrigatória!
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Aquela vila afastada,
nas brenhas do interior,
parece pobre... Que nada!
É manancial de amor…
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A riqueza genuína
da tapera ou da mansão
vem do amor que predomina,
não se mede com cifrão.
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Da minha infância tranquila
recordo, os olhos marejo.   
Mil vezes aquela vila
do que concreto e azulejo!
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Digo com sinceridade:
É melhor pro coração,
o amargor duma verdade,
do que o mel d’uma ilusão
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Ela é charmosa e pequena,
concisa, porém, completa.
Eis a trova, expressão plena
da mensagem do poeta.
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Esperança assim defino:
rio que corre veloz,
banhando nosso destino
sem chegar à sua foz.
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Existe um tênue limite
entre paixão e loucura;
para as duas, acredite
não é fácil ter a cura.
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Faltou bronze ao escultor
que, sem outra solução,
resolveu, na praça, expor
a estátua do herói anão!…
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- Fui bronze! Missão cumprida!
Disse o sujeito aos parentes,
sem mencionar que a corrida
só tinha três concorrentes.
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Já tentei tirar de mim
a semente dessa flor,
que espalhou no meu jardim
o perfume do amor.
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Libertado das ruínas
de um amor sem solidez,
ao abrir outras cortinas,
meu coração se refez.
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Na crise, eu me fortaleço,
não perco os sonhos de vista;
toda queda é o recomeço
para quem crê na conquista!
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Na luta, quando entendido
o recado de um tropeço,
qualquer espinho vencido
escreve um fim... e um começo!
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Não maldiga o desafio
se a jornada é longa e dura;
a glória é fruto macio,
carregado de doçura.
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No baú da experiência,
guarde dor e alegria.
As lições dessa vivência
são úteis no dia-a-dia.
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Nossa paixão dissemina,
nos sonhos, a insanidade
quando surge, clandestina,
disfarçada de saudade.
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No teu sussurro extravasas
um sopro avassalador
que mantém vivas as brasas
da fogueira deste amor.
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O fracasso e a vitória
fazem parte do existir.
É normal na trajetória,
de vez em quando cair.
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Olhando estas mãos feridas,
lamento, orgulhoso, as falhas
e não as chances perdidas
no decorrer das batalhas!
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O vivente caminheiro,
se palmilha senda escura,
na esperança tem luzeiro
que no coração fulgura.
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Qual cometa incandescente,
a paixão passa e se vai,
deixa no peito da gente
uma dor que nunca sai.
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Quem se empenha na leitura
nada perde e tem certeza
de que, para a mente escura
livro aberto é luz acesa.
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Se de rancor está cheio
nosso coração doente,
estão vazias, eu creio,
a nossa alma, a nossa mente.
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Sentindo o golpe certeiro
da paixão que me extasia
louvo teu sorriso, arqueiro
de notável pontaria.
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Se o fracasso tem dois lados,
vale muito a decisão;
chorar os planos frustrados
ou bendizer a lição.
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Se põe fogo em nossa cama,
amor, esse teu perfume
é a mesma essência que inflama
o facho do meu ciúme!
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Será crescente a desgraça
da fome e grande o lamento
enquanto existir quem faça
da ganância um alimento.
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Sobre opiniões e crenças,
a sensatez nos diria
que o respeito às diferenças
tece teias de harmonia.
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Somos almas garimpeiras
nessa vida de perigos
onde, em lavras rotineiras,
valem ouro os bons amigos.
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Tentei enxugar meu pranto
na fronha do travesseiro.
Péssima ideia, porquanto
chorei mais, senti teu cheiro…
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Um amor especial
trouxe a flecha do cupido,
a saudade, esse punhal,
fez meu coração partido.
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Um cenário me devasta:   
a garrafa de champanhe,
duas taças, vela gasta
e ninguém que me acompanhe.

Fontes:
Messias da Rocha (org.). Múltiplas palavras vol. III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.
Livro enviado por Lucília Trindade Decarli
Recanto das letras do trovador.