sábado, 18 de março de 2023

Baú de Trovas LXII


A renúncia corresponde,
muita vez, a muito amar;
como quando o Sol se esconde
para que brilhe o luar!
A. A. de Assis
Maringá/PR
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Lá, muito além das estrelas,
moram minhas ilusões,
e eu, por medo de perdê-las,
transformei-as em canções.
Abia Dias
Itaperuna/RJ
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Nos poemas encontrei
a real identidade
dos vazios que deixei
nos meus versos de saudade!
Agnes Izumi Nagashima
Londrina/PR
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Trovadores, versejando,
em dom divino e fecundo,
e suas mãos derramando,
Beleza e paz pelo mundo...
Almir Pinto de Azevedo
Rio de Janeiro/RJ
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Na mesa do meu irmão,
toda noite e todo dia,
haja café, haja pão,
muita prosa e poesia!
Antônio Rosélio Nunes Pacheco
Itaperuna/RJ
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Se o filho, na luta ingente
da vida, vence com brilho,
o pai o triunfo sente
igual ao que empolga o filho.
Barreto Coutinho
Limoeiro/PE, 1893 – 1975, Curitiba/PR
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Caminha com segurança
quem leva à vanguarda, erguida,
a bandeira da esperança
que impulsiona a sua vida!
Carolina Ramos
Santos/SP
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Não tema a estação de agora,
não tema o inverno, querida.
Que importa o frio lá fora
se dentro a alma está aquecida?
César Augusto Sovinski
Curitiba/PR

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Discreta, naturalmente,
minha ternura se trai,
ante um tiquinho de gente
que me chama de “Papai”!
Cesídio Ambrogi
Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP
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Porque o tempo vem, não tarda,
não espera, não vacila,
quem nasce para vanguarda
chega sempre antes da fila.
Cipriano Ferreira Gomes
São Paulo/SP
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Um tesouro brasileiro
é feijoada e caipirinha.
E se houver samba e pandeiro
vira festa na cozinha.
Denivaldo Piaia
Campinas/SP
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Vive o gênio na vanguarda:
abre as portas do futuro.
E quem o critica aguarda
morrendo num quarto escuro.
Edweine Loureiro da Silva
Saitama/Japão
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Se teu rosto, pai, confessa
o cansaço das jornadas,
quanta ternura se expressa
em tuas mãos calejadas!
Elen Novais Félix
Barra do Piraí/RJ, 1946 - 2015, Niterói/RJ
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Neste momento, calado,
de gestos e olhar bisonhos,
penso em você ao meu lado
nos “amanhãs” do meu sonho.
Ester Figueiredo
Rio de Janeiro/RJ
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Mundo cheio de emoções
é o que desperta o artista,
mexendo com corações
indo além do que se avista.
Fátima Almeida
Recife/PE
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No pomar de amenidade
do teu rosto inspirador,
colho um cesto de saudade;
na saudade...o teu sabor.
Flávio Stefani
Porto Alegre/RS
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Será um manancial
de fraternidade e amor,
viver a paz mundial
e extinguir todo rancor.
Flora Malta Carpi
Itaperuna/RJ
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O artista traz alegria
traz riso, felicidade
traz ao mundo poesia
e gera bela irmandade.
Giselda Camilo
Recife/PE
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Um belo sonho que eu tive
foi ser uma professora,
grande desejo eu obtive,
na profissão sou doutora.
Giselda Pereira
Recife/PE
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Sonho que estou visitando
o lugar que desejei
e ficar só relembrando
foi tudo como esperei
Idalina Felix
Recife/PE
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Na imensa feira da vida,
as barracas da ironia:
a das culpas - concorrida!...
a dos remorsos - vazia...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP
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O pesar desaparece,
no romper de cada aurora,
quando elevo a minha prece...
Deus abranda a dor de outrora!
Janete Francisco Sales Yoshinaga
São Paulo/SP
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Uma coisa muito boa
numa só frase resumo:
andar com você à toa
sem objetivo e sem rumo.
Janske Niemann Schlenker
Curitiba/PR
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Movimentos de vanguarda
mudam textos na aparência,
mas todo artista resguarda,
quando escreve, sua essência.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho/RO
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Bem-te-vis cantando estão ,
a enfeitar o amanhecer...
Regozijo ao coração,
e inspiração ao viver.
José Luiz Ribeiro
Itaperuna/RJ
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Todos sentados à mesa,
com histórias a tecer,
é o cultivo e a riqueza
da amizade a florescer.
Kamila Hecht
Itaperuna/RJ
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Os horrores de uma guerra,
têm as cores da tristeza;
enchendo de sangue a terra,
é um tormento com certeza.
Karem dos Santos da Silva
Curitiba/PR
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Eu gosto de comer pão
também como vatapá
vez por outra o bom feijão
mas, bom mesmo é mungunzá.
Leices Xavier
Recife/PE
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Sem saber quem era eu,
sem norte, luz ou guarida,
teu amor me devolveu
a identidade perdida.
Lilia Souza
Curitiba/PR
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Nesta manhã, chega o inverno
nos renovando a esperança
e mostrando que de eterno
temos só nossa lembrança.
Lucas Bisoni
Curitiba/PR
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Aos que com delicadeza
trazem os grãos da ternura,
ofertamos gentileza
e as benesses da brandura.
Luciana P. Pires
Rio de Janeiro/RJ
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Perdi-me nesta saudade
dos rastros, que atrás deixei,
mas preservo a identidade
nos sonhos que realizei!
Lucilia Alzira Decarli
Bandeirantes/PR
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O que sou, ou quero ser,
não é fruto de barganha.
No meu simples entender,
é sombra que me acompanha.
Lucrécia Welter
Toledo/PR
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Vanguarda é estar mais à frente
do próprio tempo... e insistir
em trazer para o presente,
o semblante do porvir!
Luiz Antonio Cardoso
Taubaté/SP
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Me recordo com saudade
do meu tempo de criança,
eu tinha felicidade,
amor e muita esperança.
Madalena Castro
Recife/PE
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No inverno de noite fria,
tem ares de eternidade;
sem você, sem alegria,
bebo o vinho da saudade.
Madalena Ferrante Pizzatto
Curitiba/PR
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O amor não tem estação,
Vem no inverno ou primavera,
Num outono ou no verão...
Sorte dessa, quem me dera...
Maria do Rocio Vaz
Curitiba/PR
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Oxalá a identidade,
das nações e os povos seus,
comprove que a humanidade
é filha... do mesmo Deus!
Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes/PR
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Neste Dia da Cultura,
venho aqui homenagear
com esperança futura,
artistas deste lugar.
Maria Lúcia Spadarotto Neves
Itaperuna/RJ
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Assim é a simplicidade
do homem lá do sertão
que exibe, com vaidade,
os calos da sua mão.
Maria Lúcia F. Rockall
Rio de Janeiro/RJ
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Nossa cidade revela
cultura sem restrição;
seu legado é bela tela
sempre exposta em cada ação.
Marina Caraline de Almeida Carvalhal
Itaperuna/RJ
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O inverno se faz presente,
anda o vivente na rua.
E receba o abraço quente,
calor de Deus perpetua.
Marli Voigt
Curitiba/PR
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Sem o pão, a vida é breve,
seu tempero é a poesia,
ao tecer, bem mais de leve
a beleza que extasia.
Marly Aparecida Carvalho de Mattos
Itaperuna/RJ
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Em qualquer fase da vida,
sempre que a incerteza ocorre,
sem que a fé seja perdida
a esperança nos socorre.
Nei Garcez
Curitiba/PR
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O mundo é uma grande escola
e a vida, mestra exigente;
não seja aluno que enrola,
nem, na lição, displicente.
Nilsa Alves de Melo
Maringá/PR
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Nenhum documento achado
de uma vida mal vivida,
resgata o que foi roubado
da identidade perdida.
Olga Agulhon
Maringá/PR
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Que dolorosa ironia:
a terra muito pisamos,
mas a morte chega um dia...
E sob a terra ficamos!
Paulo Roberto Oliveira Caruso
Niterói/RJ
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Inverno com belo dia,
tem um céu azul brilhante
traz para mim alegria,
fico mesmo radiante.
Pedro Henrique Schewinski Pereira
Curitiba/PR
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Levem-me tudo, no entanto
não levem minha viola;
que essa voz dela, é meu canto
e esse canto me consola!
Professor Garcia
Caicó/RN
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Trovador que espalha o sonho
que lhe mora n’alma inquieta
confessa ao mundo, risonho,
a bênção que é ser um poeta!
Renato Alves
Rio de Janeiro/RJ
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As "batidas" de emoção,
vêm dos versos sonhadores;
tocam fundo o coração...
Meus irmãos, os Trovadores!
Rô Caron
Curitiba/PR
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O amor quando é verdadeiro
no peito em que faz guarida
principalmente o primeiro
deixa marca em nossa vida.
Sara Furquim
Rio Branco do Sul/PR, 1918 – 2020
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Colibri em seu labor,
competente bailarino,
com um beijo suga a flor,
depois segue o seu destino.
Sebastião Zulmair Pires
Itaperuna/RJ
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Quando a aurora colorida
prenuncia um dia quente,
tal o parto de uma vida
nasce o sol resplandecente.
Silvio Romero Tavares
Campinas/SP
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Somos almas garimpeiras
nessa vida de perigos,
onde em lavras rotineiras
valem ouro os bons amigos.
Sônia Maria Nuss Teixeira Nogueira da Gama
Itaperuna/RJ
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Tal qual uma joia rara,
toda trova é singular,
a tristeza ela repara,
faz a alegria voltar.
Talita Batista
Rio de Janeiro/RJ
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Envergonhado e sem jeito,
meu coração sonhador
conserta o ninho desfeito
enquanto espera outro amor!
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP
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Peço a Deus por meus irmãos,
que Ele cure toda dor.
Ergo em trova as minhas mãos:
— Piedade, meu Senhor!
Valber Meireles
Itaperuna/RJ
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Um currículo não diz
das dores, dos sacrifícios,
nem da luta a cicatriz...
Só relata os benefícios.
Vânia Figueiredo
Campinas/SP
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Ao longo da caminhada
em que a vida nos conduz,
vão-se alternando, na estrada,
luz e treva, treva e luz!
Waldir Neves
Rio de Janeiro/RJ, 1924 – 2007

Lima Barreto (Uma conversa)

- Disse-te ainda há pouco, falou o Zeca Magalhães, na mesa de chopes em que estávamos, que não tinha certeza das minhas sensações e, portanto, não tinha nenhuma das minhas ideias. Não é o momento de te citar filósofos, nem organizar raciocínios rimados. Conto-te somente um caso ilustrativo, cheio de proveitosos ensinamentos.

Pegou do copo e sorveu um segundo chope, enquanto eu via, numa mesa ao lado, um gordo alemão com um focinho de porco Yorkshire, acompanhado da mais linda alemã que foi dado aos olhos de um carioca, que nunca saiu da sua cidade natal, ver e contemplar.

- Zeca, disse eu, a meia voz, vê que alemã bonita.

- Era disso mesmo que eu queria falar, fez ele descansando o copo.

- Da alemã?

- Relaciona-se. Eu estava no teatro... Foi há vinte anos, ou mais. Estava no teatro, no jardim, quando vi uma mulher. Que beleza era! Tinha uns olhos, um nariz! E que boca!

- Pintura.

- Qual! Ouve. Olhei-a demoradamente, analisei traço por traço, via-a na luz, pus-me mais perto e a impressão continuava a mesma, e até crescia. Ao sair, acompanhei-a... tu sabes o resto? Pela manhã, quando acordei e contemplei a mulher, sob a luz do sol, não era a mesma! Cos diabos! fiz eu. Querem ver que me trocaram a mulher? Nada disso, despedi-me com toda a conveniência e saí. O caso não me saiu da cabeça. Eu a tinha visto no teatro, em plena integridade dos meus sentidos; tinha analisado detalhadamente - como era então que a mulher que eu via, às oito horas da tarde, não era a mesma de quem me despedi às seis da manhã do dia seguinte?

“Pintura? Não foi, eu tinha reparado bem. Voltei à sua casa dias seguintes. Examinei-a bem, traço a traço, comparei-a com as duas imagens que tinha dela - a das oito da tarde e a das seis da manhã. Nada lembrava a primeira, sendo exatamente igual à segunda. Voltei ao teatro, estive a lhe falar - era ainda a segunda imagem, a mais próxima. Estava doido naquela noite! pensei. Rememorei o que fizera naquele dia e nos precedentes ao meu encontro com a tal italiana.

“Lembrei-me que tinha recebido umas estampas de grandes obras de escultura e, na sua contemplação, gastara horas seguidas de uma atenção absorvente. Estava aí a causa do erro! Sobre os seus traços verdadeiros, ou antes, os mais reais, eu tinha depositado a imagem anterior da grande beleza que me ficara do livro; e, quando de manhã, com a fadiga, etc., ela se esvaiu, ficou mais ou menos a mulher comum, fugindo por completo a ideia anterior com que eu a resvestira.

“Daí concluí, não sem ligeireza, que essa nossa mania de beleza é um contágio dos delirantes sonhos de alguns homens, dados a loucuras de Arte, exacerbados com os delírios das tradições de antigas raças e sofrendo a tirania dos ideais belos; é que as nossas sensações são interpretadas pelo nosso entendimento, de acordo com as imagens de certos padrões, que já estamos predispostos a recebê-las..."

- Concordo em parte; mas daí podias concluir que a Arte é útil, estimula o Amor, a eternidade da vida...

- Quanto a isto, não; há nas boticas outros sucedâneos menos perigosos.

Não havia uma hora que eu o tinha visto terno; agora estava desabusado, cinicamente brutal, cobrindo com um sarcasmo o que sempre o vira engrandecer.

- Entretanto, observei, para que a visses assim, era preciso que ela tivesse alguma coisa da tal estampa que se te gravara no cérebro.

- Estava talhada para isso... No momento, possui uma disposição qualquer, nos seus elementos fisionômicos, capaz de suscitar e de emitir a imagem que eu já tinha, nos seus traços vivos.

Bebíamos o quinto chope, e, embora por estas alturas, eu sempre fique mais inteligente e animado, naquela noite, a fadiga não me permitiu. Despedi-me.

Fonte:
Disponível em domínio público
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Publicado originalmente em 1920.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Analecto de Trivões n. 1

 

Nilto Maciel (Dois Seres)

Há poucos dias estamos aqui. Trouxeram-nos um homem, uma mulher e uma menina. Chegamos dentro de uma jaula. Vivíamos numa jaula maior, com outros inúmeros semelhantes nossos. Não sabemos como eles estão, nem se ainda vivem no mesmo lugar. Nossos dias e nossas noites são sempre iguais. Dormimos muito, porque não temos quase nada a fazer. Passamos quase todo o tempo comendo a ração que nos dão, dormindo ou brincando numa roda. Às vezes o homem aparece, fuma, bebe, olha para a rua, o céu, conversa sozinho. Olha para nós e some. A mulher surge sempre à mesma hora: põe a ração dentro do pequeno estojo, despeja água noutro estojo, molha as plantas, fala alto e nos xinga. A menina pouco vemos. Fala-nos com carinho, olha para nós demoradamente e nos chama por nomes esquisitos. Os nomes certamente ela os inventou, porque antes nunca os ouvimos. 

Do outro lado da porta há sempre gente falando e às vezes cantando. São figuras pequenas, mais ou menos do meu tamanho, dentro de uma tela iluminada. O homem parece ouvi-las à noite. Não sei para onde vai durante o dia. A mulher nunca se senta ao lado do homem. Não sei mais o que fazer. Penso em fugir, mas a pequena prisão é de metal e entre as hastes mal cabe minha pata. Se eu conseguisse fugir, nem sei para onde deveria ir. Onde estarão meus irmãos e meu pais? 

Também penso em morrer logo. Não sei se duraremos muito nesta vida, embora não nos falte comida e água. O sol é muito quente de manhã. Faz frio de noite. Há uma casinha dentro da jaula e nela às vezes nos refugiamos. No entanto, é muito quente, abafada, sem ar. E meu companheiro é muito egoísta. Não me dá espaço. O jeito é arranhar as hastes da jaula e pensar em fugas. A mulher aparece e grita: “Sossega, bicho danado”. Se emagrecer muito, talvez consiga fugir. Para onde, não sei. O homem surge diante de nós e resmunga: “Esses bichos devem pensar também”.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Disponível em Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Josefina de Castro Fonseca (Poemas Esparsos)

AO MEU CORAÇÃO

Por que estás tão apressado,
Coração, a palpitar?
Queres, deixando meu peito,
Por esses ares voar?
Queres do meu pensamento
A carreira acompanhar?

Queres, misero insensato,
Este desejo cumprir?
Intentas da fantasia
Os amplos voos seguir?
Buscas, vencendo a distância,
Tua saudade extinguir?...

Esta saudade tão funda,
Tão viva, tão pertinaz,
Que te faz tão desgraçado,
Que tão ditoso te faz?
Que tanto te amarga às vezes,
Que às vezes tanto te apraz?

Pretendes tu, pobre louco,
Tuas dores aumentar?
Desejas ao lado — Dele—
De martírios te fartar?
Queres nos olhos, que adoras,
Mais desenganos buscar?

Se ao excesso do tormento
Tivesses de sucumbir,
Quem tanto havia de amá-lo,
Deixando tu de existir!
Quem ousaria contigo
Em firmeza competir?

E ele, onde poderia
Tão soberano reinar?
Onde iria sua imagem
Obter tão devoto altar,
E tão desvelado culto,
Tão fervoroso, encontrar?

Deixa ir só meu pensamento,
De seus voos na amplidão;
Quem sabe se ao lado doutra
O acharás, coração?
Morre embora de saudade;
Porém de ciúme... não!
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A PEDIDO
(Para um álbum)

Eu engenho não tenho sublime,
Que te possa o que sinto, expressar;
Minha lira não tem a doçura,
Com que deve teus dotes cantar.

Para dizer-te somente, que és bela,
Não se hão de meus lábios abrir;
Que a lindeza, que tens no semblante,
Esta frase não pode exprimir.

O teu rosto, que as graças enfeitam,
Chamar belo — é mui fraca expressão,
Ele aos olhos o tipo apresenta
De sublime, ideal perfeição.

Eu não sei nesta folha querida
Dedicar-te um louvor que me agrade;
Nela apenas escrevo um protesto
De extremosa, sincera amizade.
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IMITAÇÃO DO SR. ABOIM

Se eu fora da Trácia o Vate sublime,
A lira afinara para só te cantar;
Se eu fora o pintor de Itália famoso,
Quisera o teu rosto para mim copiar.

Se eu fora a fontinha, que corre indolente,
E sobre conchinhas se vai espraiar,
Então me verias, correndo anelante,
Teus pés delicados risonha beijar.

Se eu fora um infante gentil, inocente,
Só tuas carícias quisera lograr;
Se sono tranquilo meus olhos cerrasse,
No teu brando seio quisera pousar.

Se eu fora a violeta, que sob as folhinhas
Esconde os encantos que Deus lhe quis dar,
A ti me mostrara, e sobre teus lábios
Meus puros perfumes quisera entornar.

Mas eu não sou fonte, pintor, ou violeta,
Nem vate, que possa teu nome exaltar;
Apenas sou triste mulher, que te adora
O mais que na terra se pode adorar.
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MEUS DESEJOS
(A Angelina)

Eu quisera dizer-te, meu anjo,
Quanto és por minha alma adorada;
Eu quisera mostrar-te que trago
Tua imagem no peito gravada.

Eu quisera, que a sabia natura
Seus primores para ti reservasse;
Eu quisera, que o Deus de bondade
De mil ditas teus dias coroasse.

Eu quisera, de todo o universo
Sobre o trono melhor te assentar;
Eu, enfim, desejara ser homem
E poético amor te ofertar.

Só em ti, enlevado, veria
O meu voto mais caro cumprido;
Quando uma alma, que a minha entendesse,
Ao Eterno eu houvesse pedido.

Tu então realizarás, meu anjo,
Meu querido ideal amoroso;
Tu me deras do céu as delícias;
Eu seria o mortal mais ditoso.
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UNS OLHOS
(Num álbum)

Num semblante peregrino
Dois olhos castanhos vi,
Tão ternos, tão matadores,
Outros jamais conheci.

Do sol ardente não tinham
O deslumbrante fulgor:
Mas, como a serena lua,
Moitas falavam de amor.

Brilhavam com a luz suave,
Que alumia o coração;
Do divino olhar dos anjos
Tinham o doce condão.

Olhos, que assim possuíam
Tão poderosa magia,
Quem, depois de os avistar,
Por eles não morreria?!…

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Adélia Josefina de Castro Fonseca. Ecos de minha alma. Publicado originalmente em 1866.

Hans Christian Andersen (O Linho)


O linho estava todo em flor, coberto de pequenas corolas azuis, delicadas como as asas da cigarra - e ainda mais transparentes. Recebia a luz do sol e as águas da chuva: era como a criancinha que depois do banho recebe um beijo da mamãe. Isso aumenta a beleza das crianças, e foi o que aconteceu com o linho.

- Dizem que cresci muito, - exclamava ele - que estou muito alto e que hei de dar um belo pedaço de pano. Sou na verdade muito feliz! Sou, certamente, o mais feliz de todos. Que sorte tenho tido! E tudo me sairá bem. O sol me alegra tanto e a chuva me refresca - esta chuvinha boa e agradável! Sou infinitamente feliz, não há ninguém mais feliz do que eu!

- Pois sim, pois sim! - disse a taquara. - Não conheces o mundo , mas eu conheço, pois sou toda cheia de nós.

E ela rangia, lamentando-se:

"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"

- Não, senhora! Não acabou! – disse o linho - Amanhã o sol há de brilhar, ou há de vir a chuva  me refrescar. Sinto que estou crescendo... sinto que estou em flor. Ah! Sou eu o mais feliz!

Mas um dia vieram uns homens e seguraram o linho pelo pescoço, arrancado-o com raiz e tudo. Aquilo doeu muito! Depois deitaram-no à água, como se quisessem afogá-lo, e  depois o expuseram ao calor do fogo - parecia que iam agora assá-lo! Foi uma coisa horrível!

- Ora, não se pode viver bem todos os dias. – disse o linho - Devemos passar trabalhos: é assim que se aprende.

Mas o fato é que padeceu tormentos horríveis. Foi molhado, torrado, despedaçado, e  cardado... Nem ele mesmo sabia que nome havia de dar a todos os processos a que o submeteram. Afinal, meterem-no na roca: Rrrr! ...Rrrr!... Nem lhe era possível concentrar as ideias. E, no meio de todas aquelas torturas, ia sempre pensando:

- Fui muito feliz outrora... A gente deve contentar-se com os bens que já gozou... contentar-se... contentar-se... ar! ...Ai!

E foi então que o meteram no tear, e ali ele se transformou em uma grande e bela peça de pano. E todo o linho, até a última haste, foi gasto naquela única peça.

- Mas que coisa extraordinária! Quando é que eu ia imaginar isto! Vejam como a sorte me favorece! A taquara não estava mal-informada quanto aquele "lá-lá-ri-lá-ri-lá-lá" que cantava! Mas a cantiga não se acabou, não! Pelo contrário, agora é que vai começar. É, com efeito, extraordinário! É certo que me fizeram sofrer um bocado, lá isso é verdade, mas cheguei  a ser alguém. Sou eu o mais feliz de todos. Como fiquei forte, distinto, branco , e tão comprido... Isto sim vale a pena! Não é só ser uma planta, ainda que esteja coberta de flores! Ninguém se importava comigo, e água, só recebia quando chovia. Agora  sim, tratam de mim, enchem-me de mimos. A criada vira-me todos os dias, e todas as noites me dão um banho de chuveiro, com o regador. A esposa do pastor até fez um discurso, dizendo que eu era a melhor peça de linho de toda a paróquia. Não! Eu não poderia se mais feliz do que sou!

Levaram o pano de linho para dentro de casa, e lá caiu ele sob os golpes da tesoura. Ah! Como o talharam e retalharam! Não era nada agradável, aquilo! Mas afinal foi convertido em doze peças de roupa - peças cujo nome não se costuma dizer, mas que todas as pessoas devem usar. Fizeram uma dúzia, dessas peças.

- Vejam! Agora é que me tornei uma coisa útil. Era então este o meu destino! Que maravilha! Agora presto serviços, tenho utilidade no mundo, como todos devem ter. Isto é que causa prazer à gente! Somos agora doze peças, mas somos todas uma e a mesma coisa. Formamos exatamente uma dúzia. Que sorte extraordinária a nossa!

Passaram-se anos. Um dia, enfim, o pano de linho estava gasto.

- Tudo se acaba, afinal. – dizia cada peça de roupa - Eu gostaria de durar mais um pouco, mas a gente também não deve desejar o impossível.

Foram então rasgadas em pedacinhos. E, quando se viram assim picadas, encharcadas de água e cozidas, pensaram que agora, sim, estava tudo acabado. Nem elas mesmas sabiam quanta coisa acontecia... e de repente estavam transformadas em belo papel branco.

- Mas que surpresa, que maravilhosa surpresa! - disse o linho. - Sou mais fino agora do que dantes, e hão de escrever sobre a minha superfície! Pois isto não é uma sorte extraordinária?

E realmente nele foram escritas as mais lindas histórias e poesias, e apenas um único pingo de tinta lhe caiu em cima, fazendo um borrão, isto em um momento de pouca sorte. E as pessoas ouviram o que fora escrito sobre o papel, eram coisas boas e inteligentes, que tornavam os ouvintes muito melhores e mais instruídos. Havia uma benção nas palavras escritas naquele papel.

- Mas isto é muito mais do que eu podia imaginar, quando era uma simples florzinha azul, lá no campo! Como ia esperar que um dia pudesse espalhar alegria e conhecimentos entre os homens? Ainda não posso compreender, mas realmente assim é. Deus sabe que não fiz senão o que minhas limitadas forças me obrigaram a fazer, para assegurar a minha subsistência e, todavia, ele me favorece desta maneira, fazendo que eu vá de uma alegria a outra, de uma honra a outra honra. E cada vez que penso comigo: "acabou-se a cantoria!"  torno de novo a uma vida melhor, mais elevada! Agora, com certeza, irei viajar pelo mundo, para que os homens me possam ler... Não pode ser de outra  maneira. Não há nada mais certo! E tenho pensamentos magníficos, e tão numerosos como fora, outrora as minhas flores azuis... Sou a criatura mais feliz do mundo!

Contudo não o mandaram viajar: enviaram-no à tipografia. E lá aquilo que nele estava escrito foi composto e impresso, para formar um livro, e até muitas centenas de livros; assim poderiam tirar alegria e proveito de sua leitura muito maior número de pessoas que não lhes seria possível fazer se um único papel corresse mundo, gastando-se no caminho.

- É claro que isso é muito mais razoável - pensava o papel escrito. - Nem me lembrava de semelhante coisa. Fico em casa, onde serei honrado como um velho avô, e é o que no fundo venho a ser de todos esses livros novos. Assim o resultado será muito maior. Eu não poderia circular daquele jeito. Mas foi em mim que fixou os olhos aquele que escreveu a obra. Cada palavra entrou em mim, vinda diretamente da pena. Sou a mais feliz das criaturas!

E o papel foi amarrado, feito um fardo, e assim o lançaram em um barril, na lavanderia.

- Quem bem trabalha, melhor descansa! É muito útil a gente se concentrar e ter tempo para meditar sobre as coisas que traz no seu íntimo. Só agora sei realmente o que está escrito em mim. E conhecer-se a gente a si própria é a verdadeira sabedoria. Que farão de mim, agora? De qualquer forma darei um passo à frente: é sempre para a frente que a gente caminha. Isso já o sei por experiência própria.

Mas um belo dia todo o papel foi retirado do barril e posto sobre o fogão. Ia ser queimado. pois não podia ser vendido no armazém para embrulhar manteiga ou açúcar. E todas as crianças da casa se agruparam em roda, porque gostavam de ver arder papel, que dava labaredas tão altas e tão lindas. Além disso a gente via nas cinzas aquela multidão de faíscas vermelhas, que esvoaçavam para todos os lados, e iam extinguindo-se rapidamente. As crianças chamavam aquela brincadeira "ver as crianças saírem da escola";  e a última faísca era o mestre. Muitas vezes toda a gente pensava que ele já tinha saído, quando de repente lá vinha mais outra faísca:

- Lá se foi o mestre-escola!

Mas é que não estavam bem informados. Deviam saber quem era que ia saindo! Nós o sabemos, mas as crianças ignoravam-no.

Todo o papel velho, o fardo inteiro, inflamou-se num instante.

- Uuuu! - clamava ele, quando flamejava em labaredas altas. - Uuuu! ...

Não se pode dizer que aquilo era lá muito agradável. Mas quando tudo estava em chamas, ergueram-se elas a tamanha altura como o linho nunca poderia erguer suas florzinhas azuis, e brilhavam como o pano branco jamais poderia brilhar. Todas as letras escritas nele ficaram vermelhas no mesmo instante, e todos os pensamentos, todas as palavras que estavam ali se transformaram em labaredas.

- Agora subo diretamente até o sol! – clamou a chama.

E foi como se mil vozes cantassem uníssono. E as chamas saíram no topo da chaminé.

E mais finos ainda que as chamas, invisíveis para o olho humano, adejavam seres pequeninos: tantos quantas tinham sido as flores do linho. Eram mais leves que a chama de que haviam nascido. E quando esta se extinguiu, e do papel nada mais restava senão a cinza escura, eles dançaram ainda uma vez por cima dela: onde quer que um deles a roçasse, brotava centelhas rubras.

- As crianças saíram da escola e o mestre foi último!

Grande era a alegria, e diante da cinza morta cantavam as crianças:

"Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lá,
Lá-lá-ri, lá-ri-lá-lão!
Acabou-se a cantoria!"

Mas todos aquele pequeninos seres invisíveis disseram:

- A cantiga não se acaba nunca! E é isso o que há de mais lindo. Bem o sei eu, e por isso mesmo sou a criatura mais feliz do mundo!

Todavia , eram palavras essas que as crianças não podiam ouvir, nem entender.

Também, não era preciso: pois as crianças não devem saber tudo, não é ?

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Hans Christian Andersen. Contos de fadas. Publicado originalmente em 1847.

Carolina Ramos (Folclore Brasileiro) Estado do Acre

O Folclore acreano é rico em lendas. E quem as descreve com autoridade é Francisco Peres de Lima, cujo livro tem esse nome.

A lenda mais conhecida do Acre é a do Mapinguari, herdada dos índios. Achavam eles que as pessoas, depois de certa idade, transformavam-se num monstro de aparência assustadora. Habitante das florestas, tal monstro era uma espécie de macaco peludo, com um só olho na testa, pele grossa como couro de jacaré, violento e de cheiro forte. 

Suas vítimas, os incautos e desavisados. Ou mesmo caçadores que, acreditando ouvir alguém gritar, como se perdido na floresta, respondem a tais gritos e são em seguida atacados e mortos pelo próprio Mapinguari.

A Lenda da Alma de Bom Sucesso ou Lenda da Mulher Milagreira conta que uma determinada mulher, perdida num seringal, deu à luz a duas meninas, mas, sem socorros, morreram tanto a mãe como as duas crianças. O povo contrito, que chama essa mulher de Santa Raimunda, ergueu, no meio do seringal onde ela se perdera, a Capelinha Milagreira do Bom Sucesso, nome da cidade onde a santinha vivia. Essa capelinha é sempre muito visitada pelo povo devoto.

O mito do Gogó de Sola é bastante curioso. Aliás, é preciso esclarecer que ninguém sabe ao certo se é mesmo um mito, realidade ou lenda. O que circula é que o Gogó de Sola lembra um pequeno macaco que tem o pescoço revestido por uma espécie de couro duro. Sua mordida é muito forte e só larga a presa quando a cabeça é decepada. Aterroriza as redondezas porque ataca com fúria, como se estivesse enlouquecido. Embora pequeno, é muito ágil, o que dificulta as tentativas de atingí-lo com arma de fogo.

Outro mito é o Rasga-mortalha, ave de mau agouro, ou seja, a coruja, que prenuncia mortes por onde passa, a emitir o som de seda rasgada, o que lhe dá esse nome.

Outra lenda acreana é a do Cipó Hoasca, ou Ayahuasca, que se apoia nos troncos das árvores, enroscando-se nelas e alcançando grandes proporções, o que acontece, geralmente, às margens dos igarapés.

Uma vez adulto, este cipó emite ruídos misteriosos, lembrando um tambor. Ruídos incrementados por uma zoeira de vozes ininteligíveis. As pessoas atraídas por aquele som contam que, paradoxalmente, quando se situam nas proximidades da árvore que sustenta o estranho cipó, a tal zoeira não é ouvida.

O Cipó Hoasca dá lindas flores brancas e, "dele, é extraída uma beberagem chamada Daime, que é tratada convenientemente para que provoque certos efeitos desejados e, atualmente, é usada em movimentos de fundo religioso".

Fonte:
Enviado pela autora.
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: 
publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 23

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 78

Regalos do verão na florestinha. Frutos vários - uvaia, pitanga do litoral, araçás, guavirova... Ventinhos salutares agitam suavemente a galharia.  A tarde vai longe, o sol se amoitando no ninhal do horizonte.

Nestes tempos o bosco tem os sons estridentes das cigarras, mais propriamente dos machos chamando as fêmeas.  A sonoridade é emitida pelo bater das asas, e ao final do processo o macho sofre uma metamorfose, saindo do esqueleto (exoesqueleto) para seguir em desenvolvimento na continuidade da vida.  

Será que nós humanos também temos uma casquinha que vem de berço e a perdemos para podermos nos desenvolver ao longo do tempo neste viver-vida-nossa? Será?   

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Guerra Junqueiro (A criança, o anjo e a flor)

Quando morre uma criança, desce um anjo do céu, toma-a nos braços, e desdobrando as asas imaculadas, voa por cima de todos os sítios que ela amara durante a sua pequenina existência; o anjo abaixa-se de quando em quando para colher flores, que leva a Deus, para que floresçam no paraíso ainda mais belas do que tinham sido na terra.

Deus recebe todas as flores, escolhe uma delas, toca-a com os lábios, e a flor escolhida, adquirindo voz imediatamente, começa a cantar os coros maviosos dos bem-aventurados.

Ora escuta o que disse o anjo a uma criança morta, que o estava ouvindo como num sonho.

Pairaram primeiro sobre a casa em que a criança brincara, e depois sobre jardins deliciosos, cobertos de flores.

“Qual é a flor que desejas para plantar no paraíso?” perguntou o anjo.

Havia nesse jardim uma roseira que tinha sido direita, vigorosa, magnífica; mas quebraram-lhe o pé, e todos os seus ramos cheios de botõezinhos lindíssimos pendiam estiolados para o chão.

“Pobre roseira! disse a criança ao anjo; vamos buscá-la para que possa reflorir no paraíso.”

O anjo foi buscá-la, e abraçou a criança. Colheram muitas flores brilhantes, boninas humildes e violetas silvestres.

A colheita estava terminada, e contudo não voavam ainda para Deus. Caiu a noite silenciosa, e a criança e o seu guia Divino andavam ainda por cima da grande cidade. Atravessaram uma das ruas mais estreitas, cheia de cacos de louça, de vidros partidos, de farrapos, de toda a casta de imundície. Entre estes destroços distinguiu o anjo um vaso de flores com a terra pelo chão, onde pendiam as longas raízes de uma flor dos campos, já murcha, e que parecia não poder reverdecer: tinham-na atirado para a rua como inútil e morta.

– Vale a pena levantá-la disse o anjo; levemo-la, e pelo caminho, voando, te contarei a história da florzinha. Lá ao fundo, lá ao fundo, naquela rua estreita e tortuosa, morava um pequerrucho, uma criança miserável e doente. Quando se sentia melhor, o mais que podia conseguir era passear com a ajuda das muletas ao longo de seu pequenino quarto. Em certos dias de verão os raios do sol visitavam-lhe a alcova, durante meia hora. Então a criança sentada à janela, aquecida pelo sol, sem o cansaço do andar, imaginava-se passeando; não conhecia da floresta, da fresca verdura da primavera, senão o ramo de faia, que uma vez o filho do vizinho tinha colhido para ele. Suspendia por cima da cabeça o ramo verdejante, e, supondo-se debaixo das árvores abrigadas do sol, sonhava com o doce canto dos passarinhos. Um dia o filho do vizinho trouxe-lhe flores do campo, e por acaso entre elas apareceu uma que tinha ainda raízes; o pequerrucho plantou-a num vaso, e pôs-a à janela, junto da cama. A flor plantada por mão abençoada, cresceu, tornou-se grande, e todos os anos dava novas flores. Era o seu jardinzinho, o seu único tesouro neste mundo; regava-a, tratava-a, adorava-a; fazia-lhe aproveitar os raios do sol até ao ultimo. A flor aparecia-lhe em sonhos, porque era para ele que floria, que espalhava o seu aroma e ostentava as suas cores; quando se sentiu morrer foi para ela que se voltou.

“Faz hoje um ano que esse pequerrucho habita no paraíso; a sua querida flor, esquecida à janela desde então, murchou, estiolou-se e atiraram-na à rua finalmente. E contudo esta flor quase seca é o tesouro do nosso ramalhete. Deu mais prazer e alegria do que todos os canteiros de um jardim realengo.”

– “Como sabes tu isso?” perguntou a criança, que o anjo levava para o céu.

- Sei, respondeu o anjo, porque era eu o pequenino doente que andava em muletas; como não havia de eu reconhecer a minha flor bem amada!

A criança abriu os olhos, e viu a radiosa figura do anjo quando entravam no céu onde tudo era alegria e felicidade. Deus pegou nas flores, levou-as ao coração, mas a que ele beijou foi a florzinha silvestre, desprezada e murcha: a flor adquiriu voz imediatamente, pôs-se a cantar com as almas que rodeiam o Criador, umas junto dele, outras ao longe, formando círculos que vão aumentando sucessivamente, multiplicando-se até ao infinito, povoados de seres inteiramente felizes, cantando todos harmoniosamente desde a criança abençoada até à humilde florzinha do campo, levantada do lodo, dentre os tristes despojos da rua sombria e tortuosa.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Guerra Junqueiro. Contos para a Infância. Publicado originalmente em 1877.

Gêneros Poéticos (Sextilhas)

Estilo muito popular na Literatura de Cordel. Sextilha, estrofes de seis versos, com versos de sete sílabas poéticas. Obrigatoriamente, o segundo, o quarto e o sexto versos devem rimar entre si . Os versos 1, 3 e 5 não precisam rimar.


A. A. DE ASSIS
Maringá/PR


Enlaçado nos meus laços
de amizade e de afeição,
vou seguindo vida afora
numa alegre comunhão
em que a cada amigo trato
qual se fosse um meu irmão.
= = = = = = = = =

ANTONIO NUNES DE FRANÇA
Alexandria/RN, 1938 – 2018, Severiano/RN


Em Limoeiro do Norte,
a tarde mudou de clima;
assim houve duas chuvas:
uma d’água, outra de rima;
uma de cima pra baixo,
outra de baixo pra cima
= = = = = = = = =

DELCY CANALLES
Porto Alegre/RS


O amor,  em verdade, encerra
 o  verdadeiro  viver!
 Quem ama e se faz amado,
 sabe, ao outro, compreender
 e  vive  uma  vida plena,
 num contínuo  renascer!
= = = = = = = = =

FAGUNDES VARELA
Rio Claro/SP, 1841 – 1875, Niterói/RJ


Amo o cantor solitário
Que chora no campanário
Do mosteiro abandonado,
E a trepadeira espinhosa
Que se abraça caprichosa
À forca do condenado

Amo os noturnos lampírios
Que giram, errantes círios,
Sobre o chão dos cemitérios,
E ao clarão das tredas luzes
Fazem destacar as cruzes
De seu fundo de mistérios

Amo as tímidas aranhas
Que lacerando as entranhas
Fabricam dourados fios
E com seus leves tecidos
Dos tugúrios esquecidos
Cobrem os muros sombrios

Amo a lagarta que dorme,
Nojenta, lânguida, informe,
Por entre as ervas rasteiras
E as rãs que os pauis habitam
E os moluscos que palpitam
Sob as vagas altaneiras

Amo-os, porque todo o mundo
Lhes vota um ódio profundo,
Despreza-os sem compaixão
Porque todos desconhecem
As dores que eles padecem
No meio da criação.
= = = = = = = = =

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Podemos trocar carinhos
por e-mails todo dia,
e podemos divulgar 
mensagens, versos, poesia,
repartindo com o mundo
a nossa eterna alegria!
= = = = = = = = =

HÉLIO PEDRO
Caicó/RN


Surge em cada alvorecer,
o sol que cumpre o seu plano
de aquecimento ao planeta
sem que falte ano após ano,
mas no mundo o que mais falta
é o calor do ser humano.
= = = = = = = = =

LEANDRO GOMES DE BARROS
Pombal/PB, 1865 – 1918, Recife/PE


Meus versos inda são do tempo
Que as coisas eram de graça:
Pano medido por vara,
Terra medida por braça,
E um cabelo da barba
Era uma letra na praça.
= = = = = = = = =

MILTON SEBASTIÃO SOUZA
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS


O sextilheiro padece
para se manter na trilha,
ou a internet demora
para trazer a sextilha,
ou, quando menos espera,
traz duas, três, uma pilha…
= = = = = = = = =

THALMA TAVARES
São Simão/SP


Descobri um grande amor
– meio século já faz -
e ainda hoje é o motivo
que sempre alegre me traz,
por ser a troca constante
de ternura, amor e paz.
= = = = = = = = =

VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR


Não revelo meu segredo,
se temo ventos ao léu…
Relâmpago é luz que acende;
se um trovão faz escarcéu,
eu penso: é festa de arromba
dos anjinhos, lá no céu!
= = = = = = = = =

WALMAR COELHO
CE


O amor é uma plantinha
Que medra no coração!
Com o afeto se avizinha,
Bem querer ou ilusão,
Vive e cresce, não sozinha,
Nem prescinde afeição.

XXVII Jogos Florais de Porto Alegre (Prazo 30 de Junho)


Concurso de Trovas

ÂMBITO: NACIONAL/INTERNACIONAL (exceto Rio Grande do Sul)

Categoria: Veteranos e Novos Trovadores

Tema: ARTE (líricas/filosóficas)

ÂMBITO: NACIONAL/INTERNACIONAL (exceto Rio Grande do Sul)

Em humorísticas não existe distinção de categorias

Tema: MODELO (humorísticas).

ÂMBITO: ESTADUAL (RS)

Tema: PRAÇA (líricas/filosóficas)

Tema: FEIRA (humorísticas)

ÂMBITO: ESTUDANTIL

(para alunos da escola da ACM – Associação Cristã de Moços, participantes das Oficinas de Trova/2023)

Tema: CIDADE (líricas/filosóficas)

Máximo 02 (DUAS) trovas (inéditas) por tema em todos âmbitos.

ENVIO:

Nacionais/Internacionais:


concursosubtpoa@gmail.com

Estaduais:

liliasouza@uol.com.br

Enviar a trova no corpo do e-mail.
Acima da trova, coloque o tema;
abaixo, coloque a categoria a que  concorre, endereço postal e telefone.

Prazo para remessa: 30 de junho de 2023

A premiação, composta de troféus e diplomas, será outorgada quando das festividades, a se realizarem nos dias 27, 28 e 29 de outubro/23.

Haverá um número básico de 5 Vencedores, 5 Menções Honrosas e 5 Menções Especiais, a critério da Comissão Julgadora, em cada categoria.

Não haverá repetição de troféu, na mesma categoria.

Aparecido Raimundo de Souza (Página de duas vidas)


“Então num susto percebi que meu corpo e minha alma tinham sobrevivido.”
Clarice Lispector

ELA SÓ QUERIA UM LAR. Um amor dentro dele, para chamar de seu. Em busca desse amor, veio de longe. Deixou a família, abandonou a cidade pequena do interior de Minas, deu adeus aos amigos... e partiu. Seguiu radiante, jubilosa e refestelada, envolta numa quimera fermentada com alto teor de um sucesso dúbio que achava que tivesse ao alcance das mãos. Ao chegar na localidade onde morava, o seu futuro amor descobriu, entre lágrimas e dissabores, desencantos e desencontros, que esse amor, a fonte que reproduzia a chama vital, não era real.

O amor que ela almejava, se fazia platônico. Não correspondia, de forma alguma, às suas expectativas. Apesar disso, tentou várias vezes ser feliz. Fez de tudo. Buscou o impossível. Ultrapassou a ponte movediça do além da conta, a passagem que interliga a afeição profunda (ainda que fortuita e problemática) para dar frontalmente com o incerto e o tenebroso, passando a conviver com o algaraviado. Acabou fazendo das tripas uma esquizofrênica decepção.

Todavia, o seu “Love”, meio que alienígena, louco de pedra, vazio de alma, oco de sentimentos, jogou tudo para o alto. Macambúzia, como se saída, de repente, de um festim macabro, sem ter como continuar vivendo uma mentira insana de conotação progressiva, regressou para a cidade-berço de onde viera. Foi-se, coitada, magoada, esvaziada, perdida em seu próprio mundo de emoções não vividas, tampouco vivenciadas.

Entretanto, apesar dessa estranheza claustrofóbica, tipo uma dissociação inconsequente e ultrajante, algo dentro dela não se conformava. O amor imerso em paixões desconexas, atrelado a milhões de mimos guardados, alimentava o desejo ardente de estar perto dele. Verdade, que às vezes, o seu amor se fazia bonançoso. Em outras, ele a tratava como se fosse uma qualquer. Um lixo, uma peça de roupa velha que se deixa de lado.

Apesar dos pesares, e de lhe vir à mente as palavras dele, palavras ásperas, repetitivas como saídas de um mantra mal ensaiado, “não quero morar com ninguém, quero viver sozinho”, ela não se entregava à realidade que se lhe mostrava brutal, onde todo um contrário repleto de negras nuvens cobrindo seu porvir, anunciava um forte temporal sinistramente avassalador.

Agredida moralmente por todos esses tapas e bofetões em seu rosto, ungido com o desprezo do descaso, "usque" (até) de uma catástrofe anunciada, ela deu a louca e resolveu partir para dar uma nova chance a ele e, claro, a si mesma. Retornou.  Ele, levado pela mesma e antiga loucura insana, fora dos pilares que sustentam a realidade, se camuflou a uma doidice despropositada. O receio seguiu firme, sério, conclamando a instauração de um futuro caos. A mesma pusilanimidade com a outra face oculta voltava à tona.

Com ela, vinha, de roldão, escorrendo como suor por sua epiderme, a frase que ela pensava não fosse jamais ouvir: “não quero morar com ninguém, quero viver sozinho”. Palavras amargas jogadas em seu rosto. Um semblante terno, meigo, gentil, uma tez que só queria ser amada, tocada, beijada, acarinhada e ele, cego, não das vistas mas, igualmente, de âmago vazio, nunca entendeu verdadeiramente a complexidade dessa vida que só queria na verdade ser dele.

E não só ser dele. De viver para ele, ter com ele uma eternidade que por puro azar, somente se entrelaçava sozinha dentro do seu espírito de gostar infindo. Ele, intocável, soberbo, sem noção, idiotizado na sociedade da sua fraqueza, não percebeu (ou não quis dar o braço a torcer), seguiu idêntico atalho. Quando descobriu que ela se constituía verdadeiramente no elo perfeito que o levaria aos píncaros da plenitude, se deu conta que o tempo... ah, o tempo, esse havia se passado.

No lugar dele, deixou plantado um adeus estranho, inexorável, um até nunca mais sem volta, sem talvez os benfazejos de um novo amanhã. As impressões do amor que ela queria dar para ele viraram uma espécie de via indexada e sem retorno. Ficou retido nessa senda a sua enorme solidão. Ele se embruteceu. Não mais sorri, deixou de ser expansivo. E quando imprime um gesto de agrado, o faz, movido em pose maquinal, em trejeito temporário, frio, gélido. Ainda agora, ele debalde, tenta reencontrar os caquinhos da imagem do seu íntimo que se rompeu em mil fragmentos.

Em algum lugar por onde passou, minúsculos cavacos (farpas) ficaram enterrados, submersos num distante aquém do intransponível. Sabe, conscientemente, que não mais terá de volta às mãos, o espelho inteiro e intacto, que chamejava lindamente o seu paraíso sem máculas.  Na verdade, ele não distingue exatamente onde os carreiros (caminhos) se divorciaram. Sabe, porém, que ficou de tudo uma dor ingrata, um incômodo nojento, uma importunação pegajosa.

Ele conscientiza que o destino lhe fechou diante da sua opulenta imbecilidade, a porta que daria acesso ao voo da empolgação da paz interna, da sorte, da ventura, enfim, ele tem pleno conhecimento que o avião partiu sem que tivesse embarcado. Mesmo que adentre outra aeronave para seguir logo atrás, não conseguirá alcançar o ponto nevrálgico e pérnicie (ruína) na sequência do almejado. Em razão disso, recorda a todo instante os momentos que passou ao lado dela.

Vem à lembrança como água jorrando em nascente, os passeios que nunca foram dados, as deambulações que nunca se concretizaram ou melhor, que não se ampliaram além da pizzaria e do churrasquinho à noite, variando, ainda, essas breves marchas, às idas e vindas ao supermercado, ou ao banco, começo de mês, quando ela precisava sacar a sua aposentadoria.  De todo esse estrago, restou o “apartado”. Na bifurcação impiedosa do destino, cada um seguiu o seu lado escolhido.  

Ela e ele vivem o desatino cruel de terem seu próprio “armagedon” em tempo imediato. Ela se descobriu portadora de cardiomegalia (“coração grande”). Ele se pega ressabiado às voltas com uma “hiperplasia” (hipertrofia da próstata). Para ambos, grosso modo, uma espécie de atrofia decadente a ser vivida a longo prazo, para o resto de seus dias se faz latejante. Os dois se falam, trocam mensagens via WhatsApp.

No fundo, ele e ela —, ela e ele, são dois mortos insepultos, vivendo memórias de cicatrizes antigas. Cada um a seu bel prazer, tentando dizer a si mesmo, a todo instante, que o passado, num sopro milagroso do divino se foi para sempre, se desfraldou além fronteira, fugiu incólume, desapareceu temeroso, evaporou medrado, desassomou batendo em retirada. Ele e ela —, ela e ele vivem, ou melhor dito, vegetam na pele, a essência catártica de uma tragédia grega de um tempo desmesurado.

Nada para eles é apaziguador. Ao contrário, a longitude, a cada dia, aumenta o sofrimento. Se avolumam as tristezas, faz crescer, de modo centuplicado o pavor, engrossando a insegurança e, via igual, progredindo a largos passos ampliando o caos para que o vindouro se torne lúgubre e próximo de uma ruptura sem retorno. Viver um amor assim, bonito de se ver, porém apartado pelo longor (lonjura) da distância, não é outra coisa senão um infindável jogo de desprazeres obumbrados de cafifes (dificuldades) e desditas (infortúnios), azares e desgraças a se perderem no “horizonte desparalelado” de cada um algemado, a bem da verdade, em grossas correntes de um mundinho particular oculto bem longe da nossa conhecida realidade terrena.

Fonte:
Texto e foto enviado pelo autor

quarta-feira, 15 de março de 2023

Adega de Versos 102: Paulo Roberto Oliveira Caruso

 

George Abrão (Crendices da minha infância)

As crianças de hoje, tão instruídas pela Internet e pela mídia, já em quase nada mais creem, para elas tudo é natural e cientificamente comprovado. Mas, quando eu era criança (há muito tempo!), era compelido a aceitar muitas crendices, e as aceitava. Talvez, algumas delas fossem para que eu não fizesse nada errado ou perigoso, outras para que não cometesse gula ou outros pecadilhos. Lembro-me de tantas coisas que hoje podem soar inocentemente, mas que para mim eram regras de vida:

Na mesa de café, se por um acaso, eu estivesse comendo um pedaço de pão e este caísse ao chão, vovó me dizia:

- Recolha e beije o pão, menino, pois assim nunca lhe faltará alimento e também porque no pão está Nosso Senhor Jesus Cristo.

E eu, obedientemente, recolhia o pão e o beijava.

À noite, quando nos sentávamos na calçada frontal de nossa casa e eu começava a apontar as estrelas com os dedos, lá vinha recriminação:

- Não faça isso, pois irão nascer verrugas em suas mãos!

E eram tentas as recomendações:

Quando eu brincava de pular carniça com os meus amigos, mandavam-nos parar, pois criança que é pulada para de crescer; se assobiasse à noite chamaria cobras; não se podia deixar o chinelo virado, pois assim o pai ou a mãe poderia morrer; e comer manga com leite? Fazia muito mal; pepino com leite era veneno (se fosse assim a raça árabe teria se extinguido, pois sempre como pepino com coalhada e estou vivo); se eu comesse banana à noite, passaria mal (e o estômago tem relógio?); se eu cruzasse com um gato preto na rua teria sete anos de azar (e o que tem a cor do gato com isso?); se passasse por debaixo do arco-íris eu viraria mula sem cabeça (e como passaria por baixo de um fenômeno luminoso?); e a melhor de todas: se eu cantasse na quaresma viraria mula de padre (seria a mula do padre diferente das outras?).

E com a casa, todos os cuidados eram poucos:

Se quebrasse um espelho teria sete anos de azar; uma vassoura colocada atrás da porta espantava as visitas chatas; se jogasse sal no fogo espantaria o azar; colocar um elefante (enfeite) sobre um móvel traria dinheiro, só que o bicho deveria estar com a tromba erguida e com o traseiro virado para a porta; jamais um guarda-chuva deveria ser aberto dentro de casa, pois isso traria infortúnios e problemas familiares.

E em minha vivência:

- Se eu, ao mentisse, que fizesse figa ou cruzasse os dedos atrás, nas costas, pois assim não seria condenado pelo pecado; na festa do meu aniversário eu devia desembrulhar o presente, colocá-lo sobre a cama e jogar o papel debaixo dela, para ganhar mais; quando estivesse chovendo muito e eu desejasse que a chuva passasse, deveria jogar uma peneira no meio do quintal ou colocar um ovo na janela para Santa Clara; e quando eu perdia um dente deveria colocá-lo no parapeito da janela e dizer: - “Ratinho, ratão, leve este dente e traga-me “cincão” (cinco cruzeiros, na época)”. Às vezes ele trazia!

Quando eu saia para a rua, minha mãe sempre recomendava:

- Filho, não passe por debaixo de escada, dá azar! (e até poderia dar, se uma lata de tinta ou uma ferramenta caísse sobre a minha cabeça).

E sete era o número da mentira.

E agosto o mês do desgosto.

E sol com chuva previa casamento de viúva.

E sexta-feira 13? Dia aziago.

E a melhor crendice de todas:

A mulher que tem o segundo dedo do pé maior que o primeiro, manda no marido! (Por isso, meus amigos solteiros, antes de casar olhem bem nos pés das namoradas. Para os que já são casados não tem mais jeito, o negócio é obedecer!)

Fonte:
Enviado pelo autor.
George Roberto Washington Abrão. Momentos – (Crônicas e Poemas de um gordo). Maringá/PR, 2017.

Carolina Ramos (Poesias Esparsas) 9


ANSEIO

Por mais que em convulsões o mundo trema,
rumo ao caos que implacável nos atinge...
Por mais, seja negado o suave lema,
"Paz e Amor", que de sangue hoje se tinge...

Por mais que o desencanto fel esprema
nas almas secas de quem já nem finge,
creio sempre num Deus, que é Luz suprema!
Sol que clareia o Bem... e o Mal restringe!

E mesmo envolta cm sombras de amargura,
mesmo que os dias sigam mais tristonhos
e a vida cada vez menos segura,

fujo à incerteza que o momento traz,
mantendo vivo, a incrementar meus sonhos?
um doce anseio de encontrar a Paz!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

GLÓRIA À PADROEIRA

Gloriosa Virgem Mãe Aparecida,
nossa Nação quer luzes e padece!
E se a teus pés se curva, enternecida,
de joelhos canta e o seu cantar é prece!

Virgem Morena, mais tranquila é a vida
de quem a bênção tua… acalma e aquece!
E este Brasil tão grande, Mãe querida,
feliz menino, ao te louvar, parece!

Teu manto azul — de beijos relicário —
que nos cerca de paz a ampla fronteira,
a esperança estendida ao mundo hostil!

Cada lar seja sempre o teu santuário,
ó Virgem Santa, perenal padroeira
da imensa realidade que é o Brasil!
= = = = = = = = = = = = = = = = = =

O POETA NÃO MORRE...

O Poeta não morre?! — Fantasia!
A dor calcando ao peito, amargurado,
morre, sim, o Poeta, a cada dia,
em cada sonho seu que é destroçado!

Morre ao pensar que a chama da Poesia
morreu também - se morre o ser amado!
E cria no presente a idolatria
de fazer do passado altar sagrado!

Morre o poeta, sim... se a vida o esquece!...
Mas se cantam seus versos... ergue os ombros,
canta feliz e vivo permanece!

Tão vivo como sempre, segue a esmo:
- Fênix, renascida entre os escombros,
a surpreender a todos... e a si mesmo!
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ORQUÍDEA

Presa ao tronco, sob alta ramaria,
fidalga, a orquídea viça. Ao seu encanto,
pasmam os colibris e se extasia
a noite que a abrilhanta com seu pranto!

Espiritual, ao solo repudia
ansiando pelo espaço, no mais santo
desejo de ser pura. A fantasia
lhe esmera a forma e lhe colore o manto.

Flor sonhadora, em busca do infinito,
reclusa no seu páramo selvagem,
guarda o fascínio e a sedução de um mito!

E em sua altiva solidão de asceta,
retrata a orquídea a mais perfeita imagem
da alma utópica e lírica do poeta!
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PRECE DE PAZ

Ah! Senhor... Sei que tanto já me deste!...
Viver é bom... E eu Te agradeço... mas...
dá-me um cantinho na Mansão celeste,
onde eu possa, afinal... achar a PAZ!

A PAZ sem restrições... PAZ inconteste
que só benesses, aos que a abraçam, traz!
— A PAZ da mansidão, que não investe
além das proporções do que nos dás!

E que seja essa Paz intensa e pura!
PAZ que as agruras da alma anestesia!...
Paz que eu provei nos braços da ternura!...

— Dá-me, Senhor, a Paz de quem perdoa
a Vida cruel, que num tristonho dia,
a invejar minha Paz... Sem dó roubou-a!...

Fonte:
Enviado por Jean.
Jean Carlos Gomes (org.). XIII Coletânea Século XXI. Volta Redonda/RJ: Gráfica Drumond, 2022.

Leda Maria Bechara (O fim da festa)

Amanhece. Rita se espreguiça preparando o corpo para mais um dia de expediente. E uma tarefa árdua, porém gratificante. Levanta-se já animada e se banha, enquanto sua mãe prepara seu café. Afinal o dia será puxado. Amanhece também para Beto e Toninho, no apartamento em que moram dividindo despesas. Levanta, Beto! Diz Toninho apressado: Temos que passar ainda na lavanderia para pegar as roupas que vamos precisar. Beto abre os olhos sonolentos e se espreguiça longamente. Num pulo chega ao banheiro e volta de lá já banhado e vestido. O café é na padaria em frente. Estas três pessoas formam um grupo de amor, consciência, altruísmo e abnegação. Seu trabalho: Animação de festa infantil; sua doação: trazer de volta esperança num hospital de crianças acometidas pelo câncer.

Quantos pequeninos já felizes faziam sorrir e quantos outros tornavam felizes no seu compromisso com a alegria. Chegaram a lavanderia e de lá correram para o hospital. Vestiram-se apressadamente e maquiaram-se na mesma velocidade. Rita magrinha e de estatura mediana vestia uma fantasia de palhaço, cor de rosa com grandes pompons lilases. Combinava uma peruca lilás anelada, um chapeuzinho rosa choque e uma grande flor amarela presa a ele. Toninho alto e gordinho vestia uma camisa xadrez, uma enorme gravata borboleta, uma calça de cetim amarelo ouro e um sapato de palhaço de uns 40 cm de comprimento, na cabeça um minúsculo chapéu vermelho. Beto envergava uma camisa de cetim vermelha, gravata amarela e uma calça larga com bambolê na cintura, Esta em xadrez vermelho e branco, os suspensórios eram vermelhos. Na calça, Beto colocava pequenos brinquedos que na hora da "festa" distribuía às crianças. A maquiagem era apropriada e o nariz vermelho e redondo completava o traje. Enquanto se caracterizavam iam assumindo a postura da alegria própria daqueles personagens. Riam, modificavam a voz, caiam, viravam cambalhotas; Assim adentravam pelas alas onde as crianças se achavam internadas. Algumas sentadas na cama, outras em cadeira de rodas e um suporte com soro sempre ao lado delas. Outras permaneciam deitadas, desanimadas; a maioria tinha a cabeça sem cabelos o que às vezes dificultava saber se era um garoto ou uma garotinha.

O olhar, triste e sofrido, a princípio ficava indeciso. Aos poucos, porém era como se uma luzinha fosse se acendendo e a cada cambalhota, balão que ganhavam a cada palhaçada, o sorriso que ia aparecendo, a princípio tímido, se tornava uma gargalhada gostosa. Era como se o tempo abrisse uma pausa e o antes e o depois desses momentos de alegria não existissem.

Os três amigos se superavam a cada vez que ali retornavam. Sentiam-se no céu cercado por anjos, longe da dor e do sofrimento. Os pequenos pacientes sentiam-se da mesma forma. A vida voltava a ter sentido, e o amor e a felicidade, as únicas coisas que importavam. Deus estava ali com sua misericórdia. Naquele dia uma enfermeira pediu silencio para que todos pudessem ouvir uma boa noticia. Trazia pelas mãos uma menininha pálida e magrinha cujos cabelos começavam a nascer. Anunciou então que Vera estava de alta curada e ia hoje de volta para casa. Uma esperança iluminou seus olhinhos atentos e todos aplaudiram.

Após os aplausos no breve silêncio, ouviu-se ao longe, no CTI, o apito intermitente do aparelho cardiológico anunciando que um coração parava de bater. Felizmente as crianças não sabiam o significado daquele ruído. Os três amigos entreolharam-se, mas como bons palhaços, continuaram seu numero.

Aqui fora os risos, a alegria (apesar das dores), a festa da esperança. Lá dentro... a despedida da festa da vida.

Fonte:
Enviado por Lucília Trindade Decarli.
Messias da Rocha. Múltiplas palavras: volume III. Juiz de Fora/MG: Ed. dos Autores, 2022.