sábado, 1 de abril de 2023

Aparecido Raimundo de Souza (Bob)

SEMPRE QUE SE ENTREVISTAVA com seu psiquiatra, Taborda falava de seus problemas, de suas angústias e aflições e acabava por tecer longos comentários a respeito do pequeno Bob, um menino de dez anos. A grande preocupação do paciente, não se prendia aos problemas pessoais que enfrentava. Seus medos e temores se faziam outros: estavam voltados para o bem estar do tal garoto, que vivia com a mãe, uma jovem solteira e desempregada. 

Taborda, por sua vez, morava sozinho e tinha a senhora sua mãe em idade bastante avançada. Logo a velhinha completaria noventa e oito anos e ele, passava da casa dos sessenta. Se viesse a faltar, de repente, o menino Bob, coitado, ficaria desamparado, embora morasse com a genitora. Sem ele por perto, imaginava que o piá (garoto) poderia cair em mãos de estranho, o que certamente transformaria a sua vida num verdadeiro inferno. 

Somente em pensar nessa hipótese, Taborda ficava temeroso e bastante preocupado com seu futuro. Não queria nada de ruim para o pequeno. O infante não era seu filho, mas o amava como se fosse. Por essa razão, trabalhava duro em dois empregos distintos. E tudo o que ganhava, revertia para melhorar as condições de Bob, que perdera o pai muito cedo num acidente de moto e, desde então, ficara sob a guarda e responsabilidade da Eunice Fininha, a mãe, uma jovem de vinte e nove anos. 

Taborda não tinha caso com essa moça. Ajudava-a com dinheiro, roupas, alimentos e remédios, por ter bom coração. Agia como um bom samaritano, sem pedir ou querer nada em troca. O doutor Frestrincheiquime, psiquiatra de Taborda, de longos janeiros, sabia de toda a história relacionada ao menino. E mais que médico da criatura, se transformara em seu amigo particular. Dessa forma, quando chegava ao consultório, o doutor o ouvia pacientemente, sem interrupções. 

De vez em quando, a fim de não cair no marasmo, ou correr o risco de “pegar no sono”, fazia uma pergunta nova (embora soubesse de antemão qual seria a resposta), objetivando passar o tempo e a coisa não ficar piegas demais. Numa dessas entrevistas, Taborda segredou ao psiquiatra:

— Precisa ver que maravilha. Bob já sabe navegar na Internet. Fez um e-mail para mim. Imagine, Frestrincheiquime. Um e-mail. E eu, que mal sei ligar o computador. (Risos). Esse moleque vai longe. 

— Você comentou, na última vez em que esteve aqui, que Bob é bom em matemática?

— Perfeito. Nasceu com o dom dos números...

— Como foi mesmo a história dos camelos?

— Três irmãos discutiam acaloradamente sobre como dividiriam trinta e cinco camelos entre si. Um teria direito apenas a metade, o outro a terça parte e o mais novo, ficaria com a nona parte. Trinta e cinco divididos por dois, dá dezessete e meio. A terça parte e a nona parte de trinta e cinco, também não são exatas. (*)

Taborda levantou da cadeira, acendeu um cigarro, foi até o envidraçado. Olhou demoradamente para a cidade, quarenta e cinco andares abaixo de seus pés. Após algumas tragadas retornou ao seu assento e indagou: como proceder? Saberia fazer essa conta, meu caro doutor?

— De forma alguma. Tenho aversão aos números, Taborda.

— Faço minha as suas palavras. Confesso que não sei juntar dois mais dois. Bob, ao contrário, nossa! Bob fez a divisão na hora, num abrir e piscar de olhos... eu e a mãe dele, a Eunice Fininha, ficamos paralisados, como dois bobocas diante de uma “resma de leões famintos” prestes a nos devorar sem piedade.  

O médico insistiu batendo na mesma tecla de todas as consultas: 

— Gostaria como já lhe pedi trocentas vezes, conhecer o pequeno Bob. 

— Por certo. Não faltará oportunidade, meu caro Frestrincheiquime. Asseguro que não faltará oportunidade...

O tempo continuou passando. E as sessões acontecendo, sem mudanças no quadro. Tudo corria às mil maravilhas. Contudo, toda vez que o esculápio insistia em conhecer o pequeno Bob, Taborda saia pela tangente, desconversava, mudava de assunto. 

O doutor, diante disso, passou a desconfiar. Estava claro. Havia alguma coisa errada entre seu paciente e o tal do Bob. Precisava tirar a limpo e pôr às dúvidas às claras. Ligou para a mãe dele. Dona Espingardina generosamente recebeu o galeno com um abraço fraterno e o convite para se acomodar na sala e tomar uma xícara de café que ela havia mandado a empregada fazer. Por telefone, um dia antes, o doutor combinara que chegaria após a saída de Taborda para o trabalho. Taborda não morava com a mãe. 

Residia próximo dela, duas ruas abaixo para ser mais preciso. Porém, Taborda não seguia para a empresa sem antes passar pela residência da anciã, tomar o dejejum com ela, pedir a benção e dar um beijo de bom dia. Assim foi: 

— A que devo sua amável visita, doutor? Algum problema com meu filho?

O clínico se abriu num sorriso alegre e cativante:

— Em absoluto, senhora. Só queria lhe dar um alô e ver como andam as coisas.

Dona Espingardina, entretanto, não engoliu a explicação:

— Doutor, pelos meus anos de experiência, tenho plena convicção de que o senhor não veio até aqui exclusivamente para uma visita cordial. Não tenho seu estudo, nem desfruto da sua visão de capacidade, mas posso ver em seus bugalhos que esconde um segredo. Gostaria que se abrisse comigo. Algo errado com meu Tabordinha?

— A senhora tem toda razão, dona Espingardina. Vim aqui com outro propósito.  Conhecer o pequeno Bob...

A velhota se espantou com o nome e encarou o doutor além das lentes grossas que ele usava:

— Bob? Quem é Bob, doutor?

O doutor Frestrincheiquime passou, então, a relatar em breves palavras, as seções com Taborda. Finalizou explicando o capítulo Bob:

— Não sei quem é essa tal de Eunice Fininha e, menos ainda, o tal do Bob, doutor. Meu filho nunca comentou. Tem certeza de que é esse o nome da beldade e do moleque? Creia, meu nobre, se meu Tabordinha tivesse um caso com alguém, eu seria a primeira a tomar conhecimento. Ele nunca me escondeu coisa alguma.  

O médico concluiu que a velhota literalmente situada no tempo e no espaço, se fazia de sonsa. Mentia descaradamente. Por óbvio, escondia sujeira muito séria de seu rebento. O que, nessa altura do campeonato? Possivelmente algo que não pudesse ser revelado por um entrave qualquer que ele desconhecia. Aceitou uma segunda rodada de café, papeou um pouquinho mais. Falou de trivialidades e, com uma desculpa bem convincente, minutos depois, deu por encerrada a entrevista. 

Na seção seguinte, depois de um longo papo, nele incluindo Bob, evidentemente Frestrincheiquime se mostrou austero a ponto de enroscar os fios de seu bigode com os de Taborda:   

— Você é meu paciente faz cinco anos. Mais que isso, se tornou meu amigo. Amigo e parceiro. Precisamos agora, esclarecer, de uma vez por todas, um ponto obscuro que até este momento tem estado fora de foco...

— Que ponto obscuro é esse, meu amigo. O que é que está fora de foco?

— Bob. Quero conhecer o Bob.

Taborda ficou sério e pensativo:

— Não chegou a hora, ainda. No momento...

—...Taborda, esta é a hora. Traga Bob aqui para que eu o conheça, ou darei ordens expressas à senhorita Xicória, minha secretária, para que não agende suas próximas consultas. Ademais, lembre-se de um detalhe: estamos terminando o mês e você tem consciência que careço renovar o atestado de capacidade mental para a sua empresa. Farei isso se você trouxer Bob até mim. Fui claro?

— Claríssimo. Falo tanto no menino esses anos todo e você nunca o viu... 

— Então?

— Que tal na sexta?

— Para mim está ótimo. 

— Combinado.

— A que horas?

— As quatro, está legal para você?

— Perfeito.

No dia e hora aprazados, a bela senhorita Xicória interfonou anunciando a chegada de Taborda. 

Antes de mandá-lo entrar no consultório, Frestrincheiquime indagou, pelo interfone, se o paciente se fazia acompanhar de alguém:

— Ele está só, doutor.

— Senhorita Xicória, não há uma criança com ele, digo, um menino?

— Não, doutor. A propósito, acho que está acontecendo alguma coisa de estranho com o senhor Taborda... 

— Exatamente o quê? — Procure ser mais objetiva... 

— Ele está conversando animadamente com uma pessoa ao seu lado...

— Algum paciente à minha espera?

— Não, doutor, o seu Taborda é o derradeiro.

— Então com quem ele bate papo, senhorita Xicória?

— O senhor não vai acreditar. Ele está falando e gesticulando sozinho, como se tivesse alguém ao lado. 

A secretária imprimiu ao diálogo uma breve pausa e continuou:

— Doutor, o senhor está sentado? 

— Claro que estou sentado, senhorita Xicória. O que está havendo?

— Seu Taborda se levantou, pegou dois copinhos de café e ofereceu um ao invisível da cadeira... espere, doutor. Meu Deus! Ele agora está vindo em minha direção...

— Ele quem, senhorita Xicória? O Taborda ou o invisível que o acompanha?

Sem entender as palavras do seu patrão, a moça se abriu, chorosa:

— Doutor, fala sério! Isso é algum tipo de brincadeira?

— Claro que não, senhorita Xicória. Olha, me escuta. Aja com calma e cautela. Respire. Conte até mil. Não demonstre medo. Sobretudo, não deixe o Taborda perceber que fala comigo. Rápido, saia da sua mesa, vá até o banheiro, leve o interfone debaixo da blusa. Em lá chegando, dê descarga no aparelho e se jogue pela janela.
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(*) Este problema encontra-se no livro “O homem que calculava”, de Malba Tahan.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sexta-feira, 31 de março de 2023

Vanda Fagundes Queiroz (Trovando) “03”

 

Cláudio de Cápua (A noiva italiana)


Num destes dias, cruzei na rua, com o Felipe da Silva Neves. Vinha ele com cara de quem comeu e não gostou. Estava pálido e preocupado... Trazia na mão um jornal Diário.

- O que há, Felipe? Perguntei, com interesse.

- Graziella!

Fiquei surpreso.

– Caramba, Felipe, ainda não esqueceu essa italianinha?

E claro, preciso dizer, que o Felipe, de dois anos para cá, caíra, lamentavelmente, nos braços de uma tremenda depressão nervosa. E sabem por que? Por uma bobagem! Um mero noivado interrompido!

Semanas e meses, Felipe me contara e recontara os encantos de uma certa italianinha, a quem fizera a corte, e com quem acabara oficializando noivado. Estive em casa da família Di Jordano, e apresentei calorosas homenagens, à bela jovem, sem dúvida, muito atraente! Meses depois, venho a saber que o noivado do Felipe com a Graziella, terminara. Como amigo íntimo do Felipe, recebi dele o seguinte comentário;

- Eu sou o culpado, de tudo!

O problema de entender era meu.

Fosse lá o que fosse, tinham transcorrido, quase dois anos e agora Felipe me aparecia pálido e transtornado. Resolvi ajudar, dando-lhe uma sacudidela.

- Vamos terminar com isso! Há quase dois anos você desmanchou o noivado e há seis meses não mencionava essa tal italianinha. Pensei que a tivesse esquecido! E agora me vem com essa! Veja lá, tenha a santa paciência! É babaquice demais!

Felipe respondeu, calmamente:

- Não é nada disso, que você está pensando. Você se interessaria em saber o motivo do fim do nosso noivado?

- Claro que sim!

- Estávamos próximo do casamento, cerca de uns 90 dias para sua realização, quando comprei aquele Opala branco. Eu sabia que a Graziella tinha carteira de habilitação. Num sábado, em que resolvemos dar um passeio até Santos, minha noiva resolveu pedir o volante. Ela não dirigia mal, mas, tinha um defeito; gostava de velocidade. Ainda em São Paulo, cruzou nada menos que cinco sinais vermelhos, antes de pegarmos a via Anchieta, em direção a Santos. E então, é que a maldita esnobou. Nas curvas, fazendo miséria, sem sequer diminuir a velocidade, ultrapassando carros à direita e á esquerda ... E, volta e meia, lá estava ela fechando alguém.

Em certo momento, fiz-lhe uma observação. Fechou a cara e continuou com as barbaridades ao volante. À certa altura, surgiu um guarda rodoviário, ela nem ligou para o sinal que ele lhe fez. Fomos, ou fui multado, à revelia. Chegamos em Santos. Dei-lhe uma valente bronca e a resposta foi:

- Você é homem ou maricas?

Ao entrar na praça Mauá, não diminuiu a velocidade e, por um triz, não nos chocamos com o ônibus elétrico. O motorista do ônibus, lhe disse os diabos. E a maldita lhe devolveu tudo em dobro. Que língua!

- Resultado: cavalheirescamente, desci do carro. O motorista ficou com o nariz esborrachado e eu, com um dente partido.

A essa altura, interrompi a narração, e indaguei se havia acontecido algo de mais grave.

- Sim. Desse dia em diante, não nos entendemos mais. E o resultado foi o rompimento,

- Bom, e daí?

- E você acha pouco? Afinal, ela era adorável, mais tinha um gênio ...

- É, Felipe, não há dúvida de que você se aborreceu, com razão. Mas, isso já era. E você já estava consolado. Por que é que hoje está remoendo tudo, de novo?

Felipe deu-me o Diário que trazia;

- Leia, aí na página policial, a manchete principal.

- Lá estava; Marido leva tiro no testículo. O motivo, foi ter ele criticado o panetone de Natal, feito pela sogra.

- A esposa criminosa é Grazlella Di Jordano Chaves, meu caro amigo. E o meu choque, ao ler a notícia, foi imaginar que a vítima, ao invés do Chaves, poderia ter sido eu.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Era uma vez… (coletânea de contos). Comptexto: outubro 1989.

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 10

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


Ah, meu bem se eu não te amo
Deus do céu que não me escute,
o sol que não me alumie
nem a terra me sepulte.
= = = = = = = = = 

Amarrei o sol com a lua,
com a fita da verdade,
para arriscar minha vida,
pra te fazer a vontade.
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Amor, se fordes, levai-me,
se ficardes, ficarei,
se não, meu amor matai-me,
que viver sem vós não sei.
= = = = = = = = = 

As estrelas do céu correm,
eu também quero correr;
Elas correm atrás da lua,
eu atrás do bem querer.
= = = = = = = = = 

As estrelas do céu fogem,
se a luz do sol aparece.
Menina, junto de ti,
o próprio sol desmerece.
= = = = = = = = = 

As estrelinhas são pontos
e a lua cheia novelo,
para bordar o teu nome
nas letras do sete-estrelo...
= = = = = = = = = 

Até onde as nuvens giram
vão meus suspiros parar.
Só tu, pertinho de mim,
não me ouves suspirar.
= = = = = = = = = 

Cazuzinha, estais de luto,
dizei-me quem vos morreu,
se foi por causa de amores
Cazuzinha, aqui estou eu.
= = = = = = = = = 

Inda que teu pai não queira,
tua mãe diga que não,
tu querendo, e eu querendo,
tudo está na nossa mão.
= = = = = = = = = 

Jura o sol e jura a lua.
Juram as estrelas também.
Juramos de te adorar
a ti só, e a mais ninguém.
= = = = = = = = = 

Menina diga a seu pai,
e ele diga a quem quiser,
que ele há de ser meu sogro
e você minha mulher.
= = = = = = = = = 

Menina dos olhos grandes
não olhes pra mim chorando,
tu pensas que eu não te quero,
e eu estou te namorando.
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Menina, minha menina,
põe a mão nas sobrancelhas,
que do céu te estão caindo
rosas brancas e vermelhas.
= = = = = = = = = 

Menina, rainha menina
hei de te matar a tiro,
com a garrucha da saudade,
com a bala do suspiro.
= = = = = = = = = 

Meu balaio de costura
tem um segredo no fundo.
Queira-me bem que desprezo
querer-me mal todo o mundo.
= = = = = = = = = 

Minha prima Mariquinha,
meu amor, minha paixão,
serei teu pra toda a vida,
quer teu pai queira, quer não.
= = = = = = = = = 

0 sol prometeu à lua
uma fita de mil cores;
Quando o sol promete prenda,
quanto mais quem tem amores.
= = = = = = = = = 

Os sinais desse teu rosto
são como um céu estrelado,
por eles passeio a vista,
nunca me dou por cansado.
= = = = = = = = = 

Parece que tu tens isca,
amor, neste teu agrado,
quando eu penso que estou livre
é ali que estou fisgado.
= = = = = = = = = 

Pode o céu produzir flores,
a terra estrelas criar?
Como pode um coração
viver sem te adorar ?
= = = = = = = = = 

Quando eu vim para esta terra
trouxe uma estrela por guia,
porque soube que aqui estava
a prenda que eu mais queria.
= = = = = = = = = 

Quando me ponho a querer,
não faço conta em ninguém,
venha do céu o remédio,
tu mesma hás de ser meu bem,
= = = = = = = = = 

Quando olho para a noite
cuido ver tua almofada:
Vejo alfinetes e bilros
e o céu é a renda lavrada...
= = = = = = = = = 

Tenho inveja de tua cama
e inveja de tua roupa,
eles se gozam de ti
e eu faço cruzes na boca.
= = = = = = = = = 

Tu és clara que nem leite,
corada que nem romã,
pareces a estrela d'alva
quando sai pela manhã.
= = = = = = = = = 
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Jaqueline Machado (Menos os loucos...)

O pior da espera não é a espera em si, já que é através do tempo transcorrido em esperança que faz com que a chegada do tempo esperado seja o tempo perfeito. O difícil não é esperar, e sim, ver a omissão moldar a espera e dela fazer o que bem quer. Por isso, não espere. Faça-a!

Silêncio é omissão, é indiferença. E ambas as coisas são irmãs da fuga. Não da fuga de uma estrada, mas da fuga da própria alma. As pessoas veem o mal tomando conta de tudo, possuem a capacidade de reclamar, mas desprovidos de coragem, nada fazem além de repetir a reclamação. Não querem se expor.

Com frequência, sentada em frente à porta de minha casa desfrutando de minha companhia, ao universo repito a indagação: afinal, o que é verdade e o que é mentira no mundo em que vivemos? Às vezes, pagamos pra ver, mas nem sempre vemos o que desejamos. Raras são as ocasiões em que a vida nos concede a certeza de que estamos sendo protegidos, admirados, amados ou fatalmente ridicularizados por aqueles que, de alguma ou de muitas formas nos dirigimos. Hoje, tudo parece duvidoso. E certamente, amanhã a dúvida permanecerá ainda mais viva.

Apesar dos pesares, sigo aqui, firme, tentando sobreviver a essa torre de Babel, lembrando que a palavra babel significa confusão.

Em meio à  multidão, desorientada, minha alma se entristece por não conseguir distinguir tantas verdades e inverdades misturadas. Ora o povo diz, depois desdiz, depois diz de novo e, por fim, não lembra o que foi dito. As máscaras até caem, mas logo são repostas.  

A paz se mudou do mundo. Se é que algum dia ela esteve por aqui. Como certa vez disse Fernando Pessoa: “Extraviamo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho”. Isso é, chegamos ao fim de tudo para recomeçarmos. Só que a maioria de nós, não sabe disso.

Na tentativa de sobreviver a esse caos, mantenho meu corpo aqui, mas todos os meus sentidos estão em outras esferas.

A minha visão continua a contemplar o que é belo. Meu olhar segue o brilho do sol. Meus ouvidos só escutam os conselhos das plantas e a poesia das flores. Meu paladar só está para o gosto das maçãs, das avelãs, das ambrosias... Meu olfato repele os atores do ódio, esse que tanto inflama a atmosfera: só quer saber do cheiro das virtudes.

E por fim, em rios amorosos, mergulho meu tato, e assim defendo minha pele e meu sentir da ira dos apedrejadores e dos seus toques cheios de espinhos.

Estou aqui sem estar...  E sei que isso é o suficiente para ser chamada de louca.

Essa crise não vai passar, as pessoas não vão mudar, as incertezas não vão sumir. Os silêncios ensurdecedores não vão dar trégua. Ninguém ouve mais ninguém! Tudo chegou ao fim. E até que tudo e todos se reconstruam novamente, vai levar tempo. Muito tempo. Mesmo fazendo barulho todos estão mortos a se sacudirem em estreitos e grandes túmulos cheios de gavetas e frestas.  Todos estão mortos até que voltem a renascer, menos os loucos que continuam a rir.  

Fonte:
Texto enviado pela autora.

sexta-feira, 24 de março de 2023

José Fabiano (Muros de Trovas) 07

 

O. Henry (A Água-Furtada)

Mrs. Parker mostraria primeiramente os salões duplos. Você não ousaria interromper-lhe a descrição das vantagens desses aposentos e dos méritos do cavalheiro que os havia ocupado durante oito anos. Só depois de finda a descrição é que você conseguiria gaguejar a confissão de que não era médico nem dentista. A maneira de Mrs. Parker receber tal declaração era de sorte a fazer com que você nunca mais sentisse o mesmo afeto por seus pais, que haviam descurado de educá-lo numa das profissões que se coadunavam com os salões de Mrs. Parker.

Depois, você subiria um lance de escada para examinar o quarto dos fundos do segundo andar, a oito dólares. Convencido, pela atitude "segundo andar" de Mrs. Parker, de que o quarto valia bem os doze dólares que Mr. Toosenberry costumava pagar por ele até que saiu para ir tomar conta de uma plantação de laranjas do seu irmão, na Flórida, perto de Palm Beach, onde Mrs. Mcintyre sempre passava o inverno, e que compreendia a dupla sala de frente com banheiro privativo, você a custo balbuciaria que desejava coisa mais em conta ainda.

Se lograsse sobreviver ao desprezo de Mrs. Parker, seria então conduzido ao espaçoso quarto de Mr. Skidder, no terceiro andar. O quarto de Mr. Skidder não estava vago. Nele, esse senhor escrevia peças de teatro e fumava cigarros o dia todo. Porém, quantos estivessem à procura de quartos eram levados a esse aposento par admirar os lambrequins. Depois de cada visita, Mr. Skidder, com medo de um possível despejo, pagaria alguma coisa por conta do aluguel.

Depois — oh! depois —, se você ainda conseguisse manter-se de pé, e proclamasse roucamente a sua pobreza hedionda e culposa, enquanto apalpava com mão quente os três pegajosos dólares no bolso, nunca mais teria por cicerone Mrs. Parker. Berrando a palavra "Clara", ela lhe voltaria as costas e desceria as escadas. Então Clara, a empregada de cor, acompanhá-lo-ia pelos degraus atapetados do lance que levava ao quarto andar, e mostrar-lhe-ia a Água-Furtada, cubículo de exíguas dimensões que se erguia no centro do patamar. Flanqueavam-no, de ambos os lados, escuros quartinhos de despejo ou de guardados.

No cubículo havia uma cama de ferro, um lavatório e uma cadeira. Uma prateleira vazia de cômoda. As quatro paredes nuas pareciam fechar-se sobre quem ali entrasse, como os lados de um sarcófago. Você levaria a mão à garganta, daria um suspiro, olharia para cima como se estivesse num poço e respiraria de novo. Pelo vidro da trapeira, você poderia ver um quadrinho de infinito azul. 

— Dois dólares, patrão — diria Clara, em tom meio de desprezo, meio de piedade.

Certo dia, apareceu Miss Leeson à procura de um quarto. Trazia uma máquina de escrever, evidentemente feita para ser carregada por uma senhora mais robusta. Era uma mocinha miúda, com olhos e cabelos, que haviam continuado a crescer depois que ela deixara de fazê-lo, e que pareciam estar sempre a dizer: — "Ora essa! Por que não nos acompanhou?"

Mrs. Parker mostrou à moça os salões duplos.

— Neste armário, — informou —, pode-se guardar um esqueleto, ou anestésico, ou ainda carvão...

— Mas não sou médica, nem dentista — replicou Miss Leeson, com um arrepio.

Mrs. Parker lançou-lhe o olhar incrédulo, penalizado, insolente e gélido, que reservava para os que não logravam diplomar-se médicos ou dentistas, e conduziu-a ao segundo andar. 

— Oito dólares? — exclamou Miss Leeson. — Deus do céu! Não sou milionária. Sou apenas uma pobre moça que trabalha. Mostre-me algo mais para cima e de preço mais baixo.

Ao lhe baterem à porta, Mr. Skidder deu um pulo, espalhando tocos de cigarros pelo chão.

— Desculpe-me, Mr. Skidder — disse Mrs. Parker, sorrindo diabolicamente ante a palidez do inquilino. — Não sabia que estava em casa. Convidei esta senhora para ver seus lambrequins!

— São lindos demais para terem serventia — atalhou Miss Leeson, sorrindo exatamente como sorriem os anjos.

Depois de as duas se terem retirado, Mr. Skidder ocupou-se ativamente em substituir a heroína alta e de cabelos pretos de sua última (inédita) peça, por outra heroína miúda, maliciosa, de feições vivas e cabelos fartos e sedosos.

— Anna Held ficará louca pelo papel — munnurou, apoiando os pés contra os lambrequins e desaparecendo numa nuvem de fumaça, qual um aéreo molusco.

Pouco depois, o toque de alarme — "Clara!" — proclamou ao mundo o estado financeiro de Miss Leeson. Um negro duende agarrou a moça e, subindo a escada estígia, introduziu-a numa catacumba com uma nesga de luz ao alto e murmurou as palavras cabalísticas e ameaçadoras.

— Dois dólares! 

— Fico com ele! — suspirou Miss Leeson, deixando-se cair sobre a cama de ferro rangedora.

Todos os dias, Miss Leeson saía para trabalhar, À noite, trazia para casa folhas manuscritas e as copiava na máquina de escrever. Quando não tinha serviço à noite, sentava-se nos degraus da íngreme escada com os outros pensionistas. Miss Leeson não devia ter sido destinada a uma água-furtada quando lhe traçaram o caráter no dia da sua criação. Era alegre e cheia de fantasias delicadas e caprichosas. Certa vez, permitiu que Mr. Skidder lhe fizesse a leitura de três atos da sua grande comédia (inédita), Não é Criança ou O Herdeiro do Metropolitano.

Os inquilinos masculinos se alegravam sempre que Miss Leeson tinha tempo para sentar-se nos degraus por uma ou duas horas. Porém, Miss Longnecker, a loura alta que ensinava numa escola pública e dizia "Oh, com efeito!" a tudo quanto ouvia, sentava-se no último degrau e torcia o nariz para ela. E Miss Dorn, que todos os domingos ia a Coney Island para exercitar a pontaria nos patinhos do tiro ao alvo, sentava-se no degrau debaixo e torcia-lhe igualmente o nariz. Miss Leeson sentava-se no degrau do meio e os homens imediatamente se agrupavam à sua volta.

Especialmente Mr. Skidder, que já a imaginava como heroína de um drama particular, romântico (não declarado) da vida real. E especialmente Mr. Hoover, que tinha quarenta e cinco anos, era gordo, afogueado e tolo. E especialmente o mui jovem Mr. Evans, que simulava uma tosse cava para induzir a moça a pedir-lhe que deixasse de fumar. Os rapazes a elegeram "a mais alegre e a mais espirituosa de todas", mas as fungadas do degrau de cima e do degrau debaixo eram implacáveis.

Peço-vos licença para interromper o drama enquanto o coro avança para a ribalta e deixa cair uma lágrima lúgubre sobre a obesidade de Mr. Hoover. Afinal as flautas para a tragédia da banha, o flagelo do volume, a calamidade da corpulência. Se fosse a julgamento, Falstaff renderia mais romance por tonelada do que as raquíticas costelas de Romeu por onça.

Um apaixonado pode suspirar, mas não deve bufar. Os gordos são reenviados à corte de Momo. Em vão bate o mais fiel dos corações acima de uma cintura de 1,30 m de diâmetro. Eia, avante, Hoover! Hoover quarentão, afogueado e tolo, poderá raptar Helena; Hoover, quarentão afogueado, tolo, e gordo, é caso perdido. Nunca houve oportunidade para você, Hoover.

Certa tarde de verão, estando os inquilinos de Mrs. Parker acomodados na escada, Miss Leeson levantou os olhos para o céu e exclamou com uma risadinha alegre:

— Ei! Lá está Billy Jackson! Vejo-o perfeitamente daqui.

Todos olharam para cima — alguns para as janelas dos arranha-céus, outros à procura de uma nave aérea pilotada por Jackson.

— É aquela estrela — explicou Miss Leeson, apontando-a com o seu dedinho. — Não a grande que pisca; a azul, fixa, que lhe fica ao lado. Vejo-a todas as noites pela minha trapeira. Apelidei-a de Billy Jackson.

— Oh! Com efeito! — disse Miss Longnecker. — Não sabia que era astrônoma, Miss Leeson.

— Sou, sim. — replicou a pequena contempladora de estrelas. — Sei tão bem quanto qualquer astrônomo que estilo de mangas estará na moda no outono próximo cm Marte.

— Oh! Com efeito! — retrucou Miss Longnecker. — A estrela a que se refere é Gama, da Constelação de Cassiopéia. É quase de segunda grandeza, e sua passagem pelo meridiano é...

— Ora! — interrompeu o mui jovem Mr. Evans. — Acho Billy Jackson um nome muito mais apropriado.

— Eu também! — asseverou Mr. Hoover, bufando alto em desafio a Miss Longnecker. — Penso que Miss Leeson tem tanto direito de dar nome a estrelas quanto qualquer desses velhos astrólogos.

— Oh! Com efeito! — exclamou Miss Longnecker.

— Será que é uma estrela cadente? — perguntou Miss Dorn. — No domingo passado, acertei nove patos e um coelho, de dez, numa barraca de Coney.

— Daqui não se pode vê-la muito bem. — disse Miss Leeson. — Vocês deviam observá-la de meu quarto. Como sabem, avistam-se estrelas mesmo durante o dia, do fundo de um poço. À noite, meu quarto é como uma galeria de mina de carvão, e faz Billy Jackson parecer um grande alfinete de diamante com que a noite prende seu quimono.

Veio uma época em que Miss Leeson não mais trouxe formidáveis calhamaços para copiar. E quando saía de manhã cedo, em vez de ir trabalhar, andava de escritório em escritório, o coração confrangido ante as frias recusas que lhe eram transmitidas por insolentes contínuos. Isso continuou.

Certa tarde, ela subiu com dificuldade a escada de Mrs. Parker, à hora em que sempre costumava voltar do seu jantar no restaurante. Mas não jantara.

Ao passar pelo vestíbulo, encontrou Mr. Hoover que, aproveitando-se da oportunidade, pediu a moça em casamento. A corpulência de Mr. Hoover oprimia Miss Leeson como uma avalancha. Ela recuou e agarrou-se à balaustrada. Mr. Hoover procurou-lhe a mão; ela a ergueu e deu-lhe uma bofetada, com pouca força. Amparando-se ao corrimão, Miss Leeson pôs-se a subir a escada, degrau por degrau. Passou pela porta de Mr. Skidder, que estava justamente anotando, com tinta vermelha, uma marcação para Myrtle Delorme (Miss Leeson) na comédia (não aceita): "fazer uma pirueta através do palco, de L até junto do Conde". Arrastando-se pela escada atapetada, ela finalmente chegou à porta da água-furtada, que abriu.

Estava muito fraca para acender a lâmpada ou despir-se. Deixou-se cair sobre o leito de ferro; seu corpo frágil mal pesou sobre as molas gastas. E nesse quarto do Érebo vagarosamente descerrou as pálpebras cansadas e sorriu.

Através da trapeira, Billy Jackson brilhava sobre ela, calma, brilhante e fiel. Não havia nada à sua volta: ela estava mergulhada num poço de escuridão, com apenas aquele quadrado de luz pálida a emoldurar a estrela a que com tanto capricho e, oh!, com tanta impropriedade dera nome. Miss Longneker devia ter razão: era Gama, da Constelação de Cassiopéia, e não Billy Jackson. No entanto, ela não podia admitir que fosse Gama. 

Deitada de costas, experimentou por duas vezes erguer o braço. Na terceira tentativa, logrou levar dois dedos aos lábios e mandou um beijo, de dentro do poço negro, a Billy Jackson. Logo caiu-lhe inerte o braço.

— Adeus, Billy. — murmurou, fracamente. — Estás a milhares de milhas de distância, e não vais dar nem uma piscadela, Mas ficaste sempre aí, onde eu podia ver-te, quando não havia senão escuridão para se ver, não é mesmo?... Milhares de milhas... Adeus, Billy Jackson.

Clara, a empregada de cor, encontrando a porta ainda fechada às 10 horas do dia seguinte, arrombou-a. Vinagre, batidas no pulso, penas queimadas, nada surtiu efeito; alguém correu ao telefone para chamar uma ambulância.

No devido tempo, depois de muita sirene, a ambulância encostou à porta dos fundos. O jovem médico, no seu avental de linho branco, disposto, ativo, confiante, a face entre jovial e séria, subiu saltitante os degraus da entrada.

— Chamado de ambulância para o n.° 49 — disse, secamente. — Que é que há?

— Oh, sim, doutor — suspirou Mrs. Parker, como se o embaraço que o incidente lhe causava fosse maior do que o incidente em si. — Não posso atinar com o que houve com ela. Nada do que tentamos fê-la voltar a si. É uma moça, uma certa Miss Elsie... isso mesmo, Miss Elsie Leeson. Jamais em minha casa...

— Que quarto? — berrou o médico, com uma voz terrível, até então desconhecida para Mrs. Parker.

— A água-furtada. É...

Evidentemente o médico da ambulância estava familiarizado com a localização de águas-furtadas. Subiu as escadas, de quatro em quatro degraus. Mrs. Parker seguiu-o vagarosamente, como o exigia sua dignidade.

No primeiro patamar, ela deu com o médico já de volta, com a pequena astrônoma nos braços. O rapaz deteve-se e pôs em ação, sem muito ruído, o escalpelo de sua língua. Gradualmente, Mrs. Parker foi-se encolhendo, como um vestido que escorregasse de um prego. Mesmo depois,
ficaram-lhe rugas na mente e no corpo. Algumas vezes, seus inquilinos curiosos indagavam-lhe o que lhe dissera o médico.

— Não se incomodem — respondia ela. — Se eu for perdoada por ter ouvido o que ouvi, ficarei satisfeita.

O médico da ambulância, com o seu fardo, atravessou a matilha de curiosos reunida pelo som da sirene. Mesmo estes se afastaram pela calçada, envergonhados, pois o rosto do jovem médico era o de quem trouxesse consigo a própria morte.

Repararam que o médico não depositou na cama adrede preparada na ambulância o fardo que carregava. Tudo o que disse foi:

— Corra como um demônio, Wilson!

Eis aí tudo. Será uma história? No jornal do dia seguinte, vi, nas notícias diversas, um pequeno parágrafo cuja última sentença talvez ajude você (como me ajudou) a ligar entre si os incidentes.

O parágrafo contava a chegada ao Hospital Bellevue de uma mocinha que fora removida do n. 49 da rua..., e que sofria de debilidade por fome.

E concluía com estas palavras;

"O Dr. William Jackson, médico da ambulância que atendeu o caso, diz que a paciente se salvará."

Fonte:
Disponível em domínio público.
O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909.

Dorothy Jansson Moretti (Folhas Esparsas) 3

RIO TIETÊ

Ele era belo ao tempo das bandeiras,
seguindo a rota de uma a outra ponta,
esboçando o progresso além fronteiras,
correndo livre, sem sofrer afrontas.

Ele era belo ao longo dos povoados,
atravessando-os manso e camarada,
peixes à farta e espaços namorados
aos mergulhos saudáveis da moçada.

Hoje percorre a caminhada, triste,
e semi-morto, embora, ainda resiste,
e à espera de um milagre não se cansa.

O vento sopra e a encardida espuma
pousando às margens, lúgubre se agruma
e roga aos céus a luz de uma esperança.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

SAGA DE SOROCABA

Ao toque do cincerro da madrinha,
as mulas seguem, mansas, resignadas...
Vêm lá do sul longínquo, e extenuadas,
atingem os cercãos da vilazinha.

Há tantas, tantas décadas passadas,
cresce o fruto de humilde sementinha,
a Manchester que esplêndida caminha
mas não renega a poeira das estradas.

Ao lado de edifícios imponentes,
resistem casarões remanescentes,
herança que do tempo menoscaba.

E a estátua do tropeiro audaz, altivo,
é o marco apaixonante e persuasivo
da saga que deu vida à Sorocaba.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

SOL

Hoje estás escondido, olhando para fora,
por entre a névoa densa em vão eu te procuro.
Que falta fazes quando, ao se esboçar a aurora,
vejo o céu carrancudo e tão cinzento e escuro!

És tu que trazes vida, a ausência eu te censuro.
Sem ti sofre a semente a emergir para a flora,
falta a luz dos teus raios ao trigo maduro,
esmaecem os tons quando te vais embora.

De repente, através de uma nesga apareces...
Com que força vital a alma da gente aqueces
e afastas tão depressa as nuvens de tristeza!

És dono do universo, a nada te comparas.
E ao sentir teu calor reconfortando as searas,
feliz volta a sorrir de novo a Natureza.
= = = = = = = = = 

TROMBADINHA

Ontem, eu, pela vez primeira em minha vida,
também fui atacada... e por um trombadinha .
Levei um susto enorme, estava distraída,
só vi caindo ao chão medalha e correntinha.

“Maldito” - veio o meu protesto a toda brida;
rompeu seco e brutal, tirando-me da linha;
e o garoto sumiu entre a turba aturdida
que logo se acercava e formava rodinha.

Pouco tempo depois, relembrando o incidente,
meu coração batia triste e penitente
por chamar de maldito um pobre menininho.

Maldita é a sociedade horrível que formamos,
que gera o trombadinha infausto que execramos
e faz de uma criança esse infeliz monstrinho!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

VERÃO

Volta o verão e vai-se acomodando...
Os dias se apresentam desiguais,
o calor e o aguaceiro se alternando
ao sabor dos caprichos tropicais.

Sol, novamente, tudo estorricando,
as taperás retornando aos beirais...
Quase se enxerga o ar tremelicando
e a brisa, em greve, já nem sopra mais.

Lá no jardim, as flores, ressentidas,
pendem das hastes, murchas, abatidas...
Um gato se espreguiça no canteiro.

Não me afeta o calor, se me domina,
fecho os olhos e finjo que é piscina
o meu gostoso banho de chuveiro.

Fonte:
Enviado pela poetisa.
Dorothy Jansson Moretti. Folhas esparsas: sonetos. Itu/SP: Ottoni, 2006.

Aparecido Raimundo de Souza (171)

 

ENQUANTO ESPERAVA pela minha simpática secretária Carina, no saguão do Aeroporto de Viracopos, em Campinas, onde voaríamos para Nova York, sentado praticamente na cara do portão de embarque dos voos internacionais, um sujeito tentou me contar uma historinha triste. Percebi que ele trazia no rosto corado (não de vergonha, mas pela falta de destreza em arranjar uma desculpa que convencesse), uma cronologia negativa de outras pessoas anteriormente abordadas. 

Deve ter imaginado, ao olhar para mim, que eu era um desses idiotas improvidentes, com o rabo entre as pernas, cheio de medos, fácil de ser levado no bico, e que se afogava tropeçando os pés em pouca água. Como me considero macaco velho, e em razão disso não meto a mão em cumbuca, ando longe, portanto, de cair como um patinho nesses tipos de lorotas baratas expostas às voracidades construídas em botecos de esquina, diante da aproximação do cabra, fiquei, pois, em completo estado de alerta. 

Em sentido idêntico, estou careca de saber que nos ajuntamentos de grandes terminais há sempre algum safardana contador de rodelas, procurando tirar proveito da ingenuidade alheia, notadamente dos sem malícia e dos puros de espírito, e, principalmente, fazendo valer a degenerescência de caráter, muito comum em quem não tem respeito pelos seus semelhantes. Assim, quando a criatura chegou com um sorriso maroto à mostra dos dentes bem tratados, já estava em guarda e tratei de me livrar rapidinho do estouvado, sem magoar a sua coragem, usando de toda elegância possível que me ia na alma.

Nos minutos que ficou ali na minha beira, jogando conversa fora tentando criar cenários ficcionais e se passar pelo bom moço, descobri que o meu interlocutor havia saído do interior de Belo Horizonte para trabalhar em São Paulo. O empregador (depois de ele ter laborado por trinta dias ininterruptos), não pagou ninguém, deu calote e fugiu com o dinheiro deixando todos os funcionários a verem ossos onde sequer existiam pedaços apodrecidos de “pecanhas” (carnes de galinhas sem unhas).  Esses operários, como ele, chegavam a mais de duzentos. Corroborando a sua tese, exibiu um bilhete da Azul (companhia aérea datado de quatro meses atrás), referente à sua vinda com a respectiva taxa de embarque coletada no aeródromo da Pampulha. 

Até aí, tudo bem. Casos assim acontecem. Pode, inclusive, suceder com qualquer um de nós, meros seres mortais. Para pegar a mentira do dito cujo, me fiz solidário à sua desdita. Ato contínuo me propus a ir com o prezado até o balcão de uma das companhias que cobrem o trecho e, no meu cartão de crédito, adquirir a passagem de volta para as Minas Gerais. Para meu espanto e incredulidade, aconteceu exatamente o que eu não esperava: o jovem recusou a oferta. E o fez veementemente!

— “Oxente – disse a ele meio que intrigado. – O amigo não quer regressar para a sua terra? Estou lhe pagando o bilhete sem pedir nada em troca. Aceite como um presente de coração!”.

Qual o quê! O engraçadinho tratou de sair da minha aba sem se beneficiar da alvissareira generosidade que lhe oferecia. Sumiu do pedaço e, de repente, se tornou invisível, mais difícil de pôr os olhos em cima que mulher virgem em terra de tarado. Graças à Deus, estava certo. Senti que ficou pairando no ar, no curto interregno de nosso bater de línguas, uma cansativa transição frustrada entre a verdade e a mentira em rejeitar a minha oferenda, e, por derradeiro, se eximir sem mais detenças, da auspiciosa ajuda. 

Valeu, a bem da verdade. Tirei um peso da consciência. Penso sempre o seguinte: se não estendo à mão à caridade dos necessitados, me condenaria a depois. Poxa!... Poderia ter concordado...  se ofereço ajuda, como de fato me dispus, de coração aberto, o que aconteceu? Me deparei com uma surpresa desagradável. A repugnante esquivança de uma negação fria e repulsiva. Nessa hora, a gente se sente impotente, fraco, débil, como se passado para trás. Ele não queria a passagem, deixou isso bem claro. Almejava o dinheiro vivo. 

Fatos como esses, me levam a analisar o impasse, como se espiasse para quadros de um mesmo pintor com molduras diferentes: 1) o cidadão pretendia, realmente me enlear numa garabulha (embrulhada) maquiavélica e, ao final, passar a mão no meu rico e suado dinheirinho ou, 2): não viera de onde havia dito coisíssima nenhuma e só almejava inteirar a grana, não para uma passagem de regresso à terra de origem, obviamente com a finalidade preestabelecida de mergulhar no submundo das drogas. 

Ou coisa pior, vai se saber, agora, nessa altura do campeonato. Embora estivesse vestido com certo apuro, acompanhado de uma porção de malas à tiracolo, percebi nessa mescla de tantas palavras ardilosas que o seu objetivo não se prendia a rever seu velho e abençoado lar, sua casa, seus pares. Ao contrário, tinha por pretensão me engambelar, como certamente tentaria (ou tentara) fazer com outros, antes de me acercar, numa patranha mal ajambrada (desajeitada) com finalidades inverídicas e escusas. Nesse escopo meio confuso, pela falta de lisura das pessoas, até pelas mentiras, falta de decoro e compostura, acaba o justo pagando pelo pecador.  

Ora, se a intenção do cidadão se baseava, mesmo, em voltar nos passos que o trouxeram à um fiasco, por que recusou a minha oferta ao seu pedido de socorro? Diante dessa imprevista e inesperada rejeição, restou patente que ele não estava com nenhuma vontade de embarcar para Belo Horizonte. Recepcionava, por certo, dar o surrado “golpe da volta para casa” e, pior, repetindo, tricotando por conhecidos fios de uma malha de linhas retorcidas que não o levaria à lugar nenhum, a não ser a desgastante indução maligna de algum outro futuro imprudente desavisado a rodopiar feito pião bêbado em “esparrelado” (logrado) erro. 

Não só ao juízo falso, igualmente ao desvio do caminho reto, sem mencionar a fraude, embutida no artigo 171 do Novo Código Penal, tendo como seslóio (*) à conversa mole que não convenceria nem uma dessas nobres velhinhas que não pensam duas vezes antes de abrirem as bolsas e doarem os poucos tostões disponíveis, pensando nas regalias do “emprestando aos pobres, se tornarão virtuosas aos olhos do Criador”. Apesar desse entrave, eis que a Carina apontou lá longe, cheia de malas e sacolas. A sua chegada, como sempre, despertando em mim, il bimbo nel vecchio (a criança no velho).   
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 
Seslóio – Não confundir com soslaio. Seslóio variante de referência, ou alusão.   

Fonte:
Texto e notas enviadas pelo autor.

terça-feira, 21 de março de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 2

 

Cecy Barbosa Campos (Recomeço)

Maura pensou, com alívio, que o mais difícil já havia passado. Aqueles longos anos de um casamento convencional, frio e sem entusiasmo, que se limitava a um educado "Bom dia", a cada manhã, num café com torradas, que entalava na garganta, sufocada pelos longos silêncios que se alternavam com frases corriqueiras e ocasionais.

Não havia o que dizer. O que acontecera com eles. Maura não conseguia entender. Sem brigas, sem rancor, sem discussões, só aquele afastamento inexplicável, a falta de carinho, a apatia total. Até o sexo acabara, se fora distanciando, acontecendo às vezes, pela insistência de Maura, que sentindo na mecanização do ato, o cumprimento de uma obrigação, acabou desistindo. Passou a sonhar apenas, com a volta de um momento em que o marido lhe tomasse o rosto entre as mãos, suavemente, e murmurasse: Eu só queria te dizer que te amo muito, sim? — numa declaração inesperada, que poderia acontecer sem hora marcada e que seria seguida por um terno abraço, ao qual Maura corresponderia, cheia de emoção.

Se houvesse outra, teria sido mais fácil de entender. No princípio, fez perguntas e cobranças, dava indiretas, mostrava-se carente e insegura. O marido não parecia incomodar-se e nem mesmo se aborrecer com os questionamentos da esposa. Na verdade, à medida que o tempo passava, deixou até mesmo de responder, e Maura chegou à conclusão de que, por ele, não teria nenhum esclarecimento. 

Apelou, então, para um detetive particular, indicado por uma amiga que, suspeitando do marido, havia comprovado a eficiente discrição do serviço. Este era um quesito fundamental, pois Maura sabia que, caso se descobrisse vigiado, o marido se sentiria alvo de uma ofensa mortal.

As investigações não levaram a nenhum fato desabonador, a nada que pudesse comprometer a reputação de Roberto como um marido fiel, mas o espaço entre os dois aumentava, cada vez mais, num constrangimento insuportável que a presença de um causava no outro.

Finalmente, Maura, sem premeditar, pôs fim á situação. No café da manhã, gritou desvairada:

— Chega! É impossível continuar assim! Não podemos mais viver este casamento de aparências!

Aquele rompante imprevisível, que não fora precedido por nenhuma conversa ou acontecimento, não causou qualquer reação em Roberto. Ele permaneceu impassível, sem manifestar espanto ou susto. Simplesmente, concorda.

— Está bem. Posso contratar um advogado que cuide dos trâmites legais, enquanto você pode ir escolhendo os objetos de sua preferência e separando nossos livros, discos e objetos pessoais...

Agora, que estes detalhes materiais e prosaicos já estavam resolvidos, Maura sentia-se cansada, muito cansada. Olhando-se ao espelho, observou que aqueles anos de agonia e dúvida haviam sulcado seu rosto e escrito várias linhas.

— Sem dúvida, falou consigo mesma, enquanto puxava a pele em direção às orelhas - não é nada tão grave que uma boa plástica não possa resolver…

Fonte:
Enviado pela autora.
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.