domingo, 10 de setembro de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 33

 

Contos do Paraná ("Bento Cego", de Valência Xavier)


Bento Cordeiro nasceu no Registro, em Antonina, lá por 1821. Nasceu cego e pobre, filho de 
caboclos do nosso litoral. Logo perde o pai, e a sua mãe, Ana Maria, tem de manter o barraco da família e cuidar do filho cego.

Mocinho, Bento foi numa festança, onde os caboclos dançavam fandango batendo pé com os tamancos chumbados de chocalhos. Lá estava Chico Folião, o Rouxinol da Faisqueira, cantador de muita fama. Chico Folião já tinha derrotado todos outros repentistas da noite. Cada quatro porfias ganhas davam direito ao prêmio: um galho de arruda na viola e a admiração das moças.

As moças assanham Bento para desafiar o campeão, afinal ele era dono da mais bela voz do coral da igreja. Arranjam uma viola para Bento e começa seu primeiro combate. Chico Folião parte para o ataque. "Nem namorar você pode/ porque vista não tem/ vive só sem ser amado/ sem olhar não se quer bem”. Bento cego contra-ataca: "Sem olhar também se ama/ a mulher que estima a gente/ os olhos são traidores quando o coração não sente".

A porfia segue braba e, por fim, Chico Folião se confessa derrotado. Cabelão comprido, moço bonito logo enfrenta outro cantador famoso. A peleja termina com os dois chorando com os versos de Bento: "Não posso dizer se tal coisa/ é feio ou bonita/ porque me vejo no abismo/ da escuridão infinita."

Antonina fica pequena para ele. Bento Cego se despede da mãe e sai pelo mundo afora vencendo desafios. Sente fraqueza nos pulmões e vai para Lapa se curar. Lá enfrenta o invicto Manoel Viola e diz o que pensa da mulher: "Tem amor tem distinção/ ralha e fala/ mas não deixa de escutar teu coração". Manuel Viola alerta: "Pois então se é assim/ estás de todo perdido/ Hás de verter coração/ cair bem logo vencido". Bento reflete: "Bem vindo que seja ele/ pela graça da mulher/ antes ela nos vença/ do que a mão de Lúcifer". Vence mais esta porfia. Sente-se curado e segue seu caminho.

Fica em Santa Catarina, numa casinha dum fazendeiro seu fã. Encontra o amor: é Catarina, uma bela jovem órfã que trabalha na roça. Ela cuida dele e tudo vai bem, mas Bento Cego quer mais: "Só quisera ter a dita/ de filha te enxergar/ que a vida eu não gozaria/ diante de teu olhar". Ela sorri para Bento, os dois se amam: "Não há dúvida que tens/ muita candura no amor/ mas eu quisera senhora/ ver-te sorrir com fulgor". Vivem felizes.

Um dia, ele acorda e não sente mais o doce cheiro do corpo de Catarina. Sem aviso, ela foi embora. Seu mundo fica mais escuro. Sem poder suportar a solidão, Bento parte. Talvez um dia, reencontre Catarina, o amor.

Um dia aparece em Sorocaba, amargo, cansado e com os pulmões doentes. Mesmo fraco, aceita enfrentar ao mesmo tempo 3 cantadores. A porfia segue por 3 dias e 3 noites. Caindo de cansaço. Bento Cego ainda canta: "Hei de morrer cantando/ Cantando me hei de enterrar/ Cantando irei para o céu/ Cantando conta hei de dar". Diz-se que, nesse momento, levantou os olhos ao fundo da sala, onde havia uma imagem da Virgem. Nesse momento, viu a imagem da Virgem. Ninguém sabe. Nesse momento, ele caiu morto, deitando sangue pela boca. Ninguém sabe, mas acho que, nesse momento, ele não viu a imagem da Virgem, viu novamente o amor, viu Catarina.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 8 -


Cristóvam Pavia
(Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho)
(Lisboa/Portugal, 1933 – 1968)

AO MEU CÃO

Deixei-te só , à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação 
De tudo… e apesar disso, sem o pedir,
tentando Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia,
a debater-te
Com a morte.

E deixei-te só , à beira da agonia, 
tão aflito, 
tão só e
sossegado.
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Daniel (Damásio Ascensão) Filipe
(Cabo Verde/Portugal, 1925 – 1964, Lisboa/Portugal)

MORNA

É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta.)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
– sutil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.
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Fernando Echevarría (Ferreira)
(Cabezón de la Sala/Espanha, 1929 – 2021, Porto/Portugal)

QUALQUER COISA DE PAZ

Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.

Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.

Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área

de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruina
a luz da fronte onde a atenção domina.
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Fernando (António Nogueira) Pessoa
(Lisboa/Portugal, 1888 – 1935)

TUDO QUANTO SONHEI

Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido,
Música de perder.

Pobre criança a quem não deram nada,
Choras? É em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.

A ti talvez, que não te têm dado,
Darão enfim…
A mim… Sei eu que duro e inato fado
Me espera de mim?
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Manuel António Pina
(Sabugal/Portugal, 1943 – 2012, Porto/Portugal)

AMOR COMO EM CASA

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. 
Faço de conta que não é nada comigo. 
Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. 
Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, 
e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar à tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.
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Natália (de Oliveira) Correia
(São Miguel/Portugal, 1923 – 1993, Lisboa/Portugal)

MÃE ILHA

No coração da ilha está um vaso
Cheio das pérolas que pra mim sonhaste,
Ó mãe completa da manhã ao ocaso,
Pastora dos meus sonhos, minha haste.

Parti pras Índias do meu estranho caso
—ó danos que dos versos sois o engate!—
E com maus fados se entendem ao acaso
Lírios e feras do meu vão contraste.

Ave exausta, o retorno quem me dera,
Vou no canto dos órfãos soletrando
O âmbar da manhã que ali me espera.

Feridas asas, enfim ali fechando
Ao pasto e à onda me unirei sincera,
Ilha no manso azul de mãe esperando.
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Virginia Woolf (Casa mal assombrada)

A QUALQUER HORA QUE VOCÊ acordasse havia alguma porta batendo. De quarto em quarto eles iam, de mãos dadas, erguendo aqui, abrindo ali, certificando-se - um casal de fantasmas.

"Deixamos aqui", ela disse. E ele acrescentou: "Oh, mas aqui também". "No andar de cima", murmurou ela. "E no jardim", sussurrou ele. "Silêncio", disseram ambos, "senão vamos acordados."

Mas não era que nos acordassem. Oh, não. "Eles estão procurando; estão abrindo a cortina", bem que eu poderia dizer, e assim ler ainda uma ou duas páginas. "Agora acharam", saberia então com certeza, parando o lápis na margem. E aí, cansada de ler, poderia me levantar para ir ver com meus olhos a casa toda vazia, as portas todas abertas, só as pombas da mata borbulhando de contentamento e a zoada da máquina de debulhar que vem da fazenda. “Por que foi que entrei aqui? O que era que eu queria encontrar?" Minhas mãos estão vazias. "Talvez lá em cima?"

As maçãs estavam no sótão. E assim de novo para baixo, o jardim tranquilo como sempre, só o livro que escorregou para a grama. Na sala de visitas o encontraram, porém. Sem que alguém pudesse vê-los jamais. As vidraças refletiam maçãs, refletiam rosas; todas as folhas eram verdes no vidro. A maçã se limitava a virar seu lado amarelo, se as folhas se mexessem na sala. Entretanto, no momento seguinte, se a porta fosse aberta, estendia-se no chão, descia pelas paredes, pendia do teto — o quê? Minhas mãos estavam vazias. A sombra de um tordo atravessou o tapete; dos poços de silêncio mais fundos a pomba da mata extraiu sua bolha de som. "Em segurança, em segurança", suavemente bate o pulso da casa, "O tesouro enterrado; o quarto...", para o pulso de repente. Oh, então era o tesouro enterrado?

Um momento depois a luz se apaga. Talvez lá fora no jardim? Mas as árvores protelam a escuridão por causa de um peregrino raio de sol. Tão fino, tão raro, cravado tão friamente sob a superfície, o raio que eu sempre procurei queimava além da vidraça. A morte era o vidro; a morte estava entre nós dois; primeiro indo à mulher, há centenas de anos, deixando a casa, lacrando todas as janelas; os quartos se escureciam. Ele as deixava, mulher e casa, ia para o Norte, ou para o Leste, viu o giro das estrelas no céu do Sul; procurou pela casa, achou-a afundada na região dos Downs. "Em segurança, em segurança", batia alegremente o pulso da casa. "O tesouro é seu."

O vento ruge na alameda. As árvores curvam, dobram-se de várias maneiras. O luar se esparrama e respinga forte na chuva. Mas direto da janela vem o facho de luz. A vela queima tesa e quieta. Pervagando pela casa, abrindo as janelas, cochichando para não nos despertar, o casal de fantasmas procura sua alegria.

"Aqui nós dormimos", diz ela. E ele acrescenta: "Beijos sem conta". "Acordando de manhã..." "Com o prateado entre as árvores... Lá em cima..." "Lá no jardim..." "Quando o verão chegou..." "Na época de neve do inverno..." E bem ao longe as portas vão se fechando, batendo lentamente como um coração a pulsar.

Eles chegam mais perto; param na entrada. O vento sopra, a chuva escorre prateada no vidro. Nossos olhos se toldam; não ouvimos passos ao lado; não vemos mulher alguma abrindo sua vestimenta fantasmal. Já ele protege o lampião com as mãos. "Olhe só", sussurra. "Dormem a fundo. Com amor nos lábios." 

Dobrando-se, mantendo acima de nós seu lampião de prata, longa e profundamente eles olham. Longa é a pausa que fazem. O vento impele certeiro; a flama verga fragilmente. Fachos fortes de luar cruzam o chão e a parede e, ao se encontrarem, mancham as faces que se dobram; as faces que ponderam; as faces que revistam os dormentes e buscam sua oculta alegria.

"Em segurança, em segurança", bate orgulhoso o coração da casa. "Muitos anos...", suspira ele. "De novo você me achou." "Aqui", murmura ela, "dormindo; no jardim, lendo; rindo, rolando maçãs no sótão. Foi aqui que nós deixamos nosso tesouro..."

Dobrando-se, sua luz ergue em meus olhos as pálpebras. "Em segurança! Em segurança! Em segurança!", bate descontrolado o pulso da casa. E eu, despertando, grito: "Oh, é isto o seu tesouro enterrado? A luz no coração".

Fonte:
Virginia Woolf. Casa mal assombrada e outras histórias. Publicado em 1948.
Disponível em Domínio Público.

domingo, 3 de setembro de 2023

Varal de Trovas n. 587

 

Aparecido Raimundo de Souza (Sempre o tempo...)

“Para todos aqueles que não acreditam num porvir melhor, o milagre às vezes acontece.”
Nélida Pinõn, em seu livro “Uma furtiva lágrima”. 

HOUVE UM TEMPO, houve um tempo, houve... em que eu passava na porta de um bar, ou de uma padaria, queria entrar, sentar, tomar um copo de café com leite e comer um pãozinho com manteiga, mas não tinha condições. O bolso estava furado. Literalmente! A carteira sem um centavo para fazer um cego cantar, ou um mendigo de rua sorrir à minha aproximação. 

Houve um tempo em que me perdi espiando, de boca aberta, os olhos arregalados para dentro de uma dessas lojas de eletrodomésticos, onde uma porção de televisores de tela plana ligados em canais diferentes prendiam a atenção de uma multidão, bem como aparelhos de som e sofisticados DVDs, mas, infelizmente, eu continuava não dispondo de meios de sobrevivência, ao menos para entrar e bater um papo com a moça esbelta e de sorriso bonito.

Houve um tempo em que precisava urgentemente trocar o par de meias e os sapatos furados. Lembro que fiquei namorando algumas vitrinas masculinas, mas esse namoro não prosperou. Também houve um tempo em que me detive por longo período na porta de uma lojinha em liquidação de queima de estoque e, como das vezes anteriores, não tinha fundos na carteira para levar para casa uma calça jeans, uma camisa de malhas, ou umas bermudinhas simples, de cores variadas, visando substituir as tranqueiras surradas que usava o ano inteiro. 

Houve um tempo em que sentava nos bancos da estação rodoviária e ali ficava horas e horas apreciando o movimento do ir e vir das pessoas que embarcavam cheias de malas e cuias, criaturas apressadas, cada uma delas com um sorriso largo estampado nos lábios, e a imensidão do caminho a ser seguido fazendo cócegas na aflição desenfreada para que o ônibus partisse sem mais delongas. 

Nesse corre-corre incessante, nesse afogo onde o agito e o nervosismo eram a tônica, topei com gente se despedindo, crianças chorando e idosos impacientes. Presenciei abraços sendo trocados com efusão, carinhos permutados com ímpetos de veemência, juras de amor saciadas com intensidade à flor da pele, enquanto o motorista conferia passagens e documentos de embarque. 

Vi choros, lágrimas e tristezas, como também esperanças, saudades, carinhos e probabilidades de volta. Vi ideias e pensamentos que se misturavam numa impetuosidade única e, no instante seguinte, se rejuvenesciam e se renovavam, como se uma palpitação mágica saída do nada trouxesse coisa alguma escondida, ou meros desejos eternos. 

Houve um tempo em que levantava a cabeça para o infinito e topava com um avião solitário cortando o espaço lá em cima. De repente essa aeronave sumia na poeira do céu sem deixar rastro da sua presença. Houve um tempo –, houve um tempo em que o tempo se desfazia em sequelas de escuridão e eu, eu me sentia só e desamparado, perdido, isolado das coisas mais corriqueiras, o peito vazio, despojado de sentimentos nobres, o meu “eu interior” completamente dilacerado. 

Não só dilacerado ou enxovalhado. Igualmente mortificado e ferido, rasgado, torturado, e pior, os pensamentos embaralhando tudo em minha volta e transformando a minha gota de esperança numa vasta extensão de desgostos e incertezas sem fim. Houve um tempo em que sorri de um modo triste e melancólico ao topar comigo mesmo em meio a uma dilatada e avultada multidão. 

Por um breve instante, me recordo, nesse dia, em meio desse tempo irmanado a robusta multidão, sonhei que a felicidade caminhava ao meu lado, de braços dados, e, a tiracolo, um novo porvir que prometia nascer sem máculas. Houve um tempo, meu Deus, houve um tempo de espera muito longo, um tempo em que as horas paravam como se estivessem emperradas. 

O sol, num piscar, sumiu. O vento deixou de soprar. As flores perderam o viço. O azul do firmamento se mesclou de nuvens carregadas e de pesados silêncios. Houve um tempo em que pensei dar fim à vida. Acabar com a minha história. Antecipar o meu destino. Cortar, por derradeiro, o ar que me mantinha vivo. 

Então veio um tempo diferente. Um tempo mágico em que a vida me sorriu de forma plena. O vento soprou meus cabelos, o sol se pôs alegre e saltitante e os pássaros voltaram a cantar. Veio um outro tempo melhor. Um tempo em que a solidão se fez amena, a tristeza fugiu, o mar agitado de desgostos se transformou em ondas de bonanças. 

No mesmo trilhar desse tempo –, houve um tempo ainda mais novo. Um período de alegrias e contentamentos. Dentro dele, a escuridão se viu invadida por um foco de luz muito forte e de intensa claridade. Então me olhei no espelho. Ao me refletir, percebi que meu rosto se abria em desenhos coloridos da mais pura empolgação e beatitude. 

Os olhos, sem o revérbero da paz, brilharam com uma intensidade descomedida. O coração, de repente, bateu acelerado. Fustigou, assim como se quisesse saltar peito à fora. Me lembro que saí correndo. Estava meio louco, meio pirado. Na verdade, apavorado, ou atordoado, sei lá. 

Creio, as duas coisas me espremendo e me empurrando contra os leões que sempre nos esperam do lado de fora, quando saímos de casa em busca de algo desconhecido. Eu recebera um telefonema da maternidade. Um telefonema. Minha mulher acabava de entrar na sala de parto. Meu Deus, ela estava dando à luz. Meu Pai Eterno. EU IA SER PAI... EU IA SER PAI PELA PRIMEIRA VEZ!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 14


DESENCANTO
(Primeiro sonho de amor)

Personagens esparsos... pela vida
caminhamos, atrás de uma quimera.
Alguns se acham... o amor lhes dá guarida,
juntos mudam o inverno em primavera!

E sonhei que assim fosse… embevecida,
ao dar contigo, como se soubera
que à tua sombra, cálida e querida,
acharia a ventura à minha espera!

- Errei! Tinhas as mãos de amores cheias...
E o jovem coração, já saturado,
no fogo das paixões, ainda incendeias,

pensando ser feliz, quem sabe, assim!
Nosso romance, apenas esboçado,
"sem nunca ter começo, teve fim". (*]

(* Chave de Ouro de Guilherme de Almeida)
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DISTÂNCIA

Dois corações vazios, sem compasso,
pulsando apenas para não morrer!
Em meio à névoa… o encontro e o brilho escasso,
num milagre de amor a resplender!

Esquecemos de tudo, quando o espaço
nos arrancou da terra, a surpreender!
E, arrebatados por um terno laço,
entre os astros nós fomos esconder!

A girar sob um eixo de amargura,
frente a frente, abraçamos a ventura,
num eclipse total! E o adeus, depois...

Da angústia agora és rei! Sou a rainha!
Eu sou a tua luz!... Tu és a minha...
mas a saudade é sombra entre nós dois!
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ENCONTREI O AMOR

Quando não esperava, ele nascia!
Pensei vê-lo morrer e mais crescia,
envolvendo-me toda em seu calor!
Eis porque, tão confusa e comovida,
eu clamo, aos quatro ventos, incontida;
- Graças, meu Deus! Enfim, achei o amor!

Quando surgiu, não sei... E ninguém sabe
quando deixou de ser mera amizade,
para eclodir sincero e tão consciente!
O certo, é que minha alma transportou,
de uma ternura imensa a inundou
e em mim há de viver eternamente!
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O MOMENTO SUPREMO

O amor, esse eterno tema,
nossos sonhos enlaçou
e fez de nós um poema
que a própria vida rimou!

Esquece os receios nos meus braços...
que a vida é curta e o amanhã é incerto!
Deixa que minha mão apague os traços
de angústia, dos teus olhos. Vês? - Bem perto,

Escondida entre nuvens, há uma aurora
à espera do momento benfazejo!
Que o céu se expanda... e o sol rebrilhe, agora,
no infinito esplendor do nosso beijo!
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PRESENÇA

Tão feminina e triste, minha amiga,
não queiras, com teu jeito amargo e doce,
instilar-nos no sangue o fel da intriga:
- basta o suplício que este adeus nos trouxe!

Nosso amor é tão grande... não periga!
Ao teste da distância, confirmou-se.
Deixa que a vida sua estrada siga...
Nossa estrada, por ora, bifurcou-se.

Terna, dizes que beijas seus cabelos...
Eu asseguro que não tenho zelos
por estares, fiel, sempre ao seu lado:

- Ora, saudade, não me fazes ciúmes!
- Ao lado dele, minha forma assumes
e, junto a mim, tens o seu rosto amado!
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VIAGEM DE ESPERANÇA

Peregrino do sonho, o Poeta é um ser errante
no encalço da Verdade. Em eterna procura,
a criar o que não tem, vai seguindo adiante,
sob o impulso do ideal, que abraça com ternura!

Asa aberta à Esperança! Em cada porto, o instante
de anseio e de beleza... onde nada o segura!
Quando tange-lhe a alma um apelo cantante,
ele parte outra vez... em festa, ou em amargura.

O farnel? - Ilusões! O passaporte? - A rima!
As vestes? - Fantasia... e muito Amor por cima!
Embora preso à terra, a um destino tristonho,

o Poeta é livre sempre! É livre de alma inteira!
- É dono do Universo e não teme fronteira,
quem tem o espaço aberto à Nave Azul do Sonho!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Enviado pela poetisa.

A. A. de Assis (A gente merece?)

Fico pensando que foi assim: o grande e generoso Artista primeiro criou em pensamento o homem e a mulher e os deixou quietinhos no seu coração, como que numa sala de espera. Em seguida criou o céu e a terra e tudo o que nesse imenso espaço existe: o sol, as águas, os campos, as matas, as aves, os peixes, os bichos, as flores, os frutos, a lua, as estrelas…

Quando viu que tudo estava pronto e que tudo era muito bom, chamou a mulher e o homem, soprou-lhes o dom da inteligência e a eles determinou: “Cresçam e se multipliquem, cuidem bem deste planeta, vivam nele em abundância, mas sobretudo amem, amem, amem”.

Na parte que só depende da natureza, funciona tudo direitinho. O sol continua iluminando e gerando energia. A lua continua adornando a noite e inspirando os poetas. Os mares e os rios continuam produzindo peixes e servindo de pista para a navegação. As árvores continuam fornecendo frutos e hospedando os pássaros, que por sua vez continuam gorjeando. Tudo como foi carinhosamente sonhado pelo boníssimo Artista maior.

Só o homem e a mulher – justamente os seres havidos por mais sábios – ainda não aprendemos a fazer bem feito o que fomos equipados para fazer.

Aprendemos a ler, escrever, fazer contas, cozinhar, tecer pano e costurar roupa bonita, curar doenças, produzir música, esculpir estátuas, pintar figuras, escrever poemas.

Aprendemos a fazer um monte de coisas: casas, estradas, túneis, pontes, trens, automóveis, navios, aviões, fábricas, hidrelétricas, engenhocas de todo tipo, computadores.

Porém, que pena, falta a gente aprender a ser um ser de fato humano. Falta aprender a ser irmão/irmã. Primeiro de tudo porque ainda não aprendemos a amar.

Aí fica tudo complicado. Ficamos todos o tempo todo competindo, brigando, guerreando, gastando um tempo enorme e uma fortuna imensa fabricando armas e construindo muros. 

Então de que adiantou o grande Artista criar um mundo tão generoso e belo? Será que a gente tem jus a tanto? Será que a gente merece?…

Não teria sido mais simples o grande Artista haver criado um ser já prontinho para ser efetivamente humano e dessa forma ser feliz? Por que deixar por nossa conta o acabamento?

Egoísmo, ganância, ódio, inveja, orgulho, arrogância, safadeza, perversidade, essas desvirtudes todas tão horríveis, por que já não nascemos vacinados contra tais enfermidades?

Tudo faz crer que o grande e sapientíssimo Artista tenha achado melhor que o dom maior fosse a nossa liberdade. Não nos sentiríamos suficientemente realizados se tivéssemos recebido de mão beijada a graça da perfeição. Para dar mais valor às nossas potencialidades, teríamos de nos sentir coautores de nós mesmos.

Paciência então. Um dia chegaremos ao ponto. Deus, o supremo Artista, o amoroso Criador de todas as coisas e de todos os seres, é antes de tudo Pai.
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 (Crônica publicada no Jornal do Povo em 27.07.2023)

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2023/07/27/a-gente-merece/

sábado, 2 de setembro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 15

 

Artur de Azevedo (Coisas de Anselmo)

A cena passa-se na atualidade, no interior de uma taverna. Um bico de gás alumia escassamente um grupo de habitues. Os cérebros e os copos estão cheios de cerveja!

Anselmo, no meio dos rapazes — como Cristo entre os doutores, discute largamente sobre a sua própria individualidade.

Sejamos indiscretos como a lira do poeta, como as lufadas da ventania, como um suspiro apaixonado, e ouçamo-lo:

– Em Paris, para onde fugi das perseguições que me faziam por causa de uma dançarina andaluza que, em Lisboa, teve a fraqueza de se apaixonar por mim, cresceu o número das minhas aventuras amorosas...

– Este Anselmo!

– Vou contar-vos um dos meus menos interessantes bamboches (patuscadas): — Uma noite, aborrecido de tudo: - dos espetáculos, dos bailes e das corridas, eu passeava distraído no boulevard dos italianos e vi uma mão alva e pequena pendida de um parapeito de janela baixa — Uma mão! disse eu comigo, parando maquinalmente e contemplando extasiado aquela partícula anônima de um corpo de mulher! — Uma mão, repeti, que deve por força pertencer à mais linda madame de Paris! — E levando-a maquinalmente aos lábios, beijei-a amorosamente.

– Em Paris, Anselmo, na terra da multidão ninguém te viu praticar semelhan...

– Bem mostras que ainda não saíste do Maranhão, meu amigo. Na grande capital, quem repara nisso? Quem se importa com um beijo?...

– Continua.

– A minha mão que, para que meus lábios se colassem nas veias azuis da mão da moça, havia apertado-lhe os dedos entre os seus, sentiu-se de súbito apertada também! O meu sangue gelou-se nas veias, todo inteiro — ossos — carnes — tremi! Ergui os olhos: a pessoa conservava a mesma misteriosa posição: nada mais via que essa nevada mão que, por tão pouco, soube se apoderar de uma existência…

E eu disse: — Ange ou femme, montre—moi ton visage, regarde—moi.

— É' melhor, interrompeu um do grupo, que nos contes isso em português.

— Anjo ou mulher, traduziu Anselmo, mostra-me o teu rosto, olha-me: vê a impressão que me causou a tua mão... — Não, respondeu-me uma voz argentina e melíflua. — Ouí, redargui — Non, repetiu-se-me. E a mão desapareceu. Eu, vivamente impressionado pela esquisitice romântica da aventura, deixei a janela e prossegui o meu caminho. No hotel não pude conciliar o sono: aquela mão me aparecia por todos os lados; a minha fantasia desenhava-me um rosto angélico e sedutor, que forçosamente havia de ser o da moça do boulevard. No dia seguinte, às mesmas horas, na mesmíssima janela, a mesma mão causou-me as mesmíssimas impressões. Renovou-se diariamente, durante muito tempo, aquela excêntrica entrevista, sem nunca conseguir descobrir o rosto da minha clandestina Dulcinéa; quando afinal — um dia —, transferindo comigo mesmo as horas do meu passeio, encontrei-a debruçada à janela. Era linda como a supunha. Informei-me a seu respeito: soube que se chamava Finette, e era modista. Aproximei-me timidamente, e timidamente entreguei-lhe esta quadra que escrevi às pressas na esquina, em uma das folhas da minha carteira:

Para você, minha querida Finette,
Meu amor é muito forte;
Você se torna minha conquista,
E você é meu único tesouro!…


—Muito bem! E ela? o que te disse ela?...

— Ela, respondeu Anselmo, tomou o papel, leu, releu, refletiu e, pedindo-me o lápis, escreveu por baixo:

Eu não sou sua conquista,
Eu não sou seu tesouro.
Mas você foi estúpido,
Porque você é estúpido de novo!


Os que sabiam francês acolheram com uma gargalhada geral o remate da aventura do nosso Anselmo: este, tirando da algibeira uma caixa de colarinhos de papel, para substituir o que já se havia rasgado no pescoço —
pelo suor, preparou-se, levantou a sessão e sábio entre os seus companheiros, que o debicavam, ao ouvir-lhe as aventuras de amor.

Fonte:
Artur de Azevedo. O Domingo: Semanário crítico e literário. São Luís, MA: Tipografia do Liberal, Ano I. n. 40. 10 nov 1872.
Disponível em Domínio Público
Versado para o Português atual e traduções das quadras do francês para o português por J.Feldman 

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) XIII


Se a ausência não te tortura,
a mim, causa espanto e dor;
a ausência rouba a ternura
da graça de um grande amor!
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Planos, ilusões, quimeras,
viraram cinzas pagãs,
no forno das primaveras
dos sóis de minhas manhãs!
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Quando o silêncio me acalma,
eu sinto um desejo imenso,
de ouvir a voz de minha alma
na voz de tudo que eu penso!
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No outono, é que se descobre
que a vida é rota sem fugas,
pela presença mais nobre
do olhar, das primeiras rugas!
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Da rua de minha infância,
a saudade perpetua...
Meus passos, na ressonância
das pegadas pela rua!
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Chove!... e essa chuva, no entanto,
são lágrimas dos desejos
dos céus, acabando o pranto
dos olhos dos sertanejos!
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Quem ao outro, o amor não nega
esse amor, que ao bem conduz...
Se aceita a cruz que carrega,
não sente o peso da cruz!
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A planta, de olhar atento,
sabe que as folhas no chão,
serão adubo e alimento
de outras folhas que virão!
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Num berço, entre os mais singelos,
brilha uma luz que se lança
sobre os mais cruéis libelos,
dando aos mortais, a esperança!
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De ouro e de prata, eu sou pobre,
nunca ostentei vaidade;
não há riqueza mais nobre
que a nobreza da humildade!
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Saudade - eterna moldura,
que em todos nós, perpetua...
Passos da doce ternura
da infância de nossa rua!
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Não te esqueças que esse orgulho
que te deixa tão nervoso,
é a resposta desse entulho
do coração do orgulhoso!
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Meus versos cheios de enredos,
lutam contra o tempo atroz,
guardando os nossos segredos,
tão segredados por nós!
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Quando a tarde se aproxima,
e o sol, se despede ao léu,
põe versos cheios de rima,
nas nuvens que estão no céu!
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Sinto-me um velho andarilho,
na trilha dos rastros teus,
para entregar-te meu filho
o resto dos versos meus!
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Quando o espelho se aproxima,
num rosto velho enublado,
parece que falta a rima
que já sobrou no passado!
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Ah! se voltasse e, se eu visse
risos de amor e empatia,
talvez, a paz existisse
e afastasse a pandemia!
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O bilhete que te escrevo,
com mãos trêmulas, parece
que escrever mais não me atrevo,
sem teu calor que me aquece!
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A tarde de olhar sombrio,
nunca diz adeus, era vão...
Põe no olhar triste e vazio,
os olhos da solidão!
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Ante o beijo, me apequeno,
não sem motivo qualquer;
Quem prova desse veneno,
se rende a qualquer mulher!
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O filho embarca cantando,
mas, finge a dor dos seus ais,
com o lenço branco acenando
à mãe, que acena no cais!
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Se o orgulho, a ninguém socorre,
então, por que se orgulhar?...
Rio orgulhoso que corre,
perde o orgulho ao ver o mar!
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Quem faz guerra e busca a paz,
dá-me a resposta mais breve:
nem sabe aquilo que faz
nem faz aquilo que deve!
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Parte a jangada e, no entanto,
saudosos sonhos intensos
acenam cheios de pranto
ao cais, coberto de lenços!
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Quem faz promessas e juras,
ouvindo a voz do perdão,
percebe que as amarguras
e os desenganos se vão!
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Àquele que estende a mão,
para qualquer "Zé ninguém",
Jesus multiplica o pão
de quem dá pão, para alguém!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  
Enviado pelo trovador.

Graciliano Ramos (O marquesão de jaqueira)

Espiando a lua que branqueava o pátio, seu Libório pinicava a prima da viola, gemendo baixinho uns versos de embolada. Alexandre, com ar de entendido, aprovava a cantoria. Mestre Gaudêncio curandeiro gingava, como se quisesse dançar. Os bilros da almofada de Cesária tocavam castanholas na esteira. Um cajado bateu no copiar:

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

O cego preto Firmino entrou e, tateando, ladeando a parede, foi acocorar-se. Os bilros emudeceram e a voz de Cesária ergueu-se lenta:

— Conte a história do marquesão, Alexandre.

— É o que eu estava com vontade de pedir, meu padrinho, o marquesão, gritou Das Dores.

— Bobagem, resmungou Alexandre enrugando a cara. Seu Libório está desovando uma cantiga bonita, e seu Libório é o cantador mais famoso desta ribeira. Quando seu Libório abre o bico, até os passarinhos do mato se escondem.

O violeiro, modesto, interrompeu o canto e abafou com as mãos o rumor das cordas.

— Não senhor. Isso é bondade. Estava aqui dizendo umas besteiras, para matar tempo. Agora se seu Alexandre tem um marquesão na cabeça, eu me calo. Quando seu Alexandre move um dedo, quem se atreve a piar? Hem? Puxe o marquesão, seu Alexandre.

— Não senhor, não puxo, resistiu o dono da casa. Faço lá semelhante desfeita a uma criatura do seu tope? Continue, seu Libório.

— Continuo não. Quem sou eu? Vim escutar. Fale seu Alexandre, que é homem de merecimento.

Passaram quinze minutos nesse jogo, cada um tentando encolher-se e elevar o outro. Enfim Alexandre se deu por vencido:

— Vossemecês mandam. Eu estava quieto, mas seu Libório decide, e não tenho remédio senão obedecer. A culpada foi Cesária, que atirou em cima da gente um marquesão da jaqueira, um traste velho sem importância. Não valia a pena tocar nele. Para quê? Cesária tem cada lembrança! Eu começo, meus amigos. Não sou de gabolices. Reconheço que possuo algumas habilidades: enxergo no escuro, aguento-me numa sela e atiro regularmente. Mas em muitos casos espichados aqui para os senhores não mostrei valor. Comprei um papagaio que tinha astúcias de cristão e vi uma guariba diferente das outras. Qualquer um podia comprar o papagaio e ver a guariba, não é verdade? Na história de hoje também não pratiquei ação: recebi foi um susto dos demônios. Bem, vou principiar do princípio. Quando meu pai entregou a alma a Deus, deixou tantos possuídos que os oficiais de justiça arregalaram o olho: terra, muito patacão de ouro, um despotismo de gado. Meu irmão mais novo queria correr mundo e no inventário recebeu o quinhão dele em dinheiro; eu aceitei a fazenda, os animais e uma casa na rua, uma tapera que mandei reformar, caiar, pintar e enfeitar. Encomendei para ela móveis caros de lorde: mesas com embutidos, cadeiras fofas, camas de molas, armários, trocinhos miúdos sem nome e sem préstimo, cortinas, penduricalhos, um marquesão de jaqueira, enorme, coberto de couro lavrado, uma peça que me saiu por seiscentos e vinte mil réis. Pronta a casa, vivemos nela uns dias, na grandeza, recebendo visitas do prefeito, do juiz, do vigário, do chefe político, de todas as autoridades do lugar.

“Voltamos para a fazenda, mas aí Cesária apanhou um resfriado, cuspiu sangue, esteve uns meses bamba, entre a vida e a morte. Quando pisou no chão, só tinha osso, coitada. Magra como um casaco, amarela como gema de ovo. Deixei a nossa terra e andei tempo sem fim para cima e para baixo, procurando um doutor que botasse a mulher nos trilhos. Depois de muito xarope e muita garrafada, ela endureceu o espinhaço, tomou carne e endireitou a figura. Mas eu tinha gasto uma fortuna, tinha esbagaçado a herança quase toda em médico e botica para remendar o interior da patroa. Dinheiro nenhum, os bois desaparecendo, a miunça acabando na morrinha.”

— Exatamente, Alexandre, murmurou Cesária triste, o cachimbo apagado, o olho distante, o cotovelo pregado na almofada. Aquela macacoa estragou o nosso cabedal. É verdade que me aprumei, mas ficamos na tira e você precisou começar a vida de novo.

Alexandre amarrou a conversa na palavra da companheira:

— Isso, começar a vida de novo, deitar os bofes pela boca varando caminho, num desespero, do sertão para a mata e da mata para o sertão, comprando e vendendo. Felizmente eu dispunha de consideração, graças a Deus não me faltava crédito. Consegui levantar-me: os currais encheram-se, a cabroeira valente espalhou-se nos arredores, contando lambança, e rolos de notas graúdas forraram os fundos das arcas. Mas tive um trabalhão infeliz, espremendo os miolos e consumindo o corpo. Um dia Cesária chegou junto de mim e saiu-se com esta proposta: — “Xandu, vamos passar na rua a festa da Senhora Sant’Ana?” Não respondi que sim nem que não, e Cesária, renitente, pegou a amolar-me: — “Vamos, Xandu. Você, numa labuta dos diabos, se esquece do mundo. Faz um bando de anos que não saímos deste buraco, nem para ouvir missa. Vivemos em pecado, isto aqui fede a heresia, Xandu. E aquela casa fechada está se desgraçando com certeza no cupim e na goteira. Vamos passar na rua a festa da Senhora Sant’Ana.” Foram as suas palavras, Cesária.

— Foram as minhas palavras, Alexandre. Você tem memória.

— Tenho, prosseguiu o narrador. Fizemos os preparativos e no dia da Santa lá nos largamos para a cidade, eu no cavalo esquipador arreado com arreios de prata, Cesária vistosa na saia de montaria, composta no silhão, de banda, que naquele tempo havia decência e mulher não se escanchava em sela, como hoje. Entrando na rua, dei de cara com o Silva, homem de leitura, sabido como um tabelião. Nunca vi ninguém que soubesse tanto. Esse moço tinha andado nos estudos, defendia presos no júri, conhecia todos os livros do mundo e escrevia por baixo da água.

— “Como tem passado, major Alexandre?” —“Na graça de Deus, dr. Silva. Como vai a obrigação?” Conversa puxa conversa, estive ali um pedaço de tempo admirando a cadência do Silva. Quando nos despedimos, ele me perguntou: — “O senhor não está sentindo um cheiro esquisito, major Alexandre?” Abri as ventas, funguei e balancei a cabeça espantado: — “Não estou sentindo nada não, dr. Silva. Cheiro de quê?” Silva respondeu com um nome difícil, dos que vêm nos livros; eu fiquei jejuando, pedi que ele trocasse aquilo em miúdo, fui atendido e saí na mesma, um tanto ou quanto encabulado, dizendo cá por dentro que o rapaz tinha inventado uma pilhéria sem graça para me empulhar. Botei o cavalo na pisada baixa. Em frente da igreja, mal acabado o padre -nosso que rezo quando passo diante de imagens sagradas, desejei torcer a rédea, voltar, saber do Silva se ele tinha tido a intenção de mangar de mim. Não admito brincadeiras: comigo tudo é sério, ali no duro. Nesse ponto entrou-me nos gorgomilos um cheirinho adocicado, com jeito de mel de abelha. Ora sim senhores. Estivera a pique de fazer uma asneira, despropositar com o Silva, pessoa direita e entendida. Que faro o dele! Um faro de bicho. Tinha percebido longe, muito longe, o que eu só ali começava a sentir. Bem. Segui o meu caminho. E, enquanto andava, um arzinho açucarado, cada vez mais forte, me escorregava pelo nariz e pelas goelas. Chegamos a casa, desapeamos, meti a chave enferrujada na fechadura perra, que ninguém tinha mexido no correr de muitos anos. Abri a porta com dificuldade, entramos na sala. E vimos uma parte das coisas aproveitadas depois pelo Silva e desenvolvidas num escrito que se vendeu muito nas feiras e agradou. Fiquei de boca aberta, assombrado, Cesária deu um grito e pôs-se a tremer.

“Vossemecês não adivinham o motivo. Pois explico tudo em duas palhetadas. O marquesão tinha levado sumiço, ou, para melhor dizer, estava transformado completamente. Reparando bem, notei as pernas dele enterradas no chão, cobertas de cascas, tortas e grossas, quatro pés de pau. Sim senhores, quatro jaqueiras carregadas de frutas que se rachavam de tão maduras e cheiravam em demasia. O resto do marquesão tinha-se espatifado, e o couro do assento balançava, pendurado no meio da folhagem. Mandei cortar as plantas e pôr em ordem a sala, que estava num estrago feio, naturalmente, com o tijolo partido e a telha rebentada em vários lugares. Este caso teve numerosas testemunhas, que não me deixam mentir, entre elas Cesária, aqui presente, e o Silva, tipo de muito respeito, sisudo como o diabo. Mas confesso a vossemecês que no folheto dele, publicado em letras de fôrma, há algum exagero. Silva não se refere ao marquesão nem fala em jaqueiras: afirma que toda a mobília tinha criado raízes, que o corredor e as camarinhas se atochavam de laranjeiras e paus d’arco. Até acrescenta que as gavetas da cômoda tinham virado cortiços de abelhas, coisa que não vi, francamente, não vi. Nem eu nem Cesária. Ficam, portanto, os amigos avisados de que na história do Silva há uns floreios. Acho que ele procedeu com acerto: quando um cidadão escreve, estira o negócio, inventa, precisa encher o papel. Natural. Conversando, como agora, a gente só diz o que aconteceu. É o que eu faço. Na sala havia quatro jaqueiras. Apenas.”

Fonte:
Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944.
Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Versejando 121

 

Sílvio Romero (A Madrasta)

(Folclore do Sergipe)


Havia um homem viúvo que tinha duas filhas pequenas, e casou-se pela segunda vez. A mulher era muito má para as meninas; mandava-as como escravas fazer todo o serviço e dava-lhes muito.

Perto de casa havia uma figueira que estava dando figos, e a madrasta mandava as enteadas cuidar dos figos por causa dos passarinhos.

Ali passavam as crianças dias inteiros, espantando-os e cantando:

“Xô, xô, passarinho,
Aí não toques teu biquinho,
Vai-te embora pra teu ninho…”


Quando acontecia aparecer qualquer figo picado, a madrasta castigava as meninas. Assim foram passando sempre maltratadas.

Quando uma vez, o pai das meninas fez uma viagem, a mulher enterrou-as vivas. Quando o homem chegou a mulher lhe disse que as suas filhas tinham caído doentes e lhe tinham dado grande trabalho, e tomado muitas mézinhas (remédio caseiro), mas tinham morrido. O pai ficou muito desgostoso.

Aconteceu que nas covas das duas meninas, e dos cabelos delas, nasceu um capinzal muito verde e bonito, e quando dava o vento o capinzal dizia:

“Xô, xô, passarinho,
Aí não toques teu biquinho,
Vai-te embora pra teu ninho…”

Andando o capineiro da casa a cortar capim para os cavalos, deu com aquele capinzal muito bonito, mas teve medo de o cortar, por ouvir aquelas palavras. Correndo foi contar ao senhor.

O senhor não o quis acreditar, e mandou-o cortar aquele mesmo capim, porque estava muito grande e verde. O capineiro foi cortar o capim, e quando meteu a foice ouviu aquela voz sair de baixo da terra e cantando:

«Capineiro de meu pai,
Não me cortes os cabelos;
Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou
Pelo figo da figueira
Que o passarinho picou.»


O capineiro, ouvindo isto, correu para casa assombrado, e foi contar ao senhor que o não quis acreditar, até que o negro insistiu tanto que ele mesmo foi, e mandando o negro meter a foice, também ouviu a cantiga do fundo da terra.

Então mandou cavar naquele lugar e encontrou as suas duas filhas ainda vivas por milagre de Nossa Senhora, que era madrinha delas.

Quando chegaram em casa acharam a mulher, morta por castigo.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.
Atualização do português por J.Feldman

Daniel Maurício (Poemininos) – 1


Amizade...


Na procura
De aconchego,
O abacateiro
Encontrou
No amigo,
Bem mais
Que abrigo
E proteção.
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A paineira
Dobra-se
Em flor
Alegrando
A fachada
Da
Casa
Do
Senhor.
= = = = = = = = =

Cansado
Da rua
O cachorrinho
Inocente
Igual a Bandeira
Sonhou que
Em Pasárgada
Era amigo
Do rei.
= = = = = = = = =

Com
A chuva de prata,
O cinza escorrega
Dos meus olhos...
Dorzinha
De saudade
Vontade
Que saliva
Asas prontas
Pra te encontrar.
= = = = = = = = =

Com
Delicadeza,
A borboleta
massageia
As pétalas
Com
Seus
Pezinhos.
= = = = = = = = =

Com olhar
De admiração
É tão feminina,
A    açucena
Deixa à mostra
Seus longos
E perfeitos
Cílios.
= = = = = = = = =

Elegância...
No
Balé
Solitário
Com graça
A garça
Baila
Contra
O vento.
= = = = = = = = =

Feito
Fogos de artifício
Na noite escura,
Explodem
Margaridas
Sob a réstia
Do luar.
= = = = = = = = =

Indiferente aos reflexos
Da passagem do tempo
A coruja
Feito uma vó coruja
Com aquele ar de respeito
Protege na raça e no peito
O lugar destinado ao idoso
Aquele ser tão precioso
Do qual a vida
Não se cansa de gostar.
= = = = = = = = =

Mar
De
Março.
Nuvem
Baleia
Flutuante
Esguichando
Água
Rios
Telhados.
= = = = = = = = =

Minhas lágrimas
Por ti foram tantas
Que ao sol
Dos teus olhos
Da tua chegada
Um arco íris
Em meus cílios
Formou.
= = = = = = = = =

Na despedida
Sem ter
A Calçada da Fama
A folha
De plátano
Fica cravada
Na poça
De lama.
= = = = = = = = =

Na poça d' água
À beira do caminho,
Um pedaço de céu,
Lágrimas...
Na pressa
Da despedida
Deixo mais
Que um rastro...
Fica
Um pouco
De mim.
= = = = = = = = =

Nas areias áridas
E quentes
Do meu peito,
Teu beijo
Regou
A semente
Que julgava
Morta...
Amei
De novo!
= = = = = = = = =

Nas grossas pétalas
Da
Magnólia,
Suave
Perfume
Dos
Guardanapos
Da vovó.
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No
Brilho
Do
Olhar
do
Outro
Vejo meus
Olhos
Espelhados.
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  Quase fiquei vesgo
De tanto namorar
Uma palavra.
Arredia, me olhou
Com olhos bem arregalados.
De certo estava com medo
De compor comigo.
É...
As palavras são dengosas,
Precisam de carinho.
= = = = = = = = =

Reflexo...

As
Escamas
Dos peixes invisíveis,
Calçam
Os caminhos
Da lua
No mar.
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Sabores...
As delicadas
Rendas do jardim,
Lembram
As toalhinhas
Caprichosas
Nos cafés
Da tarde.
Que minha avó
Fazia
pra mim.

Fonte:
Daniel Maurício. Poemininos. Curitiba: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 11: A verdade aparece

Senhor Antônio, não contou nada a respeito dos novos negócios à esposa e à filha. Mas suas expressões de preocupação, repentinamente transformaram-se em cantarolados, assobios e até gargalhadas, ao trocar qualquer ideia com os peões. Além disso, andava caseiro e, pelo menos uma vez ao dia, entrava no quarto para saber da mulher.

‘O que deu nele?’ Pensou Isadora.

Os dias foram passando e nada do fazendeiro voltar ao seu estado “normal”. Claro, ainda era grosseiro e cheio de ideias machistas.

-   Teu vestido tá muito decotado, “fia” - reclamou ao ver a guria com um vestido de chita, florido, com o tecido em fundo vermelho. Aliás, vermelho não, encarnado. Era assim que ele denominava o tom avermelhado das coisas e afirmava ser essa a cor favorita das “mulheres da vida”.

Com receio de estragar o bom humor do pai, a filha, imediatamente trocou o vestido por um em tom azulado, delicado e sóbrio.

Ainda assim, o velho estava diferente. Não parecia ser a mesma pessoa. Todas as manhãs, sentava na varanda para matear em frente ao fogão à lenha e brincar com o amigável cusco da casa.

Tal mudança acalmava o coração de Isadora, mas não a convencia por completo.

Da janela do seu quarto, perdida em seus pensamentos, por várias noites seguidas se perguntou: - será possível alguém em idade avançada e costumes tão medonhos, mudar da noite para o dia?...

No decorrer desse inusitado período de paz, a moça cuidava dos afazeres domésticos e aplicava-se ao máximo para ver a mãe plena em sua saúde.

- Mãezinha, preparei uma sopa deliciosa para a senhora. - disse ela ao entrar no quarto num dia de extremo frio.

-   Teu pai nem parece ser o mesmo homem de antes. Ele está mudado. - disse a esposa, cheia de esperança.

- Espero que essa mudança seja real e venha para o bem de todos, minha mãe.

- Sempre te alertei sobre o lado bom do teu pai.

- A aparente mudança não apaga tudo o que ele fez a senhora sofrer. És uma mulher incrível, merecia um marido mais presente e carinhoso. Mas não vamos discutir sobre isso. Coma. Quero vê-la forte.

- Estou sem fome.

- Ainda sem apetite. Precisas se alimentar.

- Está bem, meu anjo. Tenho que exercitar a minha força de vontade.

- Gostei de ver. É assim que se fala!

Logo após o almoço, enquanto Isadora lavava a louça, dona Ana sentiu enjoos e desmaiou.

Meia hora depois, ao entrar no quarto, Isadora tentou reanimá-la.

- Mãe, acorda, pelo amor de Deus. Socorro! – gritou, desesperada.

Ao entrar, o senhor Antônio deu-se conta do estado lamentável da esposa e, às pressas, correu atrás do Juca.  

- Tua patroa tá passando mal. Precisa ser levada para o “hospitar”. - disse o patrão, já quase sem ar com a correria.

Com o peão no comando da direção do jipe da família, eles partiram até a cidade na fé de que dona Ana chegasse ainda com vida ao pronto-socorro.

Após ser internada novamente, o médico confirmou o estado gravíssimo de saúde da mulher.

- O coração dela está muito fraco. Precisamos conduzi-la a São Paulo para que se realize uma cirurgia. Mas vou logo avisando: a operação custará um alto valor financeiro. - explicou o cardiologista sem fazer rodeios.

- Quanto? - indagou o marido, sentindo-se apreensivo.

- Alguns mil cruzeiros.

O senhor Antônio levou as mãos ao peito. E acometido por uma vertigem, foi amparado pelo doutor que verificou a sua pressão.

- Pai. O senhor está se sentindo melhor? - perguntou Isa, minutos depois.

-  Parece que me “farta” o ar, “fia”.

- Mas sua pressão está ótima. Respire fundo e tudo ficará bem. Precisamos tratar logo sobre a transferência da mãe.

- Ela não pode ser tratada aqui, doutor?

- Pai. Não ouviste o que o médico disse?

- Sabe o que é minha “fia”, não tenho como pagar essa despesa. É uma operação cara. - disse Antônio, gaguejando.

- Pai, precisamos ter uma conversa em particular.

- Vou deixá-los a sós. Quando decidirem o que devemos fazer, é só chamar. - disse o plantonista.  
 
- Pai, que história é essa de não ter dinheiro para pagar a operação?

- Tô falido.

- O momento é totalmente impróprio para pensar em economizar.

- Tô falido. Sem dinheiro pra comprar um mísero bezerro.

- Mas o senhor é dono de uma grande fazenda e de outras fazendas menores. E, ao que parece, os peões estão com os seus salários em dia. Esclareça o que está acontecendo.

- Nesse mês os “peão” não vão receber nada.

Isadora, sem saber o que fazer, levou as mãos à cabeça, girou em torno de si e, chorando, desabafou.

- Gastou todo o dinheiro da família com mulheres e jogos.

- Nenhum “fio” ou “fia” tem o direito de acusar pai e mãe.

- Tem, sim. E eu estou lhe acusando de torrar o dinheiro da família na rua, enquanto a sua esposa ficava em casa, limpando, cozinhando e fazendo doces para vender. Trabalhou tanto que perdeu o seu maior bem: a saúde. Aliás, o trabalho é apenas uma parte do problema. A sua ausência, a sua falta de amor para com ela, a vinha matando aos poucos desde sempre.

- Cala a boca, guria. Senão o “reio”  (relho) te acha!

- Fica o senhor sabendo que não sinto medo das suas ameaças.

- Eu ergui aquela fazenda. Ela é minha.

- Sendo assim, por que batizou as terras prestando homenagem a mim?

- Porque tu também é minha! - bradou o pai, cheio de ira.

- Se a mãe morrer a culpa é sua.

-  Mas se ela se “sarvar”, a “curpa” é todinha tua.

- O que queres dizer?

- Caso aceite uma proposta, tua mãe sai dessa, viva.

- Que proposta?

- O “fio” do xiru Pafúncio tá querendo casar contigo.

- Casar comigo? Mal me conhece.

- Tá enfeitiçado por tua beleza. A “famía” é muito rica. Pode “sarvá” tua mãe e a fazenda.

- Agora estou entendendo ... Eu já estava envolvida entre os negócios de vocês ... Por isso o senhor estava diferente, cantarolando pela casa. Estava sentindo-se desapertado por teres encontrado uma forma de salvar a fazenda, me sacrificando.

- Agora tá tudo entregue nas tuas mãos.

- Covarde. O senhor é um covarde! - gritou Isadora, chorando copiosamente.

- Gente, estamos dentro de um hospital. Que gritaria é essa? -perguntou o médico ao passar pelo corredor.

- Tô fa...

- Pode preparar a transferência. A mãe será operada. - disse a filha, interrompendo a fala do pai que já se preparava para contar da sua falência financeira ao médico.

Ao ouvir as palavras de Isadora, o senhor Antônio sorriu e suspirou aliviado.
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Nota de ropdapé:
Relho: Chicote feito com couro; fita de couro cru usada para chicotear animais.

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continua…

Fonte:
Enviado pela autora