sábado, 21 de outubro de 2023

João da Câmara (O baile dos velhos)


Houve esta noite, festa rija em casa dos padeiros.

Casados há cinquenta anos, festejaram com estrondo o aniversário do casamento. E não pensem que por não haver lá gente moça a festa desmereceu. Isso sim! Das oito à meia noite, nem o Bento das mãos largou a guitarra, nem faltaram pares no meio da casa.

Ficou logo combinado, mal o Antônio Pataco falou naquilo: — Quem não foi convidado para a boda, também não dançou naquela noite, nem comeu os leitões assados. Então é que se viu como as mulheres se atiram pela velhice afora com alma e coragem; eram doze nem mais nem menos, e os homens apenas seis, todos muito atrapalhados, (tanto mais que o Prior não contava) tendo que atender a tanta senhora, não querendo escandalizar nenhuma.

A casa, segundo contam, estava um brinco. Começava logo pela iluminação. Das vigas do teto pendiam sete candeias e, como reforço, ardiam quatro velas sobre as mesas dos cantos. Ao redor da casa, no friso caiado, tinham disposto a louça branca e na chaminé um grande tronco de azinho ardia, rodeado de piorno (planta leguminosa), fazendo passar clarões vermelhos na bateria de cobre, disposta, como um troféu, do outro lado da casa.

Quando um homem pensa que, além daquela riqueza, o Antonio Pataco tinha mais do que outro tanto em serviço na cozinha, e que tudo aquilo não é nada em comparação com o muito que nós sabemos que ele tem, haverá rapaz na aldeia que mereça a linda neta tão branquinha e tão rica, fechada provisoriamente naquela noite num dos quartos do sótão da casa?

O prior velho foi quem presidiu a festa como é de ver. Está cego de todo, coitado; mas, apesar disso e de andar algo tanto acabrunhado desde que não pode ler no missal, atendendo a ter sido quem os casara, lá se arrastou conforme pode, e não foi talvez dos que menos se divertiram. Abordoado á grossa bengala de castãozinho de prata, amarelada pelo uso, tremendo na mão dele, assistiu à toda a festa, até de madrugada, sacudindo com ar de aprovação a cabeça muito calva, onde apenas meia dúzia de cabelos brancos muito compridos, esvoaçavam, tenuíssimos, no ar agitado.

Até a meia noite não se fez outra coisa senão dançar e mais dançar. O Bento não se cansou de tocar na guitarra, apresentando, como pretexto para não se mexer o tamanho do ventre, que vai tomando com a idade proporções medonhas. Alguns quiseram insinuar que eram as pernas que lhe começavam a enfraquecer, mas logo desarmou a intriga, atirando um pontapé, que acertou, como por acaso, nas canelas do mestre-escola.

A pobre guitarra, velha também, rachada e fanhosa, não se lembrou senão de fandangos antigos, e era de ver como aqueles bons velhos, talvez enganados pelo som daquelas cordas que os transportava cinquenta annos para trás, ouvindo aquela música alegre, que lhes trazia recordações risonhas da mocidade, criaram novas forças e, cheios de animação, dançaram, no meio dos bravos, ligeiros como arvelas (velhacos), sorrindo-se como se ainda se namorassem, como, havia meio século, se sorriam e namoravam.

Quem abriu o baile foi o padeiro, dançando com a mulher.

— Aí, rapaz! – gritou-lhe o Bento.

Mas era lá preciso que o animassem! Com o seu belo calção de briche* fino, o colete verde de botões de vidro, as boas polainas espanholas, parecia ter voltado aos trinta anos, bem aprumado, de cabeça erguida, arqueando o peito, balançando os braços, fazendo estalar os dedos.

A mulher custou-lhe mais por causa do reumatismo; mas, apesar de muito dobrada, lá se animou. Levando aquilo muito a sério, dançou perto de um quarto de hora, diante do marido, que sapateava, tentando recordar as habilidades, que noutros tempos o tornaram falado por todas aquelas aldeias.

E só a ideia daquela saiazinha amarela, remexendo-se, trêmula, por toda a casa, perseguida por aquele velho cheio de cabelos brancos e de rugas, fazia rir ás gargalhadas estrondosas o Prior, que não via nada e lançava o olhar incerto, ora para um lado, ora para o outro, num menear constante de cabeça.

— Está sédulo (diligente) e meio dançando. - disse o mestre escola com a gravidade do ofício.

— E muitos pozinhos, e muitos pozinhos! - acrescentou o Prior, continuando a rir.

Todos aplaudiam. O Bento na guitarra apressava o andamento.

— Não posso, não posso mais! — declarou a velhinha deixando-se cair esfalfada (fatigada) num tropeço, ao pé da lareira.

— Quem vem então? — perguntou o Antônio, limpando o suor.

E ficou parado no meio da casa, de mãos na cintura, olhar altivo, esticando a perna, com um sorriso orgulhoso.

Muito se dançou naquela noite, em casa dos padeiros!

Mas o melhor foi a ceia.

O Bento esteve famoso. De mais a mais o Antônio, muito naturalmente de propósito, sentou-o logo entre a Mariana Coxa e a Maria do Rosário. Imaginem!

Todos se lembravam ainda de quando elas, à volta da fonte, se arranharam, por detrás do moinho, no meio dos cacos das bilhas partidas. Agora, muito trêmulas, muito engelhadas, de um lado e outro daquele coração de bronze, mastigavam lentamente, enchendo as bochechas, de beiços muito recolhidos, tocando quase com as barbas para cima nos narizes para baixo.

Enquanto se tomou a canja, houve um silêncio quase geral, apenas interrompido pelos recados do padeiro à velha criada Matilde ou pelos convites aos assistentes.

— O canjirão*. Vai já deitando. Começa aqui pelo Sr. prior. Mais uma colherinha de canja, tia Inês?

E os velhos, todos em volta, sopravam longamente com as colheres ao pé da boca e sorviam depois o caldo, com uns apitozinhos gulosos, fechando os olhos; alguns amoleciam na canja as côdeas de pão, e o padeiro, de pé, observando, com a concha metida na enorme terrina, lançava em redor um olhar atento de bom dono de casa, pronto para dar mais a quem pedisse.

— Senta-te e come! — disse-lhe a mulher. — Que aflição!

— Sente-se e coma! Isso mesmo! Entre rapazes não há cerimônias. Quem quiser mais peça por boca!! — gritou o Bento, estendendo o prato.

Mas já então a Matilde vinha trazendo os assados.

Os convidados limpavam os beiços à toalha e os homens despejavam os copos para abrir o apetite. Então começou tudo a falar. Só o professor é que não tomou parte nas discussões, para não perder a gravidade. Chamando a si uma travessa, onde um magnífico peru ostentava a opulência das carnes aloiradas, espetou-lhes o garfo e, pondo as lunetas redondas na ponta do nariz afiladíssimo, depois de atentamente ter examinado o fio da faca, principiou, cheio de sua perícia, a trinchar, seguindo com olhares gulosos os bocados, que iam caindo.

O canjirão já voltara por três vezes à cozinha, quando a padeira começou a servir o pato bravo. E da pinha enorme de arroz, que tremia na colher, iam caindo os baguinhos na toalha.

O Bento repetia todos os pratos e desabotoava os botões do colete.

Foi então que, depois dum segredo, que o Antônio Pataco lhe disse ao ouvido com ar de muito mistério, a Matilde saiu, entrando pouco depois com os leitões e trazendo debaixo dos braços umas poucas garrafas, que pôs sobre a mesa defronte do padeiro.

— Sabem, meus senhores? Garrafas lacradas por mim no dia do meu casamento. Os seus copos, façam favor… Ora adeus! O que é isso, Sr. professor? O copo maior… Então? O vinho é o sangue dos velhos.

O sangue não sei, a língua é com certeza. Instantes depois a algazarra subira de tom a tal ponto, que o professor, de pé, examinando à luz a transparência da ametista enorme que lhe refulgia no copo, teve de pedir auxílio ao dono da casa para impor silêncio à velharada.

— Meus senhores… — começou.

Mas as velhas não se continham; haviam de palrar por força. Mal o mestre-escola, com ar choroso, começou falando de tantos que faltavam àquela festa, puseram-se elas a gritar.

— Basta! Basta! Não queremos tristezas!

Deus me perdoe, mas está-me parecendo que o vinho lhes subira às cabecinhas brancas. Não sei se o professor também desconfiou da coisa. Muito ofendido, todo vermelho, sem poder dominar com a sua fanhosa voz de falsete a imensa berraria, pousou o copo sobre a mesa e começou a atacar o queijo, resmungando.

O Bento é que teve as honras da noite, contando histórias de sua mocidade.

Rapaz perfeito, dono de três moinhos, era mais a mim, mais a mim, todas o queriam.

— E mal sabes tu, Antônio, uma coisa. A tua Josefa também me esperava à porta, quando eu passava, atirando-me cada olhadela!

— Que é lá isso? — perguntou o Antônio, erguendo-se, entornando o copo sobre a mesa e deixando correr em dois fios pelas rugas do queixo o bochecho que tinha na boca.

Como o Antônio tem mau gênio, a questão esteve por um triz a azedar-se.

— Ainda tu acreditas naquele traste! — disse Josefa levantando a mão e como que ameaçando o Bento com uma tremenda bofetada.

— É verdade, sim senhores, é verdade! — teimava o Bento, estirado por cima da mesa, de colete já todo desabotoado.

Os outros velhos protestavam, rindo muito. O prior serenava o Antônio. Ele bem devia ver que tudo aquilo era troça e que o Bento estava a brincar.

— E quem sabe? — continuou este. – Talvez que você não festejasse hoje o aniversário do seu casamento, se eu nesse tempo não andasse meio parvo por causa ali da tia Domingas.

— Ah? — perguntou a tia Domingas, aproximando da orelha o côncavo da mão.

— Que andou meio parvo por vosmecê. — explicou o prior a berrar.

A tia Domingas, um pouquinho tonta, engoliu com muito esforço um grande bocado de leitão, que ruminava havia um bom quarto de hora, e disse toda comovida:

— Não me fale nesse tempo, Sr. Bento, não me fale nesse tempo!

E durante toda a ceia houve sempre alegria, menos na cara do mestre-escola.

— Que tem, Sr. Mateus? – perguntou-lhe o prior. — Há muito que lhe não ouço a voz.

— Vossa Reverência bem sabe que nunca fui…

— Sei, sei. — interrompeu o prior. — Aqui a Sra. Bernarda que diga o que vosmecê foi. Pela madrugada, quando já as cotovias cantavam pelos campos e as figas das janelas luziam como fios de cristal, levantaram-se todos para sair.

O prior cabeceava havia um bocado, e o Bento, depois de muito contar e muito mentir, assentara sobre o peitilho* bordado à segunda barba rubicunda, olhando por baixo, com olhar acarneirado, cheio de meiguice avinhada e de sono mal combatido.

Havia longos silêncios e bocejos profundos.

Então as velhas lembraram-se de, como havia 50 anos, acompanhar a Josefa ao quarto. E pelo corredor a Josefa, com a sua saiazinha amarela, bordada, com largas fitas de veludo preto, muito envergonhada, era seguida pelo Antônio, que, por brincadeira, queria impedir que os amigos viessem, dizendo que não era costume.

Pararam todos à porta.

Pela janela entreaberta a luz fria da manhã entrava no quarto, enchendo-o duma serena meia claridade.

O quarto estava na mesma: o oratório defronte da porta sobre a cômoda de pau santo, à direita o baú encourado, tapado com uma chita de ramagens, ao fundo o leito antigo, muito alto, coberto com uma colcha escarlate e onde, uma ao lado da outra, muito chegadas, duas almofadas bordadas, pequeninas, alvejavam na penumbra.

Havia 50 anos!
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* VOCABULÁRIO
BRICHE = tecido de lã castanho-escuro, felpudo e grosseiro, us. na confecção de roupas masculinas.
CANJIRÃO = Vaso grande com asa, para vinho ou líquidos em geral.
PEITILHO = Peça do vestuário que cobre ou reveste o peito. Peitilho da camisa, a parte da camisa que assenta sobre o peito.

Fonte: Disponível em Domínio Público. João da Câmara. Contos. Lisboa: Guimrães, Libânio & Cia, 1900. Atualizado para o português brasileiro por J. Feldman

Clarisse Cristal (Solar)

Das vagas memórias que tenho da minha não muito distante infância, das mais abissais, das mais alvaresianas, é uma breve ida para a praia em família, que assombra. Apesar de viver em uma cidade praia de veraneio, posso confessar que a minha família não era e ainda não é até hoje de aproveitar o sol à beira mar. Mas voltando aos vestígios de uma lembrança amarga que não deveria nunca sair da fossa abissal do meu palácio das memórias. 

Conto em especial, de um dia tragicômico, sim uma tragédia cômica, se é que isto é possível. E como uma simples ida à praia em família pode ser uma roleta russa. Pois então só para situar as coisas, eu sou filha natural e legítima de um casal inter-racial. E isto por si só gera embaraços no cotidiano. 

Onde vivo, em alguns ciclos, ter pai branco e mãe negra, é sinceramente uma tragédia em si. E talvez o próprio casamento seja em si uma tragédia em algumas ocasiões. O verdadeiro drama é o lugar aonde vivemos, e coloca muito aonde nisso aí, pois ser um ser deslocado no tempo e no espaço não é nada fácil, onde as pessoas parecem viver na idade das trevas. 

Pois voltemos ao que interessa, a ida à praia, em um dia forte de sol de verão. Para mim, o fato de viver defronte a um enorme oceano por si só é uma tragédia. Pois lá está a imensidão oceânica sem fim e todos os dias na tua cara para dizer o quanto eu sou pequena. 

Sim, saímos nós, uma pequena família, a pé de casa e cruzamos a avenida hiper movimentada. Eu saí correndo, depois de me desvencilhar do meu pai e quase causar múltiplos acidentes de trânsito. Na beira-mar, mais uma vez eu saí correndo depois de me desvencilhar dos cuidados materno e paternos e pôr os meus pequenos pés na areia escaldante, e descobrir como aquilo é quente. 

Pois bem, amigos e amigas, lá estava eu com o meu maiô infantil floral. Uma peça única, muito cafona, feita em poliamida e elastano. Com as duas alças finas e reguláveis, babadinho azul marinho, no busto e atrás, e com uma estampa mais que exclusiva. Nossa que coisa horrível, eu poder lembrar de detalhes exatos, pois a minha orgulhosa mãe simplesmente mostra até hoje uma fotografia minha, vestindo o trágico traje de banho para as amigas, parentes e quem quer que seja. 

Mas estou dispersa hoje, o que importa é lembrar que o meu pai protetor veio em meu socorro, ele veio correndo socorrer a garotinha dele que gritava sentindo as areias escaldantes a queimarem seus frágeis e pequenos pezinhos. E a minha mais que querida mãe? Se bem me lembro, estava mais ocupada que nunca, vendo um guarda da esquina dar uma dura em um motorista de um carro utilitário, que estacionou no quarteirão. Ora, um veículo com placa de outra cidade e sem alvará para vender bugigangas e alimentos variados, de origem duvidosa na beira mar não pode mesmo. 

Mas deixemos o aparato repressivo do estado para lá, eu sã e salva nos braços fortes do meu pai herói, ato embalado aos estridentes sons das ondas que quebravam na orla da praia, gaivotas gorjeando no céu azul e muito barulho mecânico ao redor. 

Gritos e mais gritos, altos que suplantaram os demais sons da natureza geológica, mecânica e do reino animal. Era uma jovem mãe, que aos prantos chorava pelo seu filho. Estava morto jogado no chão, na areia úmida da praia, tinha três salva-vidas ao redor que só olhavam o menino morto. E, até hoje, não sei se foi um ataque de tubarões ou afogamento puro e simples. 

Quanto a minha bela família? O meu protetor pai colocava as mãos nos meus ouvidos e virava a minha cabeça para o lado oposto da cena terrível. Enquanto isso a minha mãe que procurava e acabou encontrando um lugar na areia da praia, queria pegar um pouco de sol.

Fonte: Enviado por Samuel da Costa

Dicas de Escrita (Como Escrever um Roteiro) – 1

Escrever um roteiro para um curta-metragem, um filme ou uma série de TV é uma ótima forma de exercitar a criatividade. Comece com uma boa premissa e uma trama que coloque os seus personagens em aventuras transformadoras. Trabalhe duro e formate corretamente o texto. Em alguns meses, você terá um roteiro todinho seu!

CRIANDO UM UNIVERSO
1
Pense em um tema e um conflito que você queira abordar. 
Para bolar a ideia central do seu roteiro, comece se perguntando “E se?”. Busque inspiração no mundo em que você vive. Tente imaginar como a realidade seria afetada por um personagem ou acontecimento. Outra opção é partir de um tema mais amplo, como o amor, a família ou a amizade, para deixar o roteiro mais coeso.

Por exemplo: “E se um adolescente viajasse no tempo e conhecesse os pais ainda jovens?” é a premissa central de De volta para o futuro ao passo que Shrek se pergunta o que aconteceria se uma princesa fosse resgatada por um monstro em vez de um príncipe encantado.

Ande sempre com um caderninho para anotar as suas ideias.

2
Escolha um gênero para a sua história. 
Os gêneros são importantes dispositivos narrativos que dizem aos leitores que tipo de história eles devem esperar. Preste atenção nos seus filmes e seriados favoritos e tente escrever um roteiro mais ou menos no mesmo estilo.

Misture dois ou mais gêneros para criar uma obra única. Você pode, por exemplo, criar um faroeste no espaço ou um romance com elementos de horror.

Escolhendo um gênero

– Caso goste de cenários faraônicos e explosões, que tal escrever um filme de ação.
– Já se for mais chegado em assustar os outros, invista em um roteiro de horror.
– Arrisque uma drama ou uma comédia romântica se quiser contar a história de um relacionamento.
– A ficção científica por sua vez, é perfeita para os fãs de efeitos especiais e para quem gosta de se perguntar o que vai acontecer no futuro.

3
Escolha um cenário para a história. 
Lembre-se de que o cenário deve se encaixar bem na narrativa ou combinar com o tema do roteiro. Faça uma lista de, no mínimo, três ou quatro locais diferentes para as aventuras dos seus personagens. As mudanças de locação vão deixar o roteiro mais dinâmico.

Caso um dos seus temas seja o isolamento, por exemplo, experimente usar uma casa abandonada como locação.

O gênero da história também vai influenciar a escolha do cenário. É praticamente impossível fazer uma aventura de faroeste em Nova York, por exemplo.

4
Crie um protagonista interessante. 
O personagem principal precisa de um objetivo que ele deve tentar alcançar ao longo da história e de uma falha de caráter para se tornar um protagonista mais interessante. Faça dele um mentiroso ou um egoísta, por exemplo. Ao fim do roteiro, o personagem deve completar um arco e sofrer algum tipo de transformação. Pense bastante em que tipo de pessoa o seu protagonista vai ser no começo e em como os acontecimentos da história vão mudá-lo.

Não se esqueça de dar um nome memorável para o personagem!

5
Crie um antagonista que se oponha ao protagonista. 
O antagonista serve para dificultar a vida do personagem principal. Ele deve ter uma personalidade parecida com a do protagonista, mas enxergar as coisas de um jeito diferente. Caso o seu herói queira salvar o mundo, por exemplo, crie um antagonista que ache que o mundo só pode ser salvo por meio da destruição.

Em uma história de horror, o antagonista pode ser um monstro ou um assassino mascarado.

Já numa comédia romântica, o antagonista pode ser a pessoa que o personagem principal está tentando conquistar.

6
Escreva uma sinopse de, no máximo, duas linhas para resumir a trama. 
Uma sinopse é um resuminho dos acontecimentos principais de um filme. Para escrever uma boa sinopse, seja bem descritivo. Assim, todo mundo vai ser capaz de entender a parte central da sua história. Não se esqueça de incluir o conflito da trama!

O filme Um lugar silencioso poderia ser descrito da seguinte forma: “Uma família é atacada por monstros”. Porém, essa sinopse deixa todos os detalhes de fora. O ideal seria dizer: “Uma família precisa viver silenciosamente para não ser capturada por monstros com audição hipersensível”. Assim, todo mundo que ler a sinopse será capaz de entender os pontos centrais da história.
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continua…

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 24


Mensagem na garrafa – 14 –


GONÇALVES DIAS
Caxias/MA (1823 – 1864) Guimarães/MA

AMANHÃ

Amanhã! — é o sol que desponta,
É a aurora de róseo fulgor,
É a pomba que passa e que estampa
Leve sombra de um lago na flor.

Amanhã! — é a folha orvalhada,
É a rola a carpir-se com dor,
E da brisa o suspiro, — é das aves
Ledo canto, — é da fonte o frescor.

Amanhã! — são acasos da sorte;
O queixume, o prazer, o amor,
O triunfo que a vida nos doura,
Ou a morte de baço palor.

Amanhã! — é o vento que ruge,
A procela de horrendo fragor,
É a vida no peito mirrada,
Mal soltando um alento de dor.

Amanhã! — é a folha pendida,
E' a fonte sem meigo frescor,
São as aves sem canto, são bosques
Já sem folhas, e o sol sem calor.

Amanhã! — são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã! — o triunfo, ou a morte;
Amanhã! — o prazer, ou a dor!

Amanhã! — que te importa se existes?
Folga e ri de prazer e de amor;
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deus somente é Senhor! 

Monselhor Orivaldo Robles (O novo e o velho)

Com exceção da terça-feira, todos os dias salto da cama às 5h45. Às 6h00, dou uma olhada rápida nas notícias da Internet. Depois saio para a Catedral onde procuro, na oração da manhã, juntar fé e vida. Vez por outra surge um informe interessante, embora incapaz de mudar o rumo do nosso mundo sem juízo. Como a nota, outro dia, da volta à fabricação, nos Estados Unidos, do LP (long playing record), que a meninada nem sabe o que é. Sobrevive entre nós quem prefira os antigos “bolachões” tocados na radiola, pickup, radiovitrola, toca-discos ou, simplesmente, vitrola. Diz que o som é mais fiel que o do CD, DVD, Mp3 ou de outras invenções que desisti de acompanhar. E eu que julgava um transtorno acomodar meus 700 LP perfeitos, sem arranhão nenhum! Tive o bom senso de não me desfazer também do pickup Polyvox, da potência Akai e das caixas Celebration. Podem considerar-me o zelador de algum museu, não ligo. Importante é que funcionam que dá gosto. 

Gostei de ler (DNP, 13/07/2014, Cultura, pág. D1) que Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, de 1967, é o primeiro dos 200 álbuns do Rock and Roll Hall of Fame. Tenho esse CD. Um pouco mais, a cada dia que passa, sinto-me um papalvo a discursar para sobreviventes de outras eras. Trato de coisas que ninguém mais vê. Deixaram de existir. Ou, quem sabe, nem tenham existido realmente; eu é que sonhei com elas. Eu e uns poucos tolos iguais a mim. 

Estudantes de Filosofia, em 1961, Padre Almeida e eu estivemos num encontro de seminaristas dirigido por Dom Luiz do Amaral Mousinho, arcebispo de Ribeirão Preto. O evento inaugurou o seminário construído em Brodósqui, cidade natal de Cândido Portinari. Um prédio imenso, tinindo de novo, acolheu jovens da Filosofia e da Teologia de muitas partes do Brasil. Inclusive três caipiras do Norte do Paraná: nós e, Rinaldo Semprebom, de Londrina, já cursando Teologia. 

Era um tempo de grande agitação de ideias. No meio eclesiástico, tradicionalistas e progressistas sustentavam discussões candentes e intermináveis. Pernambucano arretado e culto, dono de grande amor à Igreja, Dom Mousinho movia-se com liberdade nesse campo minado. Numa das palestras discorreu sobre dois pensadores católicos situados em campos opostos: o ultraconservador Gustavo Corção e o progressista Tristão de Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima. Com aquela verve nordestina, encerrou o assunto matando a pau: “Nem o novo porque é novo, nem o velho porque é velho; mas a verdade porque é verdade, e o santo porque é santo”. 

Mais de cinquenta anos passados, não consegui esquecer. E me esforço por levar a lição à prática. Gente existe que consagrou o tempo como critério de verdade. Só admite como válido o que acabou de sair do forno. 

Alguém lembra a música de Marcos Valle (1971) “Não confie em ninguém com mais de 30 anos”? Pois é a canção levada ao pé da letra. Faz sentido acatar uma pessoa, uma ideia, um modo de agir unicamente por ela (e) ser moderna (o)? Há antiguidades que continuam, por inteiro, atuais. Inclusive benéficas. Andar a pé, por exemplo. O inverso também acontece. Também se encontra quem odeia o que é moderno. Será insegurança? A verdade está acima de tudo. Independe do nosso gosto, preferência, escolha ou simpatia. Ela impõe-se por aquilo que é em si mesma. Não porque nos garanta prazer, lucro ou prestígio social.

Fonte:

Baú de Trovas LXX



Que bela sogra possuo!
Tão boa assim, nunca vi!
— A melhor sogra do mundo,
porque nunca a conheci...
ALMA SELVA
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O velho, a velha afagando,
fita triste a vela acesa,
ao ver o fogo apagando
no castiçal sobre a mesa…
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG
São Fidélis/RJ
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Na casa de uma vizinha,
na confusão me meti.
Pela porta da cozinha,
eu nem sei como sai...
ARI RODRIGUES ALVES
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Olho os decotes em V...
fico vesgo e nada vejo!
Sinto a atração dos abismos
e as torturas do desejo...
AUGUSTO LINHARES
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Com lucidez peculiar
quantos “doidos” são mais certos,
que os que pensam acertar
julgando-se muito espertos…
CLEVANE PESSOA
Belo Horizonte/MG
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É fácil ser um herói
com uma espada e armadura;
mas é quando a alma dói
que se revela a bravura.
ELISABETE DO AMARAL AGUIAR
Mangualde/Portugal
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Nesta saudade, sem vê-la,
boêmio, só, pela rua,
faço queixa a cada estrela
e choro no ombro da lua.
GERSON CESAR SOUZA
São Mateus do Sul/PR
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Num sarcasmo soberano
contra a humana criatura,
Deus pôs um cérebro humano
dentro da noz imatura!
HEITOR P. FRÓES
Cachoeira/BA (1900 –  ? )
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Na casa de Madalena,
que festa! Ninguém reclama!
— De dia, bater de boca;
de noite, ranger de cama...
HÉLIO MALLET
São Paulo/SP
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Menina pode ser tudo,
tudo o que bem quiser.
Não dê bola ao linguarudo
nem se é “coisa de mulher”…
HENRIETTE EFFENBERGER
Bragança Paulista/SP
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Para qualquer falador,
na mais opípara ceia,
foi sempre o melhor dos pratos
falar mal da vida alheia...
HERNAN CABEZA
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Século XX — mentira,
comédia rude e bem cômica:
“— Viver com penicilina
e morrer com bomba atômica!"
J. FERRAZ FREITAS
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Ao casar, o homem se deixa
vencer por uma mulher.
— Ele então pensa que manda,
mas faz sempre o que ela quer.
J. REVORÊDO NETTO
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Meu casório, realmente,
foi repleto de alegria.
— Nunca eu vira tanta gente
dentro da delegacia!...
JADIR VILELA JÚNIOR
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Sempre foi tão reverente
e tão pegado à etiqueta,
que, quando perde um parente,
só toma cerveja preta!
JOÃO RODRIGUES
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O gato nasceu valente
porque tinha de nascer...
— Já pensou se fosse a gente
trinta esposas defender?...
JOSÉ AMARAL
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Busco sempre ser feliz
e a sorte sempre me logra,
pois, me dando quem eu quis,
me deu também uma sogra..,
JOSÉ GOMES PIMENTA
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Perguntou-me o Joaquim
se do ócio não me canso.
Eu lhe respondi que sim:
que quando canso... descanso.
JOSÉ RAIMUNDO BANDEIRA
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Já vi bacharel artista
em causas insustentáveis;
e médico especialista
em doenças incuráveis...
LAURO SILVA
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Distraído, o passarinho,
vendo um rato entrar na toca,
deu-lhe um puxão no rabinho
pensando que era minhoca.
MARINA VALENTE
Bragança Paulista/SP
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Que por pilhéria não tomem
este epitáfio gozado:
"Aqui descansa, hoje, um homem
que nunca esteve cansado..."
NELSON GAMA DO NASCIMENTO

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Estes teus lábios rosados
e este decote atrevido
são dois grandes atentados
aos deveres de um marido.
NICOMEDES ARRUDA
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Quem pensa não casa! — diz-se
com frequência e com alarde.
Mas fazemos a tolice
de pensar quando já é tarde...
OTHON COSTA
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Se a feroz sogra o Veloso
matar por ódio ou temor,
não chega a ser criminoso,
mas um bravo caçador...
P. DE PETRUS
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Doutor que má fama tem
foi rever sua cidade.
Lá não foi matar ninguém:
foi só matar a saudade...
PYLADES GAMA
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Em nossos tempos, também,
não se despreza a mentira,
pois um tolo sempre tem
outro tolo que o admira...
RAUL OLIVEIRA RODRIGUES
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Naquela tarde, Teresa,
quis te falar de virtude.
— Minha boca ficou presa
à tua bõca: não pude!
RENATO GOULART DA SILVEIRA
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Depois que se aposentou,
seu pijama é só frangalho,
pois nunca mais o tirou
para não lhe dar trabalho.
VANDA ALVES
Curitiba/PR
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Num pagode, em Ponta Rica,
quando estoura a confusão,
corre a moça e o homem fica
pra seguir de rabecão!...
WALDEREDO PEREIRA DE OLIVEIRA
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Nota: Os trovadores sem dados de nascimento, foram obtidos no livro Trovadores do Brasil, de Aparício Fernandes. Na época que foi publicado este livro, não existia a obrigatoriedade de rimar o 1. com o 3. verso.

Contos do Folclore Brasileiro (A rainha que saiu do mar)

(Folclore do Rio de Janeiro)
HOUVE UM REI QUE DESEJAVA se casar com a moça mais bonita que houvesse no seu reino. Já se tinham corrido todas as casas, e chamado todos os pais de família para apresentarem suas filhas, e nenhuma tinha agradado ao rei.

Fazia oito dias que tinha assentado praça um recruta abobado num batalhão, e neste dia tinham de ser apresentadas as filhas de um lavrador, que eram as únicas moças que o rei ainda não tinha visto, e neste dia tinham de ir à missa os batalhões.

Logo que entrou na igreja o batalhão em que tinha assentado praça o tal abobado, pôs-se este a chorar, o que vendo o comandante do batalhão lhe perguntou o que tinha. Respondeu ele que “nada sofria, mas que tendo visto aquela imagem (apontando para uma imagem muito formosa que havia na igreja) tinha ficado com saudades de sua irmã, que muito se parecia com aquela santa.”

Ficaram todos duvidosos e zombando do pobre soldado; mas chegando aquilo aos ouvidos do rei, este mandou chamar o rapaz e lhe indagou da verdade, ao que ele respondeu ser exato ter uma irmã muito formosa e parecida com a imagem que havia na igreja.

Perguntando o rei onde morava ela, respondeu: “Nas gargantas do Monte Escarpado, a dez mil léguas por terra e cinco mil por mar.”

O rei mandou logo preparar uma esquadra e enviar uma delegação ao pai daquela moça, pedindo-a em casamento. O recruta também foi com a comissão.

Logo que chegaram ao Monte Escarpado avistaram a moça na janela e ficaram todos embasbacados ao ver tanta beleza junta.

O almirante entregou ao pai da moça a carta do rei, e o velho enviou a sua filha. Chegando a esquadra na volta do Monte Escarpado, o mar era muito forte, e a gente saltou para terra, indo com a moça ter à casa de uma velha, que ali morava.

A velha, que era um desmancha prazeres, indagou para onde iam e de onde vinham, e sabendo de tudo convidou a moça para ir dar um passeio pela horta e lá atirou ela dentro de um poço.

Ora já sendo de noite, quando tiveram os da esquadra de embarcar não deram por falta da moça, porque a velha pôs em lugar dela a sua filha, que era um monstro de feia.

Quando os  navios largaram e se fizeram ao largo, a velha foi ao poço, tirou a moça para fora, cortou-lhe os cabelos, furou-lhe os olhos, e botou-a num caixão e atirou no mar.

Foi o caixão parar ao reino primeiro que os navios. Um pescador o achou e levou para casa, e julgando ter dinheiro, pôs-se a gabar-se, dizendo que tinha dinheiro para combater com o rei. Foi chamado o pescador e confessou ter achado um caixão cheio de dinheiro, foi um guarda do palácio para examinar o caso. Aberto o caixão deram com a moça dentro, ficando todos penalizados com aquilo por verem uma moça tão bonita com os olhos furados e os cabelos cortados.

Voltou o guarda para palácio, conduzindo a moça. Quando lá chegou, já tinha também chegado a comissão com a filha da velha. O almirante, muito triste, disse ao rei: “Não fui como vim; fui alegre e volto triste; mas me sujeito à pena que rei, meu senhor, me quiser dar.”

O rei respondeu: “Nada tenho a fazer, senão casar-me com esta feia mulher, que me chegou.” Houve o casamento, mas o rei se conservou sempre triste e vestido de luto.

Apresentando-se-lhe a moça dos olhos furados, ainda mais triste ficou o rei. Sendo ela reconhecida por seu irmão e pelos da comissão, mandou o rei buscar a velha em cuja casa estiveram de passagem.

A velha negou tudo e até desconheceu a sua própria filha. O rei reconhecendo que os traços da velha eram os mesmos da moça com quem se tinha casado, despediu esta e mandou furar os olhos da velha e cortar-lhe os cabelos.

Logo que isto fizeram, os olhos da moça, que foi achada no mar, tornaram a ficar perfeitos e cresceram-lhe os cabelos. Houve então o novo casamento com a rainha, que veio do mar, sendo nele jogada a velha.


Fonte: Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Coleção Acervo Brasileiro vol. 3. Jundiaí/SP: Cadernos do Mundo Inteiro, 2018. Publicado originalmente em 1954. Disponível em Domínio Público.

Estante de Livros (Dia de São Nunca à tarde, de Roberto Drummond)


Dia de São Nunca à Tarde foi a primeira obra do jornalista Roberto Drummond, autor de sucessos como Inês é morta, A Morte de DJ em Paris, Hilda Furacão, que foi publicada postumamente. O livreto contém menos de 100 páginas, escritas com uma sensibilidade e uma profundidade impressionantes.

A obra conta a história de Gabriel, o menino prodígio no time de futebol do colégio interno de padres; Gabriela, sua irmã gêmea idêntica; Frei Vicente, que faz milagres; Frei Tanajura, um homem intransigente e que tem pavor a uma certa tribo indígena; os alunos do internato e os padres fantasmas que vivem ali.

No colégio, há uma aura de apreensão porque o campeonato de futebol está prestes a começar, e Gabriel não retornou das férias na casa da mãe. Passam-se dias, até que ele chega, sendo trazido pela mãe - descrita como uma mulher extremamente sensual e perfumada, que desperta sensações intensas, e pela irmã, por quem um dos padres fantasmas é apaixonado.

Gabriel e Gabriela decidem trocar de lugar um com o outro - uma brincadeira que serve para que eles possam se colocar na pele um do outro, e assim entender melhor como é estar no lugar do outro. Então, no colégio, quem acaba ficando é Gabriela, que acaba dando início a um romance com os dois melhores amigos de seu irmão.

O livro descreve de forma sucinta, mas não menos cheia de detalhes e sensações, as cenas de cada momento da história. A forma de narrar do autor nos leva a crer que tudo o que estamos lendo faz parte de um sonho que ele teve em uma noite qualquer, fruto de um sono pesado e revigorante.

Em suma, é uma leitura prazerosa e rápida, capaz de despertar em nós diversas sensações, de nos levar para viagens na imaginação, e de nos tirar brevemente da realidade.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Trova ao Vento – 001

 

Mensagem na garrafa – 13 -

CAROLINA RAMOS

Santos/SP

O homem e o cão

Já que o assunto abraça a figura do "melhor amigo do homem", um continho, ainda inédito, fareja aqui por perto à espera de um chamado para saltar no meu colo. Que venha:

O HOMEM E O CÃO

Não era um homem bom, nem mau. Se pendia mais para lá do que para cá, difícil saber. As opiniões dividiam-se. Era antes de tudo um solitário. Um ser estranho. Embora residisse há largo tempo no mesmo local, muito pouco se sabia dele.

“– No fundo, é bom!" - diziam os puros, ao vê-lo acariciar a cabeça de uma criança, ao passar por ela em suas idas e vindas diárias. “– Quem é capaz de sentir ternura pelos pequeninos não pode sertão mau assim!"

Por outro lado, os mais pessimistas e menos crédulos classificavam-no de "coisa ruim", porque não gostava de animais e porque os cachorros mostravam também não gostar dele.

E não dava outra! Cada vez que dobrava a esquina, começava a zoeira. Apareciam cachorros de todos os lados como se a esperar pela sua chegada para dar início à barulheira. Obediente à batuta de um maestro invisível, mal o via, a cachorrada, indócil e impertinente, começava a latir como se Ali-Babá e seus quarenta ladrões resolvessem adentrar o bairro pacato, com disposição de tripudiar sobre a tranquilidade dos moradores.

Vicente, ou Vicentão, decididamente, não gostava de cães. Nem tampouco os cães gostavam dele - premissa que ninguém conseguiria negar. Ele mesmo não fazia questão de disfarçar a idiossincrasia. Era só pôr o pé na rua, para que todo o quarteirão ficasse em polvorosa. Um número crescente de vira-latas logo fazia questão de provar a antipatia canina que o cercava. Quem entenderia? - Um começava a latir. Outro o acompanhava. Mais outro... E assim ia num crescendo até que aquilo acabava num coral onde não faltavam sopranos, contraltos, tenores e nem barítonos, numa gama ensurdecedora de latidos, uivos e grunhidos difíceis de serem calados. Sua chegada, ou saída do bairro, jamais era pacata e despercebida, questão de adrenalina liberada de ambos os lados.

E diariamente a cena se repetia por mais de uma vez.

Enfurecido, Vicentão abaixava-se, apanhava um seixo ou pedra, e acertava o focinho dos mais afoitos que recuavam a respeitável distância, sem deixar de emitir seus impropérios caninos.

O pior de todos eles era aquele cão pastor alemão, belo capa preta, que vinha sempre à frente, latindo mais alto que os demais e acatado como líder.

Um dia, a coisa extrapolou. Um descuido e um vira-latas mais atrevido, abocanhou-lhe a mão. E a raiva incontida daquele homem acuado lançou estilhaços para todos os lados.

Vicentão furioso, a amparar a mão que pingava sangue, abriu violentamente a porta da casa. Saiu dela portando uma espingarda. Visou a malta que ladrava ao portão. Atirou a esmo, mas atirou para acertar.

Num segundo, apenas o líder restava. Os demais, atemorizados, fugiram logo após o primeiro estampido, rabo entre as pernas. O capa preta gania junto à sarjeta, com a pata esfacelada pelo tiro.

Encararam-se - vítima e agressor.

Não havia mágoa nem raiva nos olhos do cão, apenas dor. Vicentão ergueu a arma para tirar uma segunda vez. O ódio acumulado não era mais difuso. Concentrava-se agora, por inteiro, naquele jovem cão de presas alvas e ameaçadoras que agora se arrastava sem agressividade até seus pés como a pedir ajuda.

Sem aparentar ressentimentos, a vítima lambia-lhe os sapatos, ganindo baixinho, dolorosamente. O rastro de sangue da vítima mesclou-se ao sangue que pingava da mão ferida do agressor.

A visão daquele cão rastejante, que sequer fugia à mira tangeu as cordas mais sensíveis daquele homem. Baixou a arma.

Seria fácil... tão fácil liquidar aquele animal, encostando-lhe a arma diretamente na cabeça sem possibilidade de erro. Mas... a coragem deu de ré. Duas lágrimas rolaram pelo rosto curtido daquele homem que ninguém sabia se era bom ou se era mau.

Vicentão voltou-se rápido, retornando sem a arma e trazendo consigo um estojo de primeiros socorros.

O cão deixou-se medicar lambendo, dócil e agradecido, a mão que lhe amenizara a dor.

Por algum tempo, Vicentão teve hóspede em casa, tratado com carinho e regalias. Afeiçoou-se a ele. Afeição recíproca. Chamava-o de amigão e era atendido com efusivos abanos de cauda e lambidelas profusas.

Doía-lhe saber que o cão raçudo teria de ser logo devolvido. Era um exemplar de exposição, com "pedigree", ganhador de algumas medalhas, como afirmavam os anúncios dos jornais que prometiam recompensas a quem o encontrasse.

A nenhum desses anúncios Vicentão dera resposta. Só devolveria o cão quando estivesse perfeitamente restabelecido. Ponto de Honra!

Os cuidados apressaram a cura. O momento da entrega do animal ao legítimo dono, inadiável.

Nem tudo, porém, sairia dentro do desejável. Aquele tiro deixara inevitáveis sequelas.

Sem perda do porte altivo e o olhar de campeão, o capa preta não podia evitar de mancar - a pata ferida perdera altura e uma certa mobilidade.

Em poucas palavras, Vicentão relatou o acontecido ao proprietário do animal, desculpando-se pela demora em devolvê-lo.

- "De que me serve esse cão manquitola?! Acha que gastei pouco para adquiri-lo?! Já que o inutilizou, leve-o de volta. Se o deixar por aqui, mandarei sacrifica-lo. Chega de despesas!"

Vicentão ouvia perplexo. Sentia as proporções do egoísmo humano. O pobre cão, apesar das credenciais, não passava de um objeto descartável, inútil e desprezível, tão só por ser defeituoso. Nada de afeto, nada de considerações, nem mesmo pelas vitórias anteriores.

Graças às circunstâncias, Vicente viera preparado para enfrentar qualquer reação menos branda, já que atentara contra a vida do animal, sendo responsável pelo aleijão. Porém, não contava com o repúdio! Coisa que feria sua sensibilidade de homem, ainda que rude! Concluiu com desgosto que seu amigão bem que merecia outro dono.

Sem conter a emoção, abaixou-se abraçando com ternura o pescoço fidalgo. Levou-o, agora, de volta para casa - todo seu e de alma em festa!

Sim... Agora pertenciam-se. Completavam-se. O nome ligado ao "pedigree" foi relegado. Substituído, simplesmente por Amigão, agora definitivo e com maiúscula.

Vicentão por sua vez, passou a não mais odiar os cães. Nem havia motivos para tal, os demais eram conservados à distância pelas presas ameaçadoras daquele cão pastor manco, mas ainda líder. Aos poucos, todos se integraram à nova família.

Não mais hostilizado, nem solitário, agora mais Vicente do que Vicentão, aquele homem passou a ser aguardado com latidos festivos e escoltado por uma alvoroçada matilha de vira-latas das mais variadas cores e tamanhos.

O amor bem pode levar ao ódio. Por sua vez, poderá o ódio levar ao amor? Personagens espontâneos de um poema já nascido rimado, Vicentão e Amigão por aí andam, e, provam que sim!

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 94

Ninguém é mais do que ninguém. Somos todos iguais seres vivos. Alguém pode me dizer por que está neste mundo? Veio de onde? Vai para onde? Brigas, escaramuças, correrias . . . Para que? E nossas companhias, seres outros, o que fazem?

Em bonança, em contemplação!

Muitos de nós gostamos tanto de buscar, pensar quase constantemente. E eu pergunto: Será a melhor ideia ? "Pensar cansa", - disse o psicólogo Mathias Pessiglione, - "o trabalho mental exaustivo resulta em uma alteração fisiológica real".

Precisamos parar e descansar. A vida serena em contemplação será sempre necessária e dadivosa - um pôr do sol no horizonte,as glicínias floridas, a cantoria-algazarra do casal joão-de-barro. o riacho cantarolando. E as estrelas? Abrir os olhos, descortinar sem pensar. Que cenários para contemplarmos!

O velho mestre Lao Tsé dizia que "nada é impossível a quem pratica a contemplação. Com ela tornamo-nos senhores do mundo". Ele que ensinava para a vida simples e a obtenção de paz absoluta.

Fonte: Texto enviado pelo autor

Francisco José Pessoa (Chuva, sorriso e lágrimas)

A vida se nos apresenta sempre em dupla via, quando o sim e o não fazem mesuras e nos dão passagem.

Quando é noite em tempo de inverno, e a lua se esconde por detrás de densas nuvens, nós, poetas, nos sentimos órfãos. Foi-se com ela a nossa inspiração. Os namorados, ao contrário, não se queixam, pois, versejam aos seus modos, agasalhando-se um ao outro, sob o negrume do céu... para nós, sem graça.

Alegria do sertanejo, a chuva é o pranto alegre de Deus por nos fazer felizes. Nem tanto nem tão pouco.

No sertão, o chão responde vicejando. O córrego se enche das lágrimas divinas e batiza-se de riacho, que vai derramar seu pranto no rio seco que hiberna. Este, vivificado, corre em busca do mar na tentativa de adocicá-lo.

O citadino, com morada próxima do mar, tendo o vento leste como abanador, não se queixa tanto do mormaço que lhe calça os pés. Na periferia da cidade, pedaços de chão esquecidos onde habitam os esquecidos. A chuva, antes alegria liquefeita, torna-se lágrima triste de Deus que chora por seus filhos discriminados.

Proliferam mazelas. Os barracos ribeirinhos são molduras que retratam a realidade de um povo triste. Sofrido, Enganado. Valorizado.

Chuva no sertão.,. Na cidade... E rosa e espinho. É sorriso e pranto. É choro, é canto. É cova, é ninho!

"Hoje, eu vou fazer uma prece a Deus Nosso Senhor, para a chuva parar de molhar o meu divino amor".

"Meu Deus, perdoe esse pobre coitado que reza pra chuva cair sem parar".

E a chuva, dádiva de Deus, a mostrar suas duas faces, mesura e nos dá passagem!

Fonte: Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013. Enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Poesia em pílulas)

 
Se vivesse hoje entre nós, será que Castro Alves escreveria o “Navio Negreiro”? Talvez até sim, e tão bonito quanto. O difícil seria encontrar leitor para tão longo e magistral poema, visto que tudo é tão corrido nestes tempos loucos.


Daí que a tendência é concentrar poesia em textos curtinhos, como se faz na trova ou no haicai. A trova tem quatro versos, correspondendo a 28 notas musicais. O haicai tem três versos, correspondendo a 17 notas. Uma trova se diz em oito segundos, um haicai em apenas seis.

Na trova tenho mais experiência. No haicai há certas normas que só os bambambans conseguem seguir ao pé da letra, porém arrisco fazer uns versinhos à minha moda. Cito alguns exemplos. Sugiro ler devagarinho, para fruir bem cada um.

· Assanhadas rosas.
Disputam a preferência
de um raio de sol.

· Chocados os ovos,
há o choque dos seres novos.
E a vida prossegue.

· Flores na enxurrada.
Vão ter afinal bom hálito
as bocas de lobo.

· Os passantes param.
Carregadinhos de flores
os jacarandás.

· Klash klash klash.
Brincando de pula-pula
no laguinho as rãs.

· De novo nas ruas
o encanto das pernas nuas.
Viva a primavera.

· Pombo sobre pomba.
Virão logo fazer ninho
em minha janela.

· Suaves passeios.
O vô leva o neto ao bosque
para ouvir gorjeios.

· Mão de jardineiro.
Num leve toque de artista
faz do esterco a flor.

· Florzinha silvestre
no jardim do shopping-center.
Êxodo rural.

· Almocinho a dois.
Tico-tico come um tico
do fubá da tica.

· Sabiá caçando.
Nem só de gorjeios vive,
mas também de insetos.

· Deixa o beija-flor
um selinho em cada rosa.
E elas gostam... ahhhh.

· Abelha se aninha
no colo do girassol.
Vai ter mel quentinho.

· Mosca na parede.
Avisem à lagartixa
que o jantar chegou.

· Gari, no capricho,
colhe pétalas no asfalto.
São flores, não lixo.

· No meio do pasto
um ponto de exclamação.
Último coqueiro.

· Outrora cantavam
de tardezinha as cigarras.
Onde mora o outrora?

· A pombinha desce
numa imagem de Jesus.
Pousa a paz na luz.

· Teste de audição.
Canta ao longe um pintassilgo
e eu escuto, oba.

Sujaram meu rio.
Ele, que lavava as gentes,
não lavou as mentes.

· Zunzunzum... zunzum...
É um pernilongo brincando
de fórmula um.

· Casal de velhinhos
na janela olhando a Lua.
Tão longe a de mel...

· Tanta coisa boa
virou coisa do passado.
Por exemplo: nós.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 19-10-2023)

Fonte: Texto enviado pelo autor

Contos do Paraná ("Falcão", de Nilson Monteiro)


Que magias trouxe em suas asas carijós, que romperam 25 mil quilômetros à procura do sol? Que mistérios lhes foram reservados em meio às espécies para merecer dos imperadores chineses extrema consideração, símbolo de prestígios e poder, intocável, que provoca decapitação a quem lhe atravesse a tirar a vida?

Os milhares de olhos grudaram no topo do edifício Associação Rural, no coração de Londrina, à procura da majestade, indiferente, exposta às lambidas do sol na cidade verânica, feito lagarto.

Posudo, estrela, transformado em brilho municipal. Mais procurado que manchete, provocou torcicolo em criança e adultos. Assanhou. Solitário, desde quando despediu-se do gélido Hemisfério Norte. Solitárío, no pano azul do céu londrinense. Solitário, no temor às outras aves. Seu voo é certeiro em direção às vitimas - pombas, pardais e outras aves anarquistas nas frondosas     árvores da praça.

Impiedoso: mata. Feito carcará no sertão nordestino. Fome na favela do O.K. Porém nem tudo é prepotência.

Os pequenos pássaros vingam-se de sua beleza pela própria natureza, comendo insetos envenenados por inseticida. Ele, ao alimentar-se dos pássaros, destrói sua realeza, extingue sua espécie.

Para se manter, é necessário voar mundo. No ano passado, na mesma época, também encantou Londrina, com suas penas carijós, e só a abandonou quando o inverno veio chegando, manso, cinza.

"Espécie esquisita", resmungou Valdevino Cruz, zelador do edifício onde a majestade fez sua morada.

Ele, peregrino, a nova atração desta aventureira cidade de pouco mais de meio século, parece rejeitar o adjetivo. Posa, sim, como a ave mais perfeita do mundo. Este, o que pousou na curiosidade londrinense, parece certo disso. Outros de sua raça, parece lembrar, vivem em palácios como os da rainha Elizabeth ou do então primeiro-ministro soviético Tchernenko ou de reis da Arábia Saudita.

Paradão, com suas asas recolhidas, parece endossar o valor que os homens estabeleceram para sua espécie, Quem olha para sua beleza sabe porque os Papas, na Idade Média, o preservavam tanto, chegando a crucificar atrevidos que sonhassem em matar um deles.

Paradão, parece debochar de armadilhas, arapucas, gaiolas, estilingues, setas, cadeias quaisquer. Ninguém consegue passar ileso ao belo. Há até o caso de um velhinho, no Centro Comercial, que deixou de procurar pernas carnudas com seu binóculo para fixar suas vistas, já fracas, nas penas. Fique sabendo até que algumas lojas, asfixiadas pela recessão, receberam um novo sopro de vida com a venda maiúscula, de binóculos. Ontem cedo, porém, nuvens carrancudas atrapalharam o espetáculo: definitivamente, o peregrino não gosta de frio e não veio para posar em seu palco. Escondeu-se?

Frustrou a quem queria endoidar com a sua beleza. Bateu asas à procura do Sol? Foi raptado por ornitólogos? Quem perdeu, perdeu, vaticinou Valdevino. É provável que volte, quem sabe? Quem sabe deste cigano? Ano que vem, talvez, a cidade repita uma pergunta surrada neste dia: "Já viu???"
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Nilson Monteiro, jornalista e poeta.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.
Imagem por JFeldman

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capítulo 19: Um pouco mais de causos

No fim de tarde, depois da lida, os peões se prepararam para o churrasco do armazém do seu Feliciano. Escolheram a melhor roupa, pois estavam sempre à espreita de arranjarem uma china bonita para encerrar a noite.

A noite estava fria, o céu escuro, mas gaúcho não teme friagem alguma.

- Boa noite, Feliciano.

- Boa noite, Pedro.

- Me serve um trago.

Os outros foram chegando atrás e o responsável pelo fogo de chão naquela noite foi o Juca. E estava acompanhado de sua esposa.  

- Não disse, quando não é noite de lua ele aparece, cochichou Juca ao pé do ouvido de Juliano.

No balcão, seu Feliciano ia servindo os clientes entre uma ajeitada e outra de seus largos bigodes.

Arlindo, peão de Boitatá, apareceu com a namorada, uma loira de cabelos cacheados, desconhecida na região.

Simão, se dizia enamorado, mas andava sempre sozinho. Não chegava a ser um alcoólatra, mas às sextas-feiras de churrascos no armazém, era o que mais bebia.

Para alegrar a noite sem lua, seu Feliciano começou a cantarolar umas músicas tradicionalistas e logo todos se alegraram e começaram a puxar prosa. E como gostavam de causos.

Simão, já empolgado, começou a contar a Arlindo que numa noite de caça nas terras vizinhas, teve de enfrentar a terrível cobra de fogo, Boitatá.

- Vocês gostam dessas invencionices, ora é causo sobre lobisomem, ora é causo de cobra de fogo. Já disse que não acredito em nada disso. – disse Arlindo.

- Verdade, amigo. Tava perdido no meio do mato escuro, quando de repente senti uma luz vindo em direção às minhas costas. Ao olhar para trás, quase morri de completo susto. A bicha era enorme, mais luminosa que um raio e veio na minha direção. Saí correndo, tropecei num tronco, caí, e ao levantar a cabeça, dei de cara com a Vó Gorda. “O que a senhora está fazendo por aqui?” perguntei, surpreso. Ela começou a dizer umas palavras estranhas e a fazer uns gestos mais estranhos ainda com as mãos, com o olhar fixo sobre a serpente de fogo. Olhei pra trás novamente, o clarão cessou, olhei pra frente, a Vô havia sumido. Pensei: “será que é possível ficar louco, assim, do nada? Só depois entendi: era a alma dela que foi me salvar da cobra maldita.”  

- Alma? Que alma, tchê?  A Vô não tá morta pra ficar por aí fazendo aparição. Foi a cachaça que te fez ter essas visagens – disse Arlindo.

Todos riram. E até quem acreditava no sobrenatural, achou a história meio estranha...

- Vão rindo... Deve ter um sentido daquele pedaço de chão se chamar Boitatá. Depois fiquei sabendo de outros casos piores, envolvendo essa cobra. E tudo no mesmo lugar. Mas nem vou contar. Deixa pra lá...   

As horas foram passando, a boa carne sendo degustada. Mais tarde, veio uma surpresa: seu Feliciano havia contratado umas chinas da cidade para que não faltasse par para um arrasta pé. E eis que junto das moças, surgiu ele, senhor Antônio.

E o baile prosseguiu até o raiar do dia.

Fonte: Texto enviado pela autora.