domingo, 26 de maio de 2024

Monteiro Lobato (A nuvem de gafanhotos)

Ser empregado público de categoria inferior e por mal de pecados demissível: será isso programa que seduza alguém?

— É.

Para Pedro Venâncio mais que seduzia — sorria. Foi, pois, com enlevo de alma que recebeu a notícia de sua nomeação para fiscal da Câmara Municipal de Itaoca.

— Vou sossegar — disse consigo, esfregando as mãos de contentamento. — Cavei o meu osso e agora é roê-lo pela vida afora na santa paz do Senhor.

E ferrou o dente no ossinho.

Mas acontece que há osso e osso. Osso de bom tutano e osso pedra-pomes. No andar dos tempos verificou Venâncio que o tal ossinho era desses que embotam os dentes sem dar o mínimo de suco.

Gastar a vida inteira naquilo? É ser tolo, cochichou-lhe a humana ambição de melhoria, engenhosa fada a quem se devem todos os progressos do mundo. Assim espicaçado, entrou Venâncio a fariscar tutanos. Recorreu antes de mais nada à loteria, pois que é a Sorte Grande o supremo engodo dos pés-rapados. Venham gasparinhos! Todas as semanas adquiria um — e sonhava. O mesmo vendeiro que lhe fornecia aos sábados a semanal quarta de feijão, os semanais oito litros de arroz e o semanal cento de cigarros, juntava na conta mil-réis de sonhos. E Venâncio, comido o feijão, fumado o cigarro, sonhava. Sonhava o doce beijo da Fortuna, boa deusa que o despegaria do atoleiro com um simples toque de sua asa potente.

Em matéria de cultura não era Venâncio de todo cru. Lia suas coisas e tinha lá suas ideias. Revelara desde cedo grande aptidão para a lavoura e documentava o pendor assinando quanta publicação oficial existe. Publicações gratuitas...

Assim, nas palestras da farmácia ninguém piava sobre lavoura sem que ele pulasse no meio com a sua colher torta. E era de ver o calor da sua argumentação e a riqueza das suas citações estatísticas.

Fazendeiro que nesses momentos passasse havia que parar e abrir bem aberta a boca. Venâncio possuía planos grandiosos para salvar o café e pô-lo aí a quarenta mil-réis a arroba...

— Quarenta mil-réis, Venâncio? Não acha meio muito? 

Venâncio incendiava-se.

— Por que muito? Não somos os maiores produtores? Não temos o quase privilégio dessa cultura? Se é assim, o lógico é que imponhamos o preço. Eu disse quarenta, não foi? Pois digo agora quarenta e cinco! Digo cinquenta!

—!!!

— Não se espantem. Eu provo que pode ser assim e que os americanos têm que gemer ali no dolarzinho, queiram ou não queiram!

—!!!

— Queiram ou não queiram! — reafirmava o salvador, escandindo as palavras.

E provava.

Também extinguia em menos de um ano a lagarta-rosada, mais o curuquerê (larva do algodão); e triplicava a corrente imigratória; e extraía o azoto do ar, pondo o adubo ao alcance de todos, a cem réis o quilo, talvez mesmo a setenta.

— Porque, como os senhores sabem, a química agrícola demonstra que...

E demonstrava.

Num desses rompantes demonstrativos, o coronel da terra, de passagem pela rua, deteve-se a ouvi-lo e, finda a tirada, disse-lhe à queima-roupa:

— Que excelente ministro da Agricultura não daria você! Duvido que os Calmons e os Bezerras entendam mais de lavoura...

— Está caçoando, coronel! — murmurou Venâncio com modéstia, embora no íntimo convencido da justiça da apreciação.

— Falo sério. Bem sabe que não brinco.

Os circunstantes sorriram discretamente, enquanto o massa de ministro se lambia todo, como boi feliz.

Em casa repetiu à esposa a opinião do chefe político.

— Brincadeira dele, Pedro! — objetou a sensatíssima consorte. — Não está vendo?

— Brincadeira nada! O coronel é homem que não brinca, você bem sabe...

Desde esse dia, imaginariamente, Venâncio transformou-se num maravilhoso ministro da Agricultura. Plantou-se de armas e bagagens no casarão da Praia Vermelha e com raro tino administrativo salvou o país. Que eficácia de medidas! Que sábias leis protetoras! Que maravilhosos resultados! Lagarta nos algodoais? Nem umazinha para remédio! Curuquerê? Nem sombra! O café trepou à casa dos quarenta...

— Por arroba?

— Por dez quilos, homem!

E, firmíssimo, revelava tendências para alta ainda maior. Os mais pessimistas já concediam que não era de admirar fosse a cinquenta.

A borracha do Norte arrancou-se ao marasmo em que emperrava e voltou a ser um pactolo (fonte de riquezas) de esterlinas.

Azoto andava por aí aos pontapés, como um trambolho.

E na cabeça de Venâncio os sonhos lotéricos desapareceram trocados pelos sonhos administrativos, muito mais amplos e de muito maior alcance patriótico.

A consequência foi que Venâncio se eternizou no Ministério. Vários presidentes se sucederam sem que nenhum ousasse tocar em sua pasta. Era sagrado aquele gênio de ministro, que salvara o país, enriquecera a lavoura, desafogara o comércio, consolidara a indústria e que, adorado pela nação, teria estátua em vida.

Que teria? Que teve! Por mais que em sua infinita modéstia o grande ministro recusasse tal homenagem, a gratidão nacional teimou em glorificá-lo no bronze.

Inesquecível a manhã em que Venâncio, de lágrimas nos olhos, viu rasgarem-se os véus do seu monumento.

AO SALVADOR DA PÁTRIA,
O POVO AGRADECIDO.

Agradecido ou enriquecido? A turvação dos olhos não lhe permitiu distinguir a expressão exata — e por longo tempo semelhante dúvida o torturou.

Mas a grande recompensa teve-a ele em casa, ouvindo da esposa estas deliciosas palavras:

— Agora, sim, Venâncio, acredito que você é mesmo o que dizia. Até estátua!...

A boa senhora só se convencia com provas de bronze...

O doloroso, porém, era o contraste das duas vidas — ministro por dentro e fiscal da Câmara por fora, obrigado a interromper a matutação de um projeto salvador da pátria para ir, de bonezinho na cabeça, cercar na rua carros de boi não aferidos...

Um ano se passou assim, no qual os gasparinhos (menor fração de bilhete de loteria) falharam lamentavelmente. O mesmo dinheiro; zero, zero, zero; o mesmo dinheiro; zero, zero. Os seus rapapés (lisonjas) à Sorte Grande recebiam da grande cortesã apenas esta magra resposta. Tábuas sobre tábuas; carranca amarrada sempre e jamais o sorrisinho de uma “aproximação” para consolo.

Mas um dia...

Nesse dia Venâncio disputava com a esposa, que pedia dinheiro para umas compras.

— Estamos com a louça reduzida a cacos. Xícara de chá, duas e desbeiçadas. De café, três e sem asas. Ontem, quando aquele chato do Freitas esteve aqui, fui obrigada a pedir emprestada uma xícara da vizinha. Veja que vergonha...

Venâncio relutou.

— Mas por que é que quebram a louça? O ano passado, lembro-me, eu mesmo comprei meia dúzia de cada.

Dona Fortunata pôs as mãos na cintura.

— Por que quebram? A pergunta é bem idiotinha... A louça quebra-se porque é quebrável. Se fosse inquebrável não se quebraria. Parece incrível que um homem já indicado para ministro...

— Não admito ironias! Quer louça? Compre com o dote que trouxe...

— Já esperava por essa resposta. Está mesmo uma resposta de ministro... do coronel — concluiu dona Fortunata venenosamente.

Venâncio, engasgado de cólera, ia replicar, quando a porta da sala se abriu e o vendeiro irrompeu como um pé de vento:

— Deixe ver o seu bilhete! Se é o 3.743, deu a tacada!

O improviso do lance transformou em estupor a cólera de Venâncio, que entrou a piscar, numa tonteira, como quem leva porretada no crânio.

— Quê? Que há? — tartamudeava ele. O vendeiro bateu o pé, impaciente.

— O bilhete, homem! Deixe ver o seu bilhete, homem de Deus! Parece estuporado...

Custou a Venâncio encontrar na papelada agrícola que lhe enchia os bolsos o raio do bilhete. Suas mãos tremiam e o cérebro andava-lhe à roda.

Por fim achou-o. Era o 3.743.

Pegara os vinte contos.

Estas revoluções operadas pela sorte em cérebros venancinos não há aí quem as conte. É banho de ópio, é fumarada de haxixe, é gole de cocaína, é bebedeira que rompe toda a velha cristalização dos miolos. A ebriaguez do ouro vale pela soma da essência última de todas as mais ebriedades. Só ela abre a gaiola a “todos” os sonhos e põe o homem leve, com pequeninas asas em cada célula do corpo.

No caso do Venâncio, porém, não houve muita vacilação. Sua diretriz estava traçada pelo insopitável pendor agrícola.

Uma fazenda, uma grande fazenda, a melhor fazenda do município — a fazenda-modelo da zona. Da zona? Do país, por que não? E depois — quem sabe? — o ministério, desta vez de verdade. O mundo dá tantas voltas...

E faria isto mais aquilo, e mais isto e mais aquilo. Meu Deus! Como a fazenda se foi aperfeiçoando, e a que requintes de primor atingiu! Legiões de curiosos vinham de longe visitá-la, e pasmavam. A fama corria, os jornais estudavam-na em artigos longos. Por fim o Governo, impressionado com a voz pública, mandava examiná-la e propunha-lhe compra. Era forçoso que pertencesse ao patrimônio da nação uma coisa daquelas para que todos pudessem aprender na maravilhosa escola as palavras últimas do aperfeiçoamento agrícola.

Mas vendê-la? A um particular, nunca! À nação, sim, coagido pelo patriotismo. Isso mesmo, porém sob uma condição! Oh, sim, uma condição sine qua non: darem-lhe a pasta da Agricultura...

— Porque eu, senhores, farei do Brasil inteiro o mimo que fiz da minha fazenda. Um vergel florido! A nova Califórnia! O paraíso terreal!...

O Governo chorava de emoção e dava-lhe a pasta, sob as aclamações do povo agradecido...

Infelizmente, os vinte contos não eram elásticos e Venâncio teve que arrepiar da vertigem megalomaníaca e adquirir um pequeno sítio aí de trinta contos de réis. Deu quinze à vista e ficou a dever quinze sob hipoteca.

Sítio velho, de terras cansadas, mas isso mesmo queria ele, para estrondosa demonstração do axioma tantas vezes berrado na botica:

— Não há terras más, há más cabeças. Com a química agrícola na mão esquerda e o arado na direita, eu faço o Saara produzir milho de pipoca!

— Mas, Venâncio...

— Não há “mas”, há “más”; más cabeças, já disse. De pipoca!

Tinha agora de provar o asserto.

Começou mudando o nome antigo — Sítio do Embirussu — por este muito mais adiantado — Granja-Modelo de Pomona.

Apesar do lindo nome, o sítio permaneceu a pinoia que sempre fora. Barba-de-bode, guanxuma, saúva, cupins, joveva, geadas — todos os mimos da brasileiríssima deusa Praga.

Em compensação, no tocante ao pitoresco poucos haveriam mais bem arranjados. Tudo velho e musgoso e carcomido, como o quer a estética. Vate de cabeleira que ali caísse desentranhava-se logo em sonetos do mais repassado bucolismo; e o pintor de paisagens encontrava quadrinhos já feitos, encantadores, que era um gosto trasladar para a tela.

As paineiras laterais à casa faziam em setembro o enlevo dos colibris e das abelhas — mas a paina (fibras sedosas de algodão) produzida mal dava para encher um travesseiro.

O pomar, velhíssimo, lembrava um ninho de faunos tocadores de avena (flauta pastoril), laranjeiras de cinquenta anos, pitangueiras altíssimas, ameixeiras musgosas, jabuticabeiras, romeiras — o que há de virgiliano e romântico e sombrio e parasitado. Renda, porém, zero.

Tudo mais pelo mesmo teor.

Venâncio mediu com os olhos penetrantes a grandeza da sua tarefa e sorriu.

Tinha tanta convicção de transmutar aquele bucolismo em fonte de lucros...

Começou pelas aves. Em vez daquele sórdido restolho de galinhame da terra, sem sangue de pedigree, venham Leghorns para ovos e Orpingtons para carne. Imbecil o fazendeiro que não adota as belas raças americanas!

A mesma coisa com os porcos. Nada de canastrões ou tatuzinhos, tardios ou degenerados. Venham o Yorkshire, o Duroc-Jersey!

E venham mudas de boas árvores frutíferas, caquis, ameixas-do-japão, damascos, maçãs, peras, tudo isto com explicações ao eterno nariz torcido da esposa:

— Porque você vê, Fortunata, dá o mesmo trabalho e vale cinco vezes mais. Um ovo de Orpington, por exemplo: quanto vale no Rio? Dois mil-réis; mais que uma dúzia de ovos crioulos!

E venham sementes de capim-de-rodes para as pastagens.

E venha um aradinho de disco, e agora uma semeadeira, e uma carpideira, e uma grade...

E venha isto e mais aquilo — e as novidades vinham vindo e os cinco contos iam indo muito mais depressa do que ele o imaginou.

Tudo isso não seria nada se não viesse também uma coisa bem fora dos cálculos de Venâncio: visitas.

Um belo dia o correio trouxe uma carta do Rio: “... e soubemos que V. está de maré, empacotado pela sorte grande (200 ou 500?) e já montado em linda fazenda. E como andamos todos aqui muito amarelos, e a Bibi necessitada, a conselho médico, de ares de campo, lembramo-nos de passar uns dias aí, se o caro parente não levar isso a mal...”.

— “Caro parente”?!...

Venâncio releu a missiva.

— Quem será este novo parente, Ladislau Teixeira? 

Consultou a mulher. Dona Fortunata refranziu a testa.

— Vai ver que é aquele filho da Carola...

— ??

—... que casou por lá com uma tipa de beiço rachado...

— Ahn!...

—... e esteve uma vez em Itaoca um ano atrás.

— Em casa do Estevinho, sei...

— Isso. Um tal Lalau.

— Sei, sei... Mas que diabo de parentesco tem ele comigo? Só se por parte de Adão e Eva...

— Você já reparou, Venâncio, quantos parentes estão aparecendo agora?

— É verdade. Com este, cinco. E amigos, então? Nunca imaginei que os possuísse tantos...

Venâncio respondeu que a casa, casa de pobres, estava às ordens; que viessem. Vieram. Quinze dias depois um trole despejava no terreiro um senhor de meia-idade, sua esposa Filoca, três filhas empalamadas, Bibi, Babá, Bubu, e mais uma preta mucama. Venâncio reconheceu-os vagamente, mas por delicadeza fingiu intimidade.

— Bem-vindos sejam à casa do parente pobre! 

Lalau abraçou-o carinhosamente.

— Não diga isso! Você é hoje a glória da família. Recebeu a recompensa que merecia. Quantas vezes eu não disse à Filoca: aquele nosso parente vai longe, porque quem planta colhe. Não é verdade, Filoca?

Dona Filoca sibilou através do beiço rachado uma confirmação plena:

— É sim! Nós nunca duvidamos do futuro do “primo” Venâncio.

— Ia-me esquecendo... Vieram conosco umas vizinhas, moças muito boazinhas, as Seixas. Não te avisei na carta porque foi coisa de última hora. Devem ser parentas de dona Fortunata, ao que me disseram...

Venâncio interrogou furtivamente a esposa com o olhar e esta respondeu-lhe com um imperceptível movimento de beiço.

Apearam do segundo trole três moças e uma negrinha. Lalau apresentou-as.

— Dona Fafá, dona Fifi, dona Fufu.

As moças abraçaram os fazendeiros com grande cordialidade e abriram-se em louvores às belezas bucólicas.

— Veja, Fifi, que coisa estupenda esta paineira!

— Nem diga! E aquele maravilhoso beija-flor? Que belezinha! Como ficaria bem no meu chapéu azul...

E Babá para Venâncio:

— Que ar, primo! Que pureza de ar! A vida aqui deve ser um encanto. E que apetite dá! Eu, que não como nada, seria capaz de devorar um leitão inteiro hoje!

A Bibi conversava com a “prima” Fortunata:

— Leite há muito, já sei. Fazenda quer dizer fartura. Lá na capital o leite é água de polvilho, e caríssimo! É como os ovos: pela hora da morte e metade chocos. Sua galinhada, quantas dúzias põe por dia?

E a Fifi para a Bubu:

— Pesei-me antes de vir: 49 quilos, veja que miséria! Mas daqui não saio sem alcançar 58! Ah, não saio! O meu peso normal deve ser este, diz o médico. 

Dona Fortunata atendia a todos, sorrindo amavelmente, enquanto Lalau, já no pomar, investia contra as laranjas com fúria de “retirante”.

— A minha conta, quando me pilho num pomar, são três dúzias. Pelo-me por laranjas!

Venâncio, armando cara alegre, dizia-lhe que era chupar, chupar...

Mas lá consigo pensava que naquela toada não venderia aquele ano uma dúzia sequer. Só o Lalau daria cabo da safra inteira em quinze dias...

À decima quinta laranja Lalau parou, entupido.

— Estou por aqui! — grugulejou, riscando no pescoço o nível do caldo.

— Agora, que ninguém nos ouve, diga lá a verdade: duzentos ou quinhentos contos?

Venâncio não teve ânimo de pronunciar a palavra vinte. Também não quis mentir, e marombou (enganou):

— Não chega lá. Tirei apenas uns cobrinhos...

— Está escondendo o leite? Faz muito bem, que isso de arrotar grandeza é transformar-se em “fruteira”: todo mundo pega a aproveitar-se.

E dando-lhe o braço:

— Conselho de velho: defenda os arames, enforque a cobreira! Do contrário, começam a aparecer amigos e parentes que não acabam mais.

Venâncio entreparou pasmado.

— É o que lhe digo — prosseguiu Lalau. — Enquanto não possuímos nada, ninguém se importa com a gente. Mas logo que a maré chega, brotam da terra aproveitadores — como cogumelos!

Venâncio pasmou dois pontos mais, e Lalau, lendo a seu modo aquele pasmo, insistiu:

— É o que lhe digo! Como cogumelos! Você é inexperiente ainda, não tem os anos que tenho, e deve, portanto, ouvir-me. Como parente próximo, zelo pela família e faço grande empenho em abrir os seus olhos contra a caterva (tropa) de parasitas que vai por este mundo de Cristo. Quer saber de uma coisa? Foi por esse motivo que eu vim. Motivo real! O resto foi pretexto, você compreende. Eu disse à Filoca: é preciso abrir os olhos do primo; dinheiro escorrega das mãos como peixe e se lhe não acudo com os meus conselhos, adeus sorte grande! Vê? Foi por este motivo que vim.

Ainda atônito, Venâncio balbuciou umas palavras de agradecimento pela generosa intenção, e Lalau, colhendo nova laranja, continuou:

— Porque, cá comigo, é assim: para salvar um parente não poupo sacrifícios! Ah, não poupo! Vou longe atrás dele, gasto dinheiro, mas aviso-o. Pensa que não foi um sacrifício esta minha viagem? Só de trem, duzentos mil-réis! Mas, como já disse, não olho a despesas. É parente? É amigo? Não olho a despesas. Ah, não olho! Não acha que devo ser assim?

— Está claro! — sussurrou Venâncio.

— Parece claro, mas poucos pensam deste modo e, em vez de sacrificarem um bocado das suas comodidades e virem abrir os olhos ao parente em perigo, sabe o que fazem?

— ?

— Vêm explorá-lo. Vêm ex-plo-rá-lo, primo! Admira-se? Pois saiba que o mundo está cheio de gente assim. Olhe, eu conheço um caso que...

Nessa noite o casal de fazendeiros passou a dormir na cozinha. Tiveram que ceder seu quarto ao Lalau e à esposa. As B... acomodaram-se na sala de espera. As F..., numa alcova. As duas criadas, na despensa. Ficou a casa repleta, tendo a cozinheira de dormir fora, no paiol.

Venâncio perdeu o sono. Altas horas ainda matutava:

— Não sei como está para ser! De um momento para outro, onze bocas a mais...

— E que bocas! — observou dona Fortunata. — Como comem! A tal Fifi, que é um bilro e parece viver de brisas, bebeu um litro de leite para “rebater” meia dúzia de ovos. E sabe o que disse, toda espevitada? “Isto é para começarrrr... O médico mandou-me ir aumentando as doses aox poucox...” Veja você!

— Parece que chegaram da seca do Ceará! Lalau chupou duma assentada quinze laranjas, e das de umbigo...

— Esse não me admiro, que é homem e grandalhão. Mas aquele figo seco da tal prima Filoca? Com partes de enfastiada, foi à cozinha e chamou para o bucho todos os torresmos que eu tinha guardado para você. Dizem que é o ar...

— Ar! Ar! Eu respiro o mesmo ar e nunca tenho apetite. Esfaimados por natureza é o que eles são.

— E depois isto de comer à custa alheia deve ser um regalo! — concluiu dona Fortunata, valente criatura que jamais provara um quitute que não fosse preparado por suas próprias mãos.

O sono custou a vir, mas veio, e com ele um sonho. Sonhou Venâncio que uma nuvem de gafanhotos vinda do Sul se abatera no sítio, deixando-o nu em pelo, sem folha nas árvores, nem soca de capim nos pastos.

Despertou sobressaltado. A manhã ia alta, com réstias de sol a coarem-se pelos vidros. Saltou da cama e foi à janela. Um vulto caminhava rumo ao pomar, de pijama, faca de mesa na mão, assobiando despreocupadamente o pé de anjo.

— Lá vai ele! — murmurou Venâncio. — Lá vai às laranjas-baianas...

— Quem? — indagou a esposa, interrompendo o amarrar da saia.

— Ora quem! O gafanhoto-mor.

E como a esposa fizesse cara de interrogação, Venâncio contou-lhe o sonho da nuvem.

Dona Fortunata concluiu o nó da saia apreensivamente:

— Queira Deus não dê certo!

Deu certo. Nunca um sonho profético antepintou o futuro com maior precisão. Os hóspedes devoraram o sítio do Venâncio em poucas semanas. Foram-se todos os porcos, transfeitos em torresmos, lombo assado e linguiça. Os lindos leitõezinhos que brincavam no terreiro acabaram no espeto, um por um. O mesmo destino tiveram as aves, com exceção do casal de Orpingtons, amarelas, que muito tentou a gula dos hóspedes, mas que Venâncio, por precaução, mandou esconder em casa de um vizinho. Os ovos, porém, se perderam.

— Sabe, — disse dona Fortunata ao marido uma noite (era sempre à noite, na cama, que murmuravam contra a praga dos gafanhotos) — sabe que a ninhada de ovos de raça já se foi?

— Não me diga! — exclamou Venâncio.

— Pois escondi-os num canto, no quarto dos badulaques, mas aquele pau de virar tripa da Bubu meteu o nariz lá e descobriu-os e veio berrando muito lampeira: “Prima, suas galinhas estão botando no quarto dos cacaréus. Olhe que lindos ovos encontrei lá! Duas dúzias: a continha certa para hoje”. Expliquei-lhe o caso, contei que eram ovos de raça, caros, que você reservava para chocar. Sabe o que a bisca respondeu? “Ora, não seja somítica (avarenta). Nós vamos embora logo e suas galinhas ficam por aqui botando ovos pelo resto da vida.”

Venâncio suspirou.

Um mês. Dois meses. Três meses.

No dia em que os hóspedes se foram, Venâncio mais a esposa deram uma volta pelo sítio, em desconsoladora inspeção. Tudo deserto. Nem um frango no galinheiro, nem uma goiaba no pomar, nem um porquinho na ceva.

— Comeram até o cachaço! — murmurou Venâncio, sacudindo a cabeça. Na horta, as leiras de couve só apresentavam talos esguios — folhas nenhuma. Os pés de abóbora davam dó: nem uma aboborinha, nem um broto...

— Como eles gostavam de cambuquira! — recordou dona Fortunata. 

Finda a inspeção, um olhou para o outro, com desanimadíssimos focinhos.

— E agora? — indagou a mulher.

— Agora? — repetiu Venâncio. — Agora é fazer a trouxa e tocar para Itaoca antes que morramos de fome.

— E volta você para o empreguinho?

— Que remédio? Os “primos” devoraram a carne; tenho que roer o osso.

E foi graças ao apetite daqueles bem-aventurados primos que Itaoca viu reintegrar-se em seu seio um precioso elemento social. As palestras da botica andavam mortas, e sempre que se ventilava um ponto agrícola todos lamentavam a ausência do argumentador seguro, que sempre detivera com tanto brilho a palma da vitória.

Mas a volta de Venâncio foi uma decepção. O antigo entusiasmo murchara-lhe e nunca mais em sua vida piou sobre o tema favorito. E se acaso falavam perto dele em pragas da lavoura, geada, ferrugem, curuquerê ou o que seja, sorria melancolicamente, murmurando de si para si:

— Conheço uma muito pior...

E conhecia.

Fonte: Monteiro Lobato. O macaco que se fez homem. Publicado originalmente em 1923. Disponível em Domínio Público. 

Recordando Velhas Canções (Lua Branca)


Compositora: Chiquinha Gonzaga
(moda, 1911)

Oh, Lua branca de fulgores de encanto
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo
Oh, Vem tirar dos olhos meus o pranto
Oh, vem matar essa paixão que anda comigo

Oh, por quem és desce do céu, oh, Lua branca
Essa amargura do meu peito, oh, vem, arranca
Dá-me o luar da tua compaixão
Oh, vem, por Deus, iluminar meu coração

E quantas vezes lá no céu me aparecias
A brilhar em noite calma e constelada
A tua luz então me surpreendias
Ajoelhado junto aos pés da minha amada

E ela a chorar, a soluçar, cheia de pejo
Vinha em seus lábios me ofertar um doce beijo
Ela partiu, me abandonou assim
Oh, Lua branca, por quem são, tem dó de mim
Ela partiu, me abandonou assim
Ó, Lua branca, por quem são, tem dó de mim 
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A Melancolia e o Consolo da 'Lua Branca' de Chiquinha Gonzaga
A canção 'Lua Branca', composta pela pioneira Chiquinha Gonzaga, é uma obra que transborda sentimentalismo e melancolia. A letra da música evoca a Lua como uma entidade capaz de oferecer consolo e alívio para as dores de um coração apaixonado e sofredor. A figura da Lua, tradicionalmente associada à feminilidade e ao amor, é invocada pelo eu lírico como uma confidente e uma fonte de compaixão diante do abandono amoroso que enfrenta.

A repetição do apelo à Lua para que desça do céu e alivie a amargura do peito do narrador reforça a intensidade do seu sofrimento. A Lua é personificada e recebe um pedido quase desesperado por empatia e luz, elementos que poderiam mitigar a solidão e a dor da perda. A música também remete a lembranças de um passado feliz, quando a luz da Lua testemunhava momentos íntimos e amorosos entre o eu lírico e sua amada. Essa recordação torna a ausência ainda mais pungente e a necessidade de consolo ainda mais urgente.

Chiquinha Gonzaga, uma compositora brasileira do século XIX, foi uma figura revolucionária tanto na música quanto na sociedade de sua época. 'Lua Branca' reflete não apenas o estilo romântico da época, mas também a capacidade de Chiquinha de expressar emoções profundas e universais através de sua música. A canção se tornou um clássico da música brasileira, eternizando a sensibilidade e a genialidade de sua autora. 

Arthur Thomaz (Lançamento do livro de trovas “Rimando Ilusões)

No ano de 2024, o escritor Arthur Thomaz lança “Rimando Ilusões”, onde ele expõe seu talento e se mostra, verdadeiramente, um poeta trovador. 

A seguir, uma pequena entrevista com o autor, realizado pela Bueno Editora:

BUENO EDITORA: Como você conheceu a trova? 

ARTHUR THOMAZ: Conheci através da amiga Vânia Figueiredo. Além dela, tenho outros amigos trovadores, como o José Feldman e a Therezinha Dieguez Brisolla

Essa mestra foi essencial no processo de revisão de “Rimando Ilusões”. 

BUENO EDITORA: Qual é a história e as características da trova? 

ARTHUR THOMAZ: A trova existe, pelo menos, desde o século XII. Ela pode ser lírica, filosófica, circunstancial, humorística, entre outros tipos.

BUENO EDITORA: Por que você decidiu fazer um livro com este tema?

ARTHUR THOMAZ: Porque a trova pode tratar de diversos assuntos, como amor, amizade, situações do cotidiano, entre outros, de forma leve ou crítica. São versos que os leitores vão gostar e se identificar.

Mais

Além de “Rimando Ilusões”, Arthur Thomaz escreveu outros livros em parceria com a Bueno Editora, entre eles, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”, que será lançado em breve.

PREFÁCIO DO LIVRO POR JOSÉ FELDMAN

Há pouco tempo fui apresentado virtualmente a Arthur Thomaz, por uma amiga de muitos anos, Therezinha Brisolla. Tendo embarcado há cerca de 40 anos na nau das trovas, tenho orientado muitos trovadores, e entre uma orientação e outra para suas trovas, fomos criando um vínculo de amizade. Militar reformado, agora engajado no pelotão de trovadores, Arthur já possui em suas veias a verve poética de sua mãe. São apenas dois anos desde quando começou na arte trovadoresca, um garoto ainda no mundo da trova, mas que vem se destacando e tem se dedicado com afinco à arte de trovar.

Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las?
Então, Deus... cria o poeta!
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Neste seu segundo livro de trovas, mostra a sua alma, pois como já dizia o poeta português Fernando Pessoa (1888 – 1935 ) "a trova é o vaso de flores que o povo põe na janela de sua alma.” Arthur Thomaz se expõe ao verter em suas trovas o que lhe vem do coração, numa aquarela de emoções: sua paixão, seus desejos, seus sonhos, suas crenças de que sempre haverá esperança para o mundo, e que o amor é a mais poderosa arma que o ser humano pode e deve utilizar.

Pelo tempo, pela vida,
tu corres tecendo teias.
Tu corres, trova querida,
por dentro das minhas veias!
ABEL B. PEREIRA

É um batalhador que não foge aos desafios que tem diante de si. Com perseverança segue avante, mas os obstáculos que se deparam frente a ele, não fazem com que desvaneça seu intento. Não importando quantos tombos levar, Arthur Thomaz se levanta e segue com sua fé inabalável e faz com que embarquemos neste seu novo livro de trovas, e o desejo de continuarmos navegando nesta fragata de versos sempre adiante.

José Feldman
UBT – Delegacia de Campo Mourão/PR

sábado, 25 de maio de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 47: Nuances de um Poemas

 

José Gomes Ferreira (A Festa ficou-me barata)

Por mais que puxe pela cabeça, ainda não consegui compreender como coube tanto tempo em poucos segundos.

Com efeito, no intervalo que vai desde esta pergunta lacônica “Lápis?” à prontidão da resposta afirmativa, tive a acuidade surpreendente de descobrir que o meu interlocutor, dono da capelista (loja de quinquilharias), se chamava Jerônimo, ostentava aquela carranca de altivez solene e morrera-lhe há pouco um filho tuberculoso, pelo qual andava de luto na vestimenta e nos olhos.

Há momentos assim: em que o tempo se dilata e, bruscamente, não sei por qual misterioso toque de atmosfera, os atos mais banais da vida se tornam extraordinários. Comprar lápis, por exemplo. É extraordinário estar em cima de uma bola que anda à roda do sol, e comprar lápis ao sr. Jerônimo, ali, de pé, atrás do balcão — alto, vasto e fastiento.

— Que marca prefere V. Exa.?

Respondi qualquer coisa dúbia de propósito para me esconder no silêncio de não haver resposta.
Na lojinha entrara outra freguesa: uma senhora de meia idade, amargurada de profissão, boca sempre em molde de suspiro e olhos tíbios, onde até a inveja de viver soçobrara já.

Lacrimejava:

— A minha sobrinha está muito ruinzinha... E com 19 anos, calcule! Tão nova e já tuberculosa como o seu filho...

O sr. Jerônimo, a alinhar as caixas dos lápis, abanou a cabeça agastado da comparação que lhe ofendia não sei que estranho sentimento aristocrático de orgulho paterno:

— Como a de meu filho, não, minha senhora. Há tuberculoses e tuberculoses... E a do meu filho era galopante. E que galopante! O médico, pelo menos, disse-me que nunca tinha visto outra assim. Que galopante!

E a sua voz resmungava no tumulto cavo de quem nos queria sugerir o tropear aflito de um bicho sangrento de escamas negras a devorar espaço, a devorar vida, a devorar alma, a apagar olhos com as patas...

— Que galopante!

Depois, desenhou com as mãos o gesto redondo do voo dos corvos sobre um campo de matança:

— Tive tão pouca sorte com os filhos que nem calcula! Nasceram todos fraquinhos do peito e por mais bifes que lhes desse nunca conseguiriam arribar. Desde miúdos, bifes e mais bifes. E de lombo! Cada bifada de meter respeito. “Ó homem — dizia a minha mulher (coitadinha! uma autêntica mártir dos filhos!) — ó homem: olha que a gente se arruina com tanta carne! Já viste a conta do açougueiro?” “Deixá-lo! Paga e não bufes. Chega-lhes bifes! Não poupes na bifada!” Mas, qual! Todos uns fracotes, uns magricelas.

E numa conclusão em que a melancolia da voz acentuava mais de força vaidosa o volume do corpanzil espesso: – Nenhum saiu a mim!

Seguiu-se um, curto silêncio, perturbado apenas por aquele raio de sol que vinha da vitrine e atravessava a loja vestido de poeira.

A senhora de meia-idade gozou, então, a tristeza de exclamar:

— Coitadinho! Não faz ideia do desgosto que senti quando soube da morte do seu filho. Infelizmente não pude assistir ao enterro. Até lhe queria pedir desculpas...

Como ela se delícia a fingir ternura! Não lhe deve restar outro prazer no mundo senão este de sorver as desgraças alheias com a cara pintada de alma, aos beijinhos no pó-de-arroz lívido das senhoras viúvas pé ante pé nas veladas dos mortos, a cochichar nas visitas de pêsames em todos os serões lúgubres, onde pode ser ridícula à vontade sem que ninguém lhe estranhe a velhice, porque as rugas até ajudam a exprimir melhor a dor, sobretudo a que ninguém sente, mas todos gostam de ver estampada nas faces dos outros. E o lápis? Esperem! Eu estou a comprar lápis! Preciso de formular uma opinião qualquer a respeito dos lápis:

— Não tem outros mais moles?

O sr. Jerônimo, sem se dignar reparar em mim, tirou da prateleira uma nova caixa azul que pousou no balcão.

E, sempre voltado para a freguesa, a pôr uma impossibilidade física entre aquela pobre mulher insignificante e o seu orgulho em que resvalavam todas as desculpas:

- Não assistiu, nem podia ter assistido, minha senhora, porque o enterro não se realizou em Lisboa, mas nas Caldas, na terra dos avós do pequeno. Coitados! Faziam tanto gosto em que o neto se enterrasse ao pé deles! Não sei bem para quê... Para lhe cuidarem da cova, suponho eu. E regarem-lhe as flores... Mania de velhos!

A sua voz tornou-se de súbito singular: mistura sombria de indiferença e petulância com um toquezinho sinistro de alegria comercial de quem atira dinheiro imaginário à cara de dois imbecis:

— E ainda bem, porque dessa maneira poupei muito dinheiro! Se o sepultasse no Alto de S. João, sabe por quanto me sairia a brincadeira? Aí por uf! 5 a 9 contos!... Quanto a trasladação nem falar nisso é bom... Era coisa para 16 contos bem puxados... Assim a festa ficou-me barata!

— Como? — balbuciou a senhora de meia-idade, sem entender, perdida naquele labirinto de contos e de festas, de confusão com o cadáver de um filho.

— Oh! foi tudo muito bem calculado! — explicou o sr. Jerônimo com voz brilhante de comércio inútil. — Foi tudo muito bem calculado!...

Sim, estes lápis ainda me parecem duros. Quero outros, ouviste? Mostra-me outros. Mas, nada de pressas, hein? Tira devagar as caixas da prateleira. Mais devagar, ainda. Dá-me tempo de ouvir a história até o fim.

— Quando vi o meu filho muito mal, chamei o médico à parte e perguntei-lhe: “Então, doutor? Diga-me, de homem para homem: ainda tem esperanças de o salvar?” O doutor olhou-me contristado e confessou-me: “Está por pouco. Dura no máximo três dias.” Três dias? Meu Deus! Só três dias? Fiquei aflito como pode imaginar. Mas, depois de refletir maduramente no caso, tomei uma resolução. O melhor era pegar no pequeno e levá-lo o mais depressa possível para as Caldas enquanto estivesse vivo, para depois evitar a trasladação. E assim fiz. A mãe ainda choramingou. Que era uma barbaridade, que era isto, que era aquilo... Mas que percebem as mulheres de negócios?

“Psiu! Claudina! Quem manda cá em casa sou eu!” Metia-a na ordem com dois berros e lá partimos para as Caldas. Coitadinho! Mal podia sustentar-se nas pernas. Tão definhado! Só tinha pele e osso. Conseguimos vesti-lo à custa de injeções de cânfora, para aguentar o coração, e mesmo assim com mil cuidados, parando a cada momento, não fosse o diabo tecê-las... Por fim, de gravata à roda do pescoço e a dançar numa vestimenta larguíssima, lá o instalamos numa carruagem de primeira — coitadinho! — com uma barba tão grande, tão grande, que até metia medo!... Quando chegamos às Caldas, ia branco como um lençol e quase que não respirava. O avô, assim que o viu, teve um baque, fez-se muito pálido e perguntou-me em voz baixinha: “está morto?”

E o sr. Jerônimo repetia, numa voz ciciante, como filtrada através da fluidez dos cristais do sonho: “está morto?”

— E estava? interrogou, ansiosa, a senhora de meia-idade.

— Não, não estava. Mandei logo chamar um médico para me livrar de responsabilidades... Não estava... Só faleceu no dia seguinte, coitadinho!

Calou-se.

Entrementes tinham entrado na lojinha várias pessoas em compras de fitas de linho, fósforos, carrinhos de linhas, mais isto, mais aquilo, e todos pareciam ouvir aquela história com a naturalidade normal de haver vida todos os dias. Só eu continuava a achar tudo extraordinário.

— Quanto é?

— Tanto.

Enquanto procurava no bolso o dinheiro para pagar os lápis, passou-me repentinamente pela cabeça esta ideia estapafúrdia: e se eu desse um salto, a pés juntos, sobre o balcão, deitasse as mãos ao pescoço do sr. Jerônimo, e o censurasse numa voz fria de boca de cadáver: “quem julgas tu que eu sou, seu Malandro? Um freguês como os outros, não? Um palerma qualquer que quer lápis moles, bem? Pois enganas-te! Sou um espião, ouviste? Um espião disfarçado. E vou espalhar com a tua história relés nos jornais, com nomes e tudo, sob este título: Sensacional: um malandro macabro que trasladou o cadáver do filho em vida! Percebeste?”

Mas, em vez disto, sorri-lhe. E para completar a desorientação, quanto o ar, Jerônimo me entregou os lápis embrulhados (a festa ficou-me barata!) pareceu-me ver-lhe nos olhos uma ternura qualquer de lágrimas... uma névoa funda de dor.., um brilho de comoção secreta.., ou seria tudo ilusão dentro de mim?

Paguei e saí da capelista.

Cá fora, as ruas de sempre, o sol de sempre, as pedras de sempre, as casas de sempre, os homens de sempre, o espanto de sempre. Tudo normal, tudo sonolentamente normal.

Apenas na esquina do costume, uma velha, feia de miséria, carranca de cera com pelos, pedia esmola para o filho idiota, de olhos enormemente parados, aos guinchos dentro dum carro de madeira:

— Ó meu rico senhor: dê-me uma esmolinha para o meu filhinho que é toda a paixão da minha vida! Dê-me...

Fixei-a com o olhar cúmplice de quem sabe perfeitamente o que valem essas grandes paixões da vida. E dei-lhe dois tostões, (A festa ficou-me barata!)

Tudo normal, tudo absurdamente normal. Só o pobre monstro, no carrinho, continuava a soltar sons inarticulados, e a mirar e a remirar as mãos, no espanto de haver mãos.

Fonte: Diaulas Riedel. Maravilhas do Conto Português. Publicado em 1958.

Livros Recebidos

Últimos livros publicados enviados pelo correio ou entregues em mãos pelos autores,  cujo conteúdo estou publicando gradativamente no blog:

A. A. de Assis. Histórias da história de Maringá.
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis.
Arthur Thomaz. Rimando Sonhos: trovas.
Carolina Ramos. Meus bichos, bichinhos e… bichanos
Daniel Maurício. Alma lírica: poesias.
Daniel Maurício. Amar é: poesias.
Daniel Maurício. Cacos e retalhos: poesias.
Daniel Maurício. Gotas poéticas.
Daniel Maurício. Leve-me: poesias.
Daniel Maurício. Miudezas do coração: poesias.
Daniel Maurício. Mosaico de sentimentos: poesias.
Daniel Maurício. Olhares: poesias.
Daniel Maurício. Origamis de palavras: poesias.
Daniel Maurício. Palavras de cheiro: poesias.
Daniel Maurício. Poesias da madrugada.
Edy Soares. Sonetos sonantes.
Lucília Alzira Trindade de Carli. Canteiros: trovas.
Luiz Poeta. Trov…ansi…arte.
Pedro Cardoso & Goulart Gomes. Poemas encolhidos: poetrix.
Renato Benvindo Frata. Contos infantis.
Renato Benvindo Frata. Fragmentos: 102 crônicas.
Vanice Zimerman Y Gustavo Henao Chica. Saudade… : poesias.

Meus agradecimentos aos autores.

Vereda da Poesia = 17 =

 

Trova humorística da Princesa da Trova

Carolina Ramos
Santos/SP

Deu a tantos seu carinho
que no enlace, em confusão,
deu o sim para o padrinho
e o beijo no sacristão!
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Soneto de Fortaleza/CE

José Albano
(José D’Abreu Albano)
1882 – 1923, Montauban/França

SONETO DA DOR

Mata-me, puro Amor, mas docemente,
Para que eu sinta as dores que sentiste
Naquele dia tenebroso e triste
De suplício implacável e inclemente.

Faze que a dura pena me atormente
E de todo me vença e me conquiste,
Que o peito saudoso não resiste
E o coração cansado já consente.

E como te amei e sempre te amo,
Deixa-me agora padecer contigo
E depois alcançar o eterno ramo.

E, abrindo as asas para o etéreo abrigo,
Divino Amor, escuta que eu te chamo,
Divino Amor, espera que eu te sigo.
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Aldravia de Porto Alegre/RS

Ilda Maria Costa Brasil

uma
palavra
inúmeras
faces
vários
escritos
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Poema de Natal/RN

Silvino Potêncio
(Silvino dos Santos Potêncio)

O TEMPO É BREVE!…
(Poema numero 8)

O tempo é breve... Já vou andando,
Descendo por escadas em poeira.
Vou caindo pra morada derradeira,
Que existe na terra guardando,
Pra sempre os restos de um corpo,
Do mundo,... já se vai porque está morto!

Sinto náuseas fedorentas,
Em contato ao pensamento.
Sinto passos de almas lentas!!!???...
- Ah!... mas já não me fazem tormento!.

Saudades não levo nem deixo.
Tristezas!?... morreram já há algum tempo.
Concordem que não fui contratempo,
E só porque já não me queixo,
Não pisem no meu mausoléu...
Se alguém o ergueu para o céu!
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Trova de Curitiba/PR

Nei Garcez

Há emoções que a gente sente
e, que encantam tanto, tanto,
que, se expressas, verbalmente,
perdem parte deste encanto.
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Soneto de Curitiba/PR

Emílio de Meneses
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
1816 – 1918, Rio de Janeiro/RJ

A CHEGADA

Noite de chuva tétrica e pressaga*.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.

Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimária** o incerto passo apresso.
Da última estrela à réstia ínfima e vaga
Ínvios*** caminhos, trêmulo, atravesso.

Tudo me envolve em tenebroso cerco
D'alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-la quase perco.

Mas uma volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola. o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!
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*Pressaga = que pressagia, prevê ou pressente
**Alimária = animal de carga
***Ínvios = Em que não se pode passar, transitar em caminho, estrada etc.).
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Quadra Popular

Sonhei contigo esta noite,
mas oh! que sonho atrevido!
Sonhei que estava abraçado
à forma do teu vestido !
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Décima de Fortaleza/CE

Francisco José Pessoa 
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
1949 - 2020

PALHAÇO

A vida se nos faz meros palhaços...
sorriso solto num choro prendido,
querer que é dado nunca agradecido
saltar ao vento sem pisar os passos.
Tragar o fumo dos prazeres baços
embebedar-se tanto pra esquecer,
sentir-se ser alguém, mesmo sem ser,
no picadeiro, o aplauso, a falsa glória,
imagem tão real quanto ilusória
pranto da morte rindo pra viver!
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Epigrama de Salvador/BA

Roberto Correia
(Roberto José Correia)
1876 – 1937

Carroceiro, desalmado,
– diz o burro – vê que tu és
meu irmão! mas, aleijado,
que nasceste com dois pés!
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Poema do Príncipe dos Poetas Paranaenses

Emiliano Perneta
(Emiliano David Perneta)
Curitiba/PR, 1866 – 1921

ORAÇÃO DA MANHÃ

Amanheceu. A luz de um claro e puro brilho
Tem a frescura ideal de uma roseira em flor :
Antes de tudo o mais, ajoelha-te, meu filho,
Ajoelha-te e bendize a obra do Criador.

Ajoelha-te aqui, e sorvendo esse aroma
De feno, e rosa, e musgo, e bálsamo sutil,
Que vem do seio azul dessa manhã, que assoma,
Na radiosa nitidez de uma manhã de Abril,

Bendize a força, a graça, a seiva, a juventude,
A hercúlea robustez daqueles pinheirais,
Que resistem, de pé, dentro da casca rude,
Aos mugidos do vento e aos rijos temporais.

Ama essa terra como um fauno que por entre
A silva agreste vive; ama tudo o que vês;
Todos somos irmãos, filhos do mesmo ventre,
Filhos do mesmo amor e da mesma embriaguez.

Abraça os troncos nus, beija esses ramos de ouro,
Ajoelha-te aos pés dos que te querem bem :
Que riqueza, Senhor, que límpido tesouro!
Que grande coração que o arvoredo tem!

Pede a Deus que conhece os bons e maus caminhos
Que conhece o passado e conhece o porvir,
Que te aponte de longe os cardos e os espinhos,
E que te estenda a mão, quando fores cair...
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Trova do Príncipe da Trova

Luiz Otávio
(Gilson de Castro)
Rio de Janeiro/RJ, 1916 -1977, Santos/SP

Ele cai... não retrocede!...
Continua... até sozinho...
que a fibra também se mede
pelas quedas no caminho...
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Martelo Agalopado de Pilõezinhos/Distrito de Guarabira/PB

José Camelo de Melo Rezende
1885 – 1964, Rio Tinto/PB

O orgulho nasceu em noite escura, 
E é filho da triste ignorância, 
Ao descer o seu corpo à sepultura, 
Cai-lhe verme por cima, em abundância, 
E seu todo se torna uma figura, 
Que nos causa a maior repugnância. 
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Haicai de Belo Horizonte/MG

Hana Haruko
(Clevane Pessoa de Araújo Lopes)

Pássaros canoros 
Energia em expansão 
Almas projetadas… 
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Poema de Vila Velha/ES

Aparecido Raimundo de Souza

CHUVA E SAUDADE

Cai a chuva… é triste o dia…
A manhã é cinzenta e baça…
E eu mudo vejo a chuva fria,
A correr de leve na vidraça…

E a chuva cai… cai e não passa…
Nem sequer a chuva estia…
Para que um pouco se desfaça,
A saudade de quem eu tanto queria!…

Qual essa vidraça, está meu rosto…
E meus olhos não querem desanuviar…
É por demais sofrido o meu desgosto…

Aumenta a chuva e com ela a minha dor…
Soluço qual criança perdida, sem cessar,
Na incerteza de ao menos rever-te amor!…
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Trova de Campinas/SP

Arthur Thomaz
(Arthur Thomaz da Silva Neto)

Não tem preço, a amizade,
é o ditado popular.
E os amigos de verdade
são difíceis de encontrar.
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Parcela* de Campo Grande/MS

Rubenio Marcelo
 
1.
   no azul do poema
   a luz da canção
   agora um clarão
   antes tão pequena
   não mais quarentena
   que se encastela
   agora eu e ela
   no leme do dia
   rumo à escadaria
   cantando parcela...

   2.
   assim, infinito
   nessa plenitude
   meus pés, amiúde,
   procuram o grito
   perpassam o mito
   ardente aquarela
   aurora e estrela
   que já predestinam
   sazões que sublimam
   à luz da parcela...

   3.
   oh tempo-verdade
   gravando o eterno
   já não mais hiberno
   a outra metade
   oh fertilidade
   que tudo revela
   com justa cautela
   quero ressurgir
   para refletir
   cantando parcela...

   4.
   no bico do corvo
   deixei o meu múnus (1)
   e os importunos
   punhais do estorvo
   agora não sorvo
   profana querela
   há porta, há cancela
   colunas, mansão
   adeus solidão
   no tom da parcela!

   5.
   permanentemente
   honrarei o rito
   quesito a quesito
   manhã, sol-poente
   se dente é por dente
   ardente é aquela
   retina que zela
   o perfeito instinto
   no áureo recinto
   do canto-parcela!
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 (1) Múnus = obrigações

* Parcela, conhecida também pela denominação de Décimas de versos curtos, a Parcela é gênero de cantoria constituída por estrofes com versos de quatro ou de cinco sílabas. Destacaram-se neste estilo os cantadores Pedra Azul, Manoel da Luz Ventania, José Félix e o cego Benjamim Mangabeira, este último falecido em Fortaleza.

Como é outra variante das Décimas, o esquema de distribuição rimática das Parcelas é abbaaccddc. (Fonte: Lilian Maial)