quinta-feira, 24 de maio de 2012

Guimarães Rosa (Conto de Sagarana: A Volta do Marido Pródigo)


Conto narrado em 3ª pessoa, sendo pois o narrador onisciente, não participa da história. Neste conto, farto em citações de lugares e personagens da região de Itaguara, assim como em Conversa de bois, os animais se transformam em heróis, questionando o saber dos homens com o seu suposto não saber.

Em A volta do marido pródigo, o autor descreve um ladino que vende a mulher para dedicar-se a aventuras na cidade grande, mas depois se arrepende, volta para sua região e, malandramente, reconquista sua posição e sua mulher.

O conto é uma paródia da "parábola do filho pródigo”, e apresenta traços de humor, presentes, principalmente, na maneira pela qual a personagem protagonista é caracterizada como malandro folclórico. Essa questão também é amparada na concepção de mundo às avessas presente na narrativa.

O que se percebe é que, no conto, não existe julgamento moral a respeito de nenhuma das atitudes de Lalino, que poderiam, segundo o senso comum, ser consideradas “más”. Também, as personagens do texto ditas respeitáveis são descritas como “não tão respeitáveis assim”. No entanto, em qualquer caso, a leveza e a ironia com que tais situações de desregramento moral são apresentadas amenizam a seriedade que o tratamento desses assuntos poderia assumir.

Na releitura de Guimarães Rosa há uma visão bem diferente daquela encontrada no ensinamento moral que a parábola pretendeu passar. No conto, o que importa é retratar a personagem do malandro, do típico brasileiro que, para tudo, dá um “jeitinho”.

Personagens

Lalino Salãthiel - todos o chamam de Laio. Mulato vivo, malandro, contador de histórias. Garante que conhece a capital, Rio de Janeiro, mas nunca foi lá. Certa vez, foi realmente conhecê-la.
Maria Rita - mulher de Lalino; trata-o com especial carinho.
Marra - encarregado dos serviços; depois que a obra acabou, mudou-se do arraial.
Ramiro - espanhol que ficou com Ritinha, a mulher de Lalino.
Waldemar - Chefe da Companhia.
Major Anacleto - chefe político do distrito, homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar.
Tio Laudônio - irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Era conselheiro do Major.
Benigno - inimigo político do Major Anacleto.
Estêvão - capanga respeitado do Major Anacleto. Jamais ria. Tinha pontaria invejável: atirava no umbigo para que a bala varasse cinco vezes o intestino e seccionasse a medula, lá atrás.

Lalino é um sujeito simpático, espertalhão e falante, avesso ao trabalho, sabe como poucos contar uma estória. A chave para entendê-lo melhor está em suas contínuas alusões a peças de teatro, quase sem ter visto nenhuma. Ele parece constantemente representar, em tudo o que faz ou fala. Assim, sai-se bem em tudo o que faz.

Assemelha-se a Leonardo, de Memórias de um sargento de milícias, e a Macunaíma: os três heróis sem nenhum caráter.

Essas são as aventuras de um herói picaresco, Eulálio Salãthiel (Lalino), que abandona a mulher após seis meses de casado e vai conquistar o mundo. Antes de viajar, consegue extorquir algum dinheiro de um espanhol interessado nela e que dela iria tomar conta. Sua esposa, Maria Rita, abandonada por ele, passa a morar com o espanhol Ramiro.

Ao vender Ritinha, o protagonista abre mão do que lhe é mais caro, mas que ele ainda não é, naquele momento, capaz de perceber.

Desiludido com o Rio de Janeiro retorna à sua terra e urde um plano para recuperar a mulher - Maria Rita - e o prestígio junto ao povo do lugar. Com paciência e astúcia, vence todos os obstáculos, recupera a mulher, expulsa os espanhóis do lugarejo e reconquista o prestígio junto ao coronel para cuja vitória nas eleições contribui.

Após ter passado por tudo o que passou, o Lalino do final não é mais a mesma pessoa, que se engana no que decide fazer e apressa-se a reparar o erro, nem tampouco se utiliza de todos os seus atributos de astúcia e malandragem para recuperar o que havia perdido, mas sim, aprende a dar importância às coisas que realmente devem ter importância atribuída.

Ele agora tem plena consciência de que deve cuidar de seu tesouro mais precioso, pois, do contrário, corre o risco de entregá-lo, mais uma vez, de mãos beijadas, a quem o estiver cobiçando.

Através de ironia claramente perceptível, o autor mostra lendas populares da região dos Campos Gerais de Minas, assim como ditados que louvam a esperteza e a paciência.

Resumo do conto

Na introdução do conto o cenário é apresentado: homens trabalham duro escavando o solo para dele retirar minério. Seu Marra é o encarregado, de olho em todos para que o trabalhe ande a contento. Lalino Salãthiel é um mulato vivo, malandro, que chega tarde ao trabalho e inventa desculpas. Em vez de trabalhar duro, como os outros, inventa histórias, conta causos. A maioria admira-o. Mas há quem enxergue nele apenas um aproveitador. Generoso acha que Ramiro, um espanhol, anda rondando a mulher de Lalino.

Laio, naquela noite, não comparece à casa de Waldemar para a aula de violão. No outro dia, fica em casa vendo umas revistas com fotografias de mulheres. À tarde, vai à empresa e acerta as contas com Marra. Está disposto a ir embora. Na volta para casa, encontra Ramiro, o espanhol que lhe anda cercando Maria Rita. Nasce, imediatamente, um plano: tomar um dinheiro emprestado do espanhol. O argumento é convincente: quer ir embora sem a mulher, mas falta-lhe dinheiro para viajar. Ramiro empresta-lhe um conto de réis. Com o dinheiro no bolso, Laio pegou o trem na estação rumo à capital do País. Seu Miranda, que foi levá-lo, ainda tentou dissuadi-lo. Não conseguiu.

Um mês depois, Maria Rita ainda vivia chorando, em casa. Três meses passados, Maria Rita estava morando com o espanhol. Todos diziam que Laio era um canalha, que vendera a mulher para Ramiro. E assim, passou-se mais de meio ano.

As aventuras de Lalino Salãthiel no Rio de Janeiro excederam à expectativa. Seis meses depois, Laio estava quase sem dinheiro e começou a sentir saudades. Tomou a decisão: ia voltar. Separou o dinheiro da passagem e programou uma semana de despedida: "uma semaninha inteira de esbórnia e fuzuê". Acabada a semana, Laio pegou o trem: queria só ver a cara daquela gente quando o visse chegar!

Enquanto atravessava o arraial, Laio teve que ir respondendo às chufas dos moradores. Finalmente, chegou à casa de Ramiro, o espanhol que se apossou de Ritinha. Laio informou-lhe que estava de volta para devolver o dinheiro do empréstimo. Ramiro, querendo evitar que Laio visse Ritinha, perdoou o empréstimo: a dívida já estava quitada. Mas Laio insistiu: "eu quero-porque-quero conversar com a Ritinha"! E disse isso com a mão perto do revólver. O espanhol concordou, desde que não fosse em particular. De repente, Laio esmoreceu: não queria mais ver a Ritinha. Queria só pegar o violão. Depois, quis saber se o espanhol estava tratando bem a Ritinha. E despediu-se. Primeiro pensou em ir à casa de seu Marra. Depois, dirigiu-se para a beira do igarapé: era tempo de melancia. Depois de apreciar a paisagem, Laio deu de cara com seu Oscar. Trocaram idéias, e Oscar prometeu que ia falar com o velho (Major Anacleto) e tentar arranjar um trabalho para Laio na política.

Além de chefe político do distrito, Major Anacleto era homem de princípios austeros, intolerante e difícil de se deixar engambelar. Quando Oscar lhe falou de Laio, ele foi categórico: aquilo é um grandessíssimo cachorro, desbriado, sem moral e sem temor a Deus... Vendeu a família, o desgraçado.

Tio Laudônio era irmão do Major Anacleto. Esteve no seminário, vivia isolado na beira do rio. Poucas vezes vinha ao povoado. Chorou na barriga da mãe, enxerga no escuro, sabe de que lado vem a chuva e escuta o capim crescer. Pois foi Tio Laudônio que intercedeu a favor de Laio. O Major concordou. Era mandar chamar o mulato no dia seguinte.

Mas Laio não apareceu no dia seguinte. Só apareceu na fazenda na quarta-feira de tarde. E topou logo com o Major Anacleto. Quando o Major tentou expulsá-lo da fazenda, Laio deu-lhe notícias de todas as manobras políticas da região, quem estava com o Major e quem o estava traindo. Já descobrira a estratégia do Benigno para derrotar o Major na próxima eleição. Em troca de tanta informação, pediu a proteção do Estêvão, o capanga mais temido do Major. Assim, o povo do arraial ficou sabendo que Laio era o cabo eleitoral do Major Anacleto e, como tal, merecia respeito.

Major Anacleto, depois do relatório de Laio, mandou selar a mula e bateu para a casa do vigário. O padre teve de aceitar leitoa, visita, dinheiro, confissão e o cargo de inspetor escolar. Antes de o Major sair, o padre contou-lhe que Laio estivera na igreja. Também se confessara e comungara e ainda trocara duas velas para o altar de Nossa Senhora da Glória.

Quando o Major e Tio Laudônio passaram em frente à casa de Ramiro, o espanhol aproveitou para denunciar Lalino: o mulato estava de amizade com Nico, o filho do Benigno. Foram juntos à Boa Vista, com violões, aguardente, e levando também o Estêvão. O Major ficou danado de zangado. Não via a hora de encontrar o Laio.

Depois de peregrinar por todas as bandas, o Major voltou para a fazenda, onde Laio já o esperava. Primeiro o Major xingou o mulato de muitos nomes feios, depois Laio teve tempo de explicar: era tudo estratégia política para saber das coisas. Passara, sim, em frente à casa de Ramiro, mas não o insultara. Dera vivas ao Brasil porque não gostava de espanhóis. E tinha mais (coisa que o Major não sabia): espanhol não vota porque é estrangeiro.

Houve um período de calmaria política em que Laio ficou tocando viola e fazendo versos no meio da jagunçada do Major. Um dia, pediu um favor a seu Oscar, filho do Major: que ele fosse ter com Ritinha e conversasse com ela, mas sem dizer que era da parte do Laio. Oscar foi e fez o contrário: falou mal do mulato, disse a Ritinha que o marido andava fazendo serenata para outras mulheres. Aproveitou a proximidade e pediu-lhe um beijo. Ritinha expulsou-o, não sem antes confessar que gostava mesmo era do Laio, que ia morrer gostando dele. De volta, seu Oscar contou o contrário: que Ritinha não gostava mais do marido, gostava de verdade era do espanhol.

Certa tarde, depois de dormir um pouco na cadeira de lona, o Major foi acordado com uma barulheira dos diabos. O mulherio no meio da casa, os capangas lá fora, empunhando os cacetes, farejando barulho grosso. Ritinha jogou-se aos pés do Major e suplicou-lhe proteção. Que não deixasse os espanhóis levá-la à força dali. O Ramiro, com ciúmes, queria matá-la, matar o Laio e, depois, suicidar-se. Disse tudo isso chorando e falando na Virgem Santíssima.

O Major mandou chamar o Eulálio e foi informado de que o mulato estava bebendo juntamente com uns homens que chegaram de automóvel. Foi a conta: o Major pensou que eram da oposição e começou a xingar o Laio. Cabra safado, traidor. Ia levar uma surra, pelo menos isso. Tio Laudônio procurava acalmá-lo. De repente, lá vem o Laio dentro de um automóvel. E a surpresa foi geral. Era gente do governo, Sua Excelência o Senhor Secretário do Interior. Aí o Major desmanchou-se em sorrisos e gentilezas. E a autoridade satisfeita, elogiando muito o Laio, pedindo ao Major que, indo à capital, levasse o mulato junto.

O Major, contentíssimo, mandou trazer Maria Rita para as pazes com Laio. Convocou a jagunçada e ordenou: "mandem os espanhóis tomarem rumo"! Se miar, mete a lenha! Se resistir, berrem fogo!

Fonte:
Passeiweb

Esopo (Fábula 19: O Velho Cão e o Seu Dono)


Havia um homem que tinha um cão cheio de vida, que acompanhava o dono em muitas caçadas e nunca deixara de ser um bom e leal servidor. Por fim, quando o cão ficou velho e cansado, incapaz de correr depressa, a única recompensa que o dono lhe dava era bater-lhe duramente. "Dono", disse o cão, "Tenho tão boa vontade como dantes, mas faltam-me as forças e os meus dentes estão a cair. Perdes o teu tempo a bater-me, porque eu não posso trabalhar melhor e tu não podes curar a minha velhice."

Moral da história

Trabalhar muito e arduamente é um mérito por si só; um servo fiel e verdadeiro só pode esperar recompensa no outro mundo.

Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

2º CIELLI da UEM/PR (Resumo de Simpósio de Estudos Linguísticos) Parte 4


2º CIELLI - Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários

O resumo havia sido publicado na UEM em parágrafo único, mas para facilitar a leitura dos leitores do blog, dividi em parágrafos.


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Luzmara Curcino Ferreira
Henrique Silvestre Soares
LER NA ATUALIDADE: HISTÓRIA, PRÁTICAS E DISCURSOS


A leitura é ao mesmo tempo um gesto interpretativo individual que, no entanto, é regido por diferentes formas de injunção social. Ela é também uma prática culturalmente delimitada, uma vez que se altera ao longo da história assim como de uma cultura a outra. Textos, gestos de leitores e objetos culturais são relacionados e explorados segundo crivos teóricos particulares de modo a permitirem a estudiosos da leitura oriundos de diferentes campos de saber (teóricos da comunicação, linguistas, críticos literários, professores, psicólogos, historiadores etc.) descreverem e sistematizarem essa prática que, por si só, não deixa marcas tangíveis de sua realização que possam atestar uma homogeneidade em sua prática ou uma singularidade quanto aos sentidos produzidos na apropriação dos variados textos a que estamos expostos.

A proposição deste GT visa congregar pesquisadores da leitura, especialmente aqueles voltados para a análise das representações discursivas que orientam nossas concepções sobre a leitura assim como nossa maneira de ler. Essa orientação pode se estabelecer de duas maneiras: de um lado, pela produção e reprodução de discursos sobre a leitura que elegem não somente os tipos de textos como também as formas legítimas de se ler/de se ensinar a leitura; de outro, pelo controle exercido pelos próprios textos em circulação e que, por suas estratégias de escrita, pelo modo como selecionam, priorizam ou empregam as linguagens, ordenam a maneira, enfim, o ritmo como nosso olhar leitor deve percorrê-los e os sentidos que a eles devemos ou podemos atribuir.

Nosso interesse é congregar estudiosos que abordem em seus trabalhos de pesquisa a leitura como objeto de conhecimento, em uma de suas várias dimensões – como prática educacional, estética, social, cognitiva, histórica, subjetiva, tecnológica etc. – mas especialmente em sua dimensão discursiva, ou seja, como prática de interpretação de textos historicamente orientada, de maneira a contribuir com uma melhor compreensão acerca do que faz o leitor quando lê, ou como ele exerce (ou não) essa prática, levantando as coerções ou liberdades que atuam quando do exercício da leitura, no nível da materialidade textual ou não, definindo assim os limites ou extensões da intepretação. Este GT, portanto, pretende atuar como um espaço privilegiado de debate sobre o leitor e suas práticas de leitura, especialmente em relação ao leitor brasileiro na atualidade. Para tanto, serão bem vindos trabalhos que abordem as formas peculiares de leitura de comunidades de leitores diversas, especialmente aquelas, tão heteróclitas assim como desconhecidas, que podemos designar, com base na definição dos historiadores culturais da leitura, como novos leitores. São aqueles leitores, em sua grande maioria, não pertencentes ao universo sociocultural erudito que, graças à expansão dos textos e às novas tecnologias de produção e circulação de textos impressos e eletrônicos da atualidade, têm travado contato mais freqüente com a escrita, por meio de textos da cultura de massa mas também da cultura letrada.

Objetivamos, assim, fomentar a discussão sobre os discursos sobre a leitura e seu papel na formação dos indivíduos na atualidade, as novas formas de produção e circulação de textos e seu impacto sobre a leitura, as estratégias de mercado que vêem no leitor um consumidor e as políticas públicas voltadas para a leitura, compreendendo assim as injunções de diversas ordens que determinam, em alguma medida, as condições de produção da leitura na atualidade. Essas discussões nos permitirão levantar prováveis continuidades e/ou descontinuidades nas práticas e nas representações discursivas da leitura e do leitor ao longo da história, o que pode nos permitir apreender melhor o fenômeno e suas variações e avançar hipóteses de trabalho e propostas de atuação no âmbito da pesquisa ou no âmbito político-pedagógico, junto a órgãos governamentais e a intituições escolares e universitárias, entre outros.

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Neiva Maria Jung
Cristina Marques Uflacker
LETRAMENTO, ETNOGRAFIA, INTERAÇÃO E APRENDIZAGEM


Neste Simpósio, tem-se como objetivo reunir trabalhos que examinam práticas sociais letradas, mais especificamente, estudos que buscam descrever e compreender os usos sociais da escrita e as suas implicações para a aprendizagem escolar.

Os pressupostos teórico-metodológicos são os estudos sobre letramento (STREET, 1984, 1988, 2000, 2003, 2004; HAMILTON, 2000; BARTON, 1994; BARTON, HAMILTON e IVANIC, 2000; BAINHAM, 2004; KLEIMAN, 1995, 2004; OLIVEIRA, 2010), que apresentam e discutem letramento como prática social. De acordo com Street (1995), os usos da leitura e da escrita são socialmente determinados, têm valor e significado específico para cada comunidade, portanto, não podem ser tratados isoladamente como “neutros”.

Nesse sentido, os Novos Estudos de Letramento (NLS) representam uma nova tradição de pesquisa, por considerarem a natureza do letramento, pois ele pode variar de acordo com o tempo e o espaço e está articulado com as relações de poder (STREET, 2003). Para descrever esses usos sociais da escrita, Street recomenda a realização de trabalhos etnográficos, pois somente esses trabalhos seriam capazes de descrever a complexidade dos fatores envolvidos em práticas situadas de uso da escrita e compreendê-los em nível micro. Trata-se de uma metodologia que permite reconhecer os fatores culturais e sociais envolvidos nas práticas de escrita, ou seja, como as pessoas fazem uso da escrita e como elas interagem umas com as outras ao fazê-lo, e qual a relação desses modos de participação com as culturas que constituem os participantes, articulando a compreensão micro com as relações macrossociais.

Para a descrição micro, a articulação com os estudos de fala-em-interação social também tem se mostrado bastante produtivos. A perspectiva da Análise da Conversa Etnometodológica (ACE) (SACKS, SCHEGLOFF e JEFFERSON, 1974; LODER; JUNG, 2008, 2009) entende a fala como uma forma de ação social, isto é, como uma forma de fazer coisas no mundo. Desse modo, a ACE investiga como as pessoas envolvidas na interação compreendem o que sua fala e outras condutas estão fazendo e estas compreensões são evidenciadas nas sequências organizadas da fala. Essa compreensão permite analisar de que modo as pessoas presentes em um evento de letramento efetivamente se engajam nesse evento, mostrando a sua participação e aprendizagem, ou seja, neste viés como as pessoas por uma série de práticas operacionalizam ações e atitudes orientadas para a confirmação, modificação ou ampliação do conhecimento (ABELEDO, 2007; SCHEGLOFF, 1991).

Nesse caso, o espaço para a participação deve ser construído na escola para que todos possam participar e ter a palavra para dizer o que estão aprendendo e o que está difícil de aprender, o que possibilita que os alunos passem a ser protagonistas de seus processos de aprendizagem (SCHULZ, 2007). Em síntese, este simpósio propõe reunir trabalhos que descrevam práticas de letramento em sala de aula que evidenciem efetivamente a participação de professores e alunos, propostas de práticas para a aprendizagem escolar, que descrevam o papel das novas tecnologias nessas práticas e proporcionar um espaço para que outras práticas sociais de uso da escrita possam ser descritas e apresentadas, como práticas religiosas, procurando reconhecer a sua contribuição (ou não) para as práticas letradas escolares.

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Maria Regina Pante
Elódia Constantino Roman
LINGUÍSTICA FUNCIONAL: TENDÊNCIAS E INTERFACES


Este simpósio tem por objetivo constituir-se como espaço de discussão de trabalhos de pesquisadores de graduação e de pós-graduação da Universidade Estadual de Maringá e de outras instituições nacionais e internacionais que promovam discussões integradas das contribuições de base funcionalista, sob os mais diferentes modelos de análise textual e discursiva, relacionando tais investigações com possíveis interfaces (estudo de mudanças históricas de itens e construções; interação sociodiscursiva, em que a língua é vista como atividade estruturada e cooperativa; estudos relativos às competências básicas; estudos de contexto e contexto, associados a questões de ordem pragmática entre outros).

Com base na perspectiva que trata a linguagem como um instrumento de interação verbal e toma, dessa maneira, as propriedades formais das unidades linguísticas, descrevendo-as em termos de intenção comunicativa em que são produzidas para a descrição de língua em uso, considera-se, assim, os vários níveis de análise da língua portuguesa no Brasil e em outros países em que ela é falada. As análises aqui propostas devem ser compreendidas como manifestações complexas que concebem as atividades linguísticas de sujeitos que, primordialmente, partem de escolhas comunicativamente adequadas e operam as variáveis dentro de condicionamentos ditados pelo processo de produção de enunciados em condições reais de uso. Ou seja, as investigações avaliam as condições dessas escolhas para o cumprimento de determinadas funções; as condições de produção dessas estruturas; as estratégias e os elementos que efetivamente operam para a construção textual/discursiva.

Com base nesse pressuposto, as diferentes pesquisas a serem expostas podem considerar desde as unidades menores, como itens que, ao serem construídos e expandidos pelo uso foram integrando outras categorias (processos de gramaticalização interpretados aqui, nos termos de Hopper & Traugott (1993); Traugott, (1995,1999); Traugott & König (1991), como processo de mudança linguística em que itens ou construções menos gramaticais passam em determinados contextos a assumir traços morfossintáticos, semânticos e pragmáticos de itens ou construções mais gramaticais ainda quanto unidades maiores que a oração – um período ou uma sequência discursiva e extensões distintas). Nesse caso, considera-se tanto a mudança devido ao aumento gradual da pragmatização do significado (inferência) quanto o aumento de abstratização do item linguístico (estratégias metafóricas), evidenciando parte de um uso considerado mais concreto para um uso mais abstrato-expressivo que implica situações discursivas distintas.

Aceitam-se, no presente simpósio, trabalhos que possam apresentar e caracterizar essas possíveis interfaces com os diferentes modelos de gramática de base funcionalista – Gramática Sistêmico-Funcional, Gramática Funcional, Modelo de Halliday (1989), Dik (1989), Dik e Hengeveld (1997) Linguística Textual, Pragmática entre outros. Mediante tais análises, objetiva-se compreender como as regularidades de certas escolhas podem alterar o sistema linguístico.

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Helson Flávio da Silva Sobrinho
Maurício Beck
O CAMPO PARADOXAL DAS IDEOLOGIAS, ENTRE IDENTIFICAÇÕES, SIMETRIAS E RUPTURAS


A proposta deste Simpósio é aprofundar o debate sobre o campo paradoxal das ideologias a partir das noções de identificação, contraidentificação e desidentificação em Pêcheux e as noções freudianas de identificação. Para Pêcheux, no transcurso do século passado, persistiu certa tendência de produção-reprodução do Estado (de tipo prussiano, espécie de fortificação ocupada) nas inversões/subversões de aparelhos ideológicos dos países sede do “socialismo realmente existente”.

Nestes enclaves assimétricos no interior do desenvolvimento geral da acumulação do Capital, não deixaram de funcionar dispositivos estratégicos e práxis ideológico-discursivas de contraidentificação “simetrificantes do adversário vencido”(Pêcheux, 1982: 112). Essa leitura pecheuxtiana coloca novos problemas em relação ao estudo dos antagonismos no movimento do real, impondo-nos o questionamento sobre quais formas de inversões/subversões rompem radicalmente a ponto de não funcionar como espelho invertido do Capital-Estado? Na Análise do Discurso, as contradições são inerentes aos discursos, afinal, o dito pode ser negado e contrariado dentro de uma mesma formação discursiva, sem que, por isso, haja paradoxo no funcionamento dessa formação no âmbito de uma dada formação ideológica.

Talvez seja por isso que, nas tentativas esquerdistas de subversão do poder ao longo do século XX, temos mais uma troca de gestores na extração de mais-valia, que, de fato, uma negação do Capital, conforme Mészarós, a despeito de todas as conquistas sócio-históricas alcançadas, impensáveis na periferia do sistema capitalista antes do advento da Revolução de 1917. Para aprofundarmos essa questão, é preciso antes entender como funcionaram essas formas simetrificantes nas lutas antagônicas do século XX mencionadas por Pêcheux. Entre as abordagens pertinentes para esse problema, há uma via ainda pouco trabalhada: a da articulação entre as noções de indentificação, contraidentificação e desidentificação em Pêcheux, com as noções freudianas de identificação (mecanismo de defesa) e sugestão propostas em “Psicologia das Massas” e “Análise do Eu”. Além disso, as elaborações freudianas acerca do funcionamento de aparelhos como a igreja e o exército podem contribuir na investigação dos mecanismos de produção e reprodução da forma de produção capitalista.

Ao mesmo tempo, a crítica de Pêcheux à práxis do Estado de Emergência em que tudo se justifica em nome da urgência pode nos remeter aos estudos de Agamben acerca do Estado de Exceção e às formas de segregação (homo sacer) engendradas pelo aparelho de Estado em relação à população (Gulgag, no caso do stalinismo), formas de segregação essas que já foram adiantadas por Gramsci, quando tratou da divisão social do trabalho entre Homo faber e Homo sapiens. O trabalho de um fogo crítico em relação à teoria e às práticas das forças anticapitalistas do século XX condiz com a postura teórico-política desafiadora de Pêcheux e converge com a postura de Zizek de que é necessário que a autocrítica do materialismo histórico seja mais rigorosa e mais contundente que a crítica externa, a de seus adversários políticos (liberais, pós-modernos).

O desenvolvimento dessas questões, neste Simpósio, pode ajudar a compreender, de modo mais profícuo, como a língua e as linguagens são cotidianamente trabalhadas na condição de campos de força em meio aos (e não como um meio ou mero espelhamento dos) variados processos sociais de resistência-revolta-revolução, desde a atualização de fronteiras enunciativas, com a manutenção de não-ditos no silêncio, ao atravessamento dos seus limites, configurando novas posições do dizer, removendo \"ininterruptamente os pontos discursivos de assujeitamento ideológicos e os locais a partir dos quais é possível enunciar oposição, sem que a lógica dessa remoção jamais [possa] ser descrita em um sistema fechado\" (Pêcheux, 1982: 119).

Fonte:
http://www.cielli.com.br/programacao_geral

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 558)


Uma Trova de Ademar  

Sedento dos teus abraços 
Num desejo que é só nosso, 
quero correr pra os teus braços, 
mas de muletas... Não posso!... 
–ADEMAR MACEDO/RN– 

Uma Trova Nacional  

Floresta amiga, perdoa 
o fogo, a serra, a agressão... 
A Humanidade ainda é boa... 
- Certos homens é que não! 
–JOÃO FREIRE FILHO/RJ– 

Uma Trova Potiguar  

Todo o prazer do egoísta 
de pronto se torna morno, 
quando lhe foge da vista 
a cobiça sem retorno. 
–MANOEL DANTAS/RN– 

Uma Trova Premiada  

1987 - Porto Alegre/RS 
Tema:  REGRESSO - M/E 

Caminhei pelo infinito,
vaguei por milhões de espaços...
Até lá estava escrito
o meu regresso aos teus braços!
–GISLAINE CANALLES/SC– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Alguém falou, com carinho, 
que Jesus está voltando, 
e que já vem a caminho... 
mas como está demorando! 
–RENÊ BITTENCOURT/RJ– 

Uma Poesia  

Inda guardo as batidas do pilão, 
com mamãe, de manhã, pilando arroz, 
eu mais novo, mais forte e mais disposto, 
no rojão, eu na frente, ela depois; 
nunca vou me esquecer desta contenda, 
o pilão do passado virou lenda, 
mas não sai da memória de nós dois! 
–PROF. GARCIA/RN– 

Soneto do Dia  

Soneto ao Soneto 
–REGINALDO ALBUQUERQUE/MS– 

Na tua imortal forma, exata e nobre, 
onde a musa imprevista se aventura 
fino pelo de címbalos te encobre, 
desafiando o estro e a razão mais pura. 

Afirmam os incautos que és de cobre, 
arcaico para quem a tessitura 
de cantar o atual jamais se dobre 
ao rigor triunfal que em ti perdura. 

Varinha de condão da antiguidade 
soneto, tua síntese inquieta 
contém sonho, esperanças e saudade... 

Para sempre será o teu reinado, 
enquanto houver no mundo algum poeta 
ou o pulsar de um peito enamorado!

terça-feira, 22 de maio de 2012

Wagner Marques Lopes/ MG (O PERDÃO em trovas), parte 12, final


45

As almas compreensivas
avançam ao perdoar.
Carregam pedras – as “vivas”,
mal saindo do lugar.

46

O perdão é coisa santa,
vista sob humilde lente:
um poder que nos encanta –
poder da alma, somente.

47

Que ofício ele adotaria?...
Andei pensando bastante...
Em tormenta ou calmaria,
o perdão – bom navegante.

48
O ser humano cansado
de ódio e de insensatez,
ao perdão faz um chamado
e se resolve de vez.

Fonte:
Trovas enviadas pelo autor

Clevane Pessoa (Juiz de Fora em Trovas)


As almas de muita gente
são como o rio profundo:
- A face tão transparente,
e quanto lodo no fundo!...
(Belmiro Braga )

Voltaste enfim e eu confesso
que já prevejo, querida,
na alegria do regresso,
novo adeus de despedida.
(Célio Grunewald)

Quanta gente gostaria
de ter a vida da gente,
sem saber que isto seria
trocar tristeza somente.
(Cezário Brandi Filho)

Há na tragédia da fome
este mistério profundo:
É Cristo quem se consome
em cada pobre do mundo.
(Clevane Pessoa de Araújo)

Na Vila Rica de então,
quis o destino imprevisto,
que um pobre artista sem mão
esculpisse as mãos de Cristo.
(Dormevilly Nóbrega)

Quando a miséria desponta,
lá no morro, a garotada,
brincando de faz-de-conta,
tudo tem, não tendo nada.
(Dulcídio de Barros M. Sobrinho)

A saudade é simplesmente,
um claro espelho encantado,
mira-se nele o presente
e ele reflete o passado.
(Geralda Armond )

Não julgues pelo semblante
a honra alheia, meu filho:
- Na lua, a face brilhante
oculta a face sem brilho.
(Hegel Pontes)

Todo sonho é dolorido,
porque nele nós supomos,
que somos (sem termos sido)
o que pensamos que somos.
(José Antonio Jacob)

Relógio, legado antigo
que minhas horas recorda...
quem lhe dará corda, amigo,
quando acabar minha corda?...
(José Carlos de Lery Guimarães )

Juntamos nossos farrapos
naquele rancho sem flor:
era a miséria dos trapos
numa fartura de amor.
(J.Guedes)

Passa por mim, não me vê...
- Talvez não me olhe jamais...
Não me conhece porque
eu a conheço demais!
(Manoel de Oliveira Costa )

No boteco do Zé Galo
tanto a sujeira se agrupa
que servem bife à cavalo
com mosquito na garupa.
(Messias da Rocha)

Na hora incerta do revés,
pensa o marido nas ruas:
- Bebo duas... volto às dez
ou bebo dez... volto às duas!
(Osvaldo Mascarenhas)

Não há criança vadia...
E as que esmolam a teus pés
são anjos que Deus envia
para saber quem tu és.
(Roberto Medeiros)

A mentira é sonho lindo
neste meu mundo encantado.
Sonhando, minto dormindo,
mentindo, sonho acordado.
(Sinval Cruz)

Seu critério nas consultas
é talvez dos mais sutis:
é cobrar contas adultas,
pelas curas infantis.
(Sylvio Machado )

Fonte:
Trovas selecionadas por Clevane Pessoa, de 1960 a 1980.

Lola Prata (DÔ (Caminho))


Luas e sóis nos encontram a bordo. Água salgada até onde o olhar divisa. Caminhamos sobre essa água. Lar azul-marinho.

Mitiko, Shira e Yoko, pequenos rebentos de meus ramos, companheirinhas de tabi (viagem). Marido de doce espírito caminhante abre as neblinas da tristeza, deitando em nós as sementes de futuro. Enxuga nossas lágrimas com mãos jovens e calosas. Na sua face nada se nota, são como lágrimas nos olhos de peixe.

O tempo malvado traz fome. Traz sede. Traz saudades das cerejeiras, da cabana coberta de palha. Dói. Doeu deixar velho pai e velha mãe.

Estrelas da madrugada mexem-se no ritmo das vagas e das marolas inquietas. Céu dançante que preenche a insônia das cento e sessenta famílias aventureiras, vindas da direção do sol-nascente.

O vento toca flauta nos mastros do Kasato Maru. O vapor responde com as baforadas fumacentas. O silêncio ardido de cada coração ouve o estranho diálogo enquanto se distrái vendo a lua em banho de mar, vaidosa, se sacudindo como espada em mão de samurai.

Desenho ideogramas na memória de meu nikki (diário) de bordo, para não deixar Mitiko, Shira e Yoko esquecerem da saga. Será como makura-no-kotobá (palavras do travesseiro). A gorda valise de nossa roupa, onde descanso a cabeça, dita cada lembrança. Assim, faço dô para dentro de mim.

Pequenos rebentos querem liberdade, mas não podem correr. Perigo. Mar agitado pode engoli-las. Todos os rebentos ficam prisioneiros, enxertados nas mãos de suas mães. Brotos tenros têm que ser cuidados...

E, infinitamente, nuvens brancas passam em brancas nuvens. Esperamos. Esperamos. Esperamos. Muita paciência. Muito incômodo. Sofrimentos. Em tudo, porém, se sobressai o sonho-esperança que ilumina a treva da preocupação.

Na manhã de mil flores, ao apito de alegria, atracaremos. Deixaremos para trás o azul. Para a frente, o verde que nos dará a sobrevivência. Na terra marrom, pisaremos com reverência. Com respeito. Com delicadeza. Quando a ferirmos, será para fecundá-la. Assim, não zangada, gerará árvores que darão flores, que darão frutos.

Chegaremos na nova terra quando ela estiver vestida de fuyú (inverno). Inverno invejoso de nátsu (verão) quente e gostoso. Sempre nátsu no Brasil de brasa, falam por aí.

Bendito o porto firme e seguro que nos receberá! Leva o nome dos iluminados cristãos: Santos.

Fonte:
Texto enviado pela autora

Amosse Mucavele (Apresentação)

Nina Rizzi

Á Nina Rizzi

Ando PENSATIVO
100 MOTIVO , dissocio-me da alma do gato de que me SIRVO
comovido pelo baile das mascarás que dançam na MESA ,onde o espirito do felino dita a sentença.
movo , o PRATO,
do lado da cozinha assisto o PARTO.
da carne que coze na OFICINA, e da panela testemunho a CHACINA dos ingredientes que jazem no pranto do PRATO do dia.
pego no garfo, afio as espadas do apetite com o semblante do meu líame (amor e angústia)
retiro-me da MESA , rodopio pela CASA, caminho em direcção a capoeira do meu lobo
e de seguida
penso ao alto no CRAVO
ACTIVO o amor nos olhos da rosa antes de ficar BRAVO
ponho o meu pensamento em pé
cavo bem ao fundo o sentimento que torna VIVO
este amor que o passáro canta ainda dentro do OVO
sento debaixo da árvore
TIRO o chulé do cansaço que cobre a alvorada do homem NOVO
ATIRO os silêncios costurados na primavera dos frutos que se embebedam no vôo do corvo
aos POUCOS à COPOS alcanço os TOPOS de um sonho erguido nos TRÓPICOS
e por fim activo, de forma radiante o meu uivo nos ouvidos do Globo:
eu não sou nada , sou apenas um sonhador.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Manuel Bandeira (Meus Primeiros Versos)


BERIMBAU

Os aguapés dos aguaçais
Nos igapós dos Japurás
Bolem, bolem, bolem.
Chama o saci: - Si si si si!
- Ui ui ui ui ui! uiva a iara
Nos aguaçais dos igapós
Dos Japurás e dos Purus.

A mameluca é uma maluca.
Saiu sozinha da maloca -
O boto bate - bite bite...
Quem ofendeu a mameluca?
- Foi o boto!
O Cussaruím bota quebrantos.
Nos aguaçais os aguapés
- Cruz, canhoto! -
Bolem... Peraus dos Japurás

De assombramentos e de
espantos!...

DEBUSSY

Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Um novelozinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma
criança
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase
adormecer o balança
- Psio... -
Para cá, para lá...
Para cá e...
- O novelozinho caiu.

O MENINO DOENTE

O menino dorme.

Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada a seu lado
A mãezinha canta:
- "Dodói, vai-te embora!"
"Deixa o meu filhinho."
"Dorme... dorme... meu..."

Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- "Dorme, meu amor."
"Dorme, meu benzinho..."

E o menino dorme.

NA RUA DO SABÃO

Cai cai balão
Cai cai balão
Na Rua do Sabão!
O que custou arranjar aquele
balãozinho de papel!
Quem fez foi o filho da
lavadeira.
Um que trabalha na composição
do jornal e tosse muito.
Comprou o papel de seda,
cortou-o com amor, compôs os
gomos oblongos...
Depois ajustou o morrão de pez
ao bocal de arame.

Ei-lo agora que sobe - pequena
coisa tocante na escuridão do
céu.

Levou tempo para criar fôlego.
Bambeava, tremia todo e mudava
de cor.
A molecada da Rua do Sabão
Gritava com maldade:
Cai cai balão!

¨
Subitamente, porém, entesou,
enfunou-se e arrancou das
mãos que o tenteavam.

E foi subindo...
para longe...
serenamente...
Como se o enchesse o soprinho
tísico do José.

Cai cai balão!

A molecada salteou-o com
atiradeiras
assobios
apupos
pedradas.

Cai cai balão!

Um senhor advertiu que os
balões são proibidos pelas
posturas municipais.

¨
Ele foi subindo...
muito serenamente...
para muito longe...

Não caiu na Rua do Sabão.
Caiu muito longe... Caiu no
mar - nas águas puras do
mar alto.

BALÕEZINHOS

Na feira-livre do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa
balõezinhos de cor:
- "O melhor divertimento para as
crianças!"
Em redor dele há um ajuntamento
de menininhos pobres,
Fitando com olhos muito redondos
os grandes balõezinhos muito
redondos.

No entanto a feira burburinha.
Vão chegando as burguesinhas
pobres,
E as criadas das burguesinhas
ricas,
E mulheres do povo, e as
lavadeiras da redondeza.

Nas bancas de peixe,
Nas barraquinhas de cereais,
Junto às cestas de hortaliças
O tostão é regateado com
acrimônia.
Os meninos pobres não vêem as
ervilhas tenras,
Os tomatinhos vermelhos,
Nem as frutas,
Nem nada.

Sente-se bem que para eles ali
na feira os balõezinhos de cor
são a única mercadoria útil e
verdadeiramente indispensável.

O vendedor infatigável apregoa:
- "O melhor divertimento para
as crianças!"
E em torno do homem loquaz os
menininhos pobres fazem um

círculo inamovível de desejo
e espanto.

PENSÃO FAMILIAR

Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros
chatos.
O sol acaba de crestar as
boninas que murcharam.
Os girassóis
amarelos!
resistem.
E as dálias, rechonchudas,
plebéias, dominicais.

Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de
“restaurant-Palace”
Encobre cuidadosamente a
mijadinha.
Sai vibrando com elegância a
patinha direita:

- É a única criatura fina na
pensãozinha burguesa.

PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava.
Porque o bichinho só queria
estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos
mais limpinhos
Ele não gostava;
Queria era estar debaixo do
fogão.
Não fazia caso nenhum das
minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi
a minha primeira namorada.

Fonte:
Meus primeiros versos, - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2001 (Literatura em minha casa). Volume 4 (Cecília Meireles; Manuel Bandeira ; Roseana Murray)

Drauzio Varella (Na Traseira do Caminhão)


Quando eu tinha sete, oito anos, virou moda na minha rua chocar caminhão: pendurar-se na traseira do veículo e saltar na virada da esquina. Uma vez, choquei o caminhão de lixo e quando pulei na frente de casa, meu pai, que chegava do trabalho, estava parado no portão com cara de quem não gostou da gracinha. Recebi o mais detestável dos castigos: domingo inteiro de pijama na cama.

Cabeça-dura, repeti a façanha outras vezes, até que decidi chocar a caminhonete do seu Germano, o alemão da fábrica em frente, só para me exibir para os meninos, que morriam de medo dele. Sentei na calçada ao lado da caminhonete. Dois operários puseram umas caixas na carroceria. Seu Germano, saindo para o almoço, deu a partida. Eu pendurado atrás. Infelizmente, na esquina, em vez de diminuir a velocidade ele acelerou, e me faltou coragem para pular.

Fomos na direção do largo Santo Antônio, cada vez mais depressa, eu com os ossos batendo na lataria, morto de medo de cair. Ao chegar no largo, duas senhoras me viram naquela velocidade e gritaram para parar. Seu Germano nem ouviu. Com os braços cansados, fiz um esforço para saltar para dentro da carroceria, mas a caminhonete pulava feito cavalo bravo nos paralelepípedos da rua e eu não consegui. Tentei de novo e não deu. Mais uma vez, pior ainda. Então, fiquei apavorado. Achei que ia morrer e que meu pai ia ficar muito triste, porque ele sempre dizia: "Deus me livre, perder um de vocês".

Talvez o medo da morte tenha me dado força na quarta tentativa: esfolei a canela inteira, mas consegui passar a perna e impulsionar o corpo para dentro. Caí no meio das caixas, com o coração disparado, e chorei. Quando a caminhonete parou na porta do seu Germano, achei melhor ficar quietinho entre as caixas, até ele voltar para a fábrica depois do almoço. Também não deu certo: ele resolveu descarregar a caminhonete e me encontrou escondido. Tomou um susto tão grande que até pulou para trás:

- Menino dos infernos! Como veio parar aqui?

Expliquei que só queria chocar até a esquina, mas a velocidade tinha sido tanta... Ele ficou enfezado e disse que ia contar para o meu pai. Pedi para não fazer isso porque eu ia apanhar, mas ele não se importou, falou que era merecido até. Mostrei as pernas esfoladas, ele não se comoveu. Por fim, contei dos domingos de castigo na cama. Nesse momento, brilhou um instante de compaixão no olhar dele:

- Seu pai deixa você de pijama, deitado o domingo inteiro?

- Só quando eu desobedeço muito.

- Está louco! Teu pai é severo como o meu, na Alemanha. Entre na caminhonete que eu te levo de volta.

No caminho, ele me deu conselhos e me contou do pai. Achei que os castigos do pai dele eram muito piores. O meu nunca tinha me trancado no guarda-roupa a noite inteira. Seu Germano concordou em manter segredo, desde que eu prometesse nunca mais chocar veículo nenhum. Desde então, apesar do jeito bravo, ele ficou meu amigo. Quando me encontrava, às vezes dizia:

- Não vá esquecer: menino que cumpre a palavra merece respeito.

Fonte:
Era uma vez um conto. São Paulo : Companhia das Letrinhas, 2002.
Moacyr Scliar; José Paulo Paes; Milton Hatoum; Marcelo Coelho; Drauzio Varella

Esopo (Fábula 18: A Porca e o Lobo)


Uma porca acabava de parir os seus porquinhos, quando um lobo veio visitá-la. No fundo, este só pensava em devorar um dos porquinhos, mas não sabia bem o que fazer. Então, perguntou à porca como estava de saúde, dizendo-lhe: "Se alguma vez te puder ser prestável, procura-me. Talvez necessites de fazer exercício e apanhar um pouco de ar puro. Se quiseres, tenho muito gosto em tomar conta da tua família." Contudo, a porca tinha percebido o plano do lobo. "Muito obrigada, Sr. lobo", disse ela, "percebo-te muito bem, e o maior favor que podes fazer aos meus porquinhos é ficares bem longe!"

Moral da história

Não há ardil tão perigoso como o que é tramado por uma pessoa que se faz passar por amiga.


Fonte:
Fábulas de Esopo. Coleção Recontar. Ed. Escala, 2004.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 557)


Uma Trova de Ademar

Ao ter fé eu me propus
chegar aonde eu quiser;
pois quem tem fé em Jesus
tem quase tudo o que quer!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional


Voltei... Cabisbaixa eu vinha,
com o orgulho lá no chão...
Melhor do que estar sozinha
e coberta de razão!
–JEANETTE DE CNOP/PR–

Uma Trova Potiguar


Apesar das cicatrizes
no atelier dos momentos,
pintei lembranças felizes
em meus nobres sentimentos.
–HÉLIO ALEXANDRE/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Quanto mais por ti eu peno,
mais gosto eu tenho em penar.
O mundo inteiro é pequeno
para a glória de te amar!
–COLOMBINA/SP–

Uma Trova Premiada


2012 - Ribeirão Preto/SP
Tema: CIDADÃO - 4º Lugar


Sê cidadão! Pois é rara,
a virtude de quem sonha
em primeiro por na cara
os adornos da vergonha.
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Uma Poesia


Me livrei de manhãzinha
d'uma noite mal dormida,
não vi a minha querida
coar café na cozinha,
nem o grito da galinha
rasgando a roupa do chão,
nem o gesto do meu cão
mexendo a ponta do rabo;
eita troço ruim do diabo
viver longe do sertão!
–ZÉ DE MARIANO/PE–

Soneto do Dia

Alguém me Espera.
–OLGA DIAS FERREIRA/RS–


Alguém me espera, quando chego ao lar,
e me acarinha em grande faceirice,
corre pra mim, querendo me beijar,
lembrando os tempos bons da meninice.

E vem, carícias mil solicitar,
a saltitar com toda a brejeirice,
buscando a mim para poder brincar,
ao tom singelo de tanta arteirice.

Assim se passa o tempo tão risonho,
no qual o mundo mais parece um sonho,
mostrando a vida em que feliz eu fico.

Desanuvia-se o olhar tristonho,
afasto o tempo, antes, tão enfadonho,
e brinco solta com meu cão, Eurico!

Osman Lins (Conto: Os gestos)


O conto Os gestos, de Osman Lins, pode ser classificado como uma narrativa lírica, ou seja, em uma primeira acepção ou significado substantivo dos gêneros, o conto configura-se parte da Épica, obra – poema ou não – de extensão maior, em que um narrador apresenta personagens envolvidos em situações e eventos. Em uma segunda acepção ou significado adjetivo dos gêneros, o conto configura-se parte da Lírica, que é todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizam personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central, quase sempre um "Eu", nele exprime seu próprio estado de alma.

O caráter lírico do conto é demonstrado, não somente nas sentimentais, profundas e angustiadas reflexões da personagem central, André, mas também na pouca cristalização de todas as personagens, a começar pelo próprio protagonista. Sabe-se que já é velho, e tem sua vida restrita ao quarto. Perdera sua voz, e a partir daí, passou a comunicar-se apenas pelos gestos, tentando esquecer-se do uso das palavras, e resignando-se ao silêncio. A comunicação com seus familiares dá-se de forma fria e distante. Sua mudez, e conseqüente impossibilidade de expressão, desencadeia a série de reflexões que constitui a maior parte da narrativa.

As características das demais personagens são definidas apenas com a intenção de se configurar os elementos coadjuvantes para a exposição do tema central, a interioridade de André. Sua esposa, chamada apenas por "mulher", caracterizada pela frieza e indiferença, e por uma postura pragmática, não compreende nem sente o que se passa pelo espírito do marido. Rodolfo, o amigo, representa características inversas às da esposa. Sua presença provoca efusões de contentamento em André, trazendo-lhe alívio e alegria, talvez pela vitalidade ou pela roupa clara de marinheiro que lhe sugere a liberdade das viagens. Lise, a filha mais velha, apesar dos traços alongados definidos pelos anos, possui ainda a infância em sua boca e olhos. Com o olhar pálido e frágil e um ar de mistério, é a mais bondosa da casa. Trata o pai com carinho, tentando amenizar sua angustiosa situação. Nos atos dessa filha, André encontra ternura e alento: "Lise é um anjo". Mariana, a filha mais nova, está entre menina e moça, com seu "cinto justo, queixo para cima, alteando os seios novos". Tudo para ela gira em torno de sua recém-chegada adolescência, e sua suposta beleza.

Essas personagens coadjuvantes podem ser classificadas como personagens planas: ser íntegro e simples, marcada por uma ou poucas características. Já André, apesar de sua pouca cristalização ou definição, pode ser classificado como personagem esférica: ser complexo, com vários traços característicos, e pontos profundos que podem constituir momentos de mistério e desconhecimento, que podem vir a tornarem-se grandes revelações. Por outro lado, parte dessa pouca cristalização ou definição da personalidade das personagens, constitui parte da coerência interna do conto, limitando ou convencionalizando a caracterização da personagem de acordo com a proposta do conto, no caso, a impotência do ser humano, e sua incapacidade de expressar sua interioridade.

A construção da ambientação em Os gestos, constitui também importante participação na concepção do conto. Sobretudo no parágrafo inicial, com a descrição da paisagem que a personagem vê da janela de seu quarto, imagem descrita dentro do início da primeira cena do conto, ocorrida no inicio da manhã. Unidade essa que inclusive marca o tempo da história da narrativa: uma manhã. "Do leito, o velho André via o céu nublar-se, através da janela, enquanto as folhas da mangueira brilhavam com surda refulgência, como se absorvessem a escassa luz da manhã. Havia um segredo naquela paisagem". Osman Lins denota nessa passagem o ambiente básico da vida de André na ocasião: o leito, a janela, o céu e a mangueira. E demonstra a já aguçada sensibilidade do protagonista, que percebe detalhes minuciosos daquela singela paisagem. Esse pode ser considerado o espaço real da narrativa. No decorrer do conto, há passagem em que o espaço amplia-se, mas no âmbito imaginário: aos demais cômodos da casa e ao quintal, onde "grandes panos brancos soprados pelo vento – numa fila interminável de lençóis...", e a lugares amenos, lacustres e marítimos, ligados à sua juventude.

O tempo manifesta-se no conto de forma similar ao da ambientação. O tempo da história é de uma manhã, mas as incursões do protagonista por suas reflexões, por seus fluxos de consciência, remontam a um tempo e espaço psicológicos, tornando essa manhã um período mais rico e preenchido, o que pode causar ao leitor a impressão de um tempo decorrido maior que o tempo da história, ou seja, de uma manhã.

Dentre os demais elementos utilizados usualmente para a análise de narrativas, o foco narrativo é um dos mais explorados pelo autor no conto. A narração é feita em 3ª pessoa, por um narrador onisciente seletivo, em razão do uso da exposição direta ou simultânea da análise do pensamento de uma personagem central, sem indícios da presença de um narrador (discurso indireto livre), e da larga utilização da cena. A utilização deste tipo de narrador possibilitou ao autor atingir o lirismo encontrado em toda a obra. A análise dos fluxos de consciência e dos pensamentos da personagem central permitiram a realização de uma dicção intimista, sensível e verossímil, e um grande aprofundamento psíquico na construção da personagem.

Por esse foco narrativo – narrador onisciente seletivo, em detrimento ao onisciente múltiplo seletivo –, tudo o que é transmitido ao leitor é feito através das sensações, pensamentos e sentimentos da personagem central. A caracterização das demais personagens é concebida através do olhar do protagonista, ou seja, um enfoque parcial.

O conteúdo e o enredo formam também elementos fundamentais para o conto Os gestos. Osman Lins utilizou neste a mudez – uma impotência humana frente à rudez da vida, assim como outras incapacidades humanas são utilizadas nos demais contos da obra: a impossibilidade do amor, a psicose, a morte etc. –, como elemento desencadeador de novas percepções e novos sentidos, que possibilitam à personagem vislumbrar novos sentimentos – em relação à vida e a seus parentes próximos –, novas imagens e sons, e memórias antes escondidas.

A incapacidade humana explicita-se nos momentos em que André é incapaz de exprimir-se, como na cena em que contempla a paisagem pela janela no início da manhã, ou na passagem em que rasga o papel oferecido pela filha para escrever o que tencionava dizer num momento em que gesticulava freneticamente, ou na cena em que percebe a transformação da filha de menina para adolescente. Fatos que levam André a um sentimento de indignação em relação à sua condição, ou talvez em relação à condição humana em geral – a incapacidade de expressão dos sentimentos – concluindo tristemente: "‘Isso é inexprimível’, pensou. ‘E que não é? Meus gestos de hoje talvez não sejam menos expressivos que minhas palavras de antes’". Osman Lins deixa claro que a interioridade do ser humano é quase inexprimível. Pode-se fazer algum esboço, nada mais. Isso em razão da disparidade da interioridade dos seres humanos. Seria possível essa troca de impressões somente se houvesse uma grande afinidade entre os seres, como explicitado em uma passagem de Elegíada, conto da mesma obra: "Isso eles não saberão. É íntimo demais, exige um nível de compreensão mútua demasiado grande para ser revelado. Não lhes contarei". Ou seja, não é possível expressar um sentimento interior, mas é possível falar sobre ele, trocar-se impressões, desde que seja um sentimento comum, presente em ambos os interlocutores.

Essa impossibilidade de expressão culmina em uma situação de incompreensibilidade e isolamento entre as personagens, presente em quase todo o enredo do conto. André é despertado de sua reflexão descrita no início do conto – fluxo de consciência – com a chegada de Rodolfo, pessoa por quem André tem afeição, por sentir nele uma compreensão de sua situação interior, e por sentir nele características que se afinam com as suas, como sensibilidade, gosto pela alegria e pela liberdade. Em contrapartida, os amigos são observados pela esposa, inquieta com a presença da visita, não percebendo a simpatia entre os dois, nem a alegria do marido. Com a saída de Rodolfo inicia-se o fato mais central e desencadeador do enredo: a chuva apanha Rodolfo de surpresa na rua, e André torna-se frenético, buscando alguma forma de ajudar o amigo, e toca a sineta chamando todos da casa, que ao chegarem não compreendem suas intenções. André tem uma reação colérica ante essa incompreensão dos familiares, e as três mulheres saem do quarto confusas. André volta à reflexão, e só é despertado com a chegada de Lise para servir-lhe um lanche. A atitude carinhosa da filha o faz arrepender-se de sua anterior reação colérica, e angustiar-se por não poder pedir-lhe desculpas. Mariana entra no quarto, demonstrando suas características de distância em relação ao pai, egoísmo e vaidade – "Papai agora virou menino", "abriu e fechou as gavetas, sem procurar coisa alguma, escrutando disfarçadamente o espelho com enlevo". As filhas saem do quarto, e André retorna aos fluxos de consciência e fecha os olhos. Ao abri-los, depara-se com Mariana em sua frente, de costas para a janela. André inicia a contemplação do que ele chama de um momento único: "ela cruzava um limite: quando se afastasse, os últimos gestos da infância estariam mortos".

No parágrafo final do conto, André parece querer concluir a lição que aprendera naquela manhã. Conclui explicitamente que as sensações, impressões, sentimentos, enfim, a interioridade de cada um, não é exprimível em palavras, mas talvez em gestos. Talvez os gestos transmitam mais significado que as palavras. E por isso devam ser guardados, na memória, no coração, na alma, "Fechou os olhos, para conservar durante o maior tempo possível aquela visão".

Fonte:
Paulo Antonio F. Gonçalves, Escritor e Pesquisador em Ciências Humanas, em Passeiweb

2º CIELLI da UEM/PR (Resumo de Simpósio de Estudos Linguísticos) Parte 2


2º CIELLI - Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários

O resumo havia sido publicado na UEM em parágrafo único, mas para facilitar a leitura dos leitores do blog, dividi em parágrafos.


9
Vanderci de Andrade Aguilera
Catarina Vaz Rodrigues
ESTUDOS GEOSSOCIOLINGUÍSTICOS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO


Os estudos dialetológicos no Brasil bem cedo despertaram a atenção de filólogos, docentes da Língua Portuguesa e até mesmo de autodidatas. Desse interesse nasceram reflexões e obras como as de Amaral (1920) e Nascentes (1923), dando o impulso inicial para que outros pesquisadores se voltassem não apenas para os fatos linguísticos do português europeu, mas para o português que se transplantou para a România Nova, seja materializado na pena do escritor, seja articulado na boca do povo. Nascentes reconhece que o Dialeto Caipira (AMARAL, 1920) foi o inspirador de O Linguajar Carioca tanto na metodologia de coleta dos dados como na estruturação da obra: ambas discutem aspectos fonéticos, lexicais e morfossintáticos das duas realidades linguísticas - a paulista e a carioca.

Nesta mesma linha teórica, e na sequência, vêm os trabalhos sobre os falares nordestinos, de Marroquim (1934) e sobre os falares mineiros e goianos, de Teixeira (1938), mostrando para a academia pelo menos uma parte do Brasil linguístico real. Essas obras dialetológicas pioneiras vão instigar pesquisadores da época para a elaboração de um atlas linguístico do Brasil. Assim é que Silva Neto (1957) e Nascentes (1958 e 1961), amparados pelo Decreto de 1952 que atribuía à Casa de Rui Barbosa a responsabilidade pela coordenação e desenvolvimento de tão ousado projeto, lançam para este fim as sementes teórico-metodológicas sob a forma de bases e guias. Se a ideia de um atlas nacional não frutificou de imediato, a proposta foi se enraizando pouco a pouco pelas Faculdades de Letras de tal modo que, em menos de 40 anos, cinco atlas afloraram sucessivamente em pontos diversos: na Bahia, em Minas Gerais, na Paraíba, em Sergipe, no Paraná enquanto outros estavam em gestação na Região Sul, no Ceará, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nos últimos anos do século passado, lança-se o projeto do Atlas Linguístico do Brasil com uma proposta mais moderna que associa os princípios teórico-metodológicos da Geolinguística aos da Sociolinguística.

Dessa grande árvore, brotaram inúmeros ramos em quase todos os 26 estados brasileiros, tais como no Pará, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Espírito Santo, entre outros. Cardoso (2002), diretora presidente do ALiB, lembra muito bem que a fusão dos princípios geolinguísticos com os sociolinguísticos nasceu de dois aspectos fundamentais:

“(i) o reconhecimento das diferenças ou das igualdades que a língua reflete e

(ii) o estabelecimento das relações entre as diversas manifestações linguísticas documentadas e circunscritas a espaços e realidades pré-fixados”.

Além desses aspectos, concordamos com Moreno Fernández (1998) quando reafirma que “as atitudes do falante influem decisivamente nos processos de variação e mudança linguística que se produzem nas comunidades de fala, pois uma atitude favorável ou positiva pode fazer

(i) uma mudança cumprir-se mais rapidamente;

(ii) que em certos contextos predomine o uso de uma língua ou de um dialeto em detrimento de outra(o);

(iii) que certas variantes linguísticas se confinem a contextos menos formais e outras predominem nos estilos cuidados.

Diante desse panorama produtivo e multifacetado e sabendo que a língua não é somente um complexo de variedades regionais, mas também uma superposição de variedades sociais que implica valores a elas atribuídos, propomos o presente Simpósio com os seguintes objetivos:

(i) congregar pesquisadores de várias IES para apresentar estudos e projetos de Geolinguística e de Sociolinguística, inclusive de crenças e atitudes sociolinguísticas, em andamento no Brasil;

(ii) descrever e discutir aspectos da variação diatópica e diastrática do português;

(iii) discutir aspectos teóricos e metodológicos relacionados aos estudos geossociolinguísticos.

10
Cláudia Valéria Dona Hila
Elvira Lopes Nascimento
FERRAMENTAS DE ENSINO E PRÁTICAS EM SALA DE AULA


Na perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo (BRONCKART, 2006; 2008) a atividade do professor é instrumentada. Isso quer dizer que a relação entre o docente e o seu objeto de ensino é mediada por inúmeras ferramentas, as quais:

(a) asseguram o encontro do professor com o objeto teórico a ser internalizado;

(b) contribuem para modificar os modos de pensar, agir e falar tanto dos alunos como também dos próprios professores;

(c) apresentam-se semiotizadas e

(d) conseguem promover a reflexão daqueles que delas se utilizam.

Schneuwly (2000) argumenta que as ferramentas podem ser de natureza material e discursivas. Entre as primeiras se incluem as sequências didáticas, as oficinas, os projetos temáticos e os inúmeros materiais de sala de aula que, se adequados ao planejamento do professor, funcionam como mediadores do processo de ensino-aprendizagem, tais como: os livros didáticos, os paradidáticos, os textos de divulgação cientifica, os textos literários, as obras de referência, os livros de consulta, os jornais, as revistas, os jogos, os vídeos e os próprios gêneros textuais, em diferentes mídias e linguagens. Entre as segundas, se incluem as ferramentas de natureza discursiva, como as ações e os gestos didáticos dos professores ao presentificar o objeto em sala de aula (NASCIMENTO, 2011).

Hila (2011) amplia essa discussão exemplificando outras ferramentas significativas para o movimento de internalização, tais como: as sessões reflexivas, os planos de aula, a reescrita, o estilo individual de cada professor, dentre outras. Colaborando com a discussão, Wirthner (2004;2007) compreende que as ferramentas didáticas ainda definem, em grande parte, o ensino, pela maneira como se propõem a abordar, apresentar ou recortar o objeto a ser ensinado e, nesse sentido, elas também influenciam as concepções de ensino e de linguagem daqueles que as empregam. Por isso mesmo, o uso de ferramentas em sala de aula pode ser uma fonte de aprendizagem e de desenvolvimento tanto para o professor, como para o aluno e, sendo assim, conhecer as potencialidades das inúmeras ferramentas que o docente têm a sua disposição é fundamental para o processo formativo de todos aqueles envolvidos no processo de ensino e aprendizagem.

Dessa forma, o objetivo desse simpósio é reunir trabalhos que, diante das práticas de linguagem, nos eixos de ensino- leitura, produção e análise lingüística- evidenciem o papel das ferramentas (de quaisquer natureza) para gerar práticas significativas em sala de aula, exatamente porque auxiliam o processo de internalização e podem gerar o desenvolvimento dos alunos. As dificuldades encontradas na formação inicial e continuada de professores de Língua Portuguesa para promoverem a internalização de diferentes objetos teóricos justificam a organização deste simpósio, por propiciar reflexões tanto sobre os subsídios prático-metodológicos que dão suporte à formação, quanto ao desenvolvimento de ferramentas didáticas, considerando a sua relação e adequação ao projeto de ensino do professor, assim como quanto à busca de identificação e compreensão dos agires realizados por professores durante o planejamento, elaboração e aplicação dessas ferramentas. O conhecimento, a discussão e a aplicação de procedimentos pedagógicos atualizados é o fio condutor dos pesquisadores integrados a este simpósio.

11
Sírio Possenti
Sonia Aparecida Lopes Benites
FÓRMULAS E ESTEREÓTIPOS: RELAÇÕES E CONDIÇÕES DE FUNCIONAMENTO


Textos-fórmulas, como provérbios, ditados, máximas, adivinhas, piadas e slogans são enunciados que apresentam estruturas linguísticas relativamente fixas, em geral breves, além de um determinado ritmo. Seu funcionamento se caracteriza pela repetição, que os legitima, tornando-os reconhecidos e reconhecíveis em uma comunidade de falantes. Considerando essa forma de funcionamento, Maingueneau (2006) classifica-os em:

a) fórmulas autônomas ou destacadas, independentes do contexto, com significante e significado inalteráveis, memoráveis;

b) fórmulas destacáveis, estruturas passíveis de serem destacadas de um texto e convertidas em pequenas frases que passam a circular de forma também autônoma.

De fato, algumas dessas frases são criadas exatamente para isso, como é o caso dos slogans publicitários e políticos. Embora tenham um contexto histórico bastante relevante, não possuem um contexto textual imediato imprescindível para seu “funcionamento”. Contudo, existem também aquelas que são destacadas de seus contextos textuais originais – e o são graças a essa estrutura frasal específica, somada a seu conteúdo generalizante e a um ethos solene. Nestes casos, apesar de fazerem parte de um texto, sua estrutura faz com que se sobressaiam dentre os outros enunciados e passem a ser empregadas como fórmulas.

Maingueneau (2010) falará, assim, em destacamento constitutivo, para referir-se a enunciados que nascem destacados (como os provérbios e os slogans publicitários), e em destacamento por extração, para fazer menção às citações. A aforização é exatamente o regime enunciativo implicado em um enunciado destacado por extração. Em outras palavras, o regime de enunciação aforizante torna um enunciado passível de ser destacado de seu contexto original. Por fim, lembramos os estereótipos sociais, elementos também caracterizados pela cristalização, e que podem ser vitais para o funcionamento de um texto, tanto na medida em que implicam posições ideológicas ou culturais quanto por serem cruciais para o próprio gênero em que aparecem (para muitas piadas, por exemplo).

A estereotipia, segundo Amossy (2005), “é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado” (p. 125). Situando-se em certo tipo de exterior constitutivo, ela é condição (parcial, pelo menos) de funcionamento dos textos-fórmulas, e está fortemente ligada ao humor e às verdades correntes, além de desempenhar “papel essencial no estabelecimento do ethos” (AMOSSY, 2005, p. 125).

O presente simpósio tem os seguintes objetivos: reunir estudos sobre os textos-fórmulas e estereótipos e suas eventuais relações mútuas; estudar as condições de funcionamento dos textos-fórmula (sua circulação, seus sentidos, suas eventuais adaptações), relacionando-os com as verdades correntes ou com pretensas formulações de verdades. Poderão ser tomados como objetos de análise, entre outros, os provérbios, os slogans e as piadas que operam com clichês e estereótipos.

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Vera Wannmacher Pereira
Onici Claro Flôres
LEITURA E ESCRITA: ESTUDOS PSICOLINGUÍSTICOS E INTERFACES


O Simpósio “Leitura e escrita: estudos psicolinguísticos e interfaces” propõe-se a considerar as dificuldades evidenciadas por estudantes dos diversos graus de ensino (fundamental, médio e superior) em relação à leitura (compreensão/ interpretação) e à escrita. As dificuldades dos estudantes evidenciam-se nos escores alcançados em Língua Portuguesa em provas oficiais nacionais (SAEB, ENEM, ENADE) e internacionais (PISA), manifestando-se com intensidade nos comentários dos professores, dos familiares, dos empregadores e da sociedade em geral.

Nesse quadro, a leitura e a escrita constituem-se em prioridade educacional de grau máximo, exigindo espaços e financiamentos públicos para o desenvolvimento de pesquisas e demandando condições mais favoráveis para seu ensino. Em vista disso, o presente Simpósio enfoca justamente o tema - leitura e escrita, examinando cada um dos tópicos, individualmente, e em suas inter-relações. Do ponto de vista teórico, a temática situa-se na área de estudos da Psicolinguística, segundo a qual a leitura e a escrita são consideradas como processos cognitivos, que exigem do leitor e do escritor procedimentos diferenciados, embora convergentes.

Dessa forma, este Simpósio assume a relevância dos trabalhos de interfaces da Psicolinguística – internas (Estudos do Texto e do Discurso, Pragmática) e externas (Literatura, Psicologia, Sociologia, Informática, Educação, Fonoaudiologia, Neurociências). A presente proposta de trabalho relaciona as pesquisas sobre leitura e escrita que, teoricamente, tanto podem ser abordadas em separado como em conjunto, considerando-as interativamente. É útil, então, salientar que, se existem questões não respondidas em relação à leitura, apesar do número de pesquisas feitas e de pesquisadores envolvidos, há que acrescentar que as dúvidas e dificuldades se avolumam quando se aborda a escrita. Não se escreve em um só gênero nem em um só tipo de sequência.

A ocasião social que faz emergir a necessidade social da escrita tem suas exigências e elas precisam ser atendidas, a fim de que o papel da atividade social da qual a escrita faz parte seja preenchido. Assim, mesmo adultos alfabetizados têm muitas dificuldades de leitura e de escrita, mesmo profissionais têm de se esforçar bastante para compreender um texto e escrever da forma requerida. Enquanto isso a vida social prossegue em seu ritmo e avultam e se diferenciam os gêneros discursivos (BAKTHIN, 2003) em circulação. O certo é que, a partir do momento em que se assume a tarefa de escrever um texto até o momento de dar-lhe o destino para o qual se fez necessário escrevê-lo, atravessam-se distintas fases - a de pré-escrita, a de escrita, propriamente, e, por fim, a de revisão ou pós-escrita, segundo o destaca Soares (2009). Em suma, os dois processos se relacionam, mas não se reduzem um ao outro, exigindo planejamento de atividades que possam levar a bom termo tanto leitura quanto produção escrita.

Quanto à metodologia, o Simpósio ora proposto está aberto para investigações bibliográficas e de campo, assim como para estudos teóricos e aplicados. Em vista disso são oportunos trabalhos que proponham reflexões teóricas, bem como que apresentem resultados decorrentes de aplicações, configurando-se como relatos de pesquisas. Considerando o recorte teórico, são participações pertinentes as que estejam centradas exclusivamente na Psicolinguística, as que estejam assentadas em movimentos com interfaces internas (com outras áreas da Linguística) e com interfaces externas (com outros campos de conhecimento).

Desse modo configurado, o Simpósio tem como objetivo primordial ensejar o debate entre professores e pesquisadores da linguagem sobre o tema “leitura e escrita”, buscando contribuir para o desenvolvimento da Psicolinguística, para a elucidação de problemas de pesquisa, para o levantamento de caminhos produtivos para o ensino e o aprendizado tanto da leitura quanto da escrita e para o aclaramento de suas inter-relações.

Fonte:
http://www.cielli.com.br/programacao_geral

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Wagner Marques Lopes/ MG (O PERDÃO em trovas), parte 11


41

Dique na orla do mar
contém a forte caudal:
o perdão sabe estancar
o espraiamento do mal.

42

Amor – a melhor doutrina.
O perdão – o dom perfeito.
Assim o ser elimina
a bagagem dos defeitos.

43

O perdão, em qualquer meio,
não se mostra interesseiro:
é doação sem receio –
alma entregue por inteiro.

44

Um bom convívio se alcança
se este trio vem a nós:
chegam Perdão e a Esperança...
E surge a Paz logo após.

Fonte:
trovas enviadas pelo autor

Ricardo Azevedo (Histórias que o Povo Conta) O Gato e o Burro


CONTO ACUMULATIVO

Neste tipo de conto, o herói tem um problema e para resolvê-lo faz uma série de tentativas que vão se repetindo de forma sucessiva. Todos os elementos que entram na história são retomados, sempre na mesma ordem, até o fim. A acumulação é uma técnica de memorização muito antiga.


O GATO E O BURRO

O gato e o burro saíram para dar uma voltinha. No meio do caminho encontraram uma árvore.

- Quer valer como eu consigo trepar na árvore mais depressa que você? - perguntou o gato.

- Apostado! - respondeu o burro.

Os dois saíram correndo mas, claro, o gato venceu fácil.

O bichano ficou lá no alto miando e dando risada do burro.

O burro não gostou nem um pouco. Esperou o gato descer, deu uma mordida e arrancou seu rabo fora.

- Me dá meu rabo! - gritou o gato.

- Não dou!

- Me dá meu rabo!

- Só dou se você me arrumar um copo de leite quente.

O burro e o gato foram conversar com a vaca. O gato pediu:

- Vaca, me arranja um copo de leite quente para eu dar para o burro, que não quer devolver meu rabo?

E a vaca:

- Só se você me arrumar capim.

O burro e o gato foram conversar com o barranco. O gato pediu:

- Barranco, me arranja um pouco de capim para eu dar para a vaca para ela me dar um copo de leite quente para eu dar para o burro, que não quer devolver meu rabo?

E o barranco:

- Só se você me arrumar água.

O burro e o gato foram conversar com a represa. O gato pediu:

- Represa, me arranja água para eu dar para o barranco para ele me dar um pouco de capim para eu dar para a vaca para ela me dar um copo de leite quente para eu dar para o burro, que não quer devolver meu rabo?

E a represa:

- Só se você me arrumar uma enxada para tapar meus buracos.

O burro e o gato foram conversar com o ferreiro. O gato pediu:

- Ferreiro, me arranja uma enxada para eu dar para a represa para ela me dar água para eu dar para o barranco para ele me dar um pouco de capim para eu dar para a vaca para ela me dar um copo de leite quente para eu dar para o burro, que não quer devolver meu rabo?

E o ferreiro:

- Só se você me arrumar um par de sapatos, que eu ando descalço.

O burro e o gato foram conversar com o sapateiro. O gato pediu:

- Sapateiro, me arranja um par de sapatos para eu dar para o ferreiro para ele me dar uma enxada para eu dar para a represa para ela me dar água para eu dar para o barranco para ele me dar um pouco de capim para eu dar para a vaca para ela me dar um copo de leite quente para eu dar para o burro, que não quer devolver meu rabo?

E o sapateiro:

- Só se você me arrumar um saco de pão, que eu estou com fome.

O burro e o gato foram conversar com o padeiro. O gato pediu:

- Padeiro, me arranja um saco de pão para eu dar para o sapateiro para ele me dar um par de sapatos para eu dar para o ferreiro para ele me dar uma enxada para eu dar para a represa para ela me dar água para eu dar para o barranco para ele me dar um pouco de capim para eu dar para a vaca para ela me dar um copo de leite quente para eu dar para o burro, que não quer devolver meu rabo?

E o padeiro:

- Só se você me arrumar trigo.

O burro e o gato foram conversar com um trabalhador que plantava trigo no campo. O gato pediu:

- Trabalhador, me arranja um pouco de trigo para eu dar para o padeiro para ele me dar um saco de pão para eu dar para o sapateiro para ele me dar um par de sapatos para eu dar para o ferreiro para ele me dar uma enxada para eu dar para a represa para ela me dar água para eu dar para o barranco para ele me dar um pouco de capim para eu dar para a vaca para ela me dar um copo de leite quente para eu dar para o burro, que não quer devolver meu rabo?

O trabalhador estava ocupado e não gostou de tanta falação:

- Burro não toma copo de leite quente!

Depois pegou um pedaço de pau e saiu correndo atrás do burro e do gato dando cada pancada que até ardia de tão doída.

Fonte:
Azevedo, Ricardo. Histórias que o povo conta : textos de tradição popular. São Paulo : Ática, 2002. - (Coleção literatura em minha casa ; v.5)

Nilto Maciel (Teoria do Amor Socrático)

O professor Mendes não sabia com precisão quando ti­vera a idéia de escrever seu inconcluso livro. E não se arrisca­va sequer a falar do ano.

— Mais ou menos — instavam seus amigos.

— Pode ter sido em 64, muito antes, ou muito depois; não sei.

Bem, se não se lembrava do tempo da fecundação, disses­se então por que decidira criar a obra — exigiam os outros. Por querer celebrizar-se? Por admiração ao filósofo? Por pu­ro diletantismo?

Mendes ou não levava a sério as preocupações dos cole­gas, ou também vivia em dúvida:

— Se não me engano, nasci para escrever este livro — e abanava um bloco de folhas escritas a mão, como se desse ba­nanas ao mundo inteiro.

As tais folhas andavam sempre entre as páginas de um livro impresso e este debaixo do braço, o que as fazia suadas, amassadas e emporcalhadas. Dias e dias com o mesmo livro, embora já o tivesse lido e relido.

— Ainda com a República? — ignorava alguém.

E Mendes aproveitava a observação para mostrar suas “anotações filosóficas” ao curioso. Alguns bons minutos de leitura, quer o outro tivesse pressa, quer pudesse perder tempo.

As pessoas queixavam-se constantemente da impertinên­cia de Mendes.

— Ele enche o saco com essas suas anotações — lastimava-se uma.

— O pior é que não escolhe suas vítimas. Podia chatear apenas seus colegas de Filosofia — opinava outra.

Para Mendes, todo ouvinte era um ouvinte, bastava ter ouvidos. Com certeza, iria entender tudo e gostar do texto.

Apesar de ninguém saber exatamente quando a primeira idéia germinara naquele crânio incompreendido, o certo é que o livro há anos vinha sendo escrito. Ou anotado, como o pró­prio Mendes dizia.

Um de seus amigos pilheriava: primeiro conhecera o li­vro, depois o autor. Até aí nada de engraçado, porque geral­mente o leitor não conhece o escritor.

— Ocorre que não fui leitor, mas simplesmente ouvidor. O leitor foi ele, o Mendes — contava o piadista. — Primeiro leu para mim umas anotações filosóficas e só depois se apre­sentou: — “Sou Pereira Mendes, filósofo”.— “Prazer em co­nhecê-lo”.

Os ouvintes da pilhéria se enchiam de curiosidade: quan­do havia ocorrido o fatídico primeiro encontro dos dois?

— No primeiro dia de aula do primeiro ano de minha car­reira de professor.

— Então já faz algum tempo! — admiravam-se todos.

— Se não ocorrer nenhum incidente na minha vida, deve­rei me aposentar daqui a dez anos.

Ao tempo do fato, Mendes devia ser ainda estudante, tal­vez calouro de faculdade.

Estranhavam ainda seus ex-mestres, colegas, amigos, alu­nos, todos quantos o ouviam diariamente, o não se apresentar ele como Apolodoro. Assinava-se A. Pereira Men­des, quer nos artigos que escrevia para a revista da escola, quer em documentos e papéis da vida civil.

— Não quero que digam: dedicou-se à filosofia só porque tem nome de filósofo.

Do nome do filho passavam à pessoa do pai. Com toda a certeza, o falecido José Mendes adorava filosofia.

– De jeito nenhum — replicava o professor. — Aliás, ele mal sabia ler. Não ia além dos jornais mais vagabundos.

E completava a informação: a lenda falava de um vizinho do pai, um sujeito metido a intelectual, como autor da idéia do nome.

De qualquer forma, aquele nome o levara a se interessar por filosofia. Primeiro procurou saber quem diabo tinha sido o tal Apolodoro.

— Para vocês terem uma idéia de como meu pai era um idiota, escutem só esta: ele me disse que Apolodoro era um influente político do tempo de Getúlio, um ex-tenente revo­lucionário, ou coisa assim.

E durante muito tempo o menino acreditou na história política de seu nome. Só descobriu a verdade quando chegou ao ginásio, às aulas de latim. Falavam de Apolo, e para Apolodoro foi um pulo.

Mendes nunca se mostrou um menino prodígio, desses que lêem Homero aos sete anos de idade. Pelo contrário, só lia o estritamente exigido pelos professores: sonetos da Esco­la Mineira, capítulos do Iracema, trechos de Rui.

Só às portas do vestibular conseguiu ler dez páginas so­bre o pensamento grego, onde o jornalista falava de Sócrates, Platão e Aristóteles, além de meia dúzia de nomes de boa pro­núncia.

— Havia Apolodoro?

— Nesse tempo eu era doido por Fátima e passava dias e noites a imaginar encontros aventurosos, palavras amorosas e beijos sulfurosos.

No entanto, a vida também passava. Mendes ingressou na faculdade, meteu-se no movimento estudantil, leu centenas de jornalecos, distribuiu panfletos incendiários e quase pe­gou em armas. Quando parou para de novo sonhar amores, Fátima havia casado com um comerciante de São Paulo e sumido para sempre.

Mendes queria ser jornalista. Se não fosse possível, advo­gado. Não havia vaga, porém, nem para uma nem para outra. Restava um lugarzinho na Filosofia.

— Do assunto eu só conhecia mesmo o amor platônico.

— Donzelo até essa idade? — brincavam os amigos.

Não, ele até poderia ser considerado um estróina prema­turo. Freqüentava cabarés desde os treze anos, na compa­nhia de um primo. Chegavam a gazear aulas, para ir atrás das mulheres, em pleno dia.

— Ainda me lembro da primeira vez. A mulher riu, mas eu me fiz forte, como se fosse experimentado garanhão.

Esse relacionamento com as raparigas se estendeu ao lon­go da vida de Mendes, a tal ponto de nunca querer se casar. Morou com os pais até a mãe morrer. A seguir, o velho também deu adeus à vida. Os irmãos e as irmãs então já tinham constituído suas famílias, cheios de filhos.

— Eu só casaria com aquela que eu amasse muito, e eu nunca encontrei este amor — confessava.

Não admitia as chamadas repúblicas de rapazes. Coisa de homossexuais enrustidos, defendia-se. Preferia viver só. Ha­bitavam sua casa, porém, livros, discos e quadros. A bibliote­ca tomava conta de quase tudo, da sala ao quarto. Pura ma­nia de colecionador, porque nos últimos tempos mal conse­guia ler uma página por semana.

— Primeiro preciso ler tudo sobre Sócrates.

Sua escrivaninha vivia abarrotada daquilo que conside­rava essencial ao seu interesse: histórias da Grécia antiga, di­cionários de filosofia e grego, obras filosóficas, especialmen­te o Banquete, Fédon, Memórias de Sócrates, Apologia de Sócrates e outras relacionadas ao mestre de Platão. No entanto nem só de filosofia vivia Mendes. As mulheres ocupavam lugar es­pecial em sua mente. Como Maria Helena.

Tratava-se de uma secretária epicurista, que conhecera num bar. Em suas conversas, no entanto, nenhuma filosofia tinha vez. Falavam de si mesmos, generalidades, palavras à toa. Primícias de cópulas sonhadas.

— O amor não precisa de filosofia — justificava-se.

Apesar disso, não abandonava nunca as folhas soltas de seu projeto de livro sempre espremidas entre as páginas de um filósofo qualquer, grego ou troiano. E, aqui e ali, relia para os amigos suas obscuras anotações, repletas de acrologias, agnosias e alegorias.

— Eu precisava saber mais sobre Xantipa, que tipo de amor havia entre ela e Sócrates — comunicava aos amigos, em meio à leitura.

Na faculdade, nem o mais humilde funcionário desconhe­cia o livro de Mendes. O livro e suas lacunas.

— Não descobriu nada ainda sobre o amor de Xantipa? — indagava o porteiro.

— Não.

— Nem vai descobrir — atrevia-se o outro. — O amor é o mesmo em qualquer época e em todo lugar – ensinava.

Professor e porteiro se perdiam então em longas digres­sões pelos caminhos do conhecimento. Cuidavam, formava-se verdadeira assembléia ao seu redor, composta de funcioná­rios, alunos e professores. Muitas vezes chamaram a polícia, a fim de dispersá-los. Do contrário, ninguém trabalhava nem es­tudava — garantia o diretor.

Além da filosofia ou, mais especificamente, de Sócrates, se deixava seduzir por outras manias o celibatário Mendes. Assim, adorava também música e pintura. Em todas as pare­des de seu pequeno apartamento havia quadros e mais quadros. A maioria reproduções de pinturas famosas, como A Banhista, As três graças e Mona Lisa.

— Para mim não existe mulher mais bela em toda a pintu­ra universal.

— Você sabe que é um auto-retrato? — provocava-o um colega.

– Se for, não deixará de ser mulher, para mim.

Chegou a confessar que a personagem de da Vinci só per­dia em beleza para um retrato de sua mãe quando jovem. No entanto nem só por figuras pictóricas apaixonavam-se os olhos filosofais de Mendes. Assim, além da pretérita Fátima, da epicurista Maria Helena, de tantas e tantas mulheres, morava também em seus sonhos Rosana, tida por alunos e profes­sores como a ninfa da escola.

— Pena que ele tenha chegado tarde — debochava a garota.

E isto — apaixonar-se por moças bonitas — constituía-se uma quarta ou quinta mania nele.

— Quem sabe, Mendes, ela muda de idéia — confortava-o um amigo.

— Não se preocupe comigo — resignava-se. — Afinal, as mulheres são efêmeras.

E Sócrates voltava à baila, e também a cicuta, os sico­fantas, Xantipa, Platão, Apolodoro, ele mesmo, suas famosas “anotações” para o sempre inconcluso O amor socrático.

— Mas o que vem a ser mesmo esse amor socrático? —impacientou-se, um dia, seu melhor amigo.

— Se eu soubesse, já teria concluído o livro — aborreceu-se Apolodoro.

E o aborrecimento virou ira, o sentimento pelo melhor amigo desfez-se e as “anotações filosóficas” para o livro ter­minaram reduzidas a mil pedaços de papel, que voaram, por todo o resto do dia, pelo pátio da Filosofia.

Fonte:
Nilto Maciel. Contos Reunidos. vol. II. Porto Alegre, RS: Bestiário, 2010.