segunda-feira, 19 de maio de 2008

Millôr Fernandes (1923)

"Acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer".

"Millôr Fernandes nasceu. Todo o seu aprendizado, desde a mais remota infância. Só aos 13 anos de idade, partindo de onde estava. E também mais tarde, já homem formado. No jornalismo e nas artes gráficas, especialmente. Sempre, porém, recusou-se, ou como se diz por aí. Contudo, no campo teatral, tanto então quanto agora. Sem a menor sombra de dúvida. Em todos seus livros publicados vê-se a mesma tendência. Nunca, porém diante de reprimidos. De 78 a 89, janeiro a fevereiro. De frente ou de perfil, como percebeu assim que terminou seu curso secundário. Quando o conheceu em Lisboa, o ditador Salazar, o que não significa absolutamente nada. Um dia, depois de um longo programa de televisão, foi exatamente o contrário. Amigos e mesmo pessoas remotamente interessadas - sem temor nenhum. Onde e como, mas talvez, talvez — Millôr, porém, nunca. Isso para não falar em termos públicos. Mas, ao ser premiado, disse logo bem alto - e realmente não falou em vão. Entre todos os tradutores brasileiros. Como ninguém ignora. De resto, sempre, até o Dia a Dia”.

("Currículo" publicado por Millôr quando de sua estréia no jornal "O Dia", Rio (RJ).

Considerado "um dos poucos escritores universais que possuímos", na opinião do crítico Fausto Cunha, filho de Francisco Fernandes e de Maria Viola Fernandes, Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de agosto de 1923 no Méier, subúrbio do Rio de Janeiro, com o nome de Milton Viola Fernandes. Só seria registrado no ano seguinte, tendo como data oficial de nascimento o dia 27 de maio de 1924. Sua certidão de nascimento, grafada à mão, fazia crer que seu nome era Millôr e não Milton. Seu pai, engenheiro emigrante da Espanha, morre em 1925, com apenas 36 anos. A família começa a passar por dificuldades e sua mãe passa horas em frente a uma máquina de costura para poder sustentar os 4 filhos. Apesar do aperto, o autor teve uma infância feliz, ao lado de 10 tios, 42 primos e primas e da avó italiana D. Concetta de Napole Viola.

Estuda na Escola Ennes de Souza, de 1931 a 1935, por ele chamada de Universidade do Meyer, mas que na verdade era uma escola pública. Diz dever tudo o que sabe a sua professora, Isabel Mendes, depois diretora e hoje nome da escola. Se emociona ao falar sobre ela "...uma mulatinha magra e devotada, que me ensinou tudo que se deve aprender de um professor ou de uma escola: a gostar de estudar. Depois disso, pode-se ser autodidata. Escola, a não ser para campos técnicos/experimentais, é praticamente inútil".

A chegada ao Brasil das histórias em quadrinhos, em 1934, faz de Millôr um leitor assíduo dessas publicações, em especial de Flash Gordon, de autoria de Alex Raymond, e, com isso, dar vazão à sua criatividade. Sob a influência de seu tio Antônio Viola, tem seu primeiro trabalho publicado em um órgão da imprensa — "O Jornal", do Rio de Janeiro, tendo recebido o pagamento de 10 mil reis por ele. Era o início do profissionalismo, adotado e defendido para sempre.

Em 1935, também com 36 anos, falece sua mãe, o que faz com que os irmãos Fernandes passem a levar uma vida dificílima. Essa coincidência de datas leva Millôr a escrever um conto, "Agonia", publicado na revista "Cigarra" em janeiro de 1947, onde afirmava: "Tenho dia e hora marcada para me ir e o acontecimento se dará por volta de 1959". A morte da mãe o leva a morar em Terra Nova, subúrbio próximo ao Méier, com o tio materno Francisco, sua mulher Maria e quatro filhos.

Trabalha, em 1938, com o Dr. Luiz Gonzaga da Cruz Magalhães Pinto, entregando o remédio para os rins "Urokava" em farmácias e drogarias. Durou pouco esse emprego. Logo vai ser contínuo, repaginador, factótum, na pequena revista "O Cruzeiro", que nessa época tinha, além de Millôr, mais dois funcionários: um diretor e um paginador. A revista, anos depois, chegou a vender mais de 750.000 exemplares. Com o pseudônimo "Notlim" ganha um concurso de crônicas promovido pela revista "A Cigarra". Com isso, é promovido e passa a trabalhar no arquivo.

O cancelamento de publicidade em quatro páginas de "A Cigarra" fez com que fosse chamado por Frederico Chateaubriand para preencher as páginas que ficaram em branco. Cria, então, o "Poste Escrito", onde assinava-se Vão Gôgo. O sucesso da seção faz com que ela passe a ser fixa. Com o mesmo pseudônimo, começa a escrever uma coluna no "Diário da Noite". Assume a direção de "A Cigarra", cargo que ocuparia por três anos. Dirigiu também "O Guri", revista em quadrinhos e "Detetive", que publicava contos policiais.

Ciente da necessidade de se aprimorar, estuda no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro de 1938 a 1943.

Em 1940, muda-se para o bairro da Lapa, centro da cidade, e passa a morar próximo a Alceu Pena, seu colega em "O Cruzeiro". Colabora na seção "As garotas do Alceu" como colorista e versejador.

Autodidata, faz sua primeira tradução literária: "Dragon seed", romance da americana Pearl S. Buck, com o título "A estirpe do dragão", em 1942.

No ano seguinte retorna, com Frederico Chateaubriand e Péricles, à revista "O Cruzeiro". Em dez anos, a tiragem foi um grande êxito editorial, passando de 11 mil para mais de 750 mil exemplares semanais.

Em 1945, inicia a publicação de seus trabalhos na revista "O Cruzeiro", na seção "O Pif-Paf", sob o pseudônimo de Vão Gôgo e com desenhos de Péricles.

No ano seguinte lança "Eva sem costela — Um livro em defesa do homem", sob o pseudônimo de Adão Júnior.

Sua colaboração para "O Cruzeiro", em 1947, atinge a marca de dez seções por semana.

Em 1948 viaja aos Estados Unidos, onde encontra-se com Walt Disney, Vinicius de Moraes, o cientista César Lates e a estrela Carmen Miranda. Casa-se com Wanda Rubino.

Publica "Tempo e Contratempo", com o pseudônimo de Emmanuel Vão Gôgo, em 1949. Assina seu primeiro roteiro cinematográfico, "Modelo 19". O filme, lançado com o título "O amanhã será melhor", ganha cinco prêmios Governador do Estado de São Paulo. Millôr é agraciado com o de melhores diálogos.

Em 1951, na companhia de Fernando Sabino, viaja de carro pelo Brasil, durante 45 dias. Lança a revista semanal "Voga", que teve apenas cinco números.

Viaja pela Europa por quatro meses, em 1952.

"Uma mulher em três atos", sua primeira peça, estréia no Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo (SP), em 1953.

No ano seguinte, compra o imóvel que se tornaria famoso — "a cobertura do Millôr", no bairro de Ipanema, onde o escritor até hoje vive. Nasce seu filho Ivan.

Em 1955, divide com o desenhista norte-americano Saul Steinberg o primeiro lugar da Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires, Argentina. Escreve “Do tamanho de um defunto”, que estreou no Teatro de Bolso (Rio) e, depois, adaptado pelo próprio autor para o cinema, tendo o filme o título de “Ladrão em noite de chuva”. Nesse ano escreve “Bonito como um deus”, que estréia no Teatro Maria Della Costa, em São Paulo (SP), e ainda “Um elefante no caos” e “Pigmaleoa”.

Em 1956, Millôr passa a ilustrar todos os seus textos publicados na revista "O Cruzeiro".

No ano de 1957, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro recebe exposição individual do biografado. Realiza a cenografia de “As guerras do alecrim e da manjerona”. Esse trabalho foi premiado pelo Serviço Nacional de Teatro no ano de 1958.

Nesse ano, conclui a primeira tradução teatral: “Good people”, então intitulada “A fábula de Brooklin — Gente como nós”. Fez parte do grupo que "implantou" o frescobol no posto 9, Ipanema, Rio de Janeiro.

Escreve o roteiro de “Marafa”, a partir do romance homônimo de Marques Rebello. Em 1959. No mesmo ano, apresenta na TV Itacolomi, de Belo Horizonte, a convite de Frederico Chateaubriand, uma série de programas intitulada “Universidade do Méier”, na qual desenhava enquanto fazia comentários. Posteriormente, o programa foi transferido para a TV Tupi do Rio de Janeiro, com o título de “Treze lições de um ignorante” e suspenso por ordem do governo Juscelino Kubitschek após uma crítica à primeira dama do país: Disse Millôr: "Dona Sarah Kubitschek chegou ontem ao Brasil depois de 5 meses de viagem à Europa e foi condecorada com a Ordem do Mérito do Trabalho." Nasce sua filha, Paula.

Nos anos seguintes, já integrado à intelectualidade carioca, convive com Péricles, criador de "O Amigo da Onça", Nelson Rodrigues, David Nasser, Jean Manson, Alfredo Machado, Fernando Chateaubriand, Emil Farhat e Accioly Netto, entre outros.

Em 1960, depois de resolvidos os problemas com a censura, estréia no Teatro da Praça, no Rio, ”Um elefante no caos”. O título original da peça era “Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país” rendeu a Millôr o prêmio de “Melhor Autor” da Comissão Municipal de Teatro. O filme “Amor para três”, com roteiro do biografado, baseado em “Divórcio para três”, de Victorien Sardou, é dirigido por Carlos Hugo Christensen. Millôr colaboraria com esse diretor em mais três filmes: “Esse Rio que eu amo”, 1962, Crônica da cidade amada”, 1965, e O menino e o vento, 1967.

Expõe, em 1961, desenhos na Petit Galerie, no Rio. Viaja ao Egito e retorna antes do previsto, tendo em vista a renúncia do presidente Jânio Quadros. Trabalha por 7 dias no jornal "Tribuna da Imprensa", Rio, que mais tarde pertenceu a seu irmão Hélio Fernandes. Foi demitido por ter escrito um artigo sobre a corrupção na imprensa. Os editores, o poeta Mário Faustino e o jornalista Paulo Francis pediram também demissão em solidariedade.

No ano seguinte, na edição de 10 de março de “O Cruzeiro”, “demite” Vão Gôgo e passa a assinar Millôr. A Amstutz & Herder Graphic Press, importante publicação de Zurique, dedica uma página de seu anuário ao autor. “Pigmaleoa” é apresentada, sob a direção de Adolfo Celi, no Teatro Rio.

Em 1963, escreve a peça teatral “Flávia, cabeça, tronco e membros”. Viaja a Portugal e, durante sua ausência, a revista “O Cruzeiro” publica editorial no qual se isenta de responsabilidade pela publicação de “História do Paraíso”, que obteve repercussão negativa por parte dos leitores católicos da revista. Millôr deixa a revista e começa a trabalhar no jornal “Correio da Manhã”, lá ficando até o ano seguinte.

A partir de 1964, e até 1974, colabora semanalmente no jornal Diário Popular, de Portugal. A página mereceria o seguinte comentário de um ministro de Salazar: "Este tem piada, pena que escreva tão mal o português". Lança a revista “Pif-Paf”, considerada o início da imprensa alternativa no Brasil. Foi fechada em seu oitavo número, por problemas financeiros.

Volta à TV, em 1965, como apresentador na TV Record, ao lado de Luis Jatobá e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), do “Jornal de Vanguarda”. “Liberdade liberdade” estréia no Teatro Opinião, no Rio, musical escrito em parceria com Flávio Rangel.

Composta pelo biografado, a canção “O homem” é defendida no II Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record, por Nara Leão, em 1966. Monta, ao ar livre, no Largo do Boticário, Rio, só com atores negros, sua adaptação de “Memórias de um sargento de milícias”.

Em 1968 atua, ao lado de Elizeth Cardoso e do Zimbo Trio, em “Do fundo do azul do mundo”, espetáculo musical de sua autoria. Passa a colaborar com a revista “Veja”.

Na sua estréia, apresentou-se com o texto que abaixo reproduzimos parcialmente:

SUPERMERCADO MILLÔR
ANO I - N.º 1
(Autobiografia De Mim Mesmo À Maneira De Mim Próprio)
"E lá vou eu de novo, sem freio nem pára-quedas. Saiam da frente, ou debaixo que, se não estou radioativo, muito menos estou radiopassivo. Quando me sentei para escrever vinha tão cheio de idéias que só me saíam gêmeas, as palavras — reco-reco, tatibitate, ronronar, coré-coré, tom-tom, rema-rema, tintim-por-tintim. Fui obrigado a tomar uma pílula anticoncepcional. Agora estou bem, já não dói nada. Quem é que sou eu? Ah, que posso dizer? Como me espanta! Já não fazem Millôres como antigamente! Nasci pequeno e cresci aos poucos. Primeiro me fizeram os meios e, depois, as pontas. Só muito tarde cheguei aos extremos. Cabeça, tronco e membros, eis tudo. E não me revolto. Fiz três revoluções, todas perdidas. A primeira contra Deus, e ele me venceu com um sórdido milagre. A segunda com o destino, e ele me bateu, deixando-me só com seu pior enredo. A terceira contra mim mesmo, e a mim me consumi, e vim parar aqui.”

”... Dou um boi pra não entrar numa briga. Dou uma boiada pra sair dela....Aos quinze (anos) já era famoso em várias partes do mundo, todas elas no Brasil. Venho, em linha reta, de espanhóis e italianos. Dos espanhóis herdei a natural tentação do bravado, que já me levou a procurar colorir a vida com outras cores: céu feito de conhas de metal roxo e abóbora, mar todo vermelho, e mulheres azuis, verdes ciclames. Dos italianos que, tradicionalmente, dão para engraxates ou artistas, eu consegui conciliar as duas qualidades, emprestando um brilho novo ao humor nativo. Posso dizer que todo o País já riu de mim, embora poucos tenham rido do que é meu.”

”Sou um crente, pois creio firmemente na descrença. ...Creio que a terra é chata. Procuro não sê-lo. ...Tudo o que não sei sempre ignorei sozinho. Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente, examinando qualquer dos meus trabalhos.”

”A esta altura da vida, além de descendente e vivo, sou, também, antepassado. É bem verdade que, como Adão e Eva, depois de comerem a maçã, não registraram a idéia, daí em diante qualquer imbecil se achou no direito de fazer o mesmo. Só posso dizer, em abono meu, que ao repetir o Senhor, eu me empreguei a fundo. Em suma: um humorista nato. Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo. Eles não perdem por esperar.”·

Ainda em 1968 escreve o texto do show “Momento 68”, promovido pela empresa Rhodia, que contou com a participação de Caetano Veloso, Walmor Chagas e Lennie Dale, entre outros.

No ano seguinte, participa do grupo fundador de “O Pasquim”.

Fernanda Montenegro estrela “Computa, computador, computa”, no Teatro Santa Rosa, no Rio, em 1972. Lança o livro “Esta é a verdadeira história do Paraíso” e também “Trinta anos de mim mesmo”, numa sessão de autógrafos denominada “Noite da contra-incultura”.

Em 1975, faz exposição de 25 quadros “em branco, mas com significado”, na Galeria Grafitti, no Rio.

No ano seguinte, escreve para Fernanda Montenegro a peça “É...”, que se tornou o grande sucesso teatral de Millôr ao ser encenada no Teatro Maison de France, no Rio.

Em 1977, realiza nova exposição de seus trabalhos no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Adapta, no ano seguinte, para o formato de musical a peça “Deus lhe pague”, de Joracy Camargo, que contou com Bibi Ferreira na direção e com músicas de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. É homenageado pelo 5º Salão de Humor de Piracicaba (SP), mas “exige” que a honraria seja “para todos os humoristas na pessoa de Millôr Fernandes”. Em Brasília, para o Museu da Moeda, localizado no Banco Central do Brasil, produz quatro painéis que contam a história do dinheiro.

Estréia no Teatro dos Quatro, Rio, a peça “Os órfãos de Jânio”, em 1980.

Publica “Desenhos”, uma compilação de seus trabalhos gráficos, com textos de apresentação de Pietro Maria Bardi e Antônio Houaiss, em 1981.

O ano de 1982 é de muito trabalho. O autor escreve e publica a peça “Duas tábuas e uma paixão”. Traduz a opereta “A viúva alegre”, de Franz Lear, apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Tetê Medina monta “A eterna luta entre o homem e a mulher”, no Teatro Clara Nunes – Rio. Escreve a adaptação de “A chorus line”, encenado por Walter Clark. Estréia “Vidigal: Memórias de um sargento de milícias”. São dele, nessa peça, os cenários, figurinos e letras, musicadas por Carlos Lyra. Com Flávio Rangel, escreve e representa o espetáculo “O gesto, a festa, a mensagem”, na TV Record de São Paulo. Deixa a revista “Veja”.

Em 1983, é homenageado pela Escola de Samba Acadêmicos do Sossego, de Niterói (RJ). Millôr não comparece ao desfile. Passa a colaborar com a revista “Istoé”.

Lança “Poemas”, em 1984. Estréia o musical “O MPB4 e o dr. Çobral vão em busca do mal”.

No ano seguinte, colabora com o Jornal do Brasil. Lança o “Diário da Nova República”. É montada a peça “Flávia, cabeça, tronco e membros” no Teatro Ginástico – Rio.

Passa a usar o computador para escrever e desenhar, em 1986. Escreve, com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira, o roteiro do filme “O judeu”, dirigido por Jom Tob Azulay, baseado na vida de António José da Silva. Rodado em Portugal, só seria concluído em 1995.

”L’anné 82 au Brésil: le regard critique de Millôr Fernandes” (O ano de 82 no Brasil: o olhar crítico de Millôr Fernandes), é o tema de tese de doutoramento de Françoise Duprat na Universidade de Toulouse-Le Mirail II, França, em 1987.

No ano seguinte, lança “The cow went to the swamp / A vaca foi para o brejo”. Na Universidade de São Paulo (USP), Branca Granatic defende, na dissertação de mestrado, “Os recursos humorísticos de Millôr Fernandes”.

Em 1990, nasce seu neto, Gabriel, filho de Ivan.

Deixa a revista “Istoé” e o Jornal do Brasil, em 1992.

No ano de 1994, lança “Millôr definitivo — A bíblia do caos”.

Escreve a peça “Kaos”, Adapta para a Rede Globo “Memórias de um sargento de milícias”. A partir de um argumento de Walter Salles, escreve o roteiro “Últimos diálogos”, em 1995.

Em 1996, passa a colaborar nos jornais “O Dia” (RJ), “O Estado de São Paulo” (SP) e “Correio Braziliense” (DF). Neste último, trabalharia somente até o fim do ano.

Em 1998, em parceria com Geraldo Carneiro e Jom Tob Azulay, assina o roteiro de “Mátria”.

No ano seguinte, começa a adaptar “Os três mosqueteiros”, de Dumas, para o formato de musical, trabalho que não chegou a ser concluído.

Em 2000, escreve o roteiro de “Brasil! Outros 500 — Uma PoopÓpera”, que teve sua estréia no Teatro Municipal de São Paulo. O espetáculo contava com músicas de Toquinho e Paulo César Pinheiro e arranjos de Wagner Tiso. Deixa de colaborar com “O Estado de São Paulo” e “O Dia”. Passa a colaborar com coluna semanal na “Folha de São Paulo”. Lança o site “Millôr On Line” (http://www.millor.com.br) .

No ano seguinte, deixa a “Folha de São Paulo” e volta ao “Jornal do Brasil”.

Em 2002, publica “Crítica da razão impura ou O primado da ignorância”, em que analisa as obras “Brejal dos Guajas e outras histórias”, de José Sarney, e “Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso. Deixa de colaborar, em novembro, com o “Jornal do Brasil”.

Em 2003, ilustra “O menino”, volume de contos de João Uchoa Cavalcanti Netto, e faz cem desenhos para uma nova compilação das “Fábulas fabulosas”.

Em 2004, lança pela Editora Record, “Apresentações”.

Em meados de agosto de 2004 é anunciado seu retorno às folhas da revista semanal “Veja”, a partir de setembro daquele ano.

Tempos atrás um jornal publicou que Millôr estava todo cheio de si por ter recebido, em sua casa, uma carta de um leitor com o seguinte endereçamento:

"Millôr
Ipanema"

É a glória!

LIVROS DO AUTOR:

Prosa:
- "Eva sem costela – Um livro em defesa do homem" (sob o pseudônimo de Adão Júnior) - 1946 - Editora O Cruzeiro.
- "Tempo e contratempo" (sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gogô) - 1949 - Editora O Cruzeiro.
- "Lições de um ignorante" - 1963 - J. Álvaro Editor
- "Fábulas Fabulosas" - 1964 - J. Álvaro Editor. Edição revista e ilustrada – 1973 - Nórdica
- "Esta é a verdadeira história do Paraíso" - 1972 - Livraria Francisco Alves
- "Trinta anos de mim mesmo" - 1972 - Nórdica
- "Livro vermelho dos pensamentos de Millôr" - 1973 – Nórdica. Edição revista e ampliada: Senac – 2.000.
- "Compozissõis imfãtis" - 1975 - Nórdica
- "Livro branco do humor" - 1975 – Nórdica
- "Devora-me ou te decifro" – 1976 – L&PM
- "Millôr no Pasquim" - 1977 – Nórdica
- "Reflexões sem dor" - 1977 - Edibolso.
- "Novas fábulas fabulosas" - 1978 – Nórdica
- "Que país é este?" - 1978 – Nórdica
- "Millôr Fernandes – Literatura comentada". Organização de Maria Célia Paulillo – 1980 Abril Educação
- "Todo homem é minha caça" - 1981 - Nórdica
- "Diário da Nova República" - 1985 – L&PM
- "Eros uma vez" – 1987 – Nórdica – Ilustrações de Nani
- "Diário da Nova República,v. 2" - 1988 – L&PM
- "Diário da Nova República, v. 3" – 1988 – L&PM
- "The cow went to the swamp ou A vaca foi pro brejo" – 1988 - Record
- "Humor nos tempos do Collor" (com L. F. Veríssimo e Jô Soares) – 1992 – L&PM
- "Millôr definitivo - A bíblia do caos" - 1994 – L&PM
- "Amostra bem-humorada" – 1997 – Ediouro – Seleção de textos de Maura Sardinha
- "Tempo e contratempo (2ª edição) – Millôr revisita Vão Gogô" - 1998 - Beca.
- "Crítica da razão impura ou O primado da ignorância – Sobre Brejal dos Guajas, de José Sarney, e Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso" – 2002 – L&PM
- "100 Fábulas Fabulosas" – 2003 – Record
- "Apresentações" – 2004 – Record.

Poesia:
- "Papaverum Millôr" – 1967 – Prelo. Edição revista e ilustrada: 1974 – Nórdica
- "Hai-kais" – 1968 – Senzala
- "Poemas" – 1984 – L&PM

Artes visuais:
- "Desenhos" – 1981 – Raízes Artes Gráficas. Prefácio de Pietro Maria Bardi e apresentação de Antônio Houaiss.

PEÇAS DE TEATRO:

Publicadas em livros:
- "Teatro de Millôr Fernandes (inclui Uma mulher em três atos [1953], Do tamanho de um defunto [1955], Bonito como um deus [1955] e A gaivota [1959])" – 1957 –Civilização Brasileira
- "Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, Por que me ufano do meu país" – 1962 – Editora do Autor
- "Pigmaleoa" – 1965 – Brasiliense
- "Computa, computador, computa" – 1972 – Nórdica
- "É..." – 1977 – L&PM
- "A história é uma istória" – 1978 – L&PM
- "O homem do princípio ao fim" – 1982 – L&PM
- "Os órfãos de Jânio" – 1979 – L&PM
- "Duas tábuas e uma paixão" – 1982 – L&PM (nunca encenada)

Não editadas:
- "Diálogo da mais perfeita compreensão conjugal" - 1955
- "Pif, tac, zig, pong"– 1962
- "A viúva imortal" – 1967
- "A eterna luta entre o homem e a mulher" – 1982
- "Kaos" – 1995 (leitura pública em 2001 – nunca encenada)

ESPETÁCULOS MUSICAIS:
- "Pif-Paf – Edição extra!" – 1952 (com músicas de Ary Barroso)
- "Esse mundo é meu" – 1965 (em parceria com Sérgio Ricardo)
- "Liberdade liberdade" – 1965 (em parceria com Flávio Rangel)
- "Memórias de um sargento de milícias" - 1966 (com músicas de Marco Antonio e Nelson Lins e Barros)
- Momento 68 – 1968
- Mulher, esse super-homem – 1969
- Bons tempos, hein?! – 1979 (publicada pela L&PM - 1979 - Porto Alegre)
- Vidigal: Memórias de um sargento de milícias – 1982 (com músicas de Carlos Lyra)
- De repente – 1984
- O MPB-4 e o Dr. Çobral vão em busca do mal – 1984
- Brasil! Outros 500 – Uma PopÓpera (com músicas de Toquinho e Paulo César Pinheiro)

TRADUÇÕES:

Romances
:
- A estirpe do dragão (Dragon seed), de Pearl S. Buck - 1942 - José Olympio Editora - Rio de Janeiro.
- Nunca saí de casa (I never left home), de Bob Hope - 1945 - O Cruzeiro - Rio de Janeiro.

Textos teatrais:
1958 – "A fábula de Brooklin – Gente como nós", de Irwin Shaw.
1960 - "O prodígio do mundo Ocidental", de John M. Synge.
1961 - "Megera domada", de W. Shakespeare.
1961 – "O velho ciumento", de Miguel de Cervantes.
1963 – "Mary, Mary", de Jean Kerr.
1963 – "Pigmaleão", de G. Bernard Shaw.
1963 – "As preciosas ridículas", de Molière.
1965 - "Pequenos assassinatos", de Jules Feiffer.
1965 – "A mulher de todos nós", de Henri Becque.
1965 - "Escola de mulheres", de Molière.
1967 - "Lisistrata", de Aristófanes.
1967 – "Negra meobem", de François Campaux.
1967 – "O assassinato da irmã Geórgia", de Frank Marcus.
1967 - "Marat Sade", de Peter Weiss.
1967 - "A volta ao lar", de Harold Pinter.
1967 - "Blecaute", de Frederic Knott.
1968 - "A cozinha", de Arnold Wesker.
1970 – "Rapazes da banda", de Mart Crowley.
1971 - "As eruditas", de Molière.
1972 - "Antigamente", de Harold Pinter.
1974 - "Antígona", de Sófocles.
1975 - "Os filhos de Kennedy", de Robert Patrick.
1976 - "Senhor Puntila e seu criado Matti", de Bertold Brechet.
1976 – "Vivaldino, servidor de dois amos", de Carlo Goldoni.
1977 - "A calça", de Carl Sternheim.
1978 - "Quem tem medo de Virginia Wolf?", de Edward Albee.
1979 - "Afinal, uma mulher de negócios – Liberdade em Bremen", de R. W. Fassbinder.
1979 - "Palhaços de ouro", de Neil Simon.
1980 – "O rei Lear", de W. Shakespeare.
1980 - "De quem é a vida, afinal?", de Brian Clark.
1980 - "Gata em telhado de zinco quente", de Tennessee Williams.
1980 - "A carta", de Somerset Maugham.
1980 - "Ó, Calcutá!", de Kenneth Tynan.
1981 - "As lágrimas amargas de Petra von Kant", de R. W. Fassbinder.
1981 – Bunny’s Bar, de Josiane Balasko.
1981 - "As alegres matronas de Windsor", de W. Shakespeare.
1981 - "A senhorita de Tacna", de Mario Vargas Llosa.
1982 - "Chorus line", de de Michael Bennet.
1982 – "Casamento branco", de Tadeusz Rozewicz.
1982 – "Hedda Gabler", de Henrik Ibsen.
1982 - "A viúva alegre", de Franz Lehar.
1983 - "A falecida senhora sua mãe", de George Feydeau.
1983 - "Piaf", de Pam Gems.
1983 - "O jardim das cerejeiras", de Anton Tchekov.
1983 - "Boa noite, mãe", de Marsha Norman.
1984 - "Grande e pequeno", de Botho Strauss.
1984 - "Pô, Romeu!", de Efraim Kishon.
1984 - "Hamlet", de W. Shakespeare.
1984 - "Tio Vânia", de Anton Tchekov.
1984 – "Dédalo e Ícaro", de Dario Fo.
1984 – "O sacrifício de Isaac", de Dário Fo.
1984 – "A tigresa", de Dário Fó.
1984 – "Gilda, um projeto de vida", de Noel Coward.
1984 - "Madame Vidal", de Georges Feydeau.
1985 - "Fedra", de Jean Racine.
1985 - "O feitichista", de Michel Tournier.
1985 - "Imaculada", de Franco Scaglia.
1985 - "Sábado, domingo e segunda", de Edoardo de Filippo.
1985 - "Assim é, se lhe parece", de Luigi Pirandello.
1986 - "Quarteto", de Heiner Müller.
1986 – "Quatro vezes Beckett", de Samuel Beckett.
1986 – "Ensina-me a viver", de Collin Higgins.
1987 - "O preço", de Arthur Miller.
1987 - "Filumena Marturano", de Edoardo de Filippo.
1987 - "Vestir os nus", de Pirandello.
1988 - "Encontrarse", de Pirandello.
1987 – "La mamma ou O belo Antônio", de Vitaliano Francatti.
1994 - "Don Juan, o convidado de pedra", de Molière.
1996 - "Anna Magnani", de Armand Meffre.
1996 – "Paloma", de Jean Anouilh.
1996 – "Master class", de Terence McNally.
1999 - "Últimas luas", de Furio Bordon.
2001 – "Fim de jogo", de S. Beckett.

Traduções para o teatro publicadas:
- "A megera domada", de W.Shakespeare - 1965 - Letras e Artes
- "Sr. Puntila e seu criado Matti", de B.Brecht - 1966 - Civilização.Brasileira
- "O prodígio do mundo ocidental", de John M. Synge - 1968 – Braziliense
- "Escola de mulheres", de Molière - 1973 – Nórdica
- "Os filhos de Kennedy", de R. Patrick - 1975 – Nórdica
- "A volta ao lar", de Harold Pinter – 1976 – Abril Cultural
- "Lisistrata", de Aristófanes – 1977 – Abril Cultural
- "O rei Lear", de W. Shakespeare – 1981 – L&PM
- "A senhorita de Tacha", de Mário Vargas Llosa – 1981 – Francisco Alves
- "Afinal, uma mulher de negócios – Liberdade em Bremen", de R. W. Fassbinder – 1983 – L&PM
- "As lágrimas amargas de Petra von Kant", de R. W. Fassbinder – 1983 – L&PM
- "Hamlet", de W. Shakespeare – 1984 – L&PM
- "Fedra", de J. Racine – 1985 – L&PM
- "Don Juan, o convidado de pedra", de Molière – 1994 – L&PM
- "As alegres matronas de Windsor", de W. Shakespeare – 1995 – L&PM
- "Antígona", de Sófocles – 1996 – Paz e Terra
- "As eruditas", de Molière – 2003 – L&PM.

FÁBULA:
- "A ovelha negra e outras fábulas", de Augusto Monterroso – 1983 – Record, ilustrações de Jaguar.

HUMOR:
- "A completa lei de Murphy", de Arthur Bloch – 1996 – Record – ilustrações de Jaguar.

EXPOSIÇÕES:
1957 - Exposição no Museu de Arte Moderna - Rio.
1961 - Exposição na Petite Galerie - Rio.
1975 - Exposição de desenhos na Galeria Grafitti - Rio.
1977 - Exposição "Visão da Terra" no Museu de Arte Moderna - Rio.

MULTIMÍDIA:
2000 - "Em Busca da Imperfeição" - CD-Rom - Neder & Associados / Oficina / Universo Online (UOL).

ROTEIROS PARA O CINEMA:

Individuais:
1952 – "Modelo 19". Lançado como “O amanhã será melhor”, também conhecido como “Uma ponte de esperança”. Direção de Armando Couto.
1960 – "Amor para três". Direção de Carlos Augusto Christensen.
1960 – "Ladrão em noite de chuva". Direção de Armando Couto.
1962 – "Esse Rio que eu amo". Direção de Carlos Augusto Christensen.
1965 – "Crônica da cidade amada". Direção de Carlos Augusto Christensen.
1967 – "O menino e o vento". Direção de Carlos Augusto Christensen.
1995 – "Últimos diálogos". Ainda não filmado (2004).

Em parceria:
1995 - "O judeu". Com Geraldo Carneiro e Gilvan Pereira. Direção de Jom Tob Azulay.
1998 - "Matria”. Com Geraldo Carneiro e Jom Tob Azulay (Ainda não filmado – 2004).

Colaboração:
1995 – "Terra estrangeira". Direção de Walter Salles e Daniela Thomas (diálogos adicionais).

ADAPTAÇÃO PARA A TELEVISÃO:
- "Memórias de um sargento de milícias". Baseado no musical “Vidigal”. Direção de Mauro Mendonça Filho, Rede Globo de Televisão – 1995.

INTERNET:
2000 – Millôr Online (http://www.millor.com.br).

ILUSTRAÇÕES:
- "Maurício, o leão de menino", de Flávia Mari. São Paulo - 1981 – Summus.
- "Sapomorfose ou O príncipe que coaxava", de Cora Rónai. Rio de Janeiro – 1983 – Salamandra.
- "O caderno rosa de Lori Lamby", de Hilda Hilst. São Paulo – 1990 – Massao Ohno.
- "O menino, de João Uchoa Cavalcanti Netto". Rio de Janeiro – 2003 – Editora Rio.
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COMPOSIÇÃO MUSICAL:
1966 – "O homem". Apresentada por Nara Leão no II Festival de Música Brasileira, da TV Record de São Paulo.

Fonte:
Textos extraídos de livros do autor, da Internet, do CD "Em busca da Imperfeição", de 1999, produzido pela Neder & Associados e dos “Cadernos de Literatura Brasileira – Instituto Moreira Salles.
Disponível em http://www.releituras.com

Millôr Fernandes (Chapeuzinho Vermelho)

Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).

Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".

Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.

Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.

Fonte
FERNANDES, Millôr. Lições de Um Ignorante. RJ: José Álvaro Editor, 1967, p. 31. in http://www.releituras.com

Millôr Fernandes (Discurso de Deus a Eva)

"... Eva, de repente, descobrindo uma bela cascata, resolveu tomar um banho de rio. A criação inteira veio então espiar aquela coisa linda que ninguém conhecia. E quando Eva saiu do banho, toda molhada, naquele mundo inaugural, naquela manhã primeval, estava realmente tão maravilhosa que os anjos, arcanjos e querubins, ao verem a primeira mulher nua sobre a Terra, não se contiveram, começaram a bater palmas e a gritar, entusiasmados: "O AUTOR! O AUTOR! O AUTOR!".

"P.S. - Este discurso do Todo-Poderoso está sendo divulgado pela primeira vez em todos os tempos, aqui neste livro. Nunca foi publicado antes, nem mesmo pelo seu órgão oficial, A BÍBLIA."

"Minha cara,

eu te criei porque o mundo estava meio vazio, e o homem, solitário. O Paraíso era perfeito e, portanto, sem futuro. As árvores, ninguém para criticá-las; os jardins, ninguém para modificá-los; as cobras, ninguém para ouvi-las. Foi por isso que eu te fiz. Ele nem percebeu e custará os séculos para percebê-lo. É lento, o homenzinho. Mas, hás de compreender, foi a primeira criatura humana que fiz em toda a minha vida. Tive que usar argila, material precário, embora maleável. Já em ti usei a cartilagem de Adão, matéria mais difícil de trabalhar, mais teimosa, porém mais nobre. Caprichei em tuas cordas vocais, poderás falar mais, e mais suavemente. Teu corpo é mais bem acabado, mais liso, mais redondo, mais móvel, e nele coloquei alguns detalhes que, penso, vão fazer muito sucesso pelos tempos a fora. Olha Adão enquanto dorme; é teu. Ele pensara que és dele. Tu o dominarás sempre. Como escrava, como mãe, como mulher, concubina, vizinha, mulher do vizinho. Os deuses, meus descendentes; os profetas, meus public-relations, os legisladores, meus advogados; proibir-te-ão como luxúria, como adultério, como crime, e até como atentado ao pudor! Mas eles próprios não resistirão e chorarão como santos depois de pecarem contigo; como hereges, depois de, nos teus braços, negarem as próprias crenças; como traidores, depois de modificarem a Lei para servir-te. E tu, só de meneios, viverás.

Nasces sábia, na certeza de todos os teus recursos, enquanto o Homem, rude e primário, terá que se esforçar a vida inteira para adquirir um pouco de bens que depositará humildemente no teu leito. Vai! Quando perguntei a ele se queria uma Mulher, e lhe expliquei que era um prazer acima de todos os outros, ele perguntou se era um banho de rio ainda melhor. Eu ri. O homem e um simplório. Ou um cínico. Ainda não o entendi bem, eu que o fiz, imagina agora os seus semelhantes.

Olha, ele acorda. Vai. Dá-me um beijo e vai. Hmmmm, eu não pensava que fosse tão bom. Hmmmm, ótimol Vai, vai! Não é a mim que você deve tentar, menina! Vai, ele acorda. Vem vindo para cá. Olha a cara de espanto que faz. Sorri! Ah, eu vou me divertir muito nestes próximos séculos!"

Fonte:
FERNANDES, Millôr. Esta é a verdadeira história do Paraíso. RJ: Livraria Francisco Alves, 1972. In http://www.releituras.com


domingo, 18 de maio de 2008

Falecimento de Zélia Gattai Amado

O corpo da escritora Zélia Gattai, que morreu às 16h30 do sábado (17), vítima de parada cardio-respiratória, será cremado às 16h30 no Cemitério Jardim da Saudade, no bairro de Brotas, em Salvador. O velório ocorre durante a manhã e a tarde deste domingo.

Segundo o filho João Jorge Amado, o corpo da mãe vai ser cremado e as cinzas serão espalhadas pela antiga Casa do Rio Vermelho, como foi feito

A Academia Brasileira de Letras declara luto de 3 dias.

A confirmação da morte de Zélia foi feita na tarde deste sábado (17) pela assessoria de imprensa do Hospital Bahia, onde a autora de 14 livros estava internada havia 31 dias.

Segundo boletins médicos, o quadro evoluiu com gravidade na noite de sexta-feira. Zélia, que havia se submetido a uma laparotomia para desobstrução intestinal não estava respondendo ao tratamento para insuficiência renal.

De acordo com o filho da escritora, João Jorge Amado, a escritora temia a operação. "Ainda antes de passar pela cirurgia, ela chegou a dizer que estava com medo, o medo da morte que é natural."

Só neste ano a viúva do escritor Jorge Amado havia passado por cinco internações. Na manhã deste sábado (17), os médicos informaram que o quadro de choque circulatório era irreversível, ou seja, o coração e os vasos já não eram capazes de irrigar todos os tecidos com a quantidade adequada de oxigênio.

Fontes:
http://g1.globo.com/Noticias/
http://diversao.terra.com.br/ (foto)
http://oglobo.oglobo.com/ (foto)

Zélia Gattai Amado (1916 - 2008)

Zélia Gattai (São Paulo, 2 de julho de 1916 — Salvador, 17 de maio de 2008) foi uma escritora e fotógrafa brasileira, tendo também sido expoente da militância política durante quase toda a sua longa vida, da qual partilhou cinqüenta e seis anos casada com o também escritor Jorge Amado, até a morte deste.

Filha dos imigrantes italianos Angelina e Ernesto Gattai, é a caçula de cinco irmãos. Nasceu e morou durante toda a infância na Alameda Santos, 8, no bairro Paraíso, em São Paulo.

Zélia participava, com a família, do movimento político-operário anarquista que tinha lugar entre os imigrantes italianos, espanhóis, portugueses, no início do século XX.

A família da escritora foi bastante atuante no movimento político-operário. Em 1938, o pai de Zélia chegou a ser preso pela polícia política do Estado Novo.

As lembranças desse engajamento familiar – a casa dos Gattai foi palco de fervorosos debates – inspiraram o primeiro livro da escritora: “Anarquistas, graças a Deus”. Lançada em 1979, a obra já vendeu mais de 250 mil exemplares no Brasil, ganhou versões em francês, italiano, espanhol, alemão e russo e ainda inspirou uma minissérie homônima na Rede Globo, que foi ao ar em 1984, dirigida por Walter Avancini.

Aos vinte anos, casou-se com Aldo Veiga, intelectual e militante do Partido Comunista. Graças ao círculo de amizades de Veiga, Zélia se aproximou da elite intelectual brasileira da época. Desse grupo de amigos, faziam parte os escritores Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Rubem Braga e Vinícius de Moraes. Também ficou próxima dos artistas Lasar Segall e Tarsila do Amaral.

O casamento chegou ao fim após oito anos. Deste casamento eve um filho, Luís Carlos, nascido em São Paulo, em 1942.

A vida com Jorge Amado

Leitora entusiasta de Jorge Amado, Zélia Gattai o conheceu em 1945, quando trabalharam juntos no movimento pela anistia dos presos políticos. A união do casal deu-se poucos meses depois. A partir de então, Zélia Gattai trabalhou ao lado do marido, passando a limpo, à máquina, seus originais e o auxiliando no processo de revisão.

Em 1946, com a eleição de Jorge Amado para a Câmara Federal, o casal mudou-se para o Rio de Janeiro, onde nasceu o filho João Jorge, em 1947. Um ano depois, com o Partido Comunista declarado ilegal, Jorge Amado perdeu o mandato, e a família teve que se exilar. Em 1948, com a repressão política no país, a família se exila na Europa por cinco anos. Em Paris, Zélia Gattai fez os cursos de civilização francesa, fonética e língua francesa na Sorbonne.

No exílio, Jorge e Zélia participaram intensamente da vida cultural européia e conviveram com personalidades como Pablo Neruda, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Picasso. Em Paris ainda descobre uma nova paixão: a fotografia. De 1950 a 1952, a família viveu na Checoslováquia, onde nasceu a filha Paloma. Foi neste tempo de exílio que Zélia Gattai começou a fazer fotografias, tornando-se responsável pelo registro, em imagens, de cada um dos momentos importantes da vida do escritor baiano.

O casal retornou ao Brasil em 1952 e viveu no Rio de Janeiro, na casa dos pais de Zélia, durante 11 anos. Em 1978, após 33 anos de companheirismo, Jorge e Zélia oficializaram a união.

Em 1963, a família Amado fixa residência em Salvador. E é lá que Zélia passa a se dedicar mais à literatura. Além de “Anarquistas, graças a Deus”, é autora dos livros de memórias “Um chapéu para viagem” (1982), “Senhora do baile” (1984), “Jardim de inverno” ( 1988) e “A casa do rio Vermelho” (1999). Também é escreveu os livros infantis “Pipistrelo das mil cores” (1989) e “O segredo da rua 18” (1991), em um total de 15 obras.

Sua obra é composta de nove livros de memórias, três livros infantis, uma fotobiografia e um romance. Alguns de seus livros foram traduzidos para o francês, o italiano, o espanhol, o alemão e o russo.

Anarquistas, graças a Deus foi adaptado para minissérie pela Rede Globo e Um chapéu para viagem foi adaptado para o teatro.

Prêmios e homenagens

- Prêmio Dante Alighieri (1980)
- Prêmio Revelação Literária, concedido pela Associação de Imprensa (1980)
- Diploma de Sócia Benemérita da Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel
- Placa “As dez mulheres mais bem sucedidas do Brasil” pela Mac Keen (1980)
- Título de Sócia Benemérita do Clube Baiano da Trova (1981)
- Título de Cidadã Honorária da Cidade de Salvador, Bahia (1984)
- Título de Cidadã Honorária da Cidade de Mirabeau (1985)
- Título no grau de Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique, concedido pelo governo português (1986)
- Diploma de Madrinha dos Trovadores, concedido pela Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel
- Medalha do Mérito Castro Alves, da Secretaria da Educação e Cultura do Estado da Bahia (1987)
- Diploma de Reconhecimento do Povo Carioca pelos relevantes serviços prestados à Cultura e ao Turismo, da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro;
- Prêmio Destaque do Ano (1988)
- Eleita A Mulher do Ano pelo Conselho Nacional da Mulher (1989)
- Diploma de Magnífica Amiga dos Trovadores Capixabas, Espírito Santo (1991)
- Comenda das Artes e das Letras dada pela ministra da França, Caterine Trautmann (1998)
- Comenda Maria Quitéria pela Câmara Municipal de Salvador (1999)
- Criação da Fundação de Cultura e Turismo Zélia Gattai, pela Prefeitura de Taperoá (2001).

Em 2001, foi eleita para a Academia Brasileira de Letras, para a cadeira 23, anteriormente ocupada por Jorge Amado, que teve Machado de Assis como primeiro ocupante e José de Alencar como patrono. No mesmo ano, foi eleita para a Academia de Letras da Bahia e para a Academia Ilheense de Letras. Em 2002, tomou posse nas três. É mãe de Luis Carlos, Paloma e João Jorge. É amiga de personalidades e gente simples. No lançamento do livro 'Jorge Amado: um baiano romântico e sensual, em 2002, em uma livraria de Salvador, estavam pessoas como Antonio Carlos Magalhães, Sossó, Calasans Neto, Miguel Arcanjo Prado, Auta Rosa, Bruna Lima, Antonio Imbassahy e James Amado, entre outros.

Ao lançar seu primeiro livro, Anarquistas graças a Deus, Zélia Gattai recebeu o Prêmio Paulista de Revelação Literária de 1979. No ano seguinte, recebeu o Prêmio da Associação de Imprensa, o Prêmio McKeen e o Troféu Dante Alighieri. A Secretaria de Educação do Estado da Bahia concedeu-lhe a Medalha Castro Alves, em 1987. Em 1988, recebeu o Troféu Avon, como destaque da área cultural e o Prêmio Destaque do Ano de 1988, pelo livro Jardim de inverno. O livro de memórias Chão de meninos recebeu o Prêmio Alejandro José Cabassa, da União Brasileira de Escritores, em 1994.

O casamento de Zélia Gattai e Jorge Amado durou 56 anos, até a morte do escritor, em 2001.

A história de amor de mais de meio século que viveu com Jorge Amado inspirou alguns de seus trabalhos. Caso da fotobiografia do escritor, “Reportagem incompleta” (1987), além dos livros de memórias “A casa do Rio Vermelho” (1999), “Jorge Amado - Um baiano romântico e sensual” (2002) – em parceria com os filhos João e Paloma – e “Memorial do amor” (2004).

No dia 21 de maio de 2002, a escritora passou a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL), ocupando a mesma cadeira que pertencia ao marido: a de número 23. O posto também já pertenceu aos escritores José de Alencar, Machado de Assis, Alfredo Pujol.

Após o falecimento do companheiro, Zélia decide abrir a casa em que viveram juntos por 21 anos e onde receberam personalidades como o escritor Pablo Neruda.

Atualmente aberta para visitação, a famosa “casa do Rio Vermelho” – onde estão as cinzas do escritor – será transformada em um museu.

Obras

Memórias

Anarquistas Graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 1979.
Um Chapéu para Viagem. Rio de Janeiro: Record, 1982.
Pássaros Noturnos do Abaeté, com gravuras de Calasans Neto. Salvador, 1983.
Reportagem Incompleta, com fotografias de sua autoria. 1987.
Jardim de Inverno. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado. 1988.
Chão de Meninos. Rio de Janeiro: Record, 1992.
A Casa do Rio Vermelho. 1999.
Città di Roma, ilustrado com fotografias de época. 2000.
Códigos de Família. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Jorge Amado: um Baiano Sensual e Romântico. Rio de Janeiro: Record, 2002.

Literatura infanto-juvenil

Pipistrelo das Mil Cores, com ilustrações de Pink Wainer. 1989.
Jonas e a Sereia, com ilustrações de Roger Mello. 2000.

Romance

O Segredo da Rua 18, ilustrado por Ricardo Leite. Rio de Janeiro: Record, 1991.
Crônica de uma Namorada. Rio de Janeiro: Record, 1995.

Fontes:
http://www.academia.org.br/
http://pt.wikipedia.org/
http://g1.globo.com/Noticias

João Guimarães Rosa (A Hora e Vez de Augusto Matraga)

"A hora e vez de Augusto Matraga" é a última novela de Sagarana, obra de estréia de João Guimarães Rosa. O volume é composto por nove novelas ligadas entre si pelo espaço em que transcorrem as ações, focalizando o regional mineiro e captando os aspectos físicos, sociais e psicológicos do homem e do meio interiorano. "A hora e vez de Augusto Matraga" é considerada, por muitos críticos, a mais importante produção do escritor em Sagarana, tanto por sua estrutura narrativa quanto pelo tratamento da luta entre o bem e o mal, e todo o questionamento decorrente de uma tomada de consciência do homem optando por uma dessas forças.

1º Movimento – o Mal

"Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, da Pindaíbas e do Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto – o homem – nessa noitinha de novena, num leilão de atrás da igreja, no arraial da Virgem nossa Senhora das Dores do Córrego do Murici". Augusto aparece como homem desregrado. Fazia questão de mostrar-se valentão, não se importando com a família – a mulher Dionora e a filha. Gostava de tirar mulher dos outros, de brigar de debochar. Vivia cercado de capangas. Com a morte do pai Afonsão, ficou ainda mais estouvado e sem regras: tinha dívidas enormes, faltava-lhe crédito, terras em desmando e política do lado errado.

Dionora amaro o marido, "amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o suportara os demais. Agora, porém, tinha aparecida outro". Foge com Ovídio carregando a filha. O azar não pára aí, Augusto é abandonado por seus capangas. Resolve, antes de ir matar a mulher e o amante, enfrentar sozinho o seu maior inimigo, o Major Consilva.

Mas o Major piscou, apenas, e encolheu a cabeça, porque mais não era preciso, e os capangas pulavam de cada beirada, e eram só pernas e braços. (...) Já os porretes caíam em cima do cavaleiro, que nem pinotes de matrinxãs na rede. Pauladas na cabeça, nos ombros, nas coxas. Nhô Augusto desceu o corpo e caiu. Ainda se ajoelhou em terra, querendo firmar-se nas mãos, mas isso só lhe serviu para poder ver as caras horrívies dos seus próprios bate-paus, (...). Puxaram e arrastaram Nhô Augusto, pelo atalho do rancho do Barranco, que ficou sendo um caminho de pragas e judiação. (...) E quando chegaram ao rancho do Barranco, ao fim da légua, o Nhô Augusto já vinha quase que só carregado, meio nu, todo picado de faca, quebrado de pancadas e enlameado grosso, poeira com sangue. Empurraram-no para o chão, e ele nem se moveu. (...) Os jagunços veteranos da chácara do Major Consilva acenderam seus cigarros, com descanso, mal interessados na execução. Mas os quatro que tinham sido bate-paus de Nhô Augusto mostravam maior entusiasmo. (...) E, aí, quando tudo esteve a ponto, abrasaram o ferro com a marca do gado do Major – que soía ser um triângulo inscrito numa circunferência -, e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto.

O corpo dele rolou e atirou-se no fundo de um barranco.

2º Movimento – "Para o céu eu vou, nem que seja a porrete!"

Praticamente morto, Matraga foi recolhido por um casal de negros que vivia no lugar. Aconselhado por eles, busca um padre, confessa sua vida, medita sobre a mulher, a filha, pensa em tudo de ruim que já fez. Agora está decidido: "- Eu vou pra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... Pra o céu eu vou, nem que seja a porrete!..."

Com os negros, foi morar num sítio, única coisa que restar a Augusto. Começou a viver para ajudar os outros. Capinanva para ele mesmo e para os vizinhos, pouco conversava. Murmurava as frases finais do padre – "Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há-de ter a sua". Não fumava mais, não bebia, não olhava para as mulheres. Cada dia esquecia mais a sua vergonha.

Mas, como tudo é mesmo muito pequeno, e o sertão ainda é menor, houve que passou por lá um conhecido velho de Nhô Augusto – o Tião da Tereza – procura de trezentas reses de uma boiada brava, que se desmanchara nos gerais do alto Urucaia, estourando pelos cem caminhos sem fim do chapadão.

Tião da Tereza ficou bobo de ver Nhô Augusto. E, como era casca-grossa, foi logo dando as notícias que ninguém não tinha pedido: a mulher, Dona Dionora, continuava amigada com seu Ovídio, muito de-bem os dois, com tenção até em casamento de igreja, por pensarem que ela estava desimpedida de marido; com a filha, sim, é que fora uma tristeza: crescera sã e encorpara uma mocinha muito linda, mas tinha caído na vida, seduzida por um cometa, que a levara do arraial, para onde não se sabia... O Major Consilva prosseguia mandando no Murici, e arrematara as duas fazendas de Nhô Augusto... Mas o mais mal-arrumado tinha sido o Quim, seu antigo camarada, o pobre do Quim Recadeiro - "Se alembra?" - Pois o Quim tinha morrido de morte-matada com mais de vinte balas no corpo, por causa dele, Nhô Augusto: quando soube que seu patrão tinha sido assassinado, de mando do Major, não tivera dúvida - ...jurou desforra, beijando a garrucha, e não esperou café coado! Foi cuspir no canguçu detrás da moita, e ficou morto, mas já dentro da sala-de-jantar do Major, e depois de matar dois capangas e ferir mais um...

A tristeza invade Augusto, mas lago nele começa a reavivar o homem forte, ao lado do humilde que viva pacificamente, pregando o bem. "Até que, pouco, a pouco, devagarinho, imperceptível, alguma cousa pegou a querer voltar para ele, a crescer-lhe do fundo para fora, sorrateira como a chegada do tempo das águas, que vinha vindo paralela (...), Nhô Augusto agora tinha muita fome e muito sono. O trabalho entusiasmava e era leve. Não tinha precisão de enxotar as tristezas. Não pensava nada..."

Certo dia, chega ao reduto de Matraga o bando do temido Joãozinho Bem-Bem. O povo não se mexia de tão apavorado, mas Nhô Augusto acolhe-os e os trata com hospitalidade.

Nhô Augusto, depois de servir a cachaça, bebeu também, dois goles, e pediu uma dos papo-amarelo, para ver:
— Não faz conta de balas, amigo? Isto é arma que cursa longe...
— Pode gastar as oito. Experimenta naquele pássaro ali, na pitangueira...
— Deixa de criaçãozinha de Deus. Vou ver só se corto o galho... Se errar, vocês não reparem, porque faz tempo que eu não puxo dedo em gatilho...

Fez fogo.
— Mão mandona, mano velho. Errou o primeiro, mas acertou um em dois... Ferrugem em bom ferro!

Mas, nesse tento, Nhô Augusto tornou a fazer pelo-sinal e entrou num desânimo, que não o largou mais.

Ressurge em Matraga o valente que ele procurava esquecer. Quando Joãozinho Bem-Bem está de partida, convida-o para acompanhá-lo, fazer parte do bando. "Ah, que vontade de aceitar e ir também..." Matraga vence a tentação, recusa com o coração partido. "E, à noite, tomou um trago sem ser por regra, o que foi bem bom, porque ele já viajou, do acordado para o sono, montando num sonho bonito, no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões,, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo".

3º Movimento: "Cada um tem a sua hora e a sua vez..."

Recuperado fisicamente, Augusto Matraga resolve sair de seu reduto, caminhar a fim de encontrar sua hora. Caminha sem destino, quando chega a lugarejo em que , por coincidência estavam Joãozinho Bem-Bem e seu bando prontos para executar uma família, para se vingarem da morte de um capanga. O velho chefe da família, pede, implorando para que só ele morra. Mas Bem-Bem se recusa a aceitar o pedido do velho, alegando ser regra... "Senão, até quem é mais que havia de querer obedecer a um homem que não vinga gente sua, morta de traição?... É regra."

Augusto interfere, opondo-se à vingança. Há um duelo em que Joãozinho Bem-Bem e Augusto Matraga saem mortos. Morrem como irmãos, Joãozinho dizendo:
— Estou no quase, mano velho... Morro, mas morro na faca do homem mais maneiro de junta e de mais coragem que eu já conheci!... Eu sempre lhe disse quem era bom mesmo, mano velho... é só assim que gente como eu tem licença de morrer... Quero acabar sendo amigos...
— Feito, meu parente, seu Joãozinho Bem-Bem. Mas, agora, se arrepende dos pecados, e morre logo como um cristão, que é pra gente poder ir junto...

Mas, seu Joãozinho Bem-Bem, quando respirava, as rodilhas dos intestinos subiam e desciam. Pegou a gemer. Estava no entorcer do fim. E, como teimava em conversar, apressou ainda mais a despedida. E foi mesmo.

No que restou de sua vida, Matraga é reconhecido por um primo.

Então, Augusto Matraga fechou um pouco os olhos, com sorriso intenso nos lábios lambuzados de sangue, e de seu rosto subia um sério contentamento.

Daí, mais, olhou, procurando João Lomba, e disse, agora sussurrado, sumido:
— Põe a benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionora... Fala com a Dionora que está tudo em ordem!

Depois morre
(In Resumo, comentários e textos – PUC 98, coordenação de Célia A. N. Passoni, Editora Núcleo)
Introdução

Sagarana reúne nove contos nos quais estão presentes os temas básicos de João Guimarães Rosa: a aventura, a morte, os animais metaforizados em gente, as reflexões subjetivas e espiritualistas. O conto A hora e a vez de Augusto Matraga pertence a esse livro e traz para os sertões de Minas Gerais peripécias como nas antigas histórias heróicas.

Narrador

Quanto ao processo narrativo, geralmente as histórias de Guimarães Rosa (ou estórias, como queria Rosa) concentram-se em torno de "casos" que sustentam os enredos. Grande sertão: veredas provocou impacto sem precedentes em nossa literatura. Quando foi lançada a obra, percebeu-se que estava ali algo diferente de tudo o que até então se fizera em nossa literatura.

O narrador muitas vezes caracteriza como folclóricas as histórias que conta, inserindo nelas quadrinhas populares e dando-lhes um tom épico e/ou de histórias de fada. A onisciência do narrador dos contos em terceira é propositalmente relativizada, dando voz própria e encantamento às narrativas e acentuando sua dimensão mítica e poética.

O próprio narrador questiona o conceito de realidade e ficção na literatura. Veja o fragmento a seguir:
"E assim passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho desse jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor".Observa-se nessa passagem um diálogo com leitor e também a reflexão sobre a relação existente entre a literatura e o compromisso com a verdade.

Espaço

O ambiente rural vem, há muito tempo, fornecendo material para nossa literatura. A década de 1930 marca o surgimento do romance do Nordeste, com Graciliano Ramos (Vidas Secas) e Rachel de Queiroz, entre outros. Guimarães Rosa retoma a temática e a modifica radicalmente. E quais são essas modificações radicais?

Os demais regionalistas incorporavam termos regionais ao texto literário. Guimarães Rosa recria a linguagem regional de forma extremamente elaborada. Baseando-se na linguagem da região em que "ocorrem" as histórias narradas, o autor cria palavras novas, recupera o significado de outras, empresta termos de línguas estrangeiras e estabelece relações sintáticas surpreendentes.

Na obra de Guimarães Rosa, o sertão não se limita ao espaço geográfico, mas simboliza o próprio universo. Como afirma Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas: "O senhor tolere, isto é o sertão. O sertão está em toda a parte."

O sertão criado por Guimarães Rosa é uma realidade geográfica, social, política, mas também é uma realidade psicológica e metafísica. Nesse espaço (sertão-mundo), o sertanejo não é apenas o homem de uma região e de uma época específicas, mas homem universal defrontando-se com problemas eternos: o bem e o mal; o amor; a violência; a existência ou não de Deus e do Diabo. Daí classificar-se seu regionalismo como universalista.

A luta entre o BEM e o MAL também pode ser identificada no livro <>, principalmente na relação de Matraga com Joãozinho Bem-Bem:
"- Sou um pobre pecador, seu Joãozinho Bem-Bem...
- Que-o-quê! Essa mania de rezar é que está lhe perdendo... O senhor não é padre nem frade pra isso; é algum?... Cantoria de igreja, dando em cabeça fraca, desgoverna qualquer valente... Bobajada!
- Bate na boca seu Joãozinho Bem-Bem meu amigo, que Deus pode castigar!"

O espaço específico do conto em questão pode ser bem delimitado. A história acontece na região do Norte de Minas Gerais:
"Era o homem mais afamado dos dois sertões do rio: célebre do Jequitinhonha à Serra das Araras, da beira do Jequitibá à barra do Verde Grande, do Rio Gavião até nos Montes Claros, da Carinhanha até Paracatu..." Três espaços são essenciais para a história: Pindaíbas, Tombador e Arraial do Rala-côco.

Tempo

A história começa com a seguinte marcação temporal: "Era fim de outubro, em ano resseco..." Depois dos acontecimentos que envolvem Matraga, transcorrem cerca de 6 anos.

Personagens

A razão do conto é alógica e mágica, conforme dissemos, e, portanto, aqueles em quem incide. Trata-se dos seres em disponibilidade, à margem da produção econômica e, por isso propensos ao devaneio, à aventura.

Neste contexto, podemos compreender que no homem comum está a divindade, no pecador a salvação, como nos mostra Augusto Matraga.

Estudo dos personagens

Augusto Matraga : Filho do fazendeiro e coronel Afonso Esteves, órfão de mãe, era conhecido por todos da região como Nhô-Augusto. Homem brigão, temido por todos, passava a vida bebendo e vadiando com outras mulheres. Deixava sua mulher e sua filha em casa, enquanto aproveitava a vida. Um dia, ficou muito endividado e perdeu os amigos e a mulher para outro. Além disso, levou uma surra e quase morreu. Depois disso, se converteu e morreu preocupado com a salvação de sua alma.
D. Dionóra. Mulher de Matraga: desprezada por ele. Acaba fugindo com outro homem, mesmo sabendo que ele poderia matá-la. Nunca mais viu o marido e nem foi vista por ele. Mimita
Mimita. Filha de Matraga. Foge com a mãe e acaba caindo na vida com um sujeito desconhecido.
Ovídio Moura Homem com quem D. Dionóra fugiu.
Quim Recadeiro Amigo fiel de Matraga, tentou evitar que Dionóra fugisse. Quando Matraga leva uma surra e é tido como morto, ele tenta vingá-lo e acaba sendo assassinado.
Major Consilva. Dono de terra e rival de Matraga. Mandou mata-lo após uma emboscada.
Casal de Negros: mãe Quitéria e pai Serapião. Cuidam de Matraga após ter sido pego em uma emboscada e é tido como morto. Esse casal lhe ensina a moral cristã.
Bando de Joãozinho Bem-Bem: Flosino Capeta, Cabeça-Chata, Tim Tatu-tá-te-vendo, Zeferino (gago), Epifâmio e Juruminho (foi assassinado no final e Joãozinho volta ao lugar para vingar sua morte e acaba reencontrando Matraga). Joãozinho tem muita afinidade com Matraga, mas ambos morrem no final depois de lutarem um contra o outro.
Tião da Thereza : conhecido de Matraga, o encontra e descobre que ele não estava morto. Passa, então a lhe contar o que acontecera a Dionóra e Mimita.
Prostitutas : Angélica e Siriema: são leiloadas no início de uma festa popular e Matraga ganha Siriema porque era temido. Quando ela tira a roupa, desiste de ficar com ela por considera-la feia.
Padre: É chamado pelo casal de velhos para abençoar Matraga e disse para ele: "sua hora chegará". Matraga repete essa frase até o final do livro, todas as vezes que se lembrava das injurias que sofreu.

Enredo

Era noite de novena no arraial e havia uma procissão. Quando a reza acabou, aconteceu um rápido leilão. Depois disso toda a gente foi embora, mas o leiloeiro ficou na barraca, comendo amendoim, no meio do povo bêbado do fim da festa. Além deles, havia duas prostitutas, Angélica (negra) e Siriema (branca). Os homens começaram a disputá-las, como se elas também estivessem em leilão. Nesse momento, Nhô Augusto (Augusto Matraga) berrou para o leiloeiro, oferecendo 50 mil réis por Siriema. O povo, então, incentivou-o a levar a prostituta branca. Ele pegou-a pelo braço e os dois saíram. Ela quis ficar com outro homem e até ameaçou um choro, mas acabou se rendendo a ele. Quando a levou para casa e acendeu a luz, percebeu que ela era muito magra e disse: "Que é? - Você tem perna de Manuel-Fonseca, uma fina e a outra seca!" , mandando a rapariga embora. Depois disso, desceu a ladeira sozinho e esbarrou com Quim que trazia um recado de Dona Dionóra, sua esposa, pedindo que ele voltasse para casa. Ele disse a Quim Recadeiro que não iria lá. Quando Dona Dionóra soube a resposta, teve vontade de chorar pelo desprezo do marido e por sua desdita. Ela conhecia e temia os repentes de Nhô-Augusto que não se importava nem com a filha Mimita de dez anos. Ela sabia que ele tinha outros prazeres e outras mulheres, mas aceitava, pois havia contrariado toda a família para se casar com ele. Outro homem já tinha aparecido em sua vida, mas ela sabia que se fugisse Matraga a mataria. Depois de pensar, ela dormiu e, de madrugada ainda, partiu com a filha e com o camarada Quim, parando na fazenda de um tio. De manhã, continuaram a andar. No meio do caminho, encontraram Seu Ovídio Moura, o homem com quem ela decidiu fugir, mesmo com medo de ser assassinada pelo marido. Quim voltou para contar a Nhô-Augusto o que acontecera.

Quando recebeu a notícia, Matraga decidiu ir atrás, mas seus homens não quiseram ir com ele, pois ele devia dinheiro para todos. Além do mais, sua fama no lugar não era muito boa. Apesar de tudo isso, ele decidiu matar Ovídio, mas antes quis vingar-se do Major Consilva e de seus capangas que não quiseram acompanhá-lo na busca da esposa. Chegou, então, à chácara do major, porém, os capangas o espancaram até que ele caísse. No meio desses homens, estava o camarada de quem ele havia ganhado a prostituta Siriema. Quando ele já estava caído, o major mandou que o matassem. Eles o arrastaram até o rancho do Barranco. Antes de matá-lo, esquentaram o ferro dos gado e marcaram sua pele com as iniciais do Major Consilva. Nessa hora, ele levantou gritando e se jogou do barranco. Os capangas o consideraram morto e colocaram uma cruz no local.

Um homem negro que morava perto dali foi até ele e o levou para seu casebre. Nhô-Augusto pediu que o matassem, mas, dias depois, retomou a consciência. Lembrou-se da mulher e da filha, chorou e chamou o nome de sua mãe. O homem que o acudiu pediu que ele rezasse para Deus e para Nossa Senhora do Rosário. A tristeza tomou conta de Matraga.

Os negros trouxeram um padre para que ele pedisse perdão por seus pecados e, após ouvir do padre que sua hora e sua vez iam chegar, considerou que sua vida já acabara e esperava apenas a salvação da sua alma. Tomara tão grande horror às suas maldades que nem podia mais se lembrar delas. Parecia se converter a Deus aos poucos.

Quando ficou bom, pensou em ir para o sertão com o casal samaritano que o socorreu e viajaram para o povoado do Tombador. Lá, ele pedia trabalho e conversava pouco. Às vezes, ficava sozinho e se lembrava das últimas palavras do padre: "Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua." Desse modo, passaram-se quase seis anos. Ele não fumava nem bebia; não olhava para as mulheres nem discutia.

Um dia, passou pela região Tião de Thereza, um velho conhecido de Nhô-Augusto, dando notícias de sua família: Dona Dionóra, continuava amigada com Seu Ovídio e sua filha caíra na vida com um homem desconhecido. O Quim Recadero havia morrido de "morte matada" porque tentou vingar-se dos capangas que pensava terem matado Nhô. Ao ouvir tudo isso, Matraga repetia para si mesmo que sua hora havia de chegar. Por causa disso, no dia seguinte, fez muita caridade para não perder seu lugar no céu.

Com o tempo, ele voltou a ter muito sono e muita fome. Pensou que Deus o havia perdoado e mãe Quitéria louvou a Deus por isso. Acordou mais cedo e diante de tanta felicidade que sentia, teve vontade de fumar e não se sentiu pecando por isso.

Um dia, chegou ao lugarejo um bando de homens valentões. Nhô foi até o chefe, Joãozinho Bem-Bem, e ofereceu sua casa para que ele ficasse bem hospedado. Todos conversaram muito durante a noite e o chefe do bando, na hora de ir embora, convidou Nhô para ir com eles, mas ele recusou. Apesar disso, os invejou depois, porque não tinham que pensar na salvação da alma e podiam andar no mundo sem vergonha. Pensou bem e considerou que essa história de andar em penitência era andar pra trás e, por isso, decidiu retornar aos seus antigos caminhos. Voltou a beber e a sentir saudades das mulheres. Alguns dias depois, despediu-se e foi embora em um jegue emprestado pelo amigo Rodolphio Merêncio. Onde o jegue o levou ele foi e entraram em um arraial onde, por coincidência, estava a jagunçada de Joãozinho Bem-Bem. Nhô foi recebido pelo grupo com muita satisfação.

João ia matar um homem para vingar a morte do Jumentinho, seu colega de bando. O homem implorou pela vida, clamando por Deus e, quando viu essa cena, Nhô interveio, alegando que pedido em nome de Nosso Senhor e da Virgem tinha que ser respeitado. Joãozinho sentia-se preso a Nhô por respeito e não soube o que fazer. Seu bando, entretanto, liderado por Teófilo Sussuarana, caminhou para cima de Matraga. João também foi para a briga se agrediram. Por fim, Nhô-Augusto cortou a barriga do chefe do bando da púbis à boca do estômago, condenando-o à morte. Preocupado com a salvação de Joãozinho, Matraga pediu que ele se arrependesse de seus pecados, mas não ouviu resposta, pois este morreu em seguida. Nhô estava muito machucado, mas pediu que chamassem um padre. O povo, por sua vez, agradecia, dizendo que Deus o mandou ali para salvar as famílias. Diziam: "Foi Deus quem mandou esse homem no jumento, por mor de salvar as famílias da gente!...". Por isso, era chamado de herói e santo por todos, pois ninguém antes tivera coragem para enfrentar Joãozinho Bem-Bem.

Um primo de Matraga estava no lugar e o reconheceu. Ele pediu a esse parente que colocasse a bênção em sua filha e que dissesse a Dionóra que estava tudo em ordem. Depois disso, morreu.

Análise crítica

A questão da espiritualidade

A hora e vez de Augusto Matraga é uma história de redenção e espiritualidade, uma história de conversão. Ao longo do seu enredo o protagonista, Augusto Matraga, passa do mal ao bem, da perdição à salvação. O agente desta passagem é o jagunço Joãozinho Bem-Bem. Podemos associar a ele o ditado: Deus escreve certo por linhas tortas, pois é o malvado Joãozinho Bem-Bem que permite a morte gloriosa e salvadora de Matraga. A dualidade entre o bem e o mal parece marcar esse mundo de jagunços e fazendeiros, no qual há a possibilidade de conversão quando chega a vez e a hora certa das pessoas, como ocorreu com Matraga. Nhô Augusto renuncia à vingança, mas não à honra, e se regozija ao fim, radiante, ao se deparar com a hora e vez de ser Matraga, o homem que escolheu ser. Homem capaz de agir com coragem, justiça, fraternidade e compaixão.

Observe pela leitura que o número três se repete em várias ocasiões, devido ao fato de ser místico.
Ex.: Matraga percorre três espaços e tem no corpo a marca de um triângulo inscrito em uma circunferência.

Linguagem

Na linguagem de Guimarães Rosa encontramos os jogos de palavras, o prazer lúdico, quase infantil, dos trocadilhos, das associações inesperadas de imagens, do trabalho sonoro e poético com a prosa.

A pontuação das frases de Guimarães Rosa também está ligada a esta preocupação lúdica com a linguagem: trata-se sempre de associar o jogo de palavras aos elementos da narrativa (personagens, narrador, enredo, etc.) Com a pontuação, ele busca um ritmo que só pode ser encontrado na poesia do sertão, na marcha das boiadas, na passagem lenta e imperceptível do tempo, no bater das asas dos periquitos, no balançar sinuoso das folhas do buriti.

Guimarães Rosa é, em conclusão, o criador de uma obra em que elementos da cultura popular e elementos da cultura erudita se mesclam para reinventar a força da linguagem sertaneja e mineira. Conhecedor de pelo menos dezoito idiomas, ao lado das palavras que traz do vocabulário sertanejo há várias construções importadas do latim, do francês, do inglês e do alemão em seus livros. Poucos como ele têm a capacidade de reunir a erudição das reflexões filosóficas à transposição do imaginário popular, sem menosprezar as primeiras, e simplificando o segundo.

É o que vemos ao ler alguns trechos de Sagarana, onde percebemos o ritmo, a cadência, a fecundidade e o mistério, difícil de decifrar, de sua linguagem.

As marcas de oralidade são muito expressivas através das músicas cantadas pelos personagens durante todo o enredo:

"Mariquinha é como a chuva: / boa é, prá quem quer bem! / Ela vem sempre dee graça, / Só não sei quando é que vem". "Ei, compadre, chegadinho, chegou... / Ei, compadre, chega mais um bocadinho". "O terreno lá de casa / não se varre com vassoura: / Varre com ponta de sabre / bala de metralhadora". "Eu quero ver a moreninha taboroa, / arregaçada, enchendo o pote na lagoa... / Como corisca, como ronca a trovoada, / no meu sertão, na minha terra abençoada... / Quero ir namorar com as pequenas / com as morenas do Norte de Minas". "Eu já vi um gato ler / e um grilo sentar escola / nas asas de uma ema / jogar-se o jogo ded bola / dar louvores ao macaco. / Só me falta ver agora / acender vela sem pavio / correr pra cima a água do rio / o sol a tremer com frio / e a lua a tomar tabaco".

Além disso, essa expressão oral é evidenciada através da gagueira de um dos homens do bando de Joãozinho Bem-Bem (Juruminho): "- Pois eu... eu est-t-tou m'me-espan-t-tando é de uma c'coisa...] e "É o m' molho de as-mam-báia e a so-p-'pa da c'c' anji-quinha".

Fonte:
MULLER, Maria Laura. Disponível em http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/horaeavezdeaugustobraga

Gabriel Perissé (Mais da metade dos professores não têm o hábito de ler)

Gabriel Perissé, 42 anos, é professor universitário, formou-se em Letras pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1985, ano em que foi morar em São Paulo, onde obteve o grau de mestre em Literatura Brasileira (1989) pela USP, estudando a obra do poeta Carlos Nejar. Escritor e palestrante, doutor em Filosofia da Educação pela USP, possui vários livros publicados. Conforme informações do site que mantém na internet (www.perisse.com.br), desde 1983 ministra palestras e cursos em escolas, faculdades, empresas, ONGs, livrarias, bibliotecas e editoras, sobre temas relacionados à arte de ler, pensar, escrever e ensinar.

Perissé defende a leitura como terapia e afirma na entrevista que as escolas e os professores deixam muito a desejar à leitura, pois "mais da metade dos professores não têm o hábito de leitura", destaca. Assim, ninguém passa aos outros o que não tem.

Folha da Região - Vivemos numa sociedade de consumo, utilitarista, tudo precisa ter uma serventia. Como fica a arte, e a literatura sendo uma, neste contexto?

Gabriel Perissé - O artista (e o escritor em particular) sente-se obrigado a transformar sua obra numa "coisa" a ser consumida. A editora precisa das vendas. O escritor precisar criar um "produto" assimilável, útil. No entanto, nesse contexto aparentemente cruel, há um detalhe a ser destacado. Cada um de nós, seres humanos, precisamos consumir... mas também precisando consumar... Isto é, precisamos levar nossos desejos à consumação, às suas últimas conseqüências. A literatura cumpre um papel que nenhum bem de consumo pode cumprir. E chega uma hora em que só comprando um livro de filosofia, de contos, de reflexão histórica é que a pessoa consegue satisfazer essa sua necessidade mais profunda.

Folha da Região - Então, o ser humano não vive sem a arte?

Perissé - Não vive. Baudelaire dizia que podia passar oito dias sem comer, mas não podia passar um dia sem poesia. Sem arte, que é o homem, mais do que um animal saudável, mas incapaz de transcender sua situação?

Folha da Região - Sei que você dá curso para formação de escritor. O estado brasileiro com literatura mais forte, que é o Rio Grande do Sul, também se preocupa com a formação do escritor, há escolas por lá. Entre a tribo dos escritores em Araçatuba, há quem despreze essa iniciativa, dizendo que isso não se ensina, é vocação, o talento é inato. Como se resolve isso?

Perissé - Todos temos talentos escondidos. Todos temos algum talento para escrever, para expressar-nos. Mas são talentos seminais. Ou seja, estão em forma de semente. Precisam ser cultivados. Nós nos subutilizamos. Morreremos sem explorar 90% dos nossos talentos... Muitos de nós poderíamos escrever melhor do que autores que se dizem escritores? Acredito nisso.

Folha da Região - Há muito, no Brasil, se o escritor não estiver no eixo São Paulo-Rio, é classificado como regionalista. Gaúchos e mineiros tentam romper o cerco. Imagine como se sente o escritor do interiorzão mesmo, como os de Araçatuba, no oeste do estado. Como fica a literatura local no contexto atual da globalização?

Perissé - Pensemos no neologismo "glocalização", reunindo as palavras globalização e localização. Glocalização é rejeitar a idéia de homogeneização cultural, resistir ao lugar-comum de um caminho único. Glocalização é fazer questão de falar ao nosso modo o nosso próprio idioma. Glocalização é localizar o global mas jamais deslocalizar o que temos de original. Glocalização é saber localizar o universal e o nacional no regional. Em Araçatuba haverá originalidades que só em Araçatuba existem, e que cabe ao escritor local traduzir para o universal!

Folha da Região - Por que no Brasil é difícil o escritor viver de seu ofício?

Perissé - Não penso que seja somente no Brasil e somente em nosso tempo. Sempre foi difícil viver exclusivamente do ofício de escrever, entendendo escrever no sentido estrito, de escrever poesia, por exemplo. Os escritores sempre tiveram de fazer outros trabalhos para sobreviver: escrever em jornais, traduzir, dar aulas, trabalhar na propaganda, ou exercer funções burocráticas. Fernando Pessoa, Kafka, Drummond, Mario de Andrade...

Folha da Região - Você é um sacerdote da leitura, prega a sua necessidade nos seus livros. Sempre surge a idéia de o governo incluir o livro na cesta básica. Seria uma solução?

Perissé - O começo de uma solução. Ler alimenta!

Folha da Região - O teórico francês Jean Focambert, discípulo de Paulo Freire, afirma que não adianta dar livro para quem nunca tem o costume de buscar nele a solução de seus problemas. Você como defensor da leitura e amante do livro concorda com ele?

Perissé - Gosto da idéia da "livroterapia". Embora eu não tenha a desvairada ambição de sugerir para cada pessoa uma possível obra literária salvadora, sou movido pela mesma crença que anima hoje psiquiatras, médicos e conselheiros leigos ou espirituais a recomendarem determinadas leituras a pessoas com problemas familiares, dependentes de drogas, adolescentes em conflito, presidiários, pessoas que ficaram inválidas depois de um acidente, pessoas que sobreviveram a algum tipo de violência, pessoas que perderam um ente querido... Enfim, trata-se de uma prática que, associada a outros meios, permite a essas "vítimas" encontrarem forças para superar uma situação problemática, e o pior de todos os riscos: o vitimismo.

Folha da Região - Durante a campanha presidencial de 2000, o presidente Lula da Silva foi apedrejado por seus opositores por não ter diploma universitário. Você, pelo que parece, não vê o saber sem o livro. A sabedoria só vem dos livros mesmo?

Perissé - A sabedoria está na fala do povo, nas obras de arte em geral, na conduta de pessoas sábias, e está nos livros. Os livros têm a vantagem de compendiar essa sabedoria. Mas também precisamos de sabedoria para escolher os livros realmente sábios...

Folha da Região - Como anda a escola na questão da leitura? Ajuda ou atrapalha?

Perissé - A escola está em dívida com a leitura. E os professores estamos em dívida também! Muitos professores, mais da metade dos docentes em nosso país, não possuem o hábito de ler. Ora, "nemo dat quod non habet", ninguém dá aquilo que não tem. Como poderemos criar leitores criativos se não estivermos cativados pela leitura?

Folha da Região - O livro desaparecerá com a evolução da informática?

Perissé - Não. Como a pintura não desapareceu com a fotografia. Como o cinema não desapareceu com a TV. O livro cai e não quebra. Não precisa de energia elétrica. Podemos levá-lo para onde formos com facilidade. O livro é uma invenção tecnológica e tanto!

Folha da Região - Você virá a Araçatuba a convite da Academia Araçatubense de Letras, que é bastante inclusiva, bem diferente das outras esparramadas pelo Brasil, que são bastane elitistas, incluindo a ABL (Academia Brasileira de Letras). O que você acha dessas organizações?

Perissé - Os escritores devem se organizar. O único receio, sempre, é que deixemos de nos dedicar ao que faz de uma academia de letras uma academia de letras: as letras!

Folha da Região - Araçatuba tem o concurso nacional de contos chamado "Cidade de Araçatuba". Em 2004, houve a participação de mais de 500 contistas de todo o Brasil. A Academia Araçatubense de Letras pretende organizar como culminância do concurso, para entrega dos prêmios, o Congresso Nacional do Conto em 2005, como aconteceu com a poesia em Bento Gonçalves. Concursos, congressos... Esses eventos são válidos?

Perissé - São válidos, sempre. Para mexer com a água parada. Mas lembrando que os concursos não podem premiar a todos... Isto é, ninguém deve desistir de escrever se não consegue uma boa classificação num concurso. Há outros caminhos para o escritor inédito, para o jovem escritor. Há a internet. Há as oficinas literárias. Há os saraus. Há a produção independente.

Folha da Região - A sua palestra será sobre a criação literária na sexta-feira. Que você tem a dizer àquele jovem que descobriu em si a vontade de escrever, a escrita é a linguagem por onde se manifestará a sua subjetividade?

Perissé - Nós somos aquilo que escrevemos, e escrevemos aquilo que somos. Escrever, portanto, é um ato livre, ontológico, carregado de conotações existenciais!

Fonte:
http://www.portrasdasletras.com.br/

Ottaviano de Fiore (Livro, Biblioteca e Leitura no Brasil)

1 – O Papel da leitura no desenvolvimento social, econômico e político da Nação.

Em qualquer nação, o sistema da cultura pode ser dividido em problemas "verticais" e "horizontais". Os verticais são as atividades específicas : o cinema, o teatro, as artes plásticas, a música, os museus. Os horizontais são as atividades genéricas, como a leitura, a difusão da cultura geral, a capacitação profissional.

Os problemas verticais afetam principalmente o próprio povo da cultura : artistas, intelectuais, funcionários, empresários da cultura. Os problemas horizontais afetam a nação como um todo.

Entre os problemas horizontais de nossa cultura, a leitura tem um papel essencial e decisivo para o salto civilizatório que o Brasil vem realizando. Não há nação desenvolvida que não seja uma nação de leitores. Desde o operário que precisa ler manuais até o advogado que precisa decifrar o "legalês", passando pelo estudante que enfrenta os exames, o cidadão que enfrenta as urnas, a dona de casa que enfrenta a educação da família, o executivo que enfrenta sua papelada, todos os membros de uma sociedade civilizada são obrigados a utilizar várias formas de leitura e interpretação de livros, jornais, revistas, relatórios, documentos, textos, resumos, tabelas, computadores, cartas, cálculos e uma multidão de outras formas escritas.

É importante perceber que o hábito de leitura de um povo não pode ser considerado igual à sua alfabetização. Saber ler não é suficiente para ter-se familiaridade ou convívio permanente com a leitura -- para obter aquilo que em inglês se chama literacy. Todos os povos civilizados se caracterizam por possuírem uma massa crítica de leitores ativos, isto é, gente que desde a infância adquiriu o hábito de leitura e que todos os dias manipula com facilidade uma grande quantidade de informação escrita. E, por trás dessa diversidade dos tipos e meios de leituras, encontra-se sempre o mesmo objeto, o mais poderoso instrumento do saber jamais inventado pelos homens : o livro. É impossível produzir jornais, computadores, tabelas, anúncios, relatórios e tudo mais sem um longo treino anterior, que só pode ser obtido com os livros.

Não é, pois, exagero afirmar, como Darcy Ribeiro, que o livro foi a maior invenção da História e a base de todas as outras conquistas da civilização. E não é exagero também afirmar que o livro no Brasil não vai nada bem -- apesar de ter todas as possibilidades de superar esta deficiência num curto prazo histórico. Quantos livros os brasileiros lêem por ano? Os indicadores indiretos são eloqüentes. Nos EUA são produzidos 11 livros per capita ano, na França 7 e no Brasil 2,4. Mesmo considerando que boa parte da leitura do Brasil não é feita em livros mas em jornais e revistas, ainda assim lemos muito pouco, se comparados aos países avançados, e muitíssimo menos do que seria necessário para o desenvolvimento do país. O brasileiro informa-se essencialmente pela televisão e oralmente -- com as poucas vantagens e as muitas desvantagens deste fato.

Esta situação é uma ameaça latente e permanente para o nosso desenvolvimento social, econômico e político. É fundamental para o futuro da democracia brasileira estabelecer condições para que, da multidão de jovens pobres que habita as periferias, possa emergir uma massa significativa de pessoas educadas que se integrem nas nossas futuras elites. E para que isto se realize é essencial que esta massa de jovens tenha familiaridade com a leitura. Sem esta familiaridade, sua ascensão social será frustrada, nossa democracia continuará a perigo e nossa sociedade continuará pobre. Este é um fato muito pouco discutido na mídia, que prefere tratar dos saques do MST e da filha da Xuxa. Mas é um problema que os políticos, jornalistas, cidadãos e empresários conscientes devem colocar na pauta de nossas prioridades estratégicas. O Estado, a sociedade e as empresas têm obrigação de compreender o problema, dimensioná-lo, identificar seus fatores críticos e estabelecer programas realistas para resolvê-lo.

2 - Panorama do Livro no Brasil.

Em 1990, éramos cerca de 144 milhões e produzimos em torno de 1,6 livros per capita. Em 1998 somos quase 160 milhões e estamos produzindo perto de 2,4 livros per capita, o que significou uma melhoria real — que pode ser atribuída à estabilização da economia iniciada em 1995. Entretanto, este número manteve-se o mesmo entre 1996 e 1998. No ano 2000, as projeções indicam que seremos 165 milhões e, se o consumo de livros continuar crescendo apenas passivamente, produziremos cerca de 2,5 livros per capita — isto é, estaremos marcando passo.

A situação é, aliás, pior do que pode parecer : Destes 2,4 livros per capita produzidos nos últimos três anos, apenas 0,7 são livros não-didáticos. Ou seja, o livro didático, que é praticamente obrigatório e distribuído gratuitamente pelo governo federal, constitui a imensa maioria dos livros consumidos em nosso país. Pode-se afirmar que, na prática, o único livro que o povo brasileiro conhece é o escolar, e que terminada a escola, ele deixa de ter qualquer contato com este instrumento fundamental para o desenvolvimento social, político e econômico da nação e dos indivíduos.

Duas exceções importantes devem ser registradas. Uma é o livro religioso, que cresce desproporcionalmente aos outros setores, devido à distribuição muito mais eficiente e penetrante que a dos outros gêneros. Outra é o livro infanto-juvenil, às vezes classificado incorretamente como paradidático, que cresceu devido à sua ligação essencial com a escola. Constatadas estas duas exceções, todo o resto – livros de referência, literatura, técnicos, profissionais, científicos – mantém-se dentro dos 0,7% que não crescem com o passar dos anos e não acompanham o crescimento dos outros setores de nossa economia. De fato, na última década, a quantidade de livros per capita no Brasil tem crescido e decrescido na proporção direta do aumento ou da diminuição das compras de livros escolares pelo Estado. O livro livremente comprado pelos cidadãos é um mercado que não se desenvolve.

3 – Os fatores da leitura.

Graças a estudos globais encomendados pela UNESCO, foi possível identificar quais os fatores críticos no estabelecimento do hábito de leitura de um povo ou de uma pessoa. Eles são : (a) ter nascido numa família de leitores, (b) ter passado a juventude num sistema escolar preocupado com o estabelecimento do hábito de leitura, (c) o preço do livro, (c) o acesso ao livro e (d) o valor simbólico que a população atribui ao livro.

Cada um destes fatores, se atacado isoladamente, não resolverá o problema. O livro pode até ser barato mas se não houver pontos de venda ele não será comprado. Ele pode mesmo ser grátis. Mas se não houver bibliotecas ele continuará não sendo lido. A escola pode valorizar a leitura mas se a sociedade não o fizer, o hábito se extingue na saída da escola. E assim por diante. Só programas permanentes que ataquem simultânea e coordenadamente estes cinco fatores poderão produzir o aumento progressivo do consumo de livros e o desejado crescimento da massa crítica de leitores.

(a) O livro na família.

Nascer numa família de leitores é um acidente biográfico bastante raro no Brasil, mesmo entre as famílias de alto poder aquisitivo.

Isto significa que qualquer política de expansão da leitura no Brasil passa pelo estímulo à formação de bibliotecas familiares. Apesar deste ser um ponto sobre o qual é difícil agir, temos bons motivos para não desanimar. Pesquisas realizadas pela Editora Abril Cultural, no início dos anos 80, com compradores de coleções de livros e fascículos vendidos em bancas demonstraram que cerca 60% deles – pessoas de profissões modestas como motoristas, garçons e auxiliares de enfermagem – vêem nestas enciclopédias e coleções, compradas com sacrifício, uma forma de financiar a ascensão social de seus filhos.

Estes pais são heróis culturais anônimos que, após duras jornadas de trabalho, abrem enciclopédias e dicionários sobre a mesa de jantar e estimulam as crianças a se educar e se informar. São poucos, se comparados ao total de nossa população (provavelmente menos de um milhão de pessoas em todo o país). Mas são muitos se forem considerados como aquilo que realmente são – a vanguarda intelectual dos pobres, os agentes ativos e militantes da cultura escrita, reconhecida como instrumento para emergir da pobreza. Esta vanguarda compra cultura escrita para suas famílias porque acredita – com toda a razão – que através dos livros e da leitura seus filhos poderão tornar-se os futuros dirigentes, intérpretes, empresários e cientistas desta nação. Constitui interesse estratégico do país que o sonho destas famílias se realize. Qualquer programa nacional destinado a ampliar o consumo de livros no país deve atingir esta vanguarda espontânea dos pobres, fortalecê-la em suas convicções e melhorar objetivamente suas possibilidades de acesso e de aquisição da cultura escrita.

O apoio a estas famílias poderá ser proporcionado pela (a) escola, por (b) programas estatais e também pelas (c) editoras e empresas jornalísticas que nos últimos anos têm produzido grande número de livros e fascículos anexos destinados às bibliotecas familiares. Utilizando estes meios já existentes -- muitas vezes utilizados para divulgar produtos de baixa qualidade -- Estado, sociedade e empresas devem unir-se num plano nacional para o fomento de bibliotecas familiares de alta qualidade. Um auxilio inestimável a estes programas pode ser proporcionado pela adesão das televisões que, afinal, são concessões públicas.

(b) O livro no sistema escolar.

Os novos parâmetros curriculares elaborados pelo MEC colocaram o problema da leitura e da biblioteca escolar na sua devida importância. Outra questão será a de realizar estes propósitos na prática, em nível municipal e estadual.

Sabidamente, a biblioteca escolar é o patinho feio do sistema educacional. A carreira de bibliotecário escolar sequer existe. Ninguém sabe, de fato, o número total destas bibliotecas, seus espaços de leitura ou sua situação global, do ponto de vista de acervo, performance e resultados. Apenas as Secretarias Estaduais de Educação (e nem todas) estão parcialmente informadas a respeito. Não há também uma política geral de apoio, organização, treinamento e fomento da biblioteca escolar, instituição fundamental para o futuro de qualquer país

Em certas escolas, especialmente as privadas, a situação pode até ser descrita como boa -- mas é quase certo que na maioria é precária. Pior : de certa forma, a obrigatoriedade da leitura didática age mais como desestímulo à leitura do que como fomento. Professores militantes da leitura (eles são muitos e merecem muito mais apoio do que recebem) já perceberam que, depois de terem interessado as crianças na leitura, através de Ruth Rocha, Silvia Orthoff, Maria Clara Machado, Ziraldo e outros autores inteligentes e divertidos, o hábito da leitura declina dramaticamente no colegial. Um dos motivos é que, no colegial, a escola passa a obrigar à leitura dos autores exigidos no vestibular. E estes autores, quase sem exceção, não são nada adequados ao prazer de ler para quem tem 15 anos.

Dado o fato de que o futuro da nação são suas crianças e que estas, mesmo sem pertencerem a famílias de leitores, estão concentradas nas escolas, a questão do estímulo à leitura na escola é o fator crítico mais importante e mais descuidado na criação de um público para o livro brasileiro. Criar um bom sistema nacional de bibliotecas escolares, dotado de bons programas de estímulo à leitura, à imaginação e à cultura geral criará um enorme mercado presente e futuro para o livro, com conseqüências gigantescas na cultura geral, capacitação e empregabilidade de nosso povo.

(c e d) – O preço do livro está ligado ao problema do acesso ao livro.

O livro é caro no Brasil. É caro, se comparado aos preços internacionais, e mais caro ainda, se avaliado pelo poder de compra de nosso povo. O motivo fundamental deste preço são nossas baixas tiragens. Um livro que no exterior é impresso em 30 mil exemplares, no Brasil não passa de 3 mil.

Os motivos para estas baixas tiragens são : (1) a falta de pontos de venda, em especial de livrarias, e (2) a falta de bibliotecas que comprem livros. Vamos examiná-los separadamente.

(1) Nossas livrarias.

A questão da distribuição dos bens culturais -- um típico problema "horizontal" -- não afeta apenas o livro. No Brasil, além de bibliotecas e livrarias, faltam cinemas, teatros, casas de cultura. A rigor, só não faltam lojas de discos, televisões e rádios. A deficiência de distribuição é, pois, um problema de todos os setores de nosso sistema cultural e há mesmo analogias entre os seus vários ramos. Por exemplo, durante um período de vários anos as salas de cinema foram diminuindo no Brasil. Voltam hoje a crescer, graças ao novo sistema de salas multiplex, onde são exibidos preferencialmente os Titanics e Schwartzeneggers. Analogamente, o número de livrarias também declinou por alguns anos e foi seguido pelo crescimento de um novo tipo de cadeias de livrarias de shoppings e aeroportos. São livrarias de alto turnover, dedicadas especialmente a best sellers, auto ajuda, sexo e esoterismo.

Entretanto, mesmo este novo crescimento de discutível qualidade, é insignificante em relação às necessidades nacionais. Para um país de 160 milhões, temos cerca 22 mil bancas de jornal e menos de mil livrarias, a maioria em dificuldades. O problema fundamental não é sequer a falta de clientes, porque basta abrir uma feira de livros para que a venda de livros de certa cidade sofra uma explosão. Mesmo para o nosso livro tão caro, há uma demanda reprimida.

A livraria brasileira tem dois grandes problemas. O primeiro é a ausência de verdadeiras distibuidoras regionais -- espinha dorsal de qualquer rede nacional de livrarias. Se o livro religioso vai tão bem é justamente porque as igrejas possuem excelentes sistemas de distribuição capilar para seus livros. As poucas distribuidoras que existem estão em sérias dificuldades financeiras e de know-how, e as editoras substituem-nas por livrarias-distribuidoras pouco eficientes. Um sintoma promissor é a recente chegada ao Brasil do capital europeu altamente qualificado, representado pela FNAC, que opera na França, Espanha e Portugal e acaba de comprar a megalivraria paulista da Editora Ática. Sua presença em nossas grandes cidades será certamente um fator de progresso. Mas é necessário ter em mente que as megalivrarias, apesar de mundialmente importantes para a indústria livreira, não podem de forma alguma substituir uma verdadeira rede nacional de livrarias e podem até criar um regime indesejado de monopólios.

O segundo problema das livrarias é que, devido aos sistema de distribuição centralizada do livro didático -- que é enviado as escolas diretamente pelo governo -- as livrarias perdem a venda do tipo de livro mais consumido no país.

É necessário pois, estabelecer uma política nacional de fomento às livrarias, seguindo a máxima de José Sarney : "A livraria é um serviço público terceirizado". Esta é uma questão delicada, pouco estudada, mas essencial para o futuro do livro. Uma proposta importante, surgida na Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica, é a criação de um programa especial que permita às 10 mil papelarias do pais voltar a vender livros como elas faziam no passado, antes da venda de livros tornar-se para elas um negócio desimportante e secundário.

As livrarias não são, evidentemente, a única forma de se comprar livros. Eles podem ser comprados por encomenda, como fazem as empresas, em bancas de jornal, onde não há como escolher, por correio (que é caro) ou por crediário porta a porta, uma forma muito comum de vendas na qual concorrem tanto empresas sérias e tradicionais, como a Enciclopédia Britânica do Brasil, com seus excelentes produtos, quanto as piores falcatruas perpetradas justamente contra o público mais pobre, que aspira obter cultura escrita mas não tem critérios de aquisição e de comparação.

Quanto às compras feitas pelas bibliotecas -- que em todo o mundo absorvem parte significativa das edições -- elas são, como veremos, insignificantes entre nós, para não dizer praticamente nulas.

A questão do preço do livro é pois um problema que requer transformações estruturais muito menos ligadas aos fatos da produção do que aos fatos da distribuição. Ele só será resolvido progressivamente com a expansão da rede de livrarias e da rede de bibliotecas públicas e escolares -- expansões estas que permitam aos editores trabalhar com grandes tiragens e economia de escala.

(2) Nossas bibliotecas.

Para obter-se um livro é preciso comprá-lo ou emprestá-lo. Para comprá-lo, é necessária, como vimos, uma vasta rede nacional de pontos de venda. Para emprestá-lo gratuitamente, são necessárias as bibliotecas públicas

Em termos gerais, podemos afirmar que o país dispõe de uma centena de bibliotecas públicas de primeiro mundo, à frente das quais encontra-se a Biblioteca Nacional (a décima biblioteca do planeta) e um vasto proletariado de bibliotecas mal assistidas que, apesar dos esforços às vezes comoventes de seus funcionários, cumprem mal sua função de garantir a nosso povo o acesso gratuito ao livro.

Uma pesquisa realizada este ano pela Secretaria de Política Cultural do Ministério da Cultura, identificou 3 896 bibliotecas públicas em todo o país, em sua esmagadora maioria municipais. Mais de 80% de seu público é formado por estudantes ( indicador indireto da falta de bibliotecas escolares). O acervo da grande maioria destas bibliotecas não é atualizado há vários anos. Essencialmente, elas não compram livros mas sobrevivem com doações, o que significa que estes acervos crescem ao acaso e sem uma política racional de compras, voltada para as necessidades de seus freqüentadores específicos, os estudantes. É fundamental, pois, que, tanto em benefício dos usuários quanto para o fomento da indústria editorial, seja criado para as bibliotecas públicas um fundo de compra de acervo, com a participação do governo (federal, estadual, municipal) da iniciativa privada, da sociedade e de órgãos internacionais.

A situação destas bibliotecas em termos de equipamento é muito má. Basta notar que apenas 356 de nossas bibliotecas possuem computador e mais de 2500 não possuem sequer xerox. Outro dado que demonstra a precariedade da utilização da nossa rede nacional de bibliotecas é o fato de que nem um quarto delas dispõe de Associações de Amigos da Biblioteca -- órgão este sabidamente indispensável para manter viva a biblioteca, ligando-a ativamente à comunidade e à escola. De fato, a maioria não tem sequer programas regulares de treinamento ou de animação cultural (o que tende a transformá-las em depósitos passivos de livros).

Por outro lado, surgiu nestes últimos anos um dado novo e promissor : As prefeituras, para as quais, até alguns anos atrás, a biblioteca pública era a última das necessidades a ser atendida, passaram a vê-la com olhos diversos. Uma pesquisa sobre a demanda cultural dos municípios de Pernambuco, realizada em 1997 pelo Dr. Levy Leite, Delegado do Ministério da Cultura naquele estado, demonstrou que metade desta demanda se refere à criação, acervo, equipamento ou modernização das bibliotecas públicas. E é quase certo que, se realizada nos outros estados, esta pesquisa dará resultados semelhantes. Isto significa que a ascensão social através da aquisição da cultura escrita, apesar de não comparecer nas manchetes dos jornais, faz parte da consciência política dos prefeitos e das famílias.

Assim, se quisermos utilizar nossa rede de bibliotecas como um instrumento da batalha pela difusão popular da cultura escrita, abrem-se à nossa frente dois caminhos: (a) a modernização das bibliotecas públicas e (b) a expansão da rede.

(a) A modernização das bibliotecas existentes :

Considerando o estado de subutilização da rede nacional de bibliotecas, sua modernização, se bem conduzida, permitirá, de imediato, multiplicar pelo menos por cinco o seu número de usuários. Para isto, será necessário implementar programas de :

1 - Treinamento e mobilização de cerca de 13.000 responsáveis.
2 - Criação de uma política de acervos.
3 - Reequipamento e informatização de toda a rede.
4 – Ampliação de público e implantação de programas de incentivo à leitura em todas as bibliotecas públicas do país, coordenados e fomentados pelo PROLER, programa sediado na Biblioteca Nacional, que já identificou mais de 130 programas de incentivo à leitura em todo o Brasil.

(b) Expansão da rede de bibliotecas públicas

Mesmo que tenhamos pleno sucesso na revitalização da rede existente, ainda assim ela é insuficiente para as necessidades de um país de 160 milhões de habitantes. Para atingirmos o nível da Espanha ou da Itália, precisamos de uma rede com 10 mil ou 15 mil bibliotecas públicas. O que significa, no mínimo, triplicar a rede existente, criando com isto pelo menos mais 26 mil empregos. Este objetivo está longe de ser utópico. O México em 10 anos, implantou 5 mil bibliotecas públicas, voltadas em especial para a escola. A Venezuela e a Colômbia realizaram feitos semelhantes e -- em certos aspectos de qualidade -- até mais audaciosos.

Trata-se de um objetivo perfeitamente realizável. Isto foi demonstrado pelo sucesso do programa "Uma Biblioteca em cada Município" sediado na Secretaria de Política Cultural. Em 1966 o programa implantou 45 novas bibliotecas. Este número cresceu para 68, em 1997, e atingiu 212, em 1998. Sendo que neste último ano, até julho, o ritmo de implantação superou a taxa de uma biblioteca por dia (1,7 por dia).

Isto significa que, havendo recursos disponíveis, o Ministério da Cultura pode implantar, no mínimo, 3 bibliotecas por dia -- cerca de mil por ano. Ou seja, se associarmos um programa de modernização das existentes com um programa de implantação acelerada, em 4 anos o Brasil pode duplicar sua rede de bibliotecas públicas e decuplicar seu número de usuários. E em mais 4 anos atingir o nível dos países europeus.

O modelo atual de implantação das novas bibliotecas.

O programa "Uma Biblioteca em cada Município" está sendo realizado através de convênios realizados com as Prefeituras ou Governos Estaduais. O Ministério da Cultura não constrói prédios de bibliotecas -- a não ser no caso das emendas de parlamentares ao programa. Tanto o prédio -- que deve ser próximo à escola ou num lugar de fácil acesso -- quanto a lei de criação da biblioteca, os funcionários e a linha telefônica constituem a contrapartida obrigatória dos Municípios ou do Estado.

O programa repassa às prefeituras ou estados uma verba de até 40 mil reais, destinados à compra de cerca dois mil volumes iniciais e de todo o equipamento, estantes, arquivos, móveis, xerox, vídeo, computador e o que mais for necessário, em cada caso.

Este modelo de implantação difere do mexicano e mesmo do antigo programa do INL porque não realiza uma distribuição centralizada dos acervos. Os responsáveis pela nova biblioteca recebem do Ministério uma carta de recomendação de acervo, que é orientadora mas não obrigatória. Seu compromisso é apenas o de manter um equilíbrio necessário entre as várias categorias de livros -- enciclopédias, técnicos, infantis, literários etc. Como resultado da compra pela própria biblioteca, em alguns estados (como o Maranhão) as aquisições de livros regionais chegaram a 30%, algo que não aconteceria se as compras fossem centralizadas pelo Ministério, que inevitavelmente acabaria comprando quase todo o acervo no Rio de Janeiro e São Paulo.

É importante notar que, apesar deste programa estar sendo um sucesso e de contar com o apoio geral, as novas bibliotecas vão precisar de integração, treinamento e renovação de acervo, tanto quanto as antigas, que foram mais ou menos abandonadas à sua sorte. Isto é, se os programas de apoio e modernização de toda a rede não forem implementados, em pouco tempo as novas bibliotecas estarão na situação das antigas.

Outros modelos de biblioteca.

Alem da biblioteca pública com sede fixa, existem dois outros tipos de bibliotecas que não podem ser desconsiderados : a biblioteca volante e a "mala de livros".

A "mala de livros" é o que melhor se adapta às regiões muito pobres ou às de baixa densidade populacional. Sua vantagem é seu pequeno custo, associado à mobilização espontânea dos leitores. O sistema funciona melhor quando coordenado por uma biblioteca pública. Sua sede pode ser uma casa de família, um estabelecimento comercial, uma igreja. Basta um bom armário com uns cem volumes, que são periodicamente substituídos por um mensageiro da sede central. O armário é controlado pelo próprio dono da casa, que se encarrega dos empréstimos e de seu controle. O sistema funciona muito bem em várias regiões do país, inclusive na periferia de Brasília, e merece ser fortalecido, como um serviço extra das bibliotecas públicas. Nas regiões rurais, o carteiro pode tornar-se um personagem importante deste sistema.

A biblioteca volante, também chamada ônibus-biblioteca, foi introduzida no Brasil, ao que parece, por Mário de Andrade e ainda funciona em São Paulo, onde presta bons serviços. Hoje, o modelo mais bem sucedido do gênero é o "Leia Brasil", um empreendimento privado, financiado pela Petrobras, que, circulando pelas escolas de municípios sem bibliotecas, atinge mais de 300 mil alunos e 16 mil professores.

(e) O valor simbólico do livro na mente do povo.

Este é o último dos fatores críticos listados pela UNESCO como decisivos na implantação do hábito de leitura de um povo.

Ainda não existe uma pesquisa séria a respeito da imagem e do prestígio do livro para nosso povo. Ela deverá ser feita, para nos orientar corretamente. Mas não precisamos dela para começar a trabalhar. Também não havia pesquisa a respeito de nossa rede nacional de bibliotecas antes de iniciarmos o programa "Uma Biblioteca em Cada Município". Ela foi realizada simultaneamente ao trabalho de implantação das novas bibliotecas.

As únicas campanhas recentes em favor do Livro e da leitura foram realizadas pelo MinC e pelo MEC.

Em convênios com os grandes municípios e a Associação Nacional de Livrarias, o MinC realiza já há três anos, no mês de Novembro, a campanha "Paixão de Ler", que se iniciou em quatro capitais e já existe em 22. A campanha difere em cada cidade mas é sempre organizada a partir das bibliotecas públicas e é dirigida, em especial, para os professores e estudantes. O MinC contribui com a divulgação, cartazes e folhetos, alem de um "bônus-livro", distribuído pelas bibliotecas, através do qual os professores podem adquirir o livro que desejarem, em qualquer livraria. Já foram distribuídos mais de 50 mil destes bônus. Este ano, o MinC pretende cobrir todas as capitais do país, em especial suas periferias.

O MEC, no ano passado, usando a televisão, realizou a campanha "Ler é Viajar". Entretanto, é evidente que estes eventos meritórios só terão influência sensível nos hábitos da população se, contando com o apoio da televisão, forem substituídos por programas permanentes de difusão, propaganda e convencimento. De todo os trabalhos necessários em favor do livro e da cultura escrita ,este é certamente aquele que menos progrediu e aquele que ainda pode render muitos frutos – se fugir da mera publicidade em si mesma e se tornar um instrumento integrado aos outros programas acima mencionados, testemunhando os esforços realizados pela nação, sugerindo sua multiplicação, engajando o povo, as famílias, as escolas, os sindicatos, as igrejas e as empresas.

4 - Que fazer?

Como vimos, a ampliação contínua do hábito de leitura, a expansão significativa da indústria editorial e a conseqüente queda do preço do livro só poderão ser obtidas por um conjunto simultâneo de medidas diretas e indiretas adotadas pelo Estado, pelas empresas e pela Sociedade.

A Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica, onde foi reunida boa parte da informação acima apresentada, apresentará em breve alguns resumos de seu trabalho e as respectivas sugestões. Mas desde já podemos ressaltar alguns pontos fundamentais, em torno dos quais deveremos desenvolver programas específicos de ação. Os mais importantes parecem ser:

a – Estabelecer programas conjuntos com os municípios e os estados destinados a expandir a rede de livrarias. Os principais atores destes programas são : a Associação Nacional de Livrarias, o Fórum Nacional dos Secretários de Cultura, o MICT, o MinC, o MEC, as editoras, a Associação Nacional de Papelarias e o Congresso Nacional.

b - Programas de ampliação e barateamento da venda de livros pelo Correio e outros meios que não livrarias. Atores : Correio, editoras, MICT e MinC.

c- Programas de desenvolvimento das bibliotecas familiares. Atores : Comunicação Social da Presidência, MinC, MICT, editoras, empresas jornalísticas, televisivas e Congresso Nacional.

d - Programas de incentivo à leitura na escola básica. Atores : MEC, MinC, editoras, sindicatos de professores, PROLER.

e - Programas de difusão dos livros paradidáticos nas salas de aula da escola básica. Os mesmos atores mencionados em (d).

f – Criação de uma programa nacional de bibliotecas escolares. Atores : MEC, MinC, editoras, Associação Nacional de Livrarias, sindicatos de professores.

g – Modernização, ampliação e treinamento da rede nacional de bibliotecas públicas. Atores : MinC, MICT, MEC, Ministério do Trabalho (FAT), Conselho Federal de Biblioteconomia, FEBABE, UBE e Sistema Nacional de Bibliotecas (BN).

h – Implantação de programas de incentivo à leitura nas bibliotecas públicas. Atores : MEC, MinC, PROLER, editoras e FAT.

i - Regionalização das feiras de livros. Atores : Editoras e Fórum Nacional de Secretários de Cultura.

j – Nova formatação do anteprojeto da "Lei da Leitura, do Livro e da Biblioteca" apresentado pela Câmara Setorial do Livro e da Comunicação Gráfica e utilização deste anteprojeto como bandeira para o item seguinte, que é :

k – Um programa permanente de propaganda da leitura, do livro e da biblioteca. Atores : MinC, MEC, CFB, FEBABE, editoras, UBE, Sindicatos e Câmara Setorial.

l – programas de financiamento reembolsável das pequenas editoras. Atores : MICT, BNDS, Caixa Econômica, MinC.

m – programas de capacitação da mão-de-obra para editoras, livrarias e gráficas. Atores : SENAI, CNI, editoras, ABIGRAF e Câmara Setorial (que já produziu um Manual de Orientação da Produção Editoral - MOPE).

Estas sugestões desenvolvidas na Câmara Setorial não representam tudo o que se pode fazer pelo livro e pela leitura. Mas se começarmos a trabalhar a sério nestes programas, coordenando-os num único movimento, certamente estaremos dando ao nosso povo um poderoso instrumento de acesso ao livro, à cultura escrita e, portanto, ao progresso social, econômico e político de nossa nação.

A rigor já sabemos o que fazer, o resto aprenderemos fazendo.

Fonte:
http://www.ebookcult.com.br/ebookzine/livrobibliotecaeleituranobrasil.htm