quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Pepetela (1941)



Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, conhecido pelo pseudónimo de Pepetela, (Benguela, 29 de Outubro de 1941) é um escritor angolano.

A sua obra reflete sobre a história contemporânea de Angola, e os problemas que a sociedade angolana enfrenta. Durante a longa guerra, Pepetela, angolano de descendência portuguesa, lutou juntamente com MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) para libertação da sua terra natal.

O seu romance, Mayombe, retrata as vidas e os pensamentos de um grupo de guerrilheiros durante aquela guerra. Yaka segue a vida de uma família colonial na cidade de Benguela ao longo de um século, e A Geração da Utopia mostra a desilusão existente em Angola depois da independência.

A história angolana antes do colonialismo também faz parte das obras de Pepetela, e pode ser lida em A Gloriosa Família e Lueji. A sua obra nos anos 2000 critica a situação angolana, textos que contam com um estilo satírico incluem a série de romances policiais denominada Jaime Bunda. As suas obras recentes também incluem: Predadores, uma crítica áspera das classes dominantes de Angola, O Quase Fim do Mundo, uma alegoria pós-apocalíptico, e O Planalto e a Estepe, que examina as ligações entre Angola e outros países ex-comunistas. Licenciado em Sociologia, Pepetela é docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade Agostinho Neto em Luanda.
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Pepetela é descendente de uma família colonial portuguesa, os seus pais eram, no entanto, já nascidos em Angola. Concluiu o ensino primário em sua cidade natal e depois partiu para o Lubango, onde foi possível prosseguir com os estudos. Foi no Liceu Diogo Cão que completou o ensino secundário.

O escritor cresceu num ambiente da classe média, mas frequentou uma escola primária com crianças de várias raças e classes. Ele diz que a cidade de Benguela lhe deu mais oportunidades para conhecer angolanos de todas as raças porque era a cidade angolana mais multiracial daquela época. Durante a sua adolescência, um tio seu que era jornalista, introduziu-lhe a uma variedade de pensadores da esquerda. Durante os seus anos do liceu em Lubango, Pepetela também foi influenciado por um padre esquerdista chamado Noronha, que lhe informou sobre a revolução e outros eventos contemporâneos.

Lisboa, em 1958, foi o destino acadêmico que se seguiu, no Instituto Superior Técnico que o autor frequentou até 1960 quando ingressa no curso de engenharia. Uma vez mais a mudança, desta vez para frequentar o curso de Letras apenas durante um ano, pois, ainda em 1961, faz a opção política que viria a mudar o rumo da sua vida e a marcar toda a sua obra, tornando-o um narrador de uma história de Angola que conhece, porque a viveu. Tornou-se militante do MPLA em 1963.

Quando Pepetela se tornou militante, fugiu de Portugal para Paris, e posteriormente, se estabeleceu em Argel. Foi ali que ele conheceu Henrique Abranches, com quem trabalhou no Centro de Estudos Angolanos. Este Centro virou o ponto focal do trabalho do jovem Pepetela ao longo da próxima década. Ele, Abranches, e outros trabalharam na documentação da cultura e sociedade angolanas, e na propaganda das mensagens do MPLA ao exterior. Durante a sua época em Argel, escreveu o seu primeiro romance, Muana Puó, uma obra que examinou a situação angolana através da metáfora das máscaras dos Tchokwe, uma etnia de Angola. Não pretendia publicar o romance, mas acabou por fazê-lo em 1978, durante o seu serviço no governo angolano.

Em 1969, o Centro de Estudos Angolanos mudou de Argel para Brazzaville, na República do Congo. Depois desta mudança Pepetela começou a participar na luta armada contra os portugueses. A experiência na luta serviu como a inspiração para uma das suas obras mais reconhecidas, uma narrativa da guerra intitulada, Mayombe.

O primeiro romance foi publicado em 1972, com o título As Aventuras de Ngunga. Foi uma obra literária que ele escreveu para um público pequeno de universitários. Na obra, ele analisa o crescimento revolucionário de Ngunga, um jovem guerrilheiro do MPLA, usando um tom épico e didático. O romance introduz o leitor aos costumes, à geografia e à psicologia de Angola. Cria um diálogo entre a tradição angolana e ideologia revolucionária, debatendo quais tradições devem ser alimentadas, e quais devem ser alteradas. As Aventuras de Ngunga é um romance que exemplifica a carreira iniciante de Pepetela, manifestando um amor profundo por Angola, um desejo de examinar a história e a cultura do país, um espírito revolucionário, e um tom didático. O romance também é interessante porque foi escrito e publicado enquanto o autor lutou contra os portugueses na Frente Leste. Embora escrevesse Muana Puó e Mayombe durante o seu serviço de guerrilheiro, só depois da independência foram publicados.

Com a independência da Angola em 1975, se tornou o Vice Ministro da Educação no governo do presidente Agostinho Neto. O autor exerceu o mandato por sete anos e se aposentou em 1982 para se dedicar a sua escrita. Durante esta época, teve o apoio do presidente Neto para publicar dois de seus romances, incluindo Mayombe. A sua escrita se diversificou com a publicação de duas peças de teatro que tratavam da história angolana e das políticas revolucionárias. Nos anos 70, foi membro da diretoria da União de Escritores Angolanos.

As peças de Pepetela refletem os temas presentes nas Aventuras de Ngunga. A primeira, A Corda foi a primeira peça de longa duração publicada em Angola pós-independência. É uma peça que a crítica Ana Mafalda Leite descreve como didática, ideológica, e de pouco interesse literário. A peça tem um ato, e apresenta dois grupos de pessoas jogando tug of war com Angola como o prêmio. Um grupo representa os americanos e os seus clientes angolanos, e o outro representa os guerrilheiros do MPLA. A outra peça, A Revolta na Casa dos Ídolos, explora o passado de Angola, criando um paralelo entre o reino dos Kongos nos 1500, e a luta pela independência de Angola.

Como já mencionado, Pepetela publicou vários romances durante o seu serviço no governo de Agostinho Neto. Destes romances, Mayombe é o mais conhecido. O romance retrata a vida guerrilheira do autor nos anos 70, e funciona em dois níveis; um em que se exploram os pensamentos e as dúvidas dos personagens, e um outro que se ilustram as ações dos guerrilheiros. Ana Mafalda Leite considera o romance uma obra simultaneamente crítica e heróica, ambos tentando destacar a diversidade étnica supostamente celebrada pelo MPLA e ilustrar as divisões tribais presentes na sociedade angolana que eventualmente levariam à guerra civil. Leite também escreve que o romance exibe um conflito que define a fundação da pátria.

Depois da sua saída do governo ao fim de 1982, dedicou-se exclusivamente à escrita, começando a sua obra mais ambiciosa, Yaka. Yaka, publicada em 1984, é um romance histórico que examina as vidas de uma família de colonistas portuguesas que vieram a Benguela no século XIX. Um desejo para pesquisar as suas origens pode ser visto na escolha de sua temática, que é descendente de portugueses de Benguela. Como Muana Puó, Yaka incorpora objetos espirituais tradicionais de Angola na sua narrativa. Onde o primeiro romance enfoca nas máscaras, Yaka emprega a metáfora de uma escultura de madeira utilizada pelos yakas, organizações sociais dedicadas à prosecução da guerra. Ana Mafalda Leite escreve que a Yaka simboliza a consciência de valores tradicionais e o espírito da nacionalidade. Em 1986, o livro ganhou o prêmio nacional de literatura.

Ele continou escrevendo ao longo da década, publicando em 1985 O Cão e os Caluandas, um romance que analisa os habitantes de Luanda e as mudanças que eles viveram desde a independência. O romance é notável pelo seu uso de os vagamentos por Luanda de um pastor-alemão para estruturar a sua narrativa, e o seu emprego de várias vozes narrativas.

Em 1989, publicou Lueji, uma obra que contem paralelos com A Revolta na Casa dos Ídolos, ambas as obras comparando a história angolana e a situação contemporânea. O romance justapõe a princesa Lueji, uma figura importante na história angolana, com uma bailarina que dança o papel de Lueji num balé contemporâneo. As vidas das duas mulheres eventualmente se encaixam. No romance, recria a história de Angola no séc. XVIII, um projeto que ele fazia de novo com o séc. XVII no seu romance de 1997, A Gloriosa Família.

Nos anos 90, a escrita de Pepetela continuava a exibir interesse na história de Angola, mas também começou a examinar a situação política do país com um maior sentido de ironia e criticismo. O seu primeiro romance da década, A Geração da Utopia de 1992, confronta muitos problemas já explorados em Mayombe, mas da perspectiva da realidade de Angola pós-independência. A guerra civil angolana e corrupção intensa no governo levou a um questionamento dos valores revolucionários promulgados no romance mais velho. Ana Mafalda Leite descreve o romance como uma obra que é muito distante dos valores heroicos de Mayombe. O enredo do livro, que se passa em três décadas, é dividido em quatro partes, cada uma analisando um aspecto importante do séc XX em Angola, incluindo a opressão colonial, a guerra de libertação, a guerra civil, e a pausa curta na guerra que ocorreu no início dos anos 90. O interesse em história continua evidente no livro, mas o criticismo do estabelecimento angolano foi algo novo que surgiria no futuro.

O seu próximo romance da década, O Desejo de Kianda, publicado em 1995, seguiu manifestando a desilusão exibido nA Geração de Utopia. O romance utiliza o realismo-mágico, um estilo que ainda não utilizava muito, apresentando uma situação onde vários prédios em Luanda caem na praça Kinaxixi, com todos os habitantes sobrevivendo. A heroína, uma personagem chamada Carmina Cara de Cu, sai da sua carreira no governo e se torna um traficante de armas. Num ensaio comparando a caída dos prédios no romance aos atentados de 11 de setembro, 2001, Philip Rothwell escreve que o livro continua "o retrato profundo e condenador de uma utopia traída."

No ano seguinte o autor publicou um romance de um gênero diferente, A Gloriosa Família. Esta obra examina a história da família Van Dúnem, uma família proeminente de descendência holandesa. Pepetela passou anos pesquisando a história dos flamengos em Angola para escrever o romance. Esta obra não manifesta o tom cínico e desiludido dos seus outros livros na década. É um romance histórico com um tom épico que também emprega realismo mágico. Embora o romance não caiba dentro da maioria da obra do autor, a fascinação com história angolana se cristaliza melhor neste livro.

A situação política piorou em Angola ao longo dos anos 90, Pepetela passou mais e mais tempo em Lisboa e no Brasil. Porém, ele virou muito mais reconhecido no mundo lusófono. Em 1997, foi galardoado com o Prêmio Camões pelo conjunto da sua obra. Foi o primeiro autor angolano e segundo autor africano que ganhou este prêmio prestigioso. Foi o autor mais jovem a receber este prêmio. Quando abandonou a vida política, optou pela carreira de docente na Faculdade de Arquitetura, em Luanda, dando aulas de sociologia. Nunca abandona o ensino, embora se mantenha como escritor a tempo inteiro.

Pepetela continua como um escritor prolífico na décadas dos 2000. A sua obra tem apropriada uma voz satírica na série de romances denominada Jaime Bunda, livros policiais que satirizam a vida em Luanda na década nova. Stephen Henighan escreve que o personagem de Jaime Bunda, um detetive vacilante com raízes em duas das famílias angolanas mais proeminentes, representa as mudanças que aconteceram na população dos crioulos em Luanda. Em vez de representar a vanguarda revolucionária que criará uma nova identidade angolana, agora os crioulos de Luanda representam uma oligarquia kleptocrata na serie Jaime Bunda, cujo nome provém das suas nádegas enormes, é uma paródia de James Bond. O personagem é obcecado com os filmes James Bond e romances policiais norte-americanos, um aspecto que Henighan descreve como ilustrativo de elementos do subdesenvolvimento de Angola.

No primeiro dos dois romances, Jaime Bunda, Agente Secreto, publicado em 2001, o protagonista investiga um assassinato e estupro que eventualmente segue a um falsificador sul-africano chamado Karl Botha, uma referência a ex-primeiro ministro sul-africano P.W. Botha, quem autorizou a intervenção sul-africana em Angola em 1975. O segundo romance, Jaime Bunda e a Morte do Americano, publicado em 2003, tem lugar em Benguela em vez de Luanda, e se trata da influência norte-americana em Angola, em que Jaime Bunda investiga o assassinato de um norte-americano e tenta seduzir uma agente do FBI. O romance apresenta a crítica de Pepetela da política exterior dos Estados Unidos, com o comportamento pesado da polícia angolana refletindo a maneira como os norte americanos trataram os suspeitos de terrorismo durante o mesmo período. Os romances foram publicados pela companhia Dom Quixote, e eram extremamente populares em Portugal, também tendo êxito em outros países europeus como Alemanha, onde Pepetela era desconhecido antes.

Também publicou outros tipos de livro durante a década. O seu primeiro livro em 2000 foi A Montanha de Água Lilás, um livro para crianças que comenta sobre as raízes de injustiça social.

Em 2005, depois do sucesso dos livros Jaime Bunda, publicou Predadores, a sua crítica mais mordaz sobre as classes poderosas de Angola. O romance acontece em Angola pós-independência, e segue a vida de Valdimiro Caposso, um funcionário público que se torna homem de negócios. Igor Cusack descreve o protagonista como um mafioso assassino que "mora num mar de tubarões semelhantes." Portanto que começou a sua crítica dos novos ricos em Angola com A Geração da Utopia, é evidente na série Jaime Bunda e no Predadores que a temática tem virado dominante na obra do autor.

Os últimos anos da década dos 2000 exibem uma continuação da carreira prolífica do autor, com romances estreando em 2007, 2008, e 2009. O romance de 2007, O Terrorista de Berkeley, Califórnia, tem lugar nos Estados Unidos, e tem pouca ligação com Angola. O livro se trata das atitudes atuais sobre terrorismo e também de aspectos da tecnologia presente na sociedade moderna. Como vários outros romances dele, Pepetela disse numa entrevista recente que ele nunca pretendeu publicar o romance.

O seu próximo romance, O Quase Fim do Mundo, também foi escrito como um exercício pessoal. É uma obra que atinge o gênero de science fiction, retratando os desafios que os sobreviventes de um desastre confrontam. Os personagens sobrevivem num pequeno pedaço da África que Pepetela enfatize que é perto do suposto berço da humanidade. Eles precisam de criar um novo tipo de mundo. O livro segue a tendência iniciada no O Terrorista...porque não tem lugar em Angola, nem lida explicitamente com a realidade angolana. O seu último romance da década, O Planalto e a Estepe, embora lide com Angola, continua refletir a internacionalização da temática do autor na última década. O livro conta o namoro entre um angolano branco e uma mongol que se conheceram enquanto estudavam em Moscou. O romance volta à temática presente nas obras antigas de Pepetela, em particular, o descobrimento de Angola através da sua natureza. Este descobrimento é mostrado na narração da infância do Júlio, um dos protagonistas, na província de Huíla.

Obras

1973 - As Aventuras de Ngunga
1978 - Muana Puó
1980 - Mayombe
1985 - O Cão e os Caluandas
1985 - Yaka
1989 - Lueji
1992 - Geração da Utopia
1995 - O Desejo de Kianda
1997 - Parábola do Cágado Velho
1997 - A Gloriosa Família
2000 - A Montanha da Água Lilás
2001 - Jaime Bunda, Agente Secreto
2003 - Jaime Bunda e a Morte do Americano
2005 - Predadores
2007 - O Terrorista de Berkeley, Califórnia
2008 - O Quase Fim do Mundo
2008 - Contos de Morte
2009 - O Planalto e a Estepe

Peças
1978 - A Corda
1980 - A Revolta da Casa dos Ídolos

Fontes:
Wikipedia
Vidas Lusófonas

Adalgimar Gomes Gonçalves (1974)


SER (?)

Ser princesa e morrer na torre
Porque nenhum guerreiro ousou lutar por ti.

Escrever mil e um livros, de temas vários,
E não ser lido por ninguém.

Ter duas asas e o pensamento
E ser impedido de sair do lugar comum.

Lutar pela liberdade de seu povo
E ser condenado por ele.

Saber que tem a força do maior exército
E ser abatido por uma folha seca.

Pensar que poderíamos ser um pouco de tudo
E somos, verdadeiramente, um muito de nada.

(In: Mar de Minas, 2006)
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Sobre o Autor

Adalgimar nasceu em Bocaiúva, Minas Gerais, em 19 de janeiro de 1974. Concluiu, na sua cidade, o curso de Magistério na Escola Estadual Professor Gastão Valle.

A sua primeira obra, Uma Noite De Recordações, escrita aos seus quinze anos, após muito empenho, foi publicada em 1996, pela editora Questão De Opinião, de Curitiba e, em 1999, pela Imprensa da UFV.

Na primavera de 1997, em homenagem a Castro Alves e Antônio Conselheiro, publicou a coletânea poética Sonhos E Outras Poesias pela editora Por Ora de Belo Horizonte.

O Refúgio da Liberdade, publicado em 2001 pela editora UFV, é um romance que rememora a luta dos guerreiros negros no Quilombo de Palmares, a partir de uma paixão proibida entre um escravo e uma filha de senhor de engenho.

Mar de Minas, sua quarta obra, reúne poesias de temática múltipla escritas desde 1998.

Adalgimar é Graduado em Letras e Especialista em Lingüística e Literatura Comparada pela UFV; Mestre em Teoria da Literatura pela UFMG. Ocupa o cargo de Técnico em Assuntos Educacionais – UFOP; Ex-Diretor da E.E. Benjamim Guimarães, em Passagem de Mariana e Professor de Literatura Brasileira e de Língua Portuguesa.

Fonte:
Academia de Letras do Brasil – Mariana – MG

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Dylan Thomas (Em Meu Ofício ou Arte Taciturna)

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.


(tradução: Ivan Junqueira)
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Dylan Thomas (1914 – 1953)

Em 09/11/1953, Dylan Thomas, autor e poeta morre aos 39 anos de idade. Suas influências seriam ainda mais conhecidas na década de sessenta, através do compositor de canções de protestos Robert Zimmerman, natural de Minnesota, mais conhecido por Bob Dylan, a quem tomou o nome emprestado do falecido poeta. Dylan Marlais Thomas nasceu em Swansea, no País de Gales, a 27 de outubro de 1914. Considerado um dos maiores poetas do século XX em língua inglesa, juntamente com W.Carlos Williams, Wallace Stevens, T.S. Eliot e W.B. Yeats e outros mais. Dylan Thomas teve uma vida muito curta, devido a exagerada boemia que o levou ao fim assim tão jovem. Ainda assim influenciaria toda uma geração de grandes escritores.
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Fonte:
http://literaturareal.blogspot.com/

Machado de Assis (Cantiga de Esponsais)


Cantiga de Esponsais”, narrado em 3a. pessoa, conta-nos a história de mestre Romão, músico conhecido no Rio de janeiro, nos idos de 1813.

Cantiga de Esponsais

Imagine a leitora que está em 1813, na igreja do Carmo, ouvindo uma daquelas boas festas antigas, que eram todo o recreio público e toda a arte musical. Sabem que é uma missa cantada; podem imaginar o que seria uma missa cantada daqueles anos remotos.

Não lhe chamo a atenção para os padres e os sacristãos, nem para o sermão, nem para os olhos das moças cariocas, que já eram bonitos nesse tempo, nem para as mantilhas das senhoras graves, os calções, as cabeleiras, as sanefas, as luzes, os incensos, nada.

Não falo sequer da orquestra, que é excelente; limito-me a mostrar-lhes uma cabeça branca, a cabeça desse velho que rege a orquestra com alma e devoção.

Chama-se Romão Pires; terá sessenta anos, não menos, nasceu no Valongo, ou por esses lados. É bom músico e bom homem; todos os músicos gostam dele. Mestre Romão é o nome familiar; e dizer familiar e público era a mesma coisa em tal matéria e naquele tempo.

"Quem rege a missa é mestre Romão" — equivalia a esta outra forma de anúncio, anos depois: "Entra em cena o ator João Caetano"; — ou então: "0 ator Martinho cantará uma de suas melhores árias".

Era o tempero certo, o chamariz delicado e popular. Mestre Romão rege a festa! Quem não conhecia mestre Romão, com o seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado?

Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro.

Não que a missa fosse dele; esta, por exemplo, que ele rege agora no Carmo é de José Maurício; mas ele rege-a com o mesmo amor que empregaria, se a missa fosse sua.

Acabou a festa; é como se acabasse um clarão intenso, e deixasse o rosto apenas alumiado da luz ordinária. Ei-lo que desce do coro, apoiado na bengala; vai à sacristia beijar a mão aos padres e aceita um lugar à mesa do jantar.

Tudo isso indiferente e calado. Jantou, saiu, caminhou para a Rua da Mãe dos Homens, onde reside, com um preto velho, pai José, que é a sua verdadeira mãe, e que neste momento conversa com uma vizinha.

— Mestre Romão lá vem, pai José — disse a vizinha.
- Eh! eh! adeus, sinhá, até logo.

Pai José deu um salto, entrou em casa, e esperou o senhor, que daí a pouco entrava com o mesmo ar do costume. A casa não era rica naturalmente; nem alegre. Não tinha o menor vestígio de mulher, velha ou moça, nem passarinhos que cantassem, nem flores, nem cores vivas ou jucundas.

Casa sombria e nua. 0 mais alegre era um cravo, onde o mestre Romão tocava algumas vezes, estudando. Sobre uma cadeira, ao pé, alguns papéis de música; nenhuma dele...

Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que a não têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas.

Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única de tristeza de mestre Romão.

Naturalmente o vulgo não atinava com ela; uns diziam isto, outros aquilo: doença, falta de dinheiro, algum desgosto antigo; mas a verdade é esta: - a causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia.

Não é que não rabiscasse muito papel e não interrogasse o cravo, durante horas; mas tudo lhe saía informe, sem idéia nem harmonia. Nos últimos tempos tinha até vergonha da vizinhança, e não tentava mais nada.

E, entretanto, se pudesse, acabaria ao menos uma certa peça, um canto esponsalício, começado três dias depois de casado, em 1779. A mulher, que tinha então vinte e um anos, e morreu com vinte e três, não era muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela.

Três dias depois de casado, mestre Romão sentiu em si alguma coisa parecida com inspiração. Ideou então o canto esponsalício, e quis compô-lo; mas a inspiração não pôde sair.

Como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado, assim batia a inspiração do nosso músico, encerrada nele sem poder sair, sem achar uma porta, nada. Algumas notas chegaram a ligar-se; ele escreveu-as; obra de uma folha de papel, não mais.

Teimou no dia seguinte, dez dias depois, vinte vezes durante o tempo de casado. Quando a mulher morreu, ele releu essas primeiras notas conjugais, e ficou ainda mais triste, por não ter podido fixar no papel a sensação de felicidade extinta.

— Pai José — disse ele ao entrar —, sinto-me hoje adoentado.
— Sinhô comeu alguma coisa que fez mal...
— Não; já de manhã não estava bom. Vai à botica...

0 boticário mandou alguma coisa, que ele tomou à noite; no dia seguinte mestre Romão não se sentia melhor. E preciso dizer que ele padecia do coração: — moléstia grave e crônica. Pai José ficou aterrado, quando viu que o incômodo não cedera ao remédio, nem ao repouso, e quis chamar o médico.

— Para quê? - disse o mestre. — Isto passa.

0 dia não acabou pior; e a noite suportou-a ele bem, não assim o preto, que mal pôde dormir duas horas. A vizinhança, apenas soube do incômodo, não quis outro motivo de palestra; os que entretinham relações com o mestre foram visitá-lo.

E diziam-lhe que não era nada, que eram macacoas do tempo; um acrescentava graciosamente que era manha, para fugir aos capotes que o boticário lhe dava no gamão — outro que eram amores. Mestre Romão sorria, mas consigo mesmo dizia que era o final.

"Está acabado", pensava ele.

Um dia de manhã, cinco depois da festa, o médico achou-o realmente mal; e foi isso o que ele lhe viu na fisionomia por trás das palavras enganadoras:

— Isto não é nada; é preciso não pensar em músicas...

Em músicas! justamente esta palavra do médico deu ao mestre um pensamento. Logo que ficou só, com o escravo, abriu a gaveta onde guardava desde 1779 o canto esponsalício começado.

Releu essas notas arrancadas a custo, e não concluídas. E então teve uma idéia singular: — rematar a obra agora, fosse como fosse; qualquer coisa servia, uma vez que deixasse um pouco de alma na terra.

— Quem sabe? Em 1880, talvez se toque isto, e se conte que um mestre Romão...

0 princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar.

Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.

— Aqueles chegam — disse ele —, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Sentou-se ao cravo; reproduziu as notas e chegou ao lá...
— Lá, lá, lá...

Nada, não passava adiante. E contudo, ele sabia música como gente.
Lá, dó... lá, mi... lá, si, dó, ré... ré... ré...

Impossível! nenhuma inspiração. Não exigia uma peça profundamente original , mas enfim alguma coisa, que não fosse de outro e se ligasse ao pensamento começado. Voltava ao princípio, repetia as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da mulher, dos primeiros tempos.

Para completar a ilusão, deitava os olhos pela janela para o lados casadinhos. Estes continuavam ali, com as mãos presas e os braços passados nos ombros um do outro; a diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo: Mestre Romão, ofegante da moléstia e de impaciência, tornava ao cravo; mas a vista do casal não lhe suprira a inspiração, e as notas seguintes não soavam.

— Lá... lá... lá...

Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca.

0 mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.

Fontes:
http://www.vertibular1.com.br/
Conto foi extraído de ASSIS, Machado de. O alienista e outros contos, São Paulo, Ed. Moderna, 1997.

Wilson Martins (Folhetim e Telenovela)



A história da editora Ática não tem nenhuma relação necessária com a de Marcos Rey enquanto escritor, de forma que a sua reunião num estudo de conjunto só se justificaria se esclarecessem mutuamente em aspectos fundamentais. Não é o que acontece na realidade e, por conseqüência, não é o que acontece no livro de Sílvia Helena Simões Borelli (Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo: EDUC/Estação Liberdade, 1996). A autora os tomou como "focos privilegiados" para análise do "mercado de bens simbólicos", escreve Edgard de Assis Carvalho na introdução: "a Ática, porque edita, principalmente, livros didáticos, paradidáticos e ensaísticos; Marcos Rey, porque escritor que consegue combinar literatura adulta e infanto-juvenil com áudio-visual, crônicas, teleplays, minisséries, telenovelas, numa espécie de escritor hologramático []" - versatilidade que, em si mesma, não caracterizaria a cultura de massa, assim como a não caracteriza a multiplicidade editorial da Ática.

De fato, a expressão "cultura de massa" tem sentido específico no vocabulário intelectual e, por surpreendente que pareça, não depende do volume do público a que se destina. É, antes de mais nada, uma noção de qualidade, é a cultura popular implicitamente contrastada com o que se tem por alta cultura, identificando-se com os produtos destinados especificamente ao entretenimento mais do que por seu valor intrínseco, e com artefatos destinados à venda no mercado em resposta ao gosto das massas mais do que ao dos entendidos, e com coisas criadas pela reprodução mecânica, como a imprensa, os discos e as ilustrações.

Não se trata de distinções "direitistas" e reacionárias: um esquerdista como Dwight Macdonald declarou que a cultura de massa corrompeu a alta cultura, se é certo que outros, como Edward Shils, sem dar pela incoerência, defendem a idéia de que as gravações de música séria e outras de arte elevam o gosto popular, incluindo um público maior na sociedade (v. The Harper dictionary of modern thought. Eds. Alan Bullock/Oliver Stallybrass). É também o que pensa Sílvia Borelli: há um "preconceito" da crítica contra a literatura popular, tratando-se agora de "remover mecanismos de exclusão e transformar estes objetos em legítimas manifestações culturais e literatura." O que corresponde a reconhecer a validade do "preconceito".

Assim, a literatura didática e paradidática não pode ser vista como literatura de massas, da mesma forma por que, apesar dos seus milhões de exemplares anuais, não se enquadram na categoria convencional dos "mais vendidos". A poesia popular autêntica, que é de natureza folclórica, não se confunde com a literatura de massas, fabricada segundo estereótipos invariáveis. No campo literário, escreve Sílvia Borelli, "as contraposições parecem localizar-se mais nos limites entre a produção de uma textualidade erudita e a elaboração de narrativas construídas de acordo com padrões de fabricação industrializados inerentes à indústria cultural."

A telenovela, por exemplo, pertence ao universo da literatura de massas e, claro está, à subliteratura: é o folhetim melodramático do nosso tempo, com penetração, aliás, incomparavelmente maior que a dos seus pobres antepassados tipográficos. A tal ponto que, "adaptando" para a TV o romance Helena, de Machado de Assis, o roteirista não hesitou em "melhorá-lo" nem em acrescentar-lhe numerosas seqüências para conformá-lo ao gosto do público e, claro, estender-lhe a duração. O folhetim, de seu lado, não se confunde com a crônica, apesar do que sugere a autora. Suas regras são específicas e invioláveis, a mais importante sendo o suspense obrigatório ao fim de cada episódio. Os antigos filmes em série eram a realização perfeita do folhetim jornalístico, assim como a telenovela é a forma contemporânea do filme em série. Não é pela serialização que se definem, mas pelas interrupções dramáticas dos episódios.

Inclinada às digressões, a autora recapitula em pormenor as teorias e autores de perto ou de longe relacionados com o seu tema. Ela sabe, por exemplo, que a concepção arcaica de romance "não deve ser confundida com outras formas posteriores do romance moderno", mas nem por isso quer perder a oportunidade de resumir as idéias do medievalista Paul Zumthor. Seria de esperar que também reexpusesse a doutrina da Escola de Frankfurt, referência canônica até há pouco nos trabalhos universitários. Da Escola de Frankfurt passamos a Umberto Eco e deste para Antônio Gramsci sobre o conceito de popular nas sociedades modernas. Os franceses mais recentes não são tampouco esquecidos, além de tudo o que já se congeminou sobre a natureza e singularidades da novela policial.

Em tudo isso, faltou o essencial e é o fato de Marcos Rey, escritor talentoso e versátil, jamais ter alcançado a estatura de escritor nacional. O que acima de tudo o distingue, observa Sílvia Borelli, "é a pluralidade de atividades": produtor cultural de múltiplas faces, "escreve romances e literatura infanto-juvenil; faz novelas e minisséries para TV; trabalha em agências de publicidade; colabora na confecção de inúmeros roteiros cinematográficos", além das crônicas e trabalhos menores. Ele é "universalmente conhecido" em São Paulo, como diria aquele personagem de Lubitsch, mas ainda não foi incluído no elenco das referências indispensáveis.

A verdade é que, levado pela versatilidade do seu talento, ele se dispersou em atividades apressadas e "fáceis". Encontram-se nos seus livros e em todos eles numerosos trechos de boa literatura, logo diluídos no ácido das letras de carregação. É autor que devia desconfiar da facilidade e seguir as suas inclinações - no sentido da subida, como recomendava o malicioso André Gide.

Fonte:
Jornal A Gazeta do Povo. 3 de fevereiro de 1997.
Imagem = montagem de imagens capturadas da Internet, por Yussef Khalifman

Walquiria Raizer (Acre Poético)


DOS IPÊS

De um amarelo
Impositivo
Flutuante

(cambio, desligo)

As garrafas de fanta
Parecem tão laranja
(ali)

A escada
Tem muitos
(degraus)

Prego
Cada uma
(a seu tempo)

LARANJAS E FANTAS

Eu te avisei!
...disse Mário com cara de Maria...
(como se houvesse menos multa
quando se buzina antes de passar o sinal)

Avisou sim é verdade,
mas queria não ser entendido.
Avisou só por desencargo.
E isso não conta.

Disse que o ipê floria,
que era amarelo e só.
Disse que era desse jeito todos os anos,
e que não pensava em mudar.

Mas o ipê muda Mário,
e sou eu
é que estou te avisando.

Há de nascer laranjas nele...

Se não nascer eu mesma subo
e prego umas garrafas de fanta.

RETICÊNCIAS

vou escrever qualquer coisa
que não pareça
nada
( ! )

esse tudo
é mesmo
o que
(devasta)

CORAÇÃO ESTRANHO

Um coração estranho
E uma alma
Torta

Um coração
Estranho
E uma alma
Torta

Olha pra mim
Vê o que vês
Olha (!)
É só uma
Alma torta

Do que tens medo
Medo de quê
Sou só mais uma alma
Torta

ACELERAÇÃO

...é como se tudo tivesse
girando
Um giro calmo
(e calculado)

Um giro bom
(pro mundo)

Mas o mundo
(é grande)
E não precisa de mim
( e de ti)

Mas eu, querida
Eu preciso do mundo
E ele está aí
(flertando)

KATAUÊ

O miolo dentro da casca
(pão)

O miolo dentro
( da casca)

A casca virando


O miolo
O miolo
Miolo

Poderia
Correr
Sem
Léguas
(cem)


Um colar de castanha elétrica
Uma flor amarela
Muru

(estou tão acremente despida hoje que o açai perdeu a cor)

BILHETE PRA IDALINA

o sentimento de estrangeiro já é meu
carrego desde sempre
(não é nada que não possa viver)

e os pássaros, com suas árvores suspensas
abraçam
(ando tão menininha)

vi uma animação pra criança e me alegrei
era rosa
(nunca gostei de rosa)

escuto umas musiquinhas
e quero dançar
o mundo é tão bom

penso nas crianças do yaco
como sabem se divertir
aquelas crianças!

banhos de rio
banhos de rio
de súbido me contenho
(gente feliz, pro leitor, não tem graça)

BULA 3

não dá pra ser poeta no mar
(é desnível de concorrência)

BULA 2

contra raios de olhos solares
óculos furta-cor

LARANJEIRAS

me sinto em casa agora
como se minha alma
(se aquietasse)

o moço do mate gelado na praia
as senhoras que ainda vão à igreja
(crianças)
como se parece com um coração este jambo, meu Deus
==================

Walquiria Raizer



Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Acre e especializou-se em Jornalismo Político pelo Centro Educacional Uninorte. Devido ao engajamento pessoal com as manifestações culturais, tem o histórico profissional voltado para a política cultural. Amazônida, escritora e poetisa, publica seus textos em diversos sites amazônicos. Defende a poesia como matéria prima de todas as artes. "A poesia antecede a escrita: é sentimento." Escreve no desterro21 (http://desterro21.blogspot.com/) e no Um caso Poético (http://umcasopoetico.blogspot.com/).

A poesia de Walquíria Raizer, tal qual seus os olhos, incisivos mas doces, transmutam a maneira de sentir. É uma revelação, um encantamento, um desvendar.

O caminho da escrita é sempre esquivo, como se lidar com as miudezas das impressões do mundo fosse grandioso demais para os dez dedos e a pulsão humana, mas a Walquíria transforma isso num ato de fé. É tudo tão claro e tão inteiro!

A impressão é que ela apenas permite que as coisas todas do universo, até aquelas que não se vê e contabiliza, a tomem e façam do seu momento um ato litúrgico. Estamos curiosamente em extremos. À beira do mar, meus pés, o êxtase do Rio de Janeiro. Aos pés dela, a floresta e uma legião de encantados (e eu entre eles).

Somos filhas de um tempo que afasta, essa onipotência da mordenidade, mas permite conexões aleatórias na aldeia global. Depois do encontro, espasmódico e preciso, fizemos esse acordo tácito: ela escreve, eu leio e me desnudo. E é um ritual abrir seu blog e morrer e nascer devagarinho. Mas é preciso coragem para ler Walquíria Raizer, é preciso despudor, porque até as histórias de amor têm os seus vieses. E o dia carrega as pequenas lascas da inconstância. E ela olha esse mundo retalhado com a grandeza dos que sabem tocar. O cotidiano, tantas vezes banal e restrito, vira imenso som e ventania nesta poesia qu não se encerra.

Fontes:
www.antoniomiranda.com.br
http://umcasopoetico.blogspot.com/
– Editora da Universidade Federal do Acre

Jorge Tufic (1930)



Jorge Tufic nasceu em Sena Madureira, Acre, a 13 de agosto de 1930. Jornalista. Publicou os livros: Poesia reunida, Editora Puxirum, Manaus 1988; Retrato de mãe, Scortecci, São Paulo, 1994; Boléka - a onça invisível do universo, Scortecci, São Paulo, 1995; Agendário das sombras, O Pão, Fortaleza, 1997 e 50 poemas sem muita escolha, Livrornal, Fortaleza, 1997.

“Aí começou aos sete anos de idade, a ouvir o ponteio das violas sertanejas, acompanhando as trovas, os repentes e as saudades dos soldados da borracha, filhos do nordeste brasileiro.”

A poesia de Jorge Tufic, por isto mesmo, aspira a um registro do transcendente e do eterno, abrindo uma proposta nova no seio da arte literária de hoje, que se quer assim tão racional e cerebrina. Não lhe importa o poema elaborado. O que lhe diz respeito, preponderantemente, é o poema sentido, é o poema achado e medido a partir da sua ótica de apreensão do mundo e da sua verdade.

Sendo uma poética da solidão e da maturidade, a sua arte comporta também o interlúdio do indizível e do inefável, onde campeiam soltos os versos amazônicos e os escritos lavrados nos corredores da memória e da experiência, tudo isto ao lado de poemas celebrando mitos, lugares e pessoas, tais a poética urbana e as saudades de São Luiz e o modo de sonhar do poeta Nauro Machado. É no contorno dessas relembranças que Tufic vai organizando odes a alguns poetas modernos e recriando o rio da infância e o seu curso, às vezes com um jeito meio Severino ou Cabral, fustigando Lorca e o seu alazão andaluz, Manoel de Barros e a sua solidão pantanal.

Amazônico como Tufic. A insônia dos grilos é a fusão de diversos instantes, de inúmeras ancestralidades e a explosão de muitos parentescos. Visões, revisões, viagens. Recordações de becos, agendas e botecos. É como se o carrossel do sonho estivesse a embalar uma grande dor e a poeira dos seus fragmentos. É como se o livro todo fosse um atestado mesmo da lírica literária mais alta e da melhor poesia brasileira deste final de século. (Dimas Macedo)

Fontes:
Antonio Miranda
Jornal de Poesia

Adauto Gondim (Trovas)


Da trova fiz o meu pão
minha cantiga inocente,
a voz do meu coração
e o sentir da minha gente.

De meus idílios, o fado
me traz em triste labor:
quanto mais sou desprezado
mais aumenta o meu amor,

Prometo dar-te um milhão
de beijos, se me disseres
quem tem o meu coração
que perdi entre as mulheres.

Vendo-te assim tão formosa,
de porte esbelto e sereno
para intrigar uma rosa
chamei-te cravo moreno.

Nosso amor, que se renova,
aumenta em tal proporção
que não cabe numa trova
nem dentro do coração

Da distância em que me vejo
quero ir pelos espaços
voando para o teu beijo,
fugindo para os teus braços

Saudades - alívio das dores
e dentro da alma se estampa
qual um canteiro de flores
plantado sobre uma campa.

Parece uma coisa louca:
para aumentar meu desejo
eu vejo que tua boca
Deus fez em forma de beijo.


— Vi teus braços... que ventura! —
teu colo... as pernas... que gosto!
Agora, tira a pintura,
Que eu quero ver o teu rosto.

Na noite de núpcias. O Gama
encontra a esposa envolvida
num lindo roupão e exclama:
— Posso, enfim, ver-te vestida!

Quem tiver a alma doente
não fuja deste caminho:
recorde a mulher ausente
faça trova e tome vinho.

Penso em ti de olhos fechados
e o pensamento aprofundo:
ah! se eu tivesse ao teu lado
para glória do meu mundo!

Sobre minha enfermidade
disse o doutor, com razão;
é o germe de uma saudade
destruindo o coração.

No teu jardim, entre flores,
feliz estou ao teu lado
meu calendário de dores
hoje marcou feriado.

Rico de amor como eu
não há quem possa igualar,
e o muito que Deus me deu
é pouco para te dar.

Mulheres que estão me olhando
pensando no mesmo assunto,
são como freiras rezando
na intenção de um só defunto.

Deus pensou em nós. Primeiro
para esculpir nosso amor,
deu-me uma alma de troveiro
deu-te a ternura de uma flor.

Adoro a treva ao açoite
do vento que não tem dono:
Deus fez o escuro da noite
para a carícia do sono.

Não sei de maior pecado:
não sou santo e, como tal,
vi meu retrato guardado
dentro do teu manual.

Quando os raios prateados
do luar beijam a noite,
pede a saudade pernoite
nos corações namorados.

Meu coração triste e frio,
sofrendo sempre em segredo,
faz lembrar ninho vazio
na solidão do arvoredo.

Amor que passou - rosário
de saudade e de ilusão,
folhinha de calendário
que a gente atira no chão.

Eu quando tiver certeza
que meu bem já não me quer,
irei matar a tristeza
nos braços de outra mulher.

Meu coração, se a esperança
dentro dele se renova,
se alegra qual a criança
que veste uma roupa nova.

Amor perfeito suponho
se houvesse seria assim:
ela dentro do meu sonho,
seu sonho dentro de mim.

Inverno, a terra se veste
de flores em profusão,
somente a minha alma agreste
vive em terno verão.

Inda recordo, querida,
foi numa noite de lua,
te beijei e a minha vida
se misturou com a tua.

Maria, quando eu morrer,
se Jesus me condenar,
deve também se perder
quem tanto me fez pecar.
--------

Fonte:
Adauto Gondim. 100 Trovas. (Organização de Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge).
Coleção “Trovadores Brasileiros”. Editora Vecchi – 1959.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Luiz Otávio (Trovas Eternas)


A trova tomou-me inteiro,
Tão amada e repetida
Que agora traça o roteiro
Das horas da minha vida!...

Ó trovas — simples quadrinhas
que têm sempre um quê de novo...
— Como podem quatro linhas
trazer toda alma de um povo?!

Trovador, grande que seja,
tem esta mágoa a esconder:
a trova que mais deseja
jamais consegue escrever ...

Cada quadrinha que faço
em hora calma ou incalma,
é pequenino pedaço
que eu mesmo furto a minha alma.

Uma trova pequenina,
tão modesta, tão sem glória,
bem pouca gente imagina,
que também tem sua história.

Pelo tamanho não deves
medir valor de ninguém.
Sendo quatro versos breves
como a trova nos faz bem.

Toda noite ao me deitar
(por certo você reprova),
eu me esqueço de rezar
e fico fazendo trova.

Tudo nos une: o amor,
o gênio igual, a constância,
até mesmo a própria dor...
— Só nos separa a Distância...

Se é de amor tua ferida,
não busques remédio, — cala!
— O Tempo, aliado à Vida,
lentamente há de curá-la...

Duas vidas todos temos,
— muitas vezes, sem saber...
— A vida que nós vivemos
e a que sonhamos viver...

Do Passado faço culto!
Nas tenho cá o meu rito:
— Se triste, eu o sepulto!
Se feliz, o ressuscito...

É desigual esta vida
pois, nos engana... nos furta...
— Dá velhice tão comprida!
E mocidade tão curta!...

Que sina, que padecer
foi a Sorte aos cegos dar:
— Não ter olhos para ver
e tê-los para chorar...

“Meu Deus como o Tempo passa!...”
— Nós, às vezes, exclamamos...
Mas por sorte ou por desgraça,
fica o tempo... e nós passamos..

Muitas vezes ao partir,
(oh! tortura singular!)
— os que ficam, querem ir...
os que vão, querem ficar...

Às vezes o mar bravio,
nos dá lição engenhosa:
Afunda um grande navio,
deixa boiar uma rosa

Meus sentimentos diversos
prendo em poemas tão pequenos.
Quem na vida deixa versos,
parece que morre menos....

Duas vidas todos temos,
muitas vezes sem saber:
-- a vida que nós vivemos,
e a que sonhamos viver...

Nessas angústias que oprimem,
que trazem o medo e o pranto,
há gritos que nada exprimem,
silêncios que dizem tanto !…

Eu ...você ...as confidências...
o amor que intenso cresceu
e o resto são reticências
que a própria vida escreveu...

Ele cai ... não retrocede ! ...
continua até sozinho ...
que a fibra também se mede
pelas quedas no caminho ..

Se a saudade fosse fonte
de lágrimas de cristal,
há muito havia uma ponte
do Brasil a Portugal.

Ao partir para a outra vida,
aquilo que mais receio,
é deixar nessa partida,
tanta coisa pelo meio ...

Busquei definir a vida,
não encontrei solução,
pois cada vida vivida
tem uma definição...

Não paras quase ao meu lado ...
e em cada tua partida,
eu sinto que sou roubado
num pouco da minha vida ...

Meus sentimentos diversos
prendo em poemas tão pequenos.
Quem na vida deixa versos,
parece que morre menos ...

Contradição singular
que angustia o meu viver :
a ventura de te achar
e o medo de te perder ...

Estrela do céu que eu fito,
se ela agora te fitar,
fala do amor infinito
que eu lhe mando neste olhar ...

Ó mãe querida – perdoa !
o que sonhaste, não sou ...
- Tua semente era boa !
a terra é que não prestou !
---------

Fontes:
OTÁVIO, Luiz. Trovas. Belo Horizonte: Editora Acaiaca,
VERDAN, Iraí. Vida e obra do Príncipe da Trova – Luiz Otávio.
Portal Movimento das Artes.

Tagore Biram (Goiás Poético)


PRÓLOGO

Chegou a hora de incendiar as palavras
e atiçar fogo na noite escura.
Ah, erga-se o facho das estrelas
nesta noite de puro abril:
eu quero a luz derramada
sobre a chaga do meu peito
e a sangria de minhas mãos à mostra.
E não me venham dizer que não é tempo
de falar de flores e que
passou-se o tempo de falar de amores.
Eu, do meu lado, não me cansei ainda
de amar com o meu amor desesperado
(Mesmo não havendo intervalo
no calendário de minhas dores).

Mesmo que me digam: “Não é tempo de falar de amores”,
eu viro as costas e não me importo
e abro as portas dos meus tumores.

Tudo que habita na retina do meu olhar
são os passos largos do barco fundo
no mar imenso do procurar.

Esta noite, sob o manto das estrelas,
erguerei o incêndio das palavras!
Venham todos assistir o grande espetáculo.
Não vês, na vidraça dos meus olhos,
uma colméia de abelhas? Uma centelha
desesperada, debulhando raios de luz?

Eis o prenúncio de um grande acontecimento.
(Não haverá gozo nem sofrimento,
mas a explosão da lucidez de um louco).

Venham todos! Vou incendiar o mundo
com um só dos meus olhares.
(Eu mesmo sou uma aldeia
e o meu coração pode matar a sede
de todos os mares).

Ah, eu peço pelo amor de Deus ou do demônio:
Abram as comportas do mundo.
Façam silêncio por um segundo:
aqui existe um homem incendiado
de amor e um coração que vai saltar
pela janela do peito!

ÚLTIMO ATO

Com um tiro no crânio
o gigante Maiakovski
disse adeus à estupidez.
Com uma navalha
acariciando o pulso,
Iessenin, angelical,
despediu-se do tédio,
escreveu com sangue seu último suspiro.
Há também os que tomam cianureto,
e ainda, mais comumente,
os que saltam dos edifícios.
Quanto a mim, será mais terrível.
Comigo será diferente.
Farei meu ato-de-fé,
dançarei um ballet invisível
e cantarei a invenção da cigarra.
Ah, seguirei cantando e cantando.

Não. Não tenha pena da minha voz,
nem é preciso me dar a mão.
Apenas seguirei cantando
(e ninguém pode impedir que eu cante)
até que você se espante
com a última sílaba do meu coração.

A NAVALHA DOS ANOS

A noite chegou lambendo
minha juventude
com sua língua tristíssima
E como se fosse
uma navalha,
a noite me sangrou
por mais de vinte vezes
Com sua
longa calda de solidão.
Esta noite
mais de vinte
séculos
Ficaram por terra
como o golpe inevitável
da navalha
noturna e tristíssima
dos meus anos

"O RÍO TIRÚA"

Que trágica é a vida dos rios
Que trágica é a vida dos mananciais
Com sua voz mineral
Cheia de peixes e pedras
E também um olhar de esperança.

Os rios arrependidos
Que viajam tantas voltas entre selvas,
Costas montanhosas,
Para voltar sem cansaço
Á sua fonte original.

E há rios tranquilos e sinuosos,
Rios tranquilos y sinuosos
como serpentes,
silenciosos rios,
rios indiferentes aos crimes dos homens.

Que conformada é a vida deste veios,
Estes veios que sangram a terra
E alimentam de batatas os semeados,
De milho, amor, vinho,
Todos os elementos possíveis.

A voz musical desta agua,
Que o homem insiste em calar para sempre.

Dizem que há rios que se lamentam.
Sim, há rios que se lamentam.

Eis sentido o coração
Que esgota suas últimas lágrimas,
As últimas de um rio sedento.

Estes rios generosos não se lamentam por si,
Sim pelos seus próprios assassinos.

Tenho visto rios e lagos,
Rios e lagos cadavéricos,
Rios que se cansaram de ser rios,
Rios que se foram ao exílio,
Rios que se esconderam debaixo da terra,

Aguas que deviam abandonar a seus filhos.

Sim,
Tenho conhecido rios que retornaram a ser nuvens,
Mananciais de aguas que não retornaram nunca mais.

Se foram para sempre estas aguas,
Estas aguas que persistem nos olhos,
Estas aguas, estas aguas.

(tradução: José Feldman)
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Tagore Biram (1958-1998)



Tagore Biram era pseudônimo de Ubiratan Moreira, em homenagem ao poeta indiano Rabindranath Tagore.

Ubiratan Moreira nasceu em 6 de janeiro de 1958, em Olho D´Àgua, antigo distrito de Anicuns (Goiás) e hoje município de Americano do Brasil.

Sua estréia literária foi em 1981 com o livro Flauta Noturna.

Em 1985, publicou Poemas do Amor e da Ausência e viajou para Moscou, como delegado do Festival Mundial da Juventude. Na União Soviética, participou do Encontro Internacional de Jovens Escritores. Fez recitais e falou sobre o Brasil.

Teve poemas seus traduzidos para o russo e publicados em Moscou.

Em 1986, criou e presidiu o Comitê Pablo Neruda de Solidariedade ao Povo Chileno.

Em 1987, conquistou, em Goiânia, o Prêmio Cora Coralina de Poesia, com o livro O Anjo Desafinado, seu divisor de águas poéticas.

Na década de 1990, transferiu-se para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde viveu por vários anos e trabalhou como editor cultural (Caderno B, do Jornal do Brasil Central) e redator-criador em agências de publicidade. Conheceu o poeta pantaneiro Manoel de Barros e dele se tornou amigo.

Em 1996 mudou-se para o Chile e ganhou o prêmio literário Cidade de Concepción, onde publicou os livros El Enderezador de Vientos e Poesia Pasajera.

O poeta rebelde e saudoso de casa faleceu em Tirúa (Chile), em 13 de junho de 1998, dez anos depois da publicação de seu segundo livro, O Anjo Desafinado.

Em Campo Grande (MS), o auditório na sede da TV Educativa foi inaugurado com o nome de Tagore Biram. Em Tirúa (Chile) um centro cultural também leva seu nome. Quando morreu em 1998, Tagore Biram deixou, inéditos, os livros, Muro de Berlim e Poemas de Santiago, dos quais, até o momento, não se sabe o paradeiro. (Valdivino Braz)

Se fosse hoje, eu não teria deixado Tagore Biram cair tão facilmente. Mas nunca conseguimos impedir uma queda, pois, quando vamos notar, a derrota já alcançou a todos nós. Mas a história humana carece de algumas quedas precoces para termos presentes a nossa fragilidade. Também quanto mais intenso o fogo mais rápido o destroçar da madeira. E ele que seria uma renovação total da poesia goiana! Dois livros que editou foram suficientes para deixar um clarão intenso. Dormi uma vez no apartamento dele em Goiânia, e umas duas noites ele passou em minha casa. É do poeta Valdivino Braz — seu mais fiel amigo, tanto em vida como de sua memória — o texto que o apresenta, publicado recentemente no Jornal Opção . O poema “El rio Tirúa”, que se encontra numa página chilena, talvez tenha sido escrito no período final de sua vida, quando ele morava naquele país. (Salomão Sousa)

Fonte:
Antonio Miranda

Júlio Dinis (As Pupilas do Senhor Reitor)



Análise da obra

As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis, primeiro romance português do século, publicado inicialmente em 1866 em forma de folhetim, e só no ano seguinte apareceria em livro. Seu caráter moralizador e a religiosidade que perpassa por todo o romance, a bondade capaz de chegar a extremos quase incríveis de sacrifício pessoal, são alguns dos ingredientes que transformaram em muito pouco tempo o autor desconhecido em sucesso nacional.

A calma da cidade do interior (Ovar - Portugal) e a observação da vida simples das pessoas da aldeia propiciaram o aparecimento desse romance que, algum tempo depois, se tornaria um dos mais famosos em Portugal.

Os capítulos são tipicamente folhetinescos: unidades narrativas com peripécias e final em suspensão. É um romance está cheio de ironias bem humoradas, tornando-o, apesar do moralismo intencional, de leitura mais agradável.

Como costuma acontecer com escritores românticos, Júlio Dinis também vê o mundo com as lentes do maniqueísmo. Assim, assenta sua obra em um jogo contínuo de oposições. Entre as principais, destacam-se: A cidade - O campo / A modernidade - A tradição / O desejo - O amor.

Temática

O romance gira em torno da tese segundo a qual a vida simples e natural torna as pessoas alegres e felizes. Júlio Diniz descreve o campo, os tipos humanos, os hábitos e as idéias, desenvolvendo toda uma problemática pequeno-burguesa, com o "propósito de pregar uma moralização de costumes pela vida rural e pela influência de um clero convertido ao liberalismo".

Foco narrativo

O foco narrativo organiza-se através de um narrador que conta a história em terceira pessoa, sem se confundir com nenhum dos personagens, a respeito dos quais tem uma visão onisciente. Assim, conhece-os de forma absoluta, em seu mundo interior e exterior, em suas ações e motivações íntimas.

A forma didática como o narrador conduz a leitura da obra, ora descrevendo a interioridade de um personagem, ora se colocando como mero cronista que registra os acontecimentos, caracteriza-o como alguém que narra para um tipo específico de leitor: o leitor de jornal, que lê o romance de maneira descontínua e cuja atenção deve ser constantemente alimentada.

Tempo / Espaço

O tempo histórico é o presente, como convinha a um autor pré-Realista que preconizava a substituição do maravilhoso psicológico pelo romance de costumes. E presente, neste caso, é o início da segunda metade do século XIX.

Quanto ao tempo narrativo, não se pode precisar a extensão, mas trata-se de alguns anos, que vão da infância de Daniel, passam pelo tempo em que faz Medicina no Porto, seu regresso e a introdução, em um tempo narrativo mais acelerado, das principais ações da trama, isto é, o período dos escândalos na aldeia até a descoberta do amor.

Toda a ação transcorre em uma aldeia típica de Portugal. Seus costumes, suas festas, seus valores e personagens. Da estada para tratamento de saúde em Ovar, interior de Portugal, são as memórias que o autor utiliza na composição de seu romance. Os costumes rurais portugueses, incluindo aí as maledicências, as beatas de verniz, mas também os valores positivos do agricultor próspero, cuja moral do trabalho Júlio Dinis dá como modelo social.

A obra se caracteriza por reforçar o velho motivo literário "fugere urbem" (fugir da cidade). Assim, a natureza é o grande cenário, repleto de abundância, de belezas nostalgicamente evocadas, e daquele caráter de mãe que provê e beneficia o cultivo das tradições.

Personagens

As personagens são autênticas, são cópias do natural, das pessoas que vivem no campo: o João Semana é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira, que no tempo da estada de Júlio Diniz em Ovar, exercitou a profissão médica com grande sucesso, naquela região.

Daniel - O segundo filho de José das Dornas. Franzino, volúvel e irresponsável, principalmente em relação à mulheres. Em tudo diferente do irmão. Detesta o trabalho no campo, começa estudando latim e finalmente vai para a cidade do Porto, de onde volta muitos anos depois, já médico formado. É um estróina que inquieta o sossego da aldeia, fazendo vibrarem os corações femininos e provocando a antipatia de quase toda a aldeia com sua mania de conquistador. Representa, no romance, o tema romântico do resgate através do amor. Tocado pelo amor, muda de vida, torna-se um homem sério.

Guida - A irmã mais velha de Clara. Filha de um primeiro casamento, seu pai, viúvo, casa em segundas núpcias, mas não sobrevive muito tempo à primeira esposa. Ao perder o pai, Margarida recebe tratamento cruel da madrasta, a quem serve de empregada. Vive uma infância solitária de trabalhos duros, como o de pastora. Passa os dias isolada nos campos e montes, onde seu único consolo e o menino Daniel, a quem ama apaixonadamente. Neste romance, é Margarida que representa o papel da bondade a qualquer preço.

Autodidata, torna-se a mestra dos meninos da aldeia. Ela é fada, que só pensa na felicidade alheia, que se anula para que a irmã seja feliz, mas que, no fundo, escondidamente, sofre terrivelmente por frustração amorosa. Esta personagem representa a dimensão realista do romance, porque, embora seja uma típica heroína romântica, capaz da bondade e do perdão, a amargura que sente em decorrência de uma infância solitária e infeliz, repleta de maus tratos e de pobreza, alia-se à instrução que a diferencia dos outros personagens e faz com que veja as contradições, as injustiças sociais, revitalizando o idealismo romântico da obra.

Clara - Das duas pupilas, ela é a mais nova. Única herdeira dos pais mortos, filha de um segundo casamento (sua mãe era proprietária rural), era moça alegre, dada também a cantorias. Um pouco leviana, mas regenerada por algumas das vicissitudes por que passa, como castigo por sua leviandade. Torna-se noiva de Pedro, com quem deverá casar brevemente, mas impressiona-se com Daniel, quando este regressa do Porto. Cede aos galanteios do moço sem perceber as conseqüências de sua atitude, a qual nada possui de maliciosa, sua leviandade não chega a comprometer-lhe o caráter, cuja nobreza percebe-se pela amizade que dedica a Guida, pela preocupação em reparar os males da infância.

Pedro - Filho mais velho de José das Dornas. Em tudo semelhante ao pai: robustez, disposição. Ingênuo, mas alegre, dado a cantorias, muito ligado à vida do campo. Apaixona-se por Clara, de quem fica noivo. Jovem aldeão cuja pureza, simplicidade e alegria pela vida exemplificam a visão romântica pela existência rural predominante na obra e reforçada pelo desfecho: a união entre os dois pares amorosos, Pedro e Clara, Daniel e Guida.

José das Dornas - Lavrador abastado, mas humilde e humano, por volta de 60 anos, homem alegre, encarnação do pensamento positivo do autor. Um viúvo forte e rijo, de formação moral tradicional. Mandar o filho para a cidade, para estudar, não é propriamente pensamento seu, mas ao fazê-lo torna-se o arquétipo dos agricultores de sua situação no país.

Padre Antônio - É o senhor Reitor, o pároco local, uma espécie de anjo benfazejo, onipresente, incansável, providencial. Destaca-se entre os personagens por sua função de porta-voz do narrador, o que percebe-se por sua presença estratégica e definidora dos rumos seguidos ao longo do romance, nos quais interfere diretamente como um arquiteto da história. Com o "evangelho no coração" ela não apenas representa a imagem do religioso autêntico, militante, cuja vida é dedicada aos outros, especialmente às pupilas, mas configura um personagem nuclear do romance, sendo porta-voz dos valores que Júlio Dinis quer transmitir às massas, utilizando um velho pároco de aldeia como exemplo vivo da força e da austeridade desses valores.

João da Esquina - Merceeiro que, com sua família, centraliza as fofocas locais. O plano de casar Francisca, sua desmiolada filha, com Daniel, rico herdeiro, ao falhar, torna-o um inimigo irreconciliável dos "das Dornas".

D. Tereza e Francisca - Respectivamente, esposa e filha de João da Esquina.

João Semana - O único médico da aldeia, até que Daniel regresse do Porto. Conservador, nacionalista fervoroso, contador de anedotas picantes sobre frades. Encarna a solidariedade comunitária, com sua medicina-apostolado, a vida sem outro sentido que não seja a prática do bem e a preocupação com os problemas alheios. Personagem secundário no romance.

Joana - Criada de João Semana, fiel e maternal. Forte, persuasiva, de coração grande, sempre à disposição do médico, seu amo.

Notas

1. O reitor, o lavrador José das Dornas e o médico João Semana representam o caráter de livro-instrumento do romance para transmitir ao leitor, com seu comportamento exemplar, de sua autoridade moral, de sua interferência benéfica na vida da comunidade, uma visão educativa da tradição como um valor que deve ser preservado e respeitado.

2. O reitor, sua "pupilas" Guida e Clara, os rapazes a quem amam, Pedro e Daniel e José das Dornas, pai de ambos, constituem os personagens principais do romance.

3. Cada par de irmãos se caracteriza por apresentar personalidades antagônicas - antítese fundamentada na posição entre razão e emoção:

Pedro, jovem de robustez adquirida pelo trabalho no campo, constitui uma pessoa decidida, orienta seu comportamento, ou tenta fazê-lo, pela racionalidade: seu destino de herdeiro do latifúndio, já traçado, não os desestabiliza. O irmão Daniel, por sua vez, constitui o avesso de Pedro: desajeitado, passional e frágil de corpo, conduz-se pela impetuosidade das emoções. Por isso, sua vida é tortuosa e ele freqüentemente se encontra em situações delicadas.

Da mesma forma, isto é, o mesmo tipo de oposição de caráter pode ser notado em relação à Clara e à Guida, que são irmãs por parte de pai. Margarida, jovem sensata, arquiteta sua existência a partir de pilares sólidos, tias como a racionalidade e a virtude; introspectiva, calada, sofre suas decepções sentimentais sem testemunhas. Já Clara é o contrário: alegre, extrovertida, boa e meiga, ela no entanto não possui a maturidade de Margarida. Sendo assim, freqüentemente tem problemas, decorrentes de suas reações emocionais.

Enredo

Uma aldeia portuguesa do século XIX é o cenário ideal para o desenrolar de uma delicada trama: o amor e os desencontros entre as órfãs Clara e Guida. Cenário este, povoado de tipos humanos cuja bondade só é maculada pelo moralismo quase ingênuo de comadres fofoqueiras, desenrola-se o drama amoroso.

Daniel, ainda menino, prepara-se para ingressar no seminário, mas o reitor descobre seu inocente namoro com a pastorinha Margarida (Guida). O pai, José das Dornas, decide, então, enviá-lo ao Porto para estudar medicina. Dez anos depois Daniel volta para a aldeia, como médico homeopata. Margarida, agora professora de crianças, conserva ainda seu amor pelo rapaz. Ele, no entanto, contaminado pelos costumes da cidade, torna-se um namorador impulsivo e inconstante, e já nem se lembra da pequena pastora.

A esse tempo, Pedro, irmão de Daniel, está noivo de Clara, irmã de Margarida. O jovem médico encanta-se da futura cunhada, iniciando uma tentativa de conquista que poria em risco a harmonia familiar. Clara, inicialmente, incentiva os arroubos do rapaz, mas recua ao perceber a gravidade das conseqüências. Ansiosa por acabar com impertinente assédio, concede-lhe uma entrevista no jardim de sua casa.

Esse encontro é o ponto culminante da narrativa: surpreendidos por Pedro, são salvos por Margarida, que toma o lugar da irmã. Rapidamente esses acontecimentos tornam-se um grande escândalo que compromete a reputação de Margarida. Daniel, impressionado com a abnegação da moça, recorda-se, finalmente, do amor da infância. Apaixonado agora por Guida, procura conquistá-la. No último capítulo, depois de muita resistência e de muito sofrimento, Margarida aceita o amor de Daniel.

Fonte:
Passeiweb.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Delasnieve Daspet (Devaneios Poéticos)


ASSIM COMO AS FOLHAS QUE TREMEM...

Assim, como o sol que se curva a cada manhã;
Assim, como as folhas que tremem
Com a brisa refrescante;
Assim, como um pássaro a céu aberto,
Numa ânsia que toma,
Assim, no meu silêncio, este lamento.

Escrevo no pó da estrada
A profunda dor de minha mágoa.
E na aridez de minha saudade,
Com o canto preso na garganta,
Sou a lágrima triste
Que pinga sobre tua lembrança!

Assim sou, assim sigo
Um mero reflexo na janela...
Esta mentira é tão real que dá pena,
Sem perceber, sou eu mesma, quem vaga,
Na multidão que não passa...

CAMPO GRANDE MS, 31.05.04

ATÉ O SILÊNCIO SE CALA

Tanto faz se o mundo é grande ou pequeno,
Se somos ricos ou pobres,
Se alguém é mais tranqüilo e outro mais histérico,
Se somos fechados ou abertos às chances do universo...
Acreditando ou não,
Olhando-se nos olhos,
Com necessidade de ser aceito, amado e admirado,
Com liberdade de poder ser quem quiser ser,
Até a gente...

O que falta então?
Falta a coragem de buscar dentro de nós
O que realmente somos....
Falta nos vermos como ser especial ,
Falta dar uma chance para a esperança aflorar...

Falta traduzir, em palavras, o sentimento,
Fazer nascer a alegria,
Pois quando o poema nasce,
Quando a palavra surge,
Quando o caminhar da lembrança se perde,
Quando a vida nos mostra que o passado
É o que somos..
E quando a luz surge
Para compor o cenário do nós conosco,
Até o silêncio se cala!
Campo Grande-MS, 29 de maio de 2005

DESESPERANÇA

Todas as manhãs acordo
e sinto o mesmo vazio.
E a desesperança toma conta
sem espaço para mais nada.

Não vai demorar
numa dessas manhãs eu vou embora;
Mas permaneço na fila,
voltei para acertar comigo.
Nada faz sentido, eu sei.

Sou um rio que um dia foi riacho,
que começou num córrego
e que teve seu início num pingo,
manuseando as formas, preenchendo vazios.

A verdade nunca é feia.
Por mais que eu caminhe,
por mais que eu me entregue,
sou-me uma desconhecida.

E na escuridão que tudo cobre
posso ver a lágrima derramada,
sentir os ventos lascivos
que carregam meu corpo
na morte líquida e profunda
do meu outro eu que me observa
e me aguarda lá fora...

Campo Grande MS 10/03/04

ANDO A NOITE, A NOITE ANDO...

Vou andar na noite
escutar do vento o cantar,
catar conchinas a beira-mar,
a noite vou andar...

Andei questionando os raios do luar,
se pensas em mim,
o tanto que penso em ti...
Da primeira aurora,
do primeiro raiar de luz,
na primeira estrela que brilha,
O sonho que sonho sempre,
tem o teu cheiro, perfume-orvalho!

Na pálida vida que levo,
me sinto sufocada, desesperada,
saio pela noite, a andar,
procurando um mundo real.
que não esconda
O riso, flor-da-pele, prazer.

Ando a noite, a noite ando...
Pois a noite pertence ao amante,
a noite pertence ao amor.

E ao te tomar nos braços, noite infinita,
( que a vida circunda, não passa ),
sei o que me espera noite, negra noite
que tudo cobre e nada encobre,
no momento, no espaço, no verbo,
na carne, na vida, que não somos!

Campo Grande MS 29-08-05

ABSOLUTA AUSÊNCIA

Oh! Luar da noite, ajuda-me!
Eis-me, no entardecer,
Caminho já estreito,
Deixei-me tomar de repentino,
Tardia, enlouquecedora força…

Após ler as linhas,
Só penso nisso.
Já não consigo esconder ,
Já não camuflo nos ventos que ondulam,
O desejo que toma conta.

O vento sul, que limpa as nuvens,
Bate com insistências as janelas que fechei.
Desliguei a TV, não importa,
Ferrenha, quero por uma pedra, na fenda...

Mas o pensamento, esse matreiro,
Me lembra que lá,
Dentro d´alma
Em todos os momentos
Está o sonho que não ouso sonhar!

E já rememoro, cheia de saudades,
O ritual que agora nego,
O sabor que não permito,
Que gosto terá o suor, o beijo?

E, Lua e Sol que somos,
Chegas e saio de cena.
Silenciosa, sem calor,
Na dolorida madrugada.

Ainda assim, sinta-me, sempre,
Estarei contigo, no mesmo pensamento,
Ainda que em absoluta ausência!

Campo Grande-MS 12-08-05
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Fonte:
Colaboração da autora.

Moacyr Scliar (A Mulher que Escreveu a Bíblia)



Último romance escrito por Moacyr Scliar e lançado no final de 1999, A mulher que escreveu a Bíblia reúne o que há de melhor no trabalho desse escritor cujo texto é marcado pela leveza, fluência e imaginação. Em sua trama bem urdida, misturam-se sem cerimônia erudição e escracho, sagrado e profano, História e ficção, sublime e ridículo, religião e sexo. Para escrevê-lo, Scliar baseou-se na hipótese do crítico norte-americano Harold Bloom de que uma mulher teria sido a autora da primeira versão da Bíblia, escrita no século X a.C.

Sem nome próprio, a protagonista deste romance tem como principal característica sua enorme feiúra facial, embora fosse “boa de corpo”. Descobre, por meio de terapia de vidas passadas, ter sido uma antiga cidadã dos tempos bíblicos na então Canaã e filha de um pastor de cabras. A mulher que escreveu a Bíblia é o relato em primeira pessoa da trajetória fabulosa dessa personagem anônima.

Tornou-se, por meio das relações comerciais do pai, uma das mulheres do rei Salomão, coincidentemente depois de ter sido alfabetizada às escondidas pelo escriba da tribo, que via na possibilidade de escrever um consolo para a vida celibatária que se apresentava para sua protegida.

Após sofrer uma decepção amorosa, opta por consultar-se com um terapeuta de vidas passadas na tentativa de reencontrar-se, propiciando um autoconhecimento. Contudo, tal busca também está presente no próprio terapeuta que, frustrado na antiga profissão (professor de história), passa a atuar no ramo esotérico. No entanto, mesmo que a prática do consultor seja autodeclarada charlatã, a mulher acaba por atingir seus objetivos, após longas sessões, e entrega ao guia sobrenatural (agora apaixonado por ela) o resultado de sua procura sob a forma de um texto escrito, relatando suas aventuras em uma vida anterior, como esposa do rei Salomão e primeira autora de um grande empreendimento para a humanidade, a Bíblia.

A protagonista não só se apaixona pelo rei Salomão, como consegue, depois de algumas tentativas frustradas, consumar o casamento e, mais que tudo, escrever, sob encomenda, sua versão da Bíblia que, infelizmente, acaba se perdendo num incêndio de origem duvidosa em seus aposentos.

O segundo capítulo, ponto alto da obra, é, portanto, essa narrativa, a da vida regressa desta mulher que mesmo feia fez-se reconhecer pelo mérito de ser letrada em uma sociedade que não admitia tal prática a alguém do sexo feminino.

Ao final do romance, o leitor fica sabendo que a protagonista consegue superar suas dificuldades amorosas no tempo atual, abandonando seu apartamento e psicanalista, que começava a se apaixonar por ela.

O que vemos é o relato de uma experiência histórica, narrado a partir de um ponto de vista declaradamente assumido pela narração, que impõe sua voz, ou seja, seu modo de contar os fatos segundo sua perspectiva. Ainda assim, é possível aprender e rever neste romance certas passagens do Velho Testamento, como a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, o julgamento do rei Salomão sobre as mães que disputavam o mesmo filho, o interesse do rei Salomão pela rainha de Sabá, a disputa entre Caim e Abel etc.

No entanto, o fator predominante do texto em análise novamente é o humor, uma vez que é bastante inesperada a versão que a protagonista dá aos episódios bíblicos, como a libidinagem que corria entre Adão e Eva, para ficar num único exemplo.

Mas, ao mesmo tempo, encontramos, dentro da mesma ficção bem-humorada de Scliar, trechos que podem ser interpretados como sua profissão de fé na arte de escrever. Em certo momento da história, o rei Salomão dirige as seguintes palavras à protagonista:

[...] Não quero ser lembrado por ruínas. Quero ser lembrado por algo que dure para sempre. Sabes o quê?
Fez uma pausa, olhou-me, e anunciou, solene:
— Um livro. Um livro que conte a história da humanidade, de nosso povo. Um livro que seja a base da civilização.
Claro, o livro, como objeto, também é perecível. Mas o conteúdo do livro, não. É uma mensagem que passa de geração em geração, que fica na cabeça das pessoas. E que se espalha pelo mundo. O livro é dinâmico. O livro se dissemina como as sementes que o vento leva.

O texto desfruta explicitamente de uma convergência de tempos, isto é, da recorrência do passado no texto presente, declarada sob a forma de memória de uma vida anterior. O que temos, portanto, é uma narrativa encontrada no presente que sofre interferência de um passado, ao passo que projeta o futuro, fato que possibilita aparições de anacronismos (recuos e avanços no tempo). A protagonista vê com os olhos da modernidade (ou pós-modernidade) suas experiências vividas em uma época longínqua. É o rever a tradição, recontá-la sob outros olhares não restritos a uma elite letrada, sendo, neste caso, a postura feminina frente ao discurso (religioso-eurocêntrico, ou seja, a partir homem branco, cristão e ocidental) que sempre a marginalizou.

Um outro ponto também trabalhado no romance é a duplicidade, o jogo corrente entre sagrado e profano, perceptível pela linguagem ora formal, ora escrachada da narração, um procedimento visível no diálogo da protagonista com a ordem dos anciãos, representantes oficiais da intelectualidade da época e do tom de censura amplamente criticado pela narradora.

Moacyr Scliar recria o cotidiano da corte de Salomão e oferece novas versões de célebres episódios bíblicos. Em sua narrativa, repleta de malícia e irreverência, a sátira e a aventura são matizadas pela profunda simpatia do autor pelos excluídos de todas as épocas e lugares.

O bem humorado enredo, porém, supera a mera aventura, com curiosos lances de reflexão sobre o ato de escrever, seu sentido, razão de ser e conflitante relação com a vida, onde se destaca toda uma perspectiva humanista radical do autor.

Como costuma acontecer nos livros do autor, o humor irreverente anda de braços com um profundo humanismo, cujo traço mais evidente é a simpatia pelos deserdados e excluídos. Aqui, Scliar, além de sua fabulosa imaginação, demonstra todo o seu virtuosismo literário ao misturar o registro elevado da linguagem bíblica com a fala desabusada da narradora/escriba, criando anacronismos deliberados e impagáveis.

Fonte:
Passeiweb.

Pedro Ornellas (Pedaços)


Os versos esparsos que eu fui rabiscando
são simples amostra da mágoa sentida...
pedaços de sonho que eu fui costurando,
lembranças que eu guardo da infância perdida!

São gritos calados que vão revelando
segredos guardados na mente sofrida...
espinhos e flores, ferindo e alegrando,
lições e valores - pedaços de vida !

É certo, o poeta também, vez em quando
supõe o que escreve e se perde sonhando,
confesso que às vezes também sou assim...

mas, via de regra, mais alto falando
é o meu coração quem assume o comando
e faz dos meus versos pedaços de mim!
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Fonte:
O Autor.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Arietto (Poesia da Primavera)


Há uma certa tendência na literatura atual pelo minimalismo, a exemplo do movimento Práxis. Os minicontos priorizam os leitores cada vez mais distantes, com menos tempo para se dedicarem à leitura. Entretanto, a leitura, como alimento prioritário da alma, revigora o crescimento intelectual pela arte. E a poesia é a verdadeira essência da palavra, o cerne de toda a literatura. Obra de arte lapidada.

Eis um perigo: reduzir a poesia à minúscula verve e relevá-la ao mar das coisas comuns. Ledo engano. A poesia sempre deve estar comprometida com a essência, com o sentimento, com a visão das coisas aparentemente invisíveis ao homem comum, como diria Octavio Paz.

Carregar o fardo de poeta num mundo tão avesso e cruel é árdua tarefa. E a poesia também é essencialmente lírica. A metáfora é a jóia máxima de toda arte poética. A primavera de 2005 trouxe uma novidade poética. O livro Punhos da Primavera, a ser lançado hoje às 19h30 na Fundação Jaime Câmara, é de um poeta comprometido com a palavra, com a metáfora e a lírica sempre lapidando as palavras. Os poemas de Weder Soares não são tão curtos quanto essa nova tendência, mas não torrencialmente longos como os tradicionais românticos. Weder busca nos versos a sua verdadeira identidade, como se pegasse as palavras pelos seus miolos, tirasse as suas cascas adjetivais excessivas, cortasse alguns fiapos verbais e debulhasse as imagens líricas e lúdicas, brincando com os parênteses, dando dois sentidos ao mesmo contexto. Weder imprime a musicalidade nas Árias, nos Cantos, nas Sonatas e no restante de seus versos, desconcertando o leitor desavisado. Vai 'soletrando as ruas', 'desmanchando sol', 'apresentando o mar', desatando o 'nó de fel/icidade', em 'versos empoeimados' que 'entre os dedos afago'; me 'curvo ao pé do poema' e guardo na 'caixa de segredos'. Há lembranças de Yêda Schmaltz? Sim. Cada palavra é o impacto de um murro, desses Punhos de Primavera. O leitor fica atordoado.

Por isso é que se diz que cada leitura muda o leitor. Impossível ser o mesmo depois de ler qualquer bom livro. Sem pretensão mercadológica, os melhores livros não costumam ficar em listas dos mais vendidos. Segundo o crítico Antônio F. Borges, 'a boa ou má qualidade de um livro não decorre absolutamente dos resultados financeiros, embora às vezes a recíproca possa ser verdadeira: afinal, livros ruins num país sem larga tradição de leitura... bem, é fácil deduzir o resto da equação'.

Tanta revolta revelaria lamúria por uma cultura escassa que se vende [e caro] por muito lixo. Mas é o preço que se paga para, ao invés de massagear a massa cinzenta, enaltecer o ego, num mundo necessitado de valores. Gosto não se discute, mas a boa leitura não se vende e nem se ganha: aparece para alimentar o espírito.

Fontes:
Poetas del Mundo.

Arietto


Arietto Pseudônimo de Léo Teixeira, poeta, estudante e funcionário público estadual, antigo diretor do departamento de imprensa do C.A.XI.M, da Faculdade de Direito/UFG,

Autor do livro 'Mergulhando no Pensamento: Brasil, O Poema Crítico', editado em Dezembro de 1998, lançado no auditório nobre da Faculdade de Direito da UFG em 18/12/98; no Café com Letras, nos dias 13 e 27/09/01 em Brasília - DF; e também na sede do Ministério Público no dia 09/11/01 durante a 1ª Jornada Jurídica 'A Corrupção na Administração Pública', realizado pela FESUMP [Fundação Escola Superior do Ministério Público].

Atual membro da Sociedade dos Poetas Pensantes -SOPOP.

O seu livro de poesias 'mostra que a juventude brasileira e goiana continua alerta e pensando os problemas nacionais, adotando uma postura crítica e atuante diante das mazelas que assolam o Brasil; armado de uma incomum sensibilidade para o social, para as pequenas coisas que tanta repercussão têm no dia-a-dia das pessoas, Léo Teixeira debruça-se sobre os mais variados assuntos, abordando-os sempre com convicção, firmeza, justiça e equidade, demonstrando arguta percepção do fenômeno social em suas poesias torrenciais, verdadeira cachoeira, jorrando saber, visão realista e sensibilidade, acentuando os contrastes que assolam o país.

Léo Teixeira é especialista em poemas longos, com tom próprio para declamações acaloradas, possuindo uma verve rica para a literatura e um inigualável senso de responsabilidade e equidade, nunca dissociando da poesia, senso de quem escreve com o corpo, com alma, transformando o dia-a-dia do brasileiro em pura poesia.' - Dr. Humberto Milhomem, advogado e professor em literatura.

'Léo Teixeira, como Contista, é criador de fantásticas e deliciosas histórias que sempre trazem à tona mensagens para refletir. Com um senso extraordinário da teoria bruta do conto, em seus personagens universais, uns reflexivos, intrínsecos, intimistas, outros bem diferentes. Inclusive, em alguns Contos, a ausência do espaço chama a atenção para seus interessantíssimos escritos. Realmente vale a pena lê-los'
Alan Möller, contista e escritor.

Fonte:
Poetas del Mundo.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

André Giusti (O Imenso Mundo das Pequenas Coisas sem Importância)


Assim que cheguei, procurei um lugar em que pudesse descansar, muito mais a cabeça do que o corpo.

Escolhi a beirada da cama de onde ele havia saído minutos antes, para sempre. Enxerguei o par de chinelos desgastado tanto pelo tempo quanto por seus pés inquietos, atrás sempre de novidades e problemas para resolver dentro de casa. De tão velho, o couro da palmilha abria-se em rachaduras esbranquiçadas pelo polvilho antisséptico, usado religiosamente todos os dias após o banho.

Mesmo com os ruídos da rua e de outros vindos do fundo da casa, o que prevalecia em todo o quarto era aquele silêncio pungente na minha cabeça; e no silêncio, em sua inércia, o par de chinelos explicava-me que em um momento como aquele o que mais doía não era propriamente a ocasião em si, mas as lembranças pequenas que viriam em seu rastro nas próximas horas, quando eu precisaria começar a me convencer de sua ausência definitiva. Eu que me investisse de coragem e enfrentasse a carga sentimental das manchas de polvilho, dos métodos de combate às frieiras, e dele mesmo, par de chinelos, que esquecido no canto, agora aguardava apenas que se cumprisse o destino de ser doado a algum asilo pobre.

As grandes lembranças e exemplos deixados estariam dormindo no quarto resignado da memória. Se deles precisasse a qualquer tempo, bastaria acordá-los e verificar seus ensinamentos, que logo depois tornariam a adormecer, conformados. Às lembranças intrincadas nas pequenas coisas, no entanto, era mais difícil pegar no sono da aceitação. Remexidas, padeceriam de insônia, perambulando e acendendo luzes pelos corredores da minha cabeça, recusando-se a ficarem quietas aguardando que o sono viesse.

O que eu temia, então, era aquele mundo imenso de pequenas coisas desabando sobre mim, povoado por objetos que de tão tolos passaram pelas minhas mãos durante anos sem que eu lhes atribuísse qualquer significado, apenas porque antes não representavam a ausência.

Seria o caso do facão de cozinha, com que ele punha em prática sua maestria em cortar finas fatias de carne assada a pedido ou mando da esposa, conforme o humor do dia. “Tem mais de 50 anos”, e ele erguia as mãos engorduradas mostrando a curvatura no metal adquirida após décadas de afiação diária. Ao lado, estaria também a colher de pau, escura de tantos mergulhos na panela de feijão e ligada ao facão não só pelo convívio, mas também pela origem: foram comprados logo após o casamento, em algum bazar que existia no centro da cidade em 1947 ou 48.

Mesmo a poltrona da sala, lembrança emblemática, talvez não me doesse tanto quando desse com ela vazia, sabendo eu que ele não fora simplesmente à cozinha tomar um copo d’água. Quem sabe nem mesmo as fotos, com suas imagens de passado feliz, seriam capazes de guardar com elas os principais motivos de saudade. Exatamente por causa da intimidade com a rotina, doeria mais o que fosse mais insignificante, incrivelmente mais estúpido e sem qualquer
valor de estimação, como vidros de remédios inacabados, um frasco de leite de rosas pela metade, a lâmina quase cega do aparelho de barbear descartável e esta camisa de tecido xadrez já puída na gola, com a qual enxuguei as primeiras lágrimas depois de chegar.

Fonte:
GIUSTI, André. A Liberdade é amarela e conversível. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

Eunice Arruda (Ocaso)

Fonte:
Colaboração da autora.