sexta-feira, 4 de junho de 2010

XXIII Jogos Florais de Ribeirão Preto (Resultado Final)


TEMA NACIONAL: VIAGEM

CATEGORIA VENCEDOR
(troféu)

1º lugar
A mais bonita homenagem,
concede-a Deus,qual troféu,
a quem completa a viagem,
sem mancha,do berço ao céu!
Antônio Augusto de Assis
Maringá-PR

2º lugar
Já reservei a passagem
e aguardo sem reclamar...
que a data desta Viagem
é Deus quem vai carimbar!
Carolina Ramos
Santos-SP

3º lugar
A viagem dos meus sonhos,
eu fiz,pensando em você,
e esses dias, tão risonhos,
eu agradeço à UBT!
Gislaine Canales
Balneário Camboriu/SC

4º lugar
Minha primeira viagem
foi num Maria-fumaça.
Guardo até hoje a passagem
na saudade, que não passa...
Antônio Augusto de Assis
Maringá-PR

5º lugar
Se a vida é apenas passagem
quero que me façam jus;
na minha última viagem
deixem que eu veja Jesus!
Ademar Macedo
Natal-RN

VIAGEM
CATEGORIA MENÇÃO HONROSA
(medalha dourada)

1º lugar
Viagem nunca esquecida,
eu fiz de trem, com meu pai,
a lembrança traz-me à vida,
quem da memória não sai!
Delcy Rodrigues Canalles
Porto Alegre-RS

2º lugar
Teu ciúme foi bobagem
e causou minha revolta.
Mas,cancelei a viagem
por amor... e estou de volta!
Therezinha Dieguez Brizolla
São Paulo-SP

3º lugar
A vida faz seu traçado
e ao longo desta viagem,
coloco a sorte ao meu lado
e a esperança na bagagem!...
Marilúcia Resende
São Paulo-SP

4º lugar
De viagem,vem o vento
e beija a flor quando passa...
É um amor só de momento
como tantos que há na praça
Marina Bruna
São Paulo-SP

5º lugar
Numa viagem,sozinho,
vagando entre a luz e o breu,
procuro pelo caminho
um sonho que se perdeu...
Renata Paccola
São Paulo-SP

VIAGEM
CATEGORIA MENÇÃO ESPECIAL
(medalha prateada)

1º lugar
A caminho do infinito,
prossigo a minha viagem...
levo o que é de mais bonito:
o nosso amor na bagagem!
Roberto Tchepelentyky
(São Paulo-SP)

2º lugar
A saudade de um mocambo
nesta viagem matei,
revendo meu pé de jambo
que lá no sertão plantei.
Sebastião Isidro de Araújo
(Angra dos Reis,RJ)

3º lugar
Escrever é uma viagem,
um prêmio de quem tem sorte,
levando o amor, na bagagem
e a trova por passaporte!
Gislaine Canales
Balneário Camboriu/SC

4º lugar
Singrando os mares da vida,
com você por minha escolta,
mais suave torna-se a ida,
nesta viagem sem volta.
Wanda de Paula Mourthê
Belo Horizonte-MG

5º lugar
Viagem ao ninho antigo,
refúgio na mocidade,
voltei,mas meu lar amigo
só vive em minha saudade!
Giva Silva
São Paulo-SP

TEMA NACIONAL: TURISTA

CATEGORIA VENCEDOR
(troféu)

1º lugar
Presença sempre benquista
toda vez que ele aqui vem,
Deus abençoe o turista!
-E os seus dólares também!!!
José Ouverney
Pindamonhangaba-SP

2º lugar
Um turista encapotado,
Indo a campo de nudista,
Diz,ao ser interpelado:
“só vim por causa da vista”.
Eduardo Domingos Bottallo
São Paulo-SP

3º lugar
Um mau negócio o turista
faz no Rio de Janeiro,
pois enquanto vê a vista
fica a prazo sem dinheiro.
Olympio da Cruz Simões Coutinho
Belo Horizonte MG

4º lugar
Sem querer fazer fofoca,
disse um turista emergente:
no carnaval carioca
tem mais “gringo”do que gente.
Ademar Macedo
Natal-RN

5º lugar
De uma turista estrangeira,
Vendo as quedas do Iguaçu:
-Será que isso é cachoeira
ou é chuveiro de Itu?...
Antonio Augusto de Assis
Maringá-PR

TURISTA
CATEGORIA MENÇÃO HONROSA
(medalha dourada)

1º lugar
Curtiu férias na cadeia
certo turista abusado:
mexeu com garota alheia...
a filha do delegado.
Giva Rocha
São Paulo-SP

2º lugar
Teve a baiana um chilique,
ao dizer:”Vai vatapá?”
e o turista,num trambique:
“Se eu vou tapa? É pra já!
Marilúcia Rezende
São Paulo-SP

3º lugar
A turista,sem “traseira”,
no seu biquíni de malha,
quando viu a “brasileira”
enrolou-se na toalha!!!
Neide Rocha Portugal
Bandeirantes-PR

4º lugar
Turista pára um momento
com a sua companheira,
enquanto olha o monumento,
deixa roubar a carteira.
Antonio José Barradas Barroso
Parede (Portugal)

5º lugar
Na ortografia refeita,
grande descontentamento:
O turista não aceita
que voo não tenha acento!
Renata Paccola
São Paulo-SP

TURISTA
CATEGORIA MENÇÃO ESPECIAL
(medalha prateada)

1º lugar
Muita gente está no mundo
qual turista parasita:
nada faz e deixa imundo
cada lugar que visita...
Antonio Augusto de Assis
Maringá-PR

2º lugar
Chega ao lugar desejado,
Depois de muitas caronas...
O turista fascinado,
“ama as zonas” do Amazonas!!...
Marilucia Resende
São Paulo

3º lugar
Turista, finda a viagem,
Nota que a esposa se zanga
Porque as fotos da paisagem
Só tem mocinhas de tanga.
Antonio José Barradas Barroso
Parede (Portugal)

4º lugar
Um faquir foi viajar
e,ao ser passado em revista,
mil agulhas a explicar:
-sou um acupun-turista!
Renata Paccola
São Paulo-SP

5º lugar
Meu marido é um “veranista”...
Adora uma “temporada”...
“Comparece”.. igual turista...
uma vez por ano e...”nada”!
Jaime Pina da Silveira
São Paulo

MADURO
(tema municipal)

CATEGORIA VENCEDOR
(troféu)

1º lugar
Ramas de café maduro,
brilhando como rubi,
esparramadas no muro,
beleza igual nunca vi!
Edina Duarte Silva do Prado

2º lugar
Quando o amor maduro,na alma
acende o fogo,a paixão,
faz a poesia que acalma
na forma do coração.
Sueli Tornici

3º lugar
Um beija-flor encantado
fruto maduro bicou,
sugou o néctar dourado
que a natureza gerou.
Wanda Duarte da Silva

4º lugar
Mesmo já sendo maduro
sinto da vida um frescor...
Hoje me julgo seguro,
no Amor de Cristo Senhor!
Roger Rodrigo de Brito

5º lugar
Nos versos que eu bem componho,
ao mundo espalho esplendor,
com as palavras que, em sonho,
faz maduro nosso amor.
Sueli Tornici

MADURO
CATEGORIA MENÇÃO HONROSA
(medalha dourada)

1º lugar
Homem maduro tem força;
firme,enfrenta ondas e ventos.
Por mais que os anos,
jamais perde os bons momentos.
Nilton Manoel

2º lugar
Canteiro todo enfeitado,
céu dourado encantador,
cruto maduro espalhado,
tapete do Redentor.
Wanda Duarte da Silva

3º lugar
Um coração é maduro,
sabendo a escolha fazer,
não caminha no escuro
sabe o bem reconhecer.
Elisa Alderani

4º lugar
O sofrer nos faz maduro,
crescer bastante e sonhar!
torna o coração seguro
depois de tanto apanhar.
Arlete Luiza

5º lugar
Na caminhada, maduro,
ponho fogo na fornalha,
quero deixar ao futuro,
as lições de quem trabalha.
Nilton Manoel

MADURO
CATEGORIA: MENÇÃO ESPECIAL
(medalha prateada)

1º lugar
Nunca pense o homem maduro
que a vida já conheceu...
Só não pode estar seguro
pois nem tudo já viveu!
Edina Duarte Silva do Prado

2º lugar
O tempo me fez maduro
desenhando o meu caminho
já passei por cada apuro...
mas sempre espalhei carinho.
Ziney Santos Moreira

3º lugar
Desvios da juventude...
transtornos nas emoções...
sou maduro de virtude,
mudando nas estações!
Célia Apparecida Silli Barbosa

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VERDE
(tema municipal)

CATEGORIA VENCEDOR
(troféu)

1º lugar
Você é o verde da vida,
eu já não sou tanto assim,
mas nos “juntando”querida
daremos frutos sem fim.
Wilson Clovis de Andrade

2º lugar
Muda o mundo... tudo muda!
Mas no campo do saber,
Há quem todo o tempo estuda,
mas é ‘verde’- de morrer!
Nilton Manoel

3º lugar
Pra ser teu par, sou maduro,
pra mim és verde demais;
mas nosso amor é tão puro
que parecemos iguais.
Wilson Clóvis de Andrade

4º lugar
Com a verde camisola
de detalhes provocantes,
a boazuda Carola
morre de sonhos picantes.
Eliane Aparecida Pereira.

5º lugar
O belo verde do olhar
deixa a sogra piradinha;
que o genro... quer conquistar
essa fogosa velhinha.
Arlete Luiza

VERDE

CATEGORIA MENÇÃO HONROSA
(medalha dourada)

1º lugar
Tendo o seu verde esgotado,
pra muita grana ganhar,
quer esse gringo danado,
nossas matas reservar!
Fátima R.F. Starling

2º lugar
A sua verde calcinha
quase aparece no andar...
preste atenção menininha
vai dar muito o que falar.
Wanda Duarte da Silva

3º lugar
Quando o verde da esperança
vem doce no coração...
Nem sempre há temperança
para regar a emoção.
Arlete Luiza

4º lugar
Quando a peruca caiu,
verdinha... verde, bem chique!
A platéia toda riu!
e Helena? Teve um chilique!
Sueli Tornici

5º lugar
Zé no banheiro trancado!
o que foi que aconteceu?
no pomar, esfomeado,
só manga verde comeu.
J. C. Panazzolo

VERDE

CATEGORIA MENÇÃO ESPECIAL
(medalha prateada)

1º lugar
Matuto sem invernada,
usa sempre a malandragem.
Compra óculos pra boiada
e ela vê verde a pastagem...
J. C. Panazzolo

2º lugar
O matuto sempre diz
que a barriga lhe doeu...
Foi à jaqueira o infeliz,
só jaca verde comeu...
J. C. Panazzolo

3º lugar
Vamos pular a fogueira,
nem pensou, verde menina
que por ser muito gaiteira
nem fogueira a domina.
Wanda Duarte da Silva

Fonte:
Colaboração de Nilton Manoel

David Martins (O Bandido da Serra de Arga)


A Serra de Arga ergue-se rodeada de muitas outras serranias. A Natureza encontra-se aí em estado quase selvagem, tendo sofrido pouco com a acção destruidora dos homens que tudo querem rapidamente Dominar e transformar em seu próprio proveito. Esta zona era, na época a que nos reportamos, já lá vão alguns séculos, escassamente habitada de gentes. As aldeias distavam uma lonjura umas das outras e eram precisas muitas horas a pé ou a cavalo para que alguém se deslocasse à localidade mais próxima.
Naqueles ermos vivia, solitário, talvez abrigando-se nalguma caverna, um homem enorme e possante, um homenzarrão, que se dedicava à única atividade de matar e roubar todos quantos se aventurassem a atravessar aquela região e tivessem o azar de se encontrar frente a frente com ele. O salteador atacava as suas vítimas com um facão de que nunca se separava. As populações temiam-no e evitavam-no, tal como o faziam com os lobos e os ursos.

Certo dia, um fradinho ingênuo e com o coração cheio de bondade, aventurou-se por aqueles íngremes caminhos de montanha, extasiado com a magnífica paisagem a perder de vista. Ele tinha Deus no seu coração e, quando se via confrontado com a maldade humana, sempre arranjava maneira de descobrir o lado bom dos prevaricadores. Ele não acreditava que pudesse existir a maldade pura e simples.
Seguia este homem de Deus por uma vereda, enchendo os pulmões com aquele ar tão leve e ligeiramente embriagador, e sentindo o coração livre como um passarinho, tudo isto por lhe dada a ver toda aquela beleza simples e harmoniosa. Enquanto caminhava ia agradecendo ao Criador por lhe proporcionar tanta felicidade. Ia tão absorto nos seus pensamentos que nem se assustou quando, alguns passos à sua frente surgiu, vindo não se sabe de onde, uma espécie de gigante, um maltrapilho hirsuto, empunhando um facão e que avançava na sua direção:

- Quem és tu meu irmão...? - começou o frade a perguntar mas, antes de ter podido acabar a frase agonizava, caído por terra, profundamente atingido pela lâmina da enorme faca do bandido.

Antes de exalar o seu último suspiro, o frade ainda conseguiu dizer ao seu algoz, sem qualquer vestígio de rancor ou ódio no seu coração:

- Tenho muito pena de ti meu irmão... vejo que és um homem muito infeliz e solitário e que sofres com isso. É esse sofrimento que te leva a cometeres crimes de sangue... matas o teu semelhante porque não sabes amá-lo. Mas eu agradeço-te pelo mal que me fizeste porque, assim, daqui a pouco vou estar perto de Deus e pedir-lhe-ei que Ele te ajude a encontrar o bom caminho que, um dia, te conduzirá, também a ti, até ao Céu. Acredita que vou ajudar-te ...

O santo homem não teve tempo para acabar a frase. A alma abandonou o seu corpo e regressou para junto do Criador.


Estupefato com a atitude do frade, o ladrão sentiu-se como se tivesse sido atingido por um raio e compreendeu, naquele instante, que se tornara num monstro. A partir daquele dia operou-se uma modificação total na sua maneira de agir e, em vez de assaltar e matar os viajantes, passou a ajudar todos quantos por ali passavam e precisavam da sua ajuda: Salvava crianças que se atolavam na neve, ajudava os pastores a encontrarem as ovelhas tresmalhadas, carregava às costas os velhos que queriam atravessar o ribeiro pouco profundo mas que tinha uma corrente rápida e agitada. Enfim, transformara-se num modelo de caridade cristã para com os seus semelhantes.

Mas, muito antes do assassínio do frade e da consequente modificação no seu comportamento, já a sua fama de assassino e ladrão tinha chegado a Lisboa. Os governantes ofereceram, então, uma recompensa de cem moedas de ouro a quem capturasse o homem e o entregasse às autoridades, vivo ou morto.

Um dia, um camponês que se fez àquela estrada de montanha com uma carroça carregada de cereal para vender na feira ficou, de repente, muito aflito ao verificar que uma das rodas se atolara na lama e ele sozinho não era capaz de resolver o problema. A carroça ia-se inclinando para aquele lado e o homem temia que o cereal se derramasse pela encosta abaixo.
No meio da sua aflição, o camponês não viu aproximar-se o gigante que, entretanto, passara a ser um homem de bem. Pondo um joelho em terra e curvando as suas possantes costas, o homem conseguiu equilibrar, sobre os ombros, o peso da carroça antes que o seu conteúdo se perdesse.

Sabedor da recompensa para quem capturasse o antigo salteador e vendo-o ali, desprevenido, numa postura em que não podia defender-se, o camponês agarrou com as duas mãos num machado que levava escondido debaixo do capote e, com dois ou três golpes, esmagou a cabeça de quem lhe prestara ajuda desinteressada, matando-o de imediato. Cobriu o corpo com alguma terra, ramos e folhas secas e foi a correr avisar as autoridades que tinha capturado o bandido, pedindo-lhes que o acompanhassem depressa ao local, pois temia que os lobos entretanto comessem o cadáver.

Quando chegaram ao sítio onde o homem tinha sido abandonado, com a cabeça despedaçada, verificaram que o seu corpo se encontrava deitado sobre um tapete de flores que inexplicavelmente tinham crescido em seu redor. A cabeça não tinha sinais de ferimentos e o corpo estava intacto, parecia alguém que tivesse simplesmente adormecido tranquilamente. Junto dele tinha crescido uma árvore com densa folhagem que projetava uma sombra fresca sobre o corpo que ali jazia. Passarinhos esvoaçavam em todas as direções enchendo o ar de música com o seu chilrear.

A notícia de tão insólito acontecimento correu célere pelas aldeias vizinhas e não tardou que houvesse quem considerasse que Deus, na sua infinita bondade, concedera a sua misericórdia àquele antigo pecador e que, por isso, ele devia ser considerado santo e digno de veneração.
O povo construiu-lhe uma pequena igreja num lugar ermo da Serra de Arga e, passados alguns séculos, ainda hoje ela lá se encontra e é muito visitada pelos devotos.

Fontes:

David Martins. Estórias e Lendas de Encantar. Lisboa: Lyon Multimédia 1998
Imagem = http://azulporcelana.blogspot.com

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 16


15. Sinônimos (I)

Tomemos, por exemplo, a frase “Quem com ferro fere com ferro será ferido”. A esse tipo de frase dá-se o nome de provérbio – palavra cujo significado é “breve sentença que expressa a sabedoria popular”. Poderíamos dizer a mesma coisa, isto é, indicar o mesmo significado, escolhendo, entre outras, uma das seguintes palavras: adágio, aforismo, anexim, apotegma, brocardo, ditado, dito, máxima, preceito, prolóquio, rifão... A isso chamamos sinonímia – vários significantes para o mesmo significado.

Nem sempre, entretanto, a coincidência de significado é perfeita; por isso é importante, em benefício da clareza e da expressividade, escolher o sinônimo que melhor se encaixe no contexto. Em vez de aeroplano, você dirá avião, por ser palavra mais moderna; ou aeronave, para indicar maior intimidade com esse meio de transporte. Alencar não descreveu Iracema como a que tinha beiços açucarados; deu-lhe lábios de mel. Um beijo fica muito melhor no rosto ou na face do que na cara. Seca e enxuta podem ser sinônimos, no entanto é mais prudente chamar uma garota de enxuta do que de seca...

A linguagem, em sua função expressiva, estabelece para os sinônimos uma espécie de hierarquia social, que parte do cerimonioso ou científico, passa pelo afetivo ou familiar e chega até o rústico ou vulgar. Nessa ordem temos, por exemplo, abdome-barriga-pança; urina-xixi-mijo; fezes-cocô-merda; indelicado-grosseiro-cavalo; nádegas-bumbum-bunda; tedioso-enfadonho-chato...

Geram-se os sinônimos mediante processos vários. Veremos alguns dos mais frequentes:

Eufemismo ou disfemismo, que consistem em amenizar ou embrutecer a manifestação de uma ideia. Por exemplo: para substituir morrer, temos, entre outros, os eufemismos descansar, falecer, faltar, partir, dormir nos braços do Senhor; entregar a alma a Deus; ir desta para melhor, ir para a eternidade, mudar-se para o andar de cima... ou disfemismos tais como bater as botas, esticar as canelas, ir para a cidade dos pés juntos... Em vez de velhice, muitos preferem dizer idade avançada, idade da sabedoria, idade madura, idade provecta, outono da vida, terceira idade... E o velho, embora comumente chamado ancião, idoso, vetusto, é dito por outros coroa, gagá... O povo é fértil também na criação de eufemismos “folclóricos”: cachaça = água que passarinho não bebe; defecar = exonerar o ventre; gravidez = estado interessante; menstruação = lua; penico = vaso da noite; urinar = verter água...
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Majela Colares (Poemas Escolhidos)


O SOLDADOR DE PALAVRAS

Fazer poemas é soldar palavras,
fundir o signo - literal sentido -
do verbo frio, transformado em chama,
aceso verso, pensado e medido

sob a moldura da expressão intensa
fingem palavras um som mais fingido
além, no ocaso, da sintaxe extrema,
fuga do verbo não mais definido.

Criado o texto, com idéia e tinta,
forma e figura na linguagem extinta,
quebrando regras de comuns fonemas.

A idéia é fogo. Fogo... o verbo aquece.
A tinta é solda que remenda e tece
versos, metáforas e, por fim, poemas.

O SILÊNCIO NO AQUÁRIO

em meu silêncio, meu exílio canto
e nele morro e quase sempre habito

se no meu sonho, meu silêncio encanto

é porque nele minha morte evito
guardo a memória desse deuses surdos

transformo em cinzas a feição do mito

e na distância de caminhos tardos
durmo ao relento sobre a terra fria

e nas pupilas desses gatos pardos
vivo mil noites pra sonhar um dia

OS LIMITES DO TEMPO

Meia face de sol - a tarde finda
nos limites do céu e da calçada.
Uma tarde partida, quando ainda
refletida entre cores, desbotada.

Aquarela dispersa - morte linda.
(Colorido de tez avermelhada)
mas o tempo ilusório fez infinda
meia face de sol desfigurada.

Murchas pétalas de horas finge o monte
rente a linha deserta do horizonte
feito rosa pendida... rosa-flores.

Nos limites da sombra projetada
nos contornos da noite aproximada
percebo o tempo farejando as cores.

AS MARCAS DO TEMPO

O último impulso do segundo antes
ao projetar-se no após segundo

risca no tempo cicatrizes, fendas...
(o largo corte invariável, sempre)
que esculpe a forma virtual do instante

no confundível e abstrato mármore,
imagem sólida do momento único.

O PASTOR E SUA ALDEIA
a Altino Caixeta de Castro

Eu creio que a eternidade nasceu na aldeia
Lucian Blaga

O ladrido infinito de um cão morto
nas vozes de outros cães é repetido

muito além, incessante ao nosso ouvido
mais além, muito além da voz de um cão

trago a lua no bolso e o sol na mão
e um rebanho de cabras e de estrelas

no desejo incomum de sempre tê-las
na distante lembrança de uma aldeia

pervagando a memória das areias
onde estrelas e cabras pastam sonhos

trago à sombra de alpendres breve sono
pressentindo o rangido da tramela

despertado ao contorno da janela
no silêncio imortal da noite fria

canta o galo, outra vez, e denuncia
(seu cantar tem a cor da lua cheia)

o prenúncio de um dia em outro dia
da eterna solidão - eterna aldeia.

BANQUETE PARA UM FANTASMA

numa bandeja foi servida a hora
em um castiçal, meio tempo aceso

um sopro magro vinha porta fora

e porta adentro vinha um sopro obeso
na sala, ao canto, tinha um riso torto

em pé junto à porta um vulto ao revesso

todos falavam, ninguém se entendia
nas mãos um aceno em forma de enfeite

na mesa, à testa, um fantasma comia
cantava e sorria atento ao banquete

TINTA SOBRE TELA

pintaria de azul a cor do vento
de vento pintaria a lua cheia

se pudesse pintar esse momento

pintaria de céu e luz que ondeia
colorido eu faria o tempo, sempre

chocolate, vermelho, creme-areia

na mistura de tempos, fim errante
a cor do pensamento se desfaz

com um resto de tinta e meio instante
vou pintar seu nariz de cor lilás

TRATADO SOBRE UM POEMA

quis um poema sem razão nem fim
um canto surdo de areia e noites
bem mais veloz que ilusão do tempo
que fosse a vida muito além da morte

quis um poema que tivesse o fim
de ser apenas um rascunho torto
entre as lembranças de qualquer rascunho
entre os rascunhos de alguém já morto

quis um poema de tempo e de tempos
regado a vinho – se possível tinto –
do instante imune, que não foi instante
do tempo impuro, do mais puro cisco

quis um poema que fosse um poema
de pele clara, de cabelo ruivo
que fosse a pedra fecundando o húmus
e a luz gestante fecundando a luz

quis um poema... se quis um poema
foi assim quase... meio, fim e meio
sangrei a noite, mas fisguei o verbo
quis um poema lacerado ao meio

VERDE PELÚCIA

A semente vislumbra em breve tempo
irromper contra a terra umedecida
no húmus da manhã adormecida...
germinar e crescer e dar-se ao vento.

Fecundar neste chão rijo e sedento,
(ledo aroma de chuva acontecida)
no mormaço da véspera, confluída...
germinar e crescer e dar-se ao vento.

Mas a nômade nuvem rara e única
é que traz embuçada em frágil túnica,
o sagrado segredo derradeiro,

que ao certo, lançará feito neblina
a viçosa semente então germina,
na manhã, a saber, de algum janeiro.

Fontes:
– Jornal de Poesia. http://www.revista.agulha.nom.br/
– Revista Para Mamíferos. n.2. Ano 2. Fortaleza,CE: Expressão Gráfica Editora, 2010.
http://www.astormentas.com/

Dimas Macedo (A Poesia de Majela Colares)

Collage à base de Michelangelo e Dali por Marco Aqueiva
Faço uma advertência para lhes dizer do que pretendo falar: das confissões e do outono de Majela Colares, um escritor cearense em ascensão, habitante do imenso País do Jaguaribe e que veio ter em Fortaleza para aqui semear os reclamos e denunciar as muitas incertezas e misérias do ambiente sofrido do sertão.

Majela Colares, em Confissão de Dívida, Fortaleza, Biblioteca “O Curumim Sem Nome”, 1993, é bem o testemunho de um autor que traz e sabe exibir no livro de estréia a força de uma construção poemática já em estágio de maturação, de um escritor que sabe cantar o seu drama e, através do canto, sabe dizer a razão e as contradições do ser da poesia no mundo, questionando assim o poeta o ato de viver e de produzir o milagre que se dissemina nas cordas da canção.

A seara poética de Majela Colares, em “Confissão de Dívida”, reflete a emoção profunda e consciente de uma atividade mental, existencial proveitosa, remarcada nos seus motivos e nos seus apelos pela saga da nordestinidade e do protesto, revelando-nos um universo de “reverberações nordestinas”, segundo a expressão de Luciano Maia, espaço-limite no qual dialoga com as muitas necessidades do humano, buscando atingir o universal com os valores e o modo de pensar e de sofrer de sua região.

Mas não se pense a sua poesia unicamente pela perspectiva da denúncia social e do conflito contigencial e emotivo. Claro que na sua poesia estão também presentes sinais da inquietação metafísica e fragmentos de interrogações, obsessões e perplexidades.

Já em Outono de Pedra, São Paulo, Editora Giordano/Fortaleza, Biblioteca “O Curumim Sem Nome”, 1994, Majela Colares projeta as suas reelaborações e as suas descobertas em busca de uma forma de expressão definitiva, forjando a construção de um estilo que tem muito em comum com as asperezas e os ícones do seu aprendizado e da sua formação.

Utilizando os metros e as muitas facetas da poesia popular nordestina, Majela realiza no seu novo livro, ao lado do conteúdo e da mensagem do texto, muitos experimentos e reinvenções, inclusive na área da décima e do quase-romance de cordel, mas o que vaza da leitura de “Outono de Pedra”, no entanto, é a remarcação das misérias e diásporas do mundo do sertão. É a miséria do sertão e a dor de se descobrir pregoeiro das suas necessidades e dos seus conflitos é aquilo que serve de motivo ao poetar cortante e ao discurso afiado da peixeira poética do autor.

Com ilustrações de Audifax Rios e Socorro Torquato, “Outono de Pedra” tem posfácio de Janilto Andrade, crítico literário e professor da Universidade Católica do Recife. Com ele, Majela Colares obteve menção Honrosa do “Prêmio Ladjane Bandeira de Poesia” – 1994, sendo que do seu texto entre outros elementos, exsurge uma linguagem crua e ao mesmo tempo rica de imagens e simbolizações, principalmente aquelas que têm no universo do homem nordestino o seu casulo e as suas formas de disseminação.

O poema, pois, como construção da linguagem. A palavra como argamassa e cascalho. O fazer a poesia como necessidade de compreender o mundo e de sentir. O sentimento como forma de expressão do pensar coletivo. O arremate do poema como formulação do estilo. O estilo como possibilidade de um modo concreto de dizer e de participar.

Daí, a necessidade do verso, a escritura e a filosofia da composição como justificação e referência de uma maneira muito consciente de pensar e de viver o drama do sertão. Ou não seria o sertão uma invenção e o Jaguaribe um rio que corre sem sair do lugar? Aqui é o lugar, Majela. O texto poético é o lugar da sua bem-sucedida e proveitosa realização.

Fonte:
– Jornal de Poesia.

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 15



14. Polissemia (II)

São, porém, os humoristas os que mais frequentemente se servem dos jogos polissêmicos (trocadilhos etc.) para fazer as suas graças. Algumas amostras, que por certo você já ouviu ou leu em algum lugar:

* Sabe como ele conseguiu colar grau?... Colando...
* Muitas vezes a colação de grau depende do grau de colação.
* Na roça, cana dá pinga. Na cidade, pinga dá cana.
* Ela e ele saíram para fazer um programa. Trabalham juntos na TV.
* A palestra dele me lembrou uma espada: comprida e chata.
* Tem gente que faz na vida pública o mesmo que na privada.
* Já deu muitas voltas no globo. É motociclista de circo.
* O Brasil foi feito por nós. Falta apenas desatá-los.
* Gripe topless: você tosse, tosse, tosse... até botar os peitos pra fora.
* Sabe o que faz o nadador?... Nada!
* A duplicata, ela sim pode afirmar: – Hei de vencer!
* Disse o estudante: – Feliz é o rio, que faz o seu curso sem sair do leito.
* Motorista paciente: se o sinal está verde, ele espera amadurecer.

Por falar em motorista, uma das mais interessantes coleções de jogos polissêmicos é a que circula Brasil afora nos parachoques de caminhões. São frases realmente muito boas. Vale recordar algumas:

* A vida de solteiro é vazia; a de casado enche.
* O mundo é redondo, mas está ficando chato.
* A mata é virgem porque o vento é fresco.
* Melhor um cachorro amigo do que um amigo cachorro.
* Relógio que atrasa não adianta.
* Para não ficar a pé, siga sempre na mão.
* Já estou cheio de me sentir vazio.
* A preguiça é um ócio duro de roer.
* Curta a vida, porque a vida é curta.
* Quem gosta de coroa é rei.
* Não sou sanfoneiro, mas toco a noite inteira.
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Carlos Gildemar Pontes (Por Falta de um Adeus)



Aos domingos ele ia à praia. Lambuzava-se com um óleo vermelho e estirava-se de cara para o sol. Rapaz metido a fino esse Alfredo. Anda polido mesmo fora do expediente do banco onde trabalha. Sua paixão pela loirinha começa toda segunda-feira.

Pelas manhãs, depois do café, olha-se demoradamente no espelho, revira o cabelo, tenta novo penteado, mas a imagem da loirinha lhe apressa, dando um friozinho na barriga.

- Tchau Rex!

- Au, au, auauau... au, au!

Às 7:30 ela chega ao ponto do ônibus. No último encontro ele alargou-lhe um sorriso. Tomaram o ônibus juntos.

- Oi – dizia ele costumeiramente.

- Oi – respondia ela saturadamente.

- Hoje você atrasou cinco minutos, eu marquei.

- É, o meu cachorrinho machucou a pata dianteira esquerda, aí eu fiz um curativo nele...

- Ah, mas eu também tenho um cachorro! É o Rex. Ele é de raça, sabe? Tem um bom pedigree. E o seu?

- Também.

Hoje o diálogo cresceu, falaram até em cães. Quem sabe seria o primeiro passo para um encontro!

A loirinha secretariava um advogado amigo da família. Alfredo nada sabia a seu respeito, entanto tencionava namora-la.

Ao chegar em casa, gravata bem posta, pano ainda passado, o jovem desviava-se de Rex para não se sujar. Só depois, de calção, passava-lhe a mão meio enjoado na cabeça e logo corria para lavar as mãos. O cão, pobre amigo coitado, auauava incompreendido.

Sabia Alfredo agora que, pelo fato de ter igualmente um cão, poderia iniciar uma conversa menos monótona. Inventaria um machucado para o seu Rex. Uma cadeira que caiu em sua cabeça, talvez.

Na manhã seguinte, planejou bem a mentira e levitou diante do espelho: vou impressiona-la com meus conhecimentos veterinários. Irei até a sua casa cuidar da pata do seu cachorro.

Na saída para o trabalho, Alfredo esquece porém de acenar para o Rex e de fechar o portão. Já sabia agora que podia iniciar uma conversa sobre a cura pela medicina popular aplicada ao tratamento de animais ou como curar a machucadura de seu cão sem chamar o veterinário ou coisa que o valha.

A loirinha ia entrar de férias e levava uma prima para o seu lugar. Iria explicar o serviço enfadonho que fazia.

- Oi – chega Alfredo o mais polido possível.

- Oi.

- Sua irmã?

- Não... prima.

- Sabe o que aconteceu ontem?

- Ahn!?...

- A cadeira caiu na cabeça do rex e o pobre está meio machucado. Mas está tudo sob controle, ele está sob os meus cuidados.

- Que pena!

De súbito, um freio brusco, seguido de um latido, ecoa na avenida. Eis que surge esbaforido e com um palmo de língua de fora, um temendo vira-latas, empinhado de carrapatos, abanando o rabo e atracando-se quase ereto às pernas do Alfredo. ...Meu Deus, deixei o portão aberto e esse nojento saiu atrás de mim...

- Ah, ah, ah, ah Esse aí é que é o Rex?

- Não é o cachorro do vizinho.

De imediato, Alfredo subiu no primeiro ônibus, no que Rex o acompanhou.

- Espera motorista tem um cachorro aqui dentro. Sai Rex, sai Rex, sai desgraçado.

Fontes:
Jornal do Conto
Imagem = http://afarias.blog.com

David Martins (A Sopa de Pedra)


Descia o Sol no horizonte. Pela estrada, coberto de poeira, seguia Frei Bernardo, o rosário a tilintar, a barriga a dar horas.

Longa tinha sido a caminhada, isto para não mencionar a lonjura que ainda tinha de palmilhar até chegar ao mosteiro.

Se era vivo de espírito, não era menos robusto de corpo, o nosso frade. Cem léguas caminharia, tivesse ele a barriga cheia... mas, não se via nem galinha transviada, nem macieira a convidá-lo sem o dono por perto.

Nada, coisa alguma que se pudesse comer.

Pouco faltava para ele maldizer a sua vida, quando avistou uma quinta no horizonte: o seu santo protetor nunca se esquecia de velar por ele!

Sorriu, satisfeito.

Afinal, não há mal que sempre dure. Com um pouco de sorte, alguma coisa lhe dariam para comer.

Mas os tempos não iam de feição para se fazer caridade. A vida estava muito difícil, os anos de seca não deixavam os cereais germinar, os legumes definhavam nas hortas, os animais morriam de fome e de sede. Acrescentem-se os impostos que os senhores da terra nunca se esqueciam de mandar cobrar a tempo e horas, os homens que tinham partido para longe, guerrear sabe-se lá que inimigos numa terra distante.

O pouco que cada um conseguia extrair da terra ressequida, em sua casa o aferrolhava, que ninguém sabia o que ainda podia estar para vir. Tudo isto o nosso bom frade bem o sabia. Mas não lhe faltava nem bonomia, nem engenho e arte para resolver qualquer problema que lhe surgisse, por mais complicado que ele fosse. Se não se podia ir pela estrada real, dava-se a volta por atalhos, e não era por isso que um homem deixava de chegar ao seu destino.

À medida que encurtava a distância que o separava da casa de paredes de pedra escura da região e telhado de colmo, uma ideia foi ganhando forma na sua mente. Apanhou uma pedra do chão e sorriu. Era uma pedra redondinha. Limpou o pó que a cobria e bateu à porta.

- Quem é? - Gritou uma voz de mulher.

- Deus te salve, boa mulher! Não terás por aí uma panela que me emprestes e um pouquinho de água que me dês? É que aqui mesmo acendo umas brasinhas e faço uma sopa de pedra.

- Essa agora! Não querem lá ver? Havia de ter graça! - exclamou a mulher, rindo, os dedos cruzados sobre o ventre empinado pelo pimpolho que em breve daria à luz. - Sopa de pedra? Nunca de tal coisa ouvi falar!

- Pois olha que é um manjar que se faz muito lá na minha aldeia, e é de muito alimento. Queres ver?

É claro que a curiosidade da mulher era mais do que muita, e ela não a escondia, observando o frade com o mesmo espanto com que olharia para uma galinha com cinco cabeças.

- Sempre estou para ver como é que vosmecê faz esse petisco - disse ela, abanando a cabeça, meio incrédula, meio divertida.

- É simples, já vais ver. Ponho esta pedra dentro da panela com água e deixo ferver - explicou ele, mostrando o seixo reluzente.

A mulher não queria acreditar, mas como a curiosidade era mais forte, lá foi buscar uma panela com água.

Frei Bernardo juntou meia dúzia de cavacas, acendeu um lume bem espevitado, meteu-lhe o tacho em cima com a pedra lá dentro, cruzando em seguida os braços como quem está à espera que qualquer coisa aconteça, e depois sentou-se tranquilamente, desfiando o seu rosário. Passados momentos, já a água fervia... com a pedra lá dentro.
A mulher, sempre desconfiada, não tirava os olhos do frade.

- Sabes que mais - disse ele - vou prová-la. - Hmm... parece que precisa de um bocadinho de sal.

E a mulher foi buscar o sal. Frei Bernardo agradeceu, e voltou às contas do seu rosário.

A mulher, como se nada daquilo lhe dissesse respeito, ia no entanto arranjando afazeres que a obrigassem a rondar por ali. Sempre queria ver. O frade fingia não dar pela presença dela que, a certa altura, não resistiu mais e perguntou:

- Então, e é boa... essa sopa?

- Boa? Fica sabendo que é das coisas mais saborosas que eu já comi. E então se me trouxesses uma batatinha, ou uma folhinha de couve, ainda ficava melhor.

A mulher lá foi à horta e regressou com duas batatas, uma cebola, três folhas de couve. Frei Bernardo não se fez rogado. Uma boa sopa de hortaliças já ele tinha a ferver, diante dele. No entanto, passado algum tempo, virou-se para a mulher e disse:

- Esta sopinha não está nada má, mas se lhe juntasse um dentinho de alho, um fio de azeite, duas rodelas de chouriço... ah! Então até os anjos do Céu seriam capazes de a comer.

A sopa cheirava que era um regalo, disso ninguém poderia duvidar. A mulher entrou em casa e de lá saiu trazendo o que faltava.

- Sabes o que te digo? És uma boa alma. Vai buscar duas gamelas e senta-te aqui comigo, que a sopa chega bem para os dois.

Eis como Frei Bernando se deliciou com uma bela sopa, num local onde, de outro modo, bem sabia que nada lhe teriam dado para comer.

- E a pedra? - perguntou a mulher, quando chegaram ao fundo da panela.

- A pedra? Olha, essa, levo-a comigo, que me há-de servir outras vezes.

Fontes:
David Martins. Estórias e Lendas de Encantar. Lisboa: Lyon Multimédia 1998
Imagem = http://escolas.madeira-edu.pt/

Lançamento do Livro de Belvedere Bruno, "Vinho Branco, safra especial de contos e crônicas"

Wilson Bueno (Silêncios)


Para Fernando Paixão

1
há um Deus de luto
no demasiado rútilo
que se liquida ao norte
por uma estrela-de-gelo
e a lua simples nos olmos
carrega em impuro siena
pelas mãos do Deus abrupto
acre oficina de sustos

2
há um Deus bem gaio
na sarabanda do outono
que daqui se vê todo ano
o mesmíssimo outono
de há quatro mil anos
com Deus pelos cantos
pondo branco no agapanto
e amanhecendo paineiras

3
há um Deus silente
na tinta incendiada
de sonetos e poentes
manhã de ouro encardida
cincerros da madrugada
sussuro de Deus com pluma
no andado quase ar voante
de chá e voal o vento

4
diante de tanto quanto Deus
dá-me que entenda
pelo juízo da veia
a via tácita ou láctea
de víscera expectante
pelo que Deus põe de tarde
numa abelha azul-da-prússia
e vos faz de céu e senha

Fontes:
– Antonio Miranda. http://www.antoniomiranda.com.br/
– Imagem = http://noturnamaturidade.wordpress.com/

Wilson Bueno (Meu Tio Roseno, a Cavalo)


Vencedor do Prêmio Jabuti de 2000, a novela de Wilson Bueno, assassinado recentemente em Curitiba (de primeiro já consegue chamar a atenção pelo artesanato inusitado de sua linguagem. Num andamento próximo do coloquial regionalista, contando com a fusão do português, espanhol e guarani (recriando a realidade do local em que se passa a narrativa, entre Paraná, Mato Grosso do Sul e Paraguai), o autor abusa do emprego dos neologismos que atingem até o próprio nome do protagonista, Roseno, que é chamado Rosevago, Rosevéu, Rosenente, Rosalvo, entre outros.

Tal variação sobre o mesmo nome faz lembrar as repetições constantes de expressões por todo o corpo da obra. Confira quantas vezes aparece “meu tio” após o nome do protagonista, ou mesmo “antes da Guerra de Paranavaí”, “Doroí ia lhe dar um filho, uma filha, por ser mais certo”, “bugra esquiza e de olhos azuis” e por aí vai.

Todos esses elementos contribuem para que se construa uma prosa poética que lembra Simão Lopes Neto, pelo tom sulista, mas principalmente Guimarães Rosa, não só pela invenção de palavras e fusão de línguas, mas pelo caráter simbólico, quem sabe até mítico, que o texto acaba assumindo. Reforçando tal aproximação, parece não ser à toa que o narrador, sobrinho da personagem principal, dá um ar de fábula à história ao dizer que se passa no desvão dos tempos, por exemplo. Outro argumento seria a própria melopéia, ou seja, musicalidade da frase, como em “e os ouvidos treinados para diferençar da azáfama de inquietos sons a nota surpresa da mais arisca aproximação”. Recende plenamente o fazer literário roseano.

Em suma, se se aceita a semelhança entre Wilson Bueno e Guimarães Rosa, não se torna absurda a idéia que em Meu Tio Roseno, a Cavalo a narrativa acaba criando um mundo mágico e simbólico, o que se nota já em seu começo, quando se comunica que Roseno montou o cavalo Brioso para realizar uma viagem em menos de sete dias para Ribeirão do Pinhal. A intenção do herói era, obedecendo à profecia de uma cigana, encontrar sua amada Doroí, índia com quem vai ter uma filha, que deve chamar-se, ainda de acordo com a cigana, Andradazil (Outra semelhança com Guimarães Rosa é que “Andradazil” chega a ser onomatopaico, imitando o som da cavalgada, assim como o nome “Tarantão”, do conto de Guimarães Rosa “Tarantão, Meu Patrão”, presente em Primeiras Estórias), para que tivesse um bom destino no meio da tão citada Guerra do Paranavaí (região do interior do Paraná), conflito causado por questão de terra entre índios e civilizados.

Realiza, pois, uma viagem de travessia, que pode ser entendida como metaforização da vida. Faz lembrar o conto de Guimarães Rosa, “Seqüência”, de Primeiras Estórias, pois é uma jornada em busca do amor, ou então “Tarantão, Meu Patrão”, do mesmo livro, já que, além do tom de gesta, há a motivação pelo nascimento de uma criança. Há semelhança também com Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, pois o início de uma vida pode ser visto como um contraste às desgraças mostradas no bojo da obra.

Como já se disse, o livro é marcado por repetições na linguagem, o que o torna poético. Mas no eixo narrativo essa característica se processa pelo aspecto cíclico que é assumido. Sete dias. Seis entrecéus. O ciclo de sol e lua, assim como a própria viagem, são velhos símbolos da vida. E tudo se encaixa em três grandes fases – sexo, luta, assombração – que, no fundo, são manifestações de dois grandes campos: vida e morte. Mais uma vez, o tom mítico do livro.

No início da caminhada a cavalo, Roseno depara-se com um índio desafiador que não acredita no poder das armas de fogo, alienação – principalmente em época tão próxima aos conflitos de Paranavaí – que espanta o herói. Mas basta mostrar o poderio bélico para que o oponente se desmanche em cortesias, levando o protagonista até sua tribo. Lá, conhece uma índia muito jovem, criança ainda, com quem passa noite, tirando-lhe a virgindade.

No dia seguinte encontra problemas ao abandonar a tribo. O chefe quer que se case com a pequena índia. Mais uma vez, tem de usar seu revólver. O engraçado é que não bastaram tiros no chão – teve de, estranhamente, pôr na mão do selvagem a arma para convencê-lo de deixar sair (Pode ser visto como significativo o fato de Roseno deixar vários espelhos e miçangas em troca da hospedagem e da companhia afetiva. O herói, mesmo neto de índia, parece ter em seu sangue o costume branco – seu avô era alemão – já vindo do século XVI de trocar coisas tão preciosas por ninharias). Parte, pois.

Nesse primeiro embate, o prazer sexual, princípio da vida, está ligado a combate, que se restringiu, na verdade, apenas à possibilidade. Vitória da existência. Mas conquista efêmera. Pouco depois encontra, em seu segundo dia de viagem, em meio ao clima fantasmagórico da noite, um local em que havia os restos mortais de combatentes, ossadas e mais ossadas dispostas num quadro dantesco. Era a Guerra do Paranavaí se apresentando. Era o princípio da morte começando a se instalar.

Passa a noite com um sono entrecortado pela impressão que aquela paisagem macabra lhe deixou. Prossegue sua viagem até no final do terceiro dia, quando pára e resolve ver as atrações de um circo. Decepciona-se com a farsa sobre uma mulher que se dizia barbada. Além disso, foi obrigado, num bar, a brigar com dois soldados, que queriam mostrar-se atrevidos. Vence-os. Por fim, enquanto assistia a um espetáculo, presenciou um velho baixinho pegar um homem bojudo e atirar várias vezes sobre a cabeça deste, num ato de covardia que revoltou os demais da platéia. O surpreendente é que a vítima ainda consegue se levantar e cambalear na direção do assassino, no entanto, termina por cair. Alguns entre o público tomam as dores do derrotado e partem para cima do covarde, mas são segurados pela própria orquestra do circo. Estava consagrado que tudo não passava de farsa, o que deixou o herói irritado. Assim, parte.

Chega-se ao seu quarto dia de viagem, mergulhado nas memórias da infância, com a presença marcante da avó, feiticeira. Lembra-se também da amada, que lhe proporcionou inúmeros momentos de gozo. Recorda-se ainda dos irmãos. Além disso, vem em sua mente uma enxurrada de acontecimentos ligados a guerra, violência, assassinatos, seus primeiros empregos, seu ofício como capador de galos e daí a sua paixão: as brigas realizadas entre esses galináceos. Tudo isso se passa com maestria, revelando o domínio de Wilson Bueno, já detectado em outros momentos da obra, sobre o emprego do tempo psicológico e do fluxo de consciência.

Estamos, definitivamente, no campo da guerra, que nada mais é do que luta por sobrevivência. Porém, é um momento da narrativa com uma enorme proximidade da morte. Disseminam-se aqui elementos que podem ser vistos como preparação pelo menos do clima do final da novela. Em nome da guerra – que é uma luta por domínio de vida – atrocidades são cometidas.

Mergulhados nessa atmosfera, estamos no quinto dia, o mais assustador. Tudo começa com um encontro fortuito com um sujeito extremamente magro. Fugia de Aruanã porque o povo estava perseguindo um lobisomem que havia feito muita desgraça na cidade. Todos acreditavam que o desgraçado era desdentado, o que faziam pessoas com tal qualidade serem alvos perfeitos para a fúria dos cidadãos. Roseno fica desconfiado, ainda mais quando descobre que o fugitivo, Luís Arnaldo, era maneta.

Chega à cidade, que lhe é frustrante, pois, em vista do clima de terror, não se estavam realizando as famosas brigas de galo. E, como de esperar, o assunto de todos era nada mais do que o tal lobisomem. O herói diz que o viu, mas, feita a descrição, todos na hospedagem em que está dizem tratar-se apenas de Luis Arnaldo. E dedicam-se a contar mais histórias fantásticas. Roseno não repara, no entanto, que um dos forasteiros ri sempre escondendo os dentes.

No fim, recolhe-se ao seu quarto, o que possui o aziago número 13. No meio da noite acorda e, guiado apenas por um toco de vela, vai ao banheiro coletivo da hospedaria. Enquanto se desafoga, ouve o resfolegar de um cavalo e por uma fresta consegue ver que era justo o animal de Luís Arnaldo. Chega até a enxergar-lhe inúmeras asas. Corre assustado para o seu quarto, não sem antes ver o eqüino voar.

Volta para seu sono perturbado, interrompido pela gritaria dos vizinhos: estavam perseguindo um lobo, ou melhor, o lobisomem. O animal acaba – numa cena bastante pungente – massacrado pelos moradores. Roseno, que já estava decepcionado pela ausência das rinhas de galo, decide, diante de tudo o que havia presenciado, partir de Aruanã. No caminho, admira-se ao encontrar com o desdentado Luís, que estava voltando à cidade. É este quem lhe diz que o lobisomem era o forasteiro que tanto escondia a falta de dentes.

Está terminando o seu prazo de deslocamento e o Brioso parece que sente, pois cavalga mais rápido, até nervoso. Está-se aproximando do clímax da novela, depois de toda uma narrativa que somava amor, guerra e assombração, este último elemento nada mais era do que o medo da morte. E é o que vai tomando mais forma no final, o que parece ser pressentido pelo herói, principalmente quando vê urubus sobrevoando a região que era o rancho onde devia estar Doroí. Corre desesperadamente para lá.

Chegando, só encontra a casa abandonada e crivada de balas. Sua fúria e desespero se descarregam soltando tiros para todas as direções, o que acaba por derrubar de uma árvore a negra Nhô, que ali se havia escondido. Em meio à tensão, consegue arrancar da empregada informações por demais dolorosas: Doroí ainda não havia dado a luz, mas tinha sido levada dali para a Guerra do Paranavaí.

E assim encerra-se o conto, com o amanhecer do sétimo dia. Com esse anticlímax, pois que frustra as expectativas do leitor, bem no esquema de contos como “Os Irmãos Dagobé” e “Tarantão, Meu Patrão”, de Primeiras Estórias ou mais ainda como “A Cartomante”, de Machado de Assis, pois o que acontece no final já havia sido anunciado em elementos disseminados pelo texto, mas que o leitor acaba ignorando por criar uma expectativa em outra direção.

Fonte:
http://www.lol.pro.br/

Wilson Bueno (O Escritor em Xeque)


Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão

Como construiu o escritor que é hoje?

Posso dizer que foi uma lenta e meticulosa procura de um "sentido" para viver, pra existir cá neste mundo insensato. Não que tenha havido um propósito deliberado, digamos assim, de "construir" o escritor, como você coloca na sua pergunta. O escritor foi surgindo na exata medida em que a vida foi solicitando de mim um "sentido". E junto com esta busca, a cada vez, o gosto, o prazer do texto, a epifania da escrita. Difícil escavar a pedra bruta, muita vez só com as unhas das mãos, para dali extrair quem sabe uma esmeralda viva. Há textos que são esmeraldas vivas e não que eu tenha chegado a alguma, mas sei que isto é possível. É da natureza da velha ars literaria esta e outras amplas possibilidades. É preciso amor ao texto como se ama a um homem ou a uma mulher...

Há muita diferença entre escrever para o público infantil e para o adulto?

Olha, eu só tenho um livro destinado exclusivamente para as crianças, embora muitos de meus textos, sobretudo a parte zoofílica, as fábulas principalmente, possam ser lidos por pessoas de 0 a 100. Mas o meu único livro digamos "infantil", estrito senso, se chama "Os Chuvosos" e acaba de ser publicado, em edição artesanal-luxo, pela Tigre do Espelho, da poeta e designer gráfica Jussara Salazar. Mas, acredite, não escrevi "Os Chuvosos" pensando especificamente nas crianças, pelo contrário - era até, em princípio, para integrar o meu livro mais recente, "Jardim Zoológico" ( Iluminuras, 1999) que não é propriamente um livro infantil, não é? Mas aí deliberamos, eu e Jussara, que o livro seria destinado às crianças e como eu o tinha escrito para uma menina, Kaira, então com 5 anos, e tinha a ela dedicado o texto, "Os Chuvosos" ficou sendo mesmo um título de literatura infantil... Não sei se respondi sua pergunta, mas, em síntese, tudo para mim é o prazer do texto. Divirto- me tanto com "Finnegans Wake" quanto com as estórias dos Irmãos Grimm, e decididamente não penso, quando de minha fatura literária, pessoal, para quem eles, os textos, se destinam...

Seu mais recente livro é "Jardim Zoológico", que acaba de ser publicado pela Iluminuras. O que há de novo em seu trabalho?

Dentro de uma linha evolutiva, se assim podemos dizer, de minhas zoolatrias, que começa lá atrás, em 1991, com "Manual de Zoofilia" ( Noa Noa) onde discuto a mito-poética do amor erótico humano a partir de bichos como cadelas ou corvos, elefantes ou polvos, moscas ou colibris, "Jardim Zoológico" é um momento agudizado daquela vertente. Não fiz por menos - decidi inventar e/ou inventariar novos bichos para, a partir de sua forma e conteúdo, refletir sobre a pobre condição humana. Ali onde havia um pardal, digamos, instaure-se, por exemplo, os giromas; ali onde, arisca, cheia de nosso presto amor com raiva, se atocaiava uma raposa, coloque-se em seu lugar, os guapés, micro-cães menores que um dedo humano e seus filhotes inverossímeis. Penso que o Jardim é mais filosófico que o Manual, mais maduro também, embora, alguns exagerados, considerem o livrinho editado pela Noa Noa e que mereceu recente uma segunda edição pela editora da UFPG, a melhor coisa que fiz até hoje, chegando ao cúmulo de classificá-lo como obra-prima, - esta palavra perigosa - , o que é, evidente, uma inverdade...

Quem assina o prefácio de "Jardim Zoológico" é Arnaldo Antunes. A letra de música é poesia?

No meu entender, a poesia está em tudo o que se queira como poesia. Nos filmes publicitários, nas bulas de remédio, nos out-doors, nos muros da cidade aflita, na prosa de Goethe ou nos sonetos de Machado de Assis. Como não estaria nas letras de música, com nossos poetas-compositores, nós que somos um país musical e que acrescentamos ao mundo insuspeitadas essências nesta área - do samba à bossa-nova, do tropicalismo ao frevo? Agora, há letras de música e letras de música; como há sonetos de Machado de Assis e sonetos de J.G. de Araújo Jorge...

Com quantas metáfora se faz um poema?

Responderia a esta pergunta com uma utopia e novas perguntas - haverá a vez de um poema sem metáfora? Como seria um poema destituído de toda metaforização? Será possível um poema assim esquizofrenicamente colado ao real feito uma segunda pele? E que poesia é esta que não trans-figura? Tal poema seria, para não fugir da metáfora, só a sina de ser, rude como um coice...

Borges dizia que se há um telefone sobre a mesa e ele não tem função, a sua presença num romance é dispensável. Concorda?

Em gênero, número e grau. Este telefone exemplificado por Borges pode até não tocar, ninguém usá-lo para fazer uma ligação, mas a sua função visceral tem que ser dada. Este telefone recortado na ambiência do texto terá que dizer algo e desde já deduzimos que não será qualquer coisa, e que mesmo que seja qualquer coisa isto tem que estar conectado ao corpus do texto feito uma fatalidade.

Como você vê 18 páginas de "Mar Paraguayo" ( Iluminuras, 1992) ter sido incluídas numa das mais importantes antologias latino-americanas dos últimos tempos que é "Medusario" ( México, Fondo de Cultura Económica), organizada por Roberto Echavarren e José Kozer?

É preciso lembrar que lá também estão fragmentos de "Galáxias", de Haroldo de Campos, e também fragmentos do "Catatau", de Paulo Leminski - igualmente como representantes do Brasil na antologia. Acho que está mais do que na hora de a literatura brasileira, uma das literaturas mais ricas do mundo, ser ao menos conhecida pelos nossos vizinhos de língua hispânica. É incompreensível que não nos conheçam ou nos conheçam muito pouco. E quando travam contato com as nossas coisas, veja-se o exagero e o deslumbre - vão logo nos antologizando de um modo generoso e inteiro, como agora, com Medusario. A se destacar, o grande pequeno ensaio que introduz "Mar Paraguayo" na antologia, uma visada aguda e inteligente sobre o texto, realizada pelo crítico Roberto Echavarren. Estar ali, ao lado das mais importantes expressões da nova literatura latino-americana, além da honra, tem me dado grandes alegrias.

Como encara a Internet? Como utiliza a web? O livro corre perigo?

O livro só tem ganhado com a Internet. Nunca a literatura encontrou um meio tão pródigo em propagandeá-la, em multiplicá-la. Não é difícil hoje você ter acesso à poesia, digamos, servo-croata, bastando para tanto um endereço eletrônico e um movimento de "enter" em seu teclado. E, depois, tem o inglês, este esperanto vitorioso, que nos leva aos quatro cantos da Terra, pelas teias da web. Não viveria hoje sem a Internet - ela passou a se construir numa coisa essencial em minha vida. É nela que pesquiso, converso, bordo e danço... E, sobretudo, é companhia, quando, tarde da noite, a prática de urrar, cá no meu estúdio do arrabalde curitibano, leva-me a muitas modulações de uivos - longos, stacattos, curtos e agudos, ou graves e solenes feito o balir de um cervo em agonia...

Tem alguma epígrafe?

Tenho muitas, mas gosto particularmente da que inscrevi ao pórtico de "Manual de Zoofilia" e que é atribuída a Shakespeare - "A planta chamada mandrágora é afim com o reino animal porque grita quando é arrancada e esse grito pode enlouquecer quem o escuta."

Qual o papel do escritor na sociedade?

Nossa função, penso, é não deixar nunca que a superfície chapada das coisas vigore, ou se revigore. O compromisso do escritor é com o lúdico, com o in-útil essencial da vida. Brincantes e mágicos, feiticeiros e inventores, os escritores temos que estar atentos para que a linguagem não congele em fórmulas exitosas. Necessário o gosto e o gozo do texto sempre novo, o ar, a nova aragem. Numa sociedade que tende à estagnação da linguagem, o escritor é aquele demônio capaz de revirar o tempo todo, revirar esta mesma linguagem para que ela não pereça nem morra de preguiça ou pelo uso congelado de sua repetência. O olhar do escritor tem que estar sempre e invariavelmente na direção do horizonte... Quem se dedica a buscar, está sempre encontrando.

Fonte:
A Garganta da Serpente. http://www.gargantadaserpente.com/

Escola Sem Livros Agora É Fora da Lei



Do Correio Braziliense de 26/05/2010

Nova legislação determina que todos os colégios brasileiros disponibilizem, até 2020, uma biblioteca aos alunos

Agora é lei: todas as Escolas da rede pública e particular são obrigadas a ter bibliotecas. Sancionada pelo presidente Lula e publicada ontem no Diário Oficial da União, a Lei Federal nº 12.244/ 2010 determina que as instituições de todos os sistemas de ensino tenham um espaço com acervo de livros de, no mínimo, um título por aluno matriculado. Cada sistema deverá adaptar o acervo conforme sua realidade, além de divulgar orientações de guarda, preservação, organização e funcionamento das bibliotecas Escolares. O prazo para instalação dos espaços destinados a livros, material videográfico, documentos para consulta, pesquisa e leitura é de dez anos. No Brasil, pouco mais de um terço (52.355) das 152.251 instituições de ensino fundamental das redes pública e privada dispõem de biblioteca, de acordo com o Censo Escolar 2009. No Distrito Federal, a situação é um pouco melhor. Das 833 Escolas públicas e particulares de ensino fundamental, 481 têm bibliotecas (58%). Dessas, 227 são públicas.

Inaugurada em agosto do ano passado, a Escola Classe 2 da Estrutural já tem uma sala reservada e decorada, mas faltam estantes para organizar o pequeno acervo e atender aos 786 estudantes. Boa parte dos 1,5 mil livros, alguns doados e outros cedidos pela Secretaria de Educação do DF (SEDF), está guardada em caixas.

Enquanto isso, o jeito é trabalhar com livros dentro de sala de aula. “Queria uma biblioteca para eu ler e estudar em silêncio”, diz o pequeno Matheus Feitosa, 8 anos. “Quando a gente precisa de uma matéria para estudar, não tem onde pesquisar”, lamenta Luís Felipe Costa, 8.

Como era de se esperar, a realidade é outra no Colégio Marista de Brasília, ensino fundamental. Para atender à demanda dos cerca de 2,8 mil alunos, o Centro de Referência da Aprendizagem, como é chamada a biblioteca, tem três andares com 37 mil livros para todas as idades, 25 computadores, cabines para estudo individual e para grupos, sala de vídeo, videoteca, mapoteca, além de um bibliotecário e seis assistentes para gerir tudo isso. As colegas Juliana Barros e Marcelle Borges, 13 anos, sempre frequentam o espaço. Juliana destaca a quantidade de recursos para ajudar em trabalhos e deveres de casa. Marcelle gosta do silêncio.

Na avaliação de Marcelo Soares, diretor de políticas de formação, materiais didáticos e tecnologias para Educação básica do Ministério da Educação, a biblioteca é essencial para o desenvolvimento cultural e intelectual de crianças e jovens, além de servir para aprimorar o gosto pela leitura e pesquisa. Ele destaca, no entanto, que várias pesquisas têm demonstrado que só a existência do espaço físico não é suficiente. E admite que há muito o que aprimorar, como ampliação e atualização do acervo, melhoria da infraestrutura, mobiliário e formação de profissionais que atenderão o público. “Mas o primeiro passo é as bibliotecas existirem. Quando isso acontecer, é preciso que tenham condições de fazer com que o aspecto qualitativo também vá se aprimorando.”

Se não houver um programa pedagógico e uma estrutura adequada, não adianta”, alerta o bibliotecário Luiz Antônio Gonçalves da Silva. “As bibliotecas são sempre relegadas a segundo plano, falta pessoal habilitado. É um local onde ficam professores e funcionários com problemas de saúde ou de adaptação. Se isso permanecer, não adianta.”

Fontes:
Colaboração de Delasnieve Daspet

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Emilio Germani (1917 - 2010)

Emilio Germani falece hoje, 2 de junho, aos 92 anos de idade



O industrial aposentado Emílio Germani, de 92 anos, morreu, às 4h da manhã desta quarta-feira (2), na casa onde morava, em Maringá, vítima de câncer.

Germani, um dos pioneiros da cidade, nasceu em Capinzal (SC) no dia 22 de junho de 1917. Ele foi presidente da Associação Comercial e Industrial de Maringá (Acim), ajudou a fundar o Rotary na cidade e também a Germani Alimentos.

Germani era membro da Academia de Letras de Maringá, dono da cadeira número 26, cujo patrono é Machado de Assis. Ele é autor de "Coletânea Rotária"; "Encruzilhadas" (autobiografia), "Fragmentos Históricos do Distrito 4630? e "Retalhos da Vida".

Publicou grande número de artigos em boletins, jornais e revistas, inclusive da Associação Comercial e Industrial de Maringá (ACIM). Foi redator de boletins periódicos de informação rotária e ainda de outras publicações esparsas e de poesias.

Emílio era casado com Elza Germani. Ele deixou 11 filhos, 25 netos e 11 bisnetos.

O velório começa às 9h, na Casa da Amizade Rotary, que fica na Avenida Cerro Azul, 199, na Zona 02. O sepultamento será às 17h30 no Cemitério Municipal.

Rotary

Para José Manoel Martin Hernandes Filho, que será o governador do distrito do Rotary 4630 (que contempla Maringá e outros 47 municípios) a partir de julho, os rotarianos da região perderam "um pai". "Todos nós o chamávamos de guru. Sempre pedíamos conselhos a ele", afirma.

Hernandes conta que Germani foi o fundador do Rotary na cidade, no início da década de 50. Foi também governador do distrito e o quinto presidente do clube em Maringá. O Rotary hoje possui aproximadamente 400 membros.

Letras

A presidente da Academia de Letras de Maringá, Olga Maria Agulhon, também lamenta a morte do pioneiro. "Ele foi um grande exemplo de vida. Foi um privilégio poder conviver com Germani", afirma.

Ela ressalta a importância da obra dele para a literatura da cidade. No dia 05 de maio, Germani lançou a sua última obra, "Folhas Espaças", que reúne poesias e ensaios. "Faremos uma homenagem a ele nesta tarde", fala.

A Prefeitura de Maringá também enviou uma nota lamentando a morte do pioneiro.

Fonte:
O Diario de Maringá

Carlos Drummond de Andrade (A Incapacidade de Ser Verdadeiro)


Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.

A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos. feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.

Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:

- Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.

Fontes:
http://www.coladaweb.com/
Imagem =
http://os-dez-traquinas-mais-uma.blogspot.com

A. A. de Assis (A Língua da Gente) Parte 14



13. Polissemia (I)

Há uma brincadeira assim: é prêmio ao valor; é tom de cor; dá forte sabor; é um ser falador... O que é o que é ?... Isso mesmo. A resposta é louro – prêmio ao valor (os louros da vitória, láurea, laurel); tom de cor (cabelos louros = amarelos); dá forte sabor (folhas de louro, usadas como tempero); um ser falador (louro, o papagaio).

A isso se chama polissemia (poli = muitos + sema = significado): muitos significados para um mesmo significante. Vejamos, por exemplo, a palavra ponto (do latim punctum), que significava originariamente “furo”. Era costume fazer-se um buraco, um furo (punctum) para marcar algum lugar, disso resultando que ponto, em pouco tempo, virasse sinônimo de marca. Daí por diante, de metáfora em metáfora, o verbete ponto, com seus múltiplos significados, foi ocupando espaço cada vez maior nos dicionários. Confira: ponto a ponto, ponto culminante, ponto de apoio, ponto de bala, ponto de chegada, ponto de cruz, ponto de ebulição, ponto de honra, ponto de interrogação, ponto de ônibus, ponto de saturação, ponto de táxi, ponto de vista, ponto facultativo, ponto final, ponto morto, pontos cardeais, chegar a tal hora em ponto, entregar os pontos, estar a ponto de explodir, fazer ponto no bar, fazer tantos pontos na loteria, levar tantos pontos na cabeça, não dar ponto sem nó, o doce está no ponto, o ponto que caiu na prova, tocar no ponto fraco, vender o ponto...

A polissemia pode dar origem a comunicados ambíguos, por isso exige especial cuidado em textos que exijam máxima clareza e exatidão. Trabalhada, porém, com engenho e arte, permite interessantes jogos de palavras, e tem sido utilizada com frequência, sobretudo, na poesia, na publicidade e no humorismo.

Observe estes versos de Manuel Bandeira: No Nordeste faz calor também, / mas lá tem brisa: / Vamos viver de brisa, Anarina! – A chave do poema está justamente no duplo sentido da palavra brisa, ainda mais se considerarmos o nome da personagem – Anarina.

Veja também estes versos de Geir Campos: Se eu lhes desse agora fragmentos do meu passado, / seria como dar-lhes um presente usado. – Observe a habilidade com que o poeta tirou proveito do jogo semântico passado-presente, explorando a ambiguidade da palavra presente.

A polissemia foi sempre grande aliada dos criadores de textos publicitários, mestres na arte de tirar o melhor proveito da ambiguidade das palavras. Veja estes exemplos, em que marcamos com itálico as palavras-chave:

* Uncle Ben’s é o arroz que pegou porque não gruda.
* Papel – uma indústria de fibra.
* Dumont – o primeiro a cada segundo.
* Delta AirLines – Você se sente lá em cima.
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Fonte:
A. A. de Assis. A Língua da Gente. Maringá: Edição do Autor, 2010

Dimas Carvalho (Grau Zero)


Até hoje não sei se o que aconteceu comigo foi sonho ou realidade. Às vezes penso que devo ter perdido temporariamente a razão, que delirei e tive febre. Parece-me que passei por um período de insônias, delírios, suores frios, pés gelados, a cabeça doendo. Encontrei depois pelas gavetas algumas caixas de psicotrópicos, de dosagem elevada. No entanto, o meu médico afirmava que nunca estive tão normal quanto nesta época, pelo menos aparentemente. De modo que continuo sem saber o que pensar desses estranhos acontecimentos.

Tudo começou porque eu estava desempregado e tinha como hábito ir para a praça central da cidade. Todas as tardes ficava lá, absorto nos pensamentos mais desconexos, devaneando, enquanto a multidão fluía. Era um espetáculo ao qual eu não prestava muita atenção, mas que, inexplicavelmente, me distraía das idéias atrozes que me atormentavam. Eu me deixava ficar na praça até o sol se pôr, e às vezes só pelas oito, oito e meia da noite, é que voltava para casa. Neste trajeto eu gastava talvez uns quarenta minutos, que fazia sem pressa, porque morava só, num quarto pequeno, e sabia bastante bem que a noite seria muito longa. Geralmente eu lia até de madrugada, ou ficava assistindo televisão.

Assim corria a minha vida, sem grandes sobressaltos. Na parte da manhã, olhava os jornais, procurando emprego, ou então ia apresentar o meu currículo em firmas que estivessem possivelmente oferecendo vagas. Mas na maioria das ocasiões ficava em casa, lendo e fumando, quando o dinheiro dava para o cigarro.

Numa tarde — fazia três meses que eu estava sem trabalhar e o meu desânimo aumentava — cheguei à praça mais deprimido que de costume. Sentei-me num banco central, de onde podia contemplar a grande fonte, guarnecida de ninfas e dragões de pedra, e no centro da qual fica a coluna da hora. Estava concentrado em olhar para o jorro d’água, quando vi, do lado oposto, atravessando a rua, uma mulher de vestido preto. Imediatamente, alguma coisa nela me chamou a atenção — o modo de andar, os cabelos castanhos, o rosto singularmente expressivo, o quê, não tenho certeza. Mas — e foi isso que verdadeiramente me fascinou logo num segundo momento — havia no seu olhar um sentimento triste, como de uma nostalgia infinita, de quem se achasse perdida e não tivesse esperança de nunca mais ser encontrada. E esse olhar parecia que me chamava para si, embora, pelo que pude notar, ela sequer houvesse dado pela minha presença.

Me levantar e segui-la foi uma ação automática, que executei em estado de semi-inconsciência. Eu tinha a impressão de que acabava de me acontecer o fato mais importante de toda a minha existência; e sentia uma angústia intensa, esquisitamente misturada com uma alegria tal como eu nunca havia sentido.

A mulher caminhava rapidamente, e eu só avistava as suas costas, os reflexos dourados dos cabelos. O que eu mais queria no mundo era que ela olhasse para trás, pelo menos de relance, mas isto não acontecia. Apressei os passos, na esperança de alcançá-la, barroando nos transeuntes, e efetivamente me aproximei bastante, até a distância de um braço. Mas então, quando podia tocá-la, deixei-me ficar estupidamente parado, como se uma força invisível me acorrentasse ao solo. E com lágrimas nos olhos a vi desaparecer, irremediavelmente desaparecer.

Depois disto, em que estado de ânimo passei as 24 horas seguintes! Algo me dizia que a viria novamente no dia seguinte, no mesmo local e no mesmo horário. Imaginem então a noite que passei, rolando na cama, e as vezes que consultei o relógio, tentando inutilmente apressar o tempo, que, pelo contrário, se arrastava com uma lentidão de lesma. Quando o sol apareceu, não consegui me conter, e, trocando de roupa, me encaminhei para a praça, sofregamente, sem sequer me preocupar em quebrar o jejum. E durante toda esta manhã, que durou séculos, caminhei centenas de vezes, talvez milhares, em torno da praça e pelas ruas adjacentes.

Veio a tarde, e a mulher não apareceu. Desesperado, eu rilhava os dentes, mordia as unhas, e as horas passavam indiferentes, como ondas regulares de um mar tenebroso, mar de piche, lodo e lama no qual eu afundava. Às 11 da noite, perdendo definitivamente as esperanças de um encontro improvável, e após ter esquadrinhado os recantos da praça pela milésima vez, retornei para casa, trôpego e faminto. Lembro-me que soluçava, ao me aproximar do quartinho. E quando fechei a porta, louco de dor, rolei pelo chão, balbuciando obscenidades, pragas e maldições. Chorei então até desmaiar, já de madrugada, exausto de cansaço e de fome, pois nada havia comido durante todo o dia.

E assim transcorreram três dias, em que vivi como um sonâmbulo, o mundo ao redor transformado em uma massa de névoa, espessa e sem sentido. Em várias ocasiões, ao deixar a praça, onde passava agora todo o tempo, me dirigia ao porto; de cima do cais ficava vendo o mar, lá embaixo, brigando com os rochedos pontiagudos. Eu segurava no corrimão de ferro, que contorna os trapiches, e o vaivém das águas me hipnotizava, como se fosse um chamado, uma cantilena monótona e maviosa que me puxasse para dentro do abismo. E entre as espumas, trêmula, eu tinha a ilusão de avistar, submersa, a imagem mais que todas querida.

Ao cabo de três dias, a mulher apareceu novamente. Trajava um vestido azul claro, de alças, mostrando os ombros de puro mármore. Desta feita, ela me olhou por um instante, com seus olhos de mares longínquos, e houve neste relâmpago como que uma mensagem de reconhecimento, como se fôssemos companheiros de uma mesma jornada começada há muito tempo atrás, companheiros que conviveram por longos anos, e que um acaso ou um infortúnio houvesse separado. A sua boca se entreabria, para saudar o reencontro, mas foi outra coisa que ouvi, com nitidez, apesar de trinta metros mediarem entre nós dois:

— Não se aproxime de mim, será a sua perdição.

Estupefato com o que acabava de escutar, deixei-me ficar, atônito, enquanto ela desaparecia de novo no turbilhão incessante. E a partir desta data, infalivelmente, todos os dias eu conseguia vê-la, embora de modo rápido. Embora fossem baldadas todos as maneiras que imaginei para acompanhá-la, falar com ela, beijar-lhe as mãos e os olhos, ajoelhar-me aos seus pés e lhe oferecer o punhal com que ela me trespassaria o peito.

Durante esta fase — que se estendeu por 21 dias precisamente — forjei toda espécie de truques para obter seu endereço. Em meus delírios, elaborei os estratagemas mais complexos e absurdos; e em minha mente se sucediam, alternadamente e numa velocidade estonteante, a exaltação e o desânimo, a certeza mais absoluta e o desengano mais amargo. De sua visão fugaz, que sumia como um fantasma, era que eu me alimentava, e onde ia buscar forças para continuar, paradoxalmente, vivo. E somente desta fantasia feroz e febril eu tirava o meu sustento.

Passaram-se três semanas, e eu a via diariamente, mas se fosse feita a soma dos minutos, creio que estes não chegariam a dez. Dez? Talvez cinco. De qualquer forma, esta situação era menos pior do que a que veio a seguir: ela sumiu para não mais voltar.

Desde então, muitos anos se passaram. Consegui um lugar no funcionalismo público, que me garante a sobrevivência. Casei, tenho dois filhos. Minha mulher não é mais nem menos — uma pessoa mediana, normal como tantas outras. Não vou contar dos primeiros meses que se seguiram ao desaparecimento daquela que foi a luz da minha vida. Evitava passar pela praça central, pelas ruas que pudessem recordar de algum modo a sua lembrança. E tudo transcorria assim, em cores cinzas, nem menos nem mais, os anos se sucedendo em sua cantiga repetida. Até que, há uma semana, o telefone toca, sempre à mesma hora, e, quando eu atendo, um longo silêncio se segue, pontuado por uma respiração quase inaudível. E eu também nada digo, deixo-me ficar mudo, porque sei muito bem o que me espera do outro lado. As palavras que não digo, e também as que não ouço, ressoam, claras e inequívocas, na minha cabeça. Alguém, de muito longe, chama por mim.

E sei o que inevitavelmente virá: suores, delírios, insônia, pés gelados. O meu médico continua afirmando que não tenho doença alguma, e que aliás nunca tive. Sei também para onde os meus passos me arrastam, contra a vontade: para o porto, para o mar, para os recifes pontiagudos, porque entre as espumas e as ondas ela me espera, e com ela deverei, mais cedo ou mais tarde, finalmente me encontrar.

Fontes:
Nilto Maciel e Soares Feitosa. Jornal do Conto