quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Ivan Carlo (Manual de Redação Jornalística) Parte 6


CAPÍTULO 5
O JORNAL NÃO PRODUZ INFORMAÇÃO, ELE A DIVULGA

Alguém forneceu a informação ao jornal. Essa fonte deve ser citada. Quando uma matéria diz O consumo de energia elétrica em Macapá nunca foi tão alto, temos de lembrar que alguém repassou essa informação ao jornal. Deve-se citar o autor da fonte. A informação ficaria assim:

Segundo o Presidente da Companhia Elétrica, o consumo de energia elétrica em Macapá nunca foi tão alto. Nem sempre se usa “segundo”.

Há outras maneiras de identificar a fonte. Veja:
“O Consumo de energia elétrica em Macapá nunca foi tão alto”, diz o Presidente da Companhia Elétrica.

Outra maneira de citar a fonte:
O Presidente da Companhia Elétrica diz que “o consumo de energia elétrica em Macapá nunca foi tão alto”.

Se a citação for mais longa, a identificação do seu autor pode vir no meio do texto. Veja:
“O Consumo de energia elétrica nunca foi tão alto”, afirma o Presidente da Companhia Elétrica. “Estamos aumentando a produção para evitar um blecaute”.

Citar a fonte dá mais credibilidade à notícia.

Se o jornal não a cita, o leitor pode considerar que a informação não é confiável. O uso de citações dão à matéria maior verossimilhança. Além disso, há um outro motivo para a citação literal do que a pessoa disse.

A citação literal da fala dos personagens é fator importante da retórica do jornalismo. Ela permite ao leitor se identificar com a pessoa e com seu drama, ou compreender melhor seu ponto de vista. A fala também serve para demonstrar aspectos do personagem que sejam importantes, caracterizando-o.

COMO FAZER A CITAÇÃO

Veja no exemplo abaixo como repórter organizou as citações. Tudo que expressa o ponto de vista do personagem foi colocado entre aspas:

Sem definir o que é uma vida "honrada", Buchanan disse aos repórteres que gays e lésbicas em sua administração precisariam manter sua sexualidade "privada", e não defenderem direitos para os homossexuais. "Não vou analisar a vida das pessoas", disse. "Se passarem pelo crivo do FBI, para mim é o bastante." Buchanan disse que, no passado, trabalhou com pessoas que ele "achava que eram gays", e que trabalhavam "muito bem". As citações mostram para o leitor o preconceito do personagem. Ao colocar entre aspas o texto, o jornalista deixa bem claro que aquele é o ponto de vista de Buchanan, e não seu. Por outro lado, embora qualquer um possa perceber o preconceito implícito na situação, em nenhum momento o texto diz que Buchanan é preconceituoso. Ele simplesmente citas as falas do mesmo e deixa a cargo do leitor essa compreensão.

Atenção: O fato de você fazer uma entrevista com uma pessoa, não significa que isso vá sair no texto na forma de entrevista, com perguntas e respostas.
––––-
continua…

Fonte:
Virtualbooks

Ialmar Pio Schneider (Soneto a Nossa Senhora Aparecida)


Dia de Nossa Senhora de Aparecida - 12 de outubro

RAINHA DO CÉU

Nossa Senhora, baixai vosso olhar
Pra mim que sou um pobre pecador,
Enchei o meu caminho de fulgor,
Levai-me sempre pelo bom andar...

Mãe do Céu, deposito em vosso altar
Consagrado todo meu pobre amor,
Enchei-o para sempre de esplendor
Para que nunca cesse de brilhar.

E quando a chama desta minha vida
Aos poucos, devagar, ir se apagando,
Vinde com vossa vela, mãe querida,

Me levar por estes ares voando
Para aquela bela mansão florida
Onde os anjos estão sempre cantando...

- em agosto de 1959 - Sertão - RS

Fontes:
Soneto enviado pelo autor
Imagem = http://www.igrejacatolica.com

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XV – Vésperas do Pleito


CAPITULO XV
Vésperas do Pleito


No próximo domingo voei mais cedo ao castelo, ansioso pela continuação das revelações de miss Jane.

Encontrei-a triste.

— Aconteceu-lhe alguma coisa? inquiri inquieto.

— Nada! respondeu-me num suspiro. Saudades de meu pai apenas. Estive ontem no cemitério e minha dor reavivou-se. Como ainda sinto pungente o desfalque sofrido pela sinfonia do universo com a perda de sua nota mais bela!...

A tristeza de minha amiga contagiou-me de tal modo que quando dei por mim uma lágrima me descia pelo rosto.

Miss Jane, comovida, apertou-me a mão. Irmanavamo-nos dia a dia, á medida que as nossas afinidades se iam revelando. Afinidades mentais e de sentimento. Apesar da aparente divergência das nossas ideias, eu sentia que no fundo pensávamos da mesma forma. Quem ali nos visse a conversar da vida futura, juraria sermos amigos velhos ou parentes muito próximos — e outra não era a minha impressão. Parecia-me conhece-la de séculos, e nunca ter convivido com outra pessoa. A menor sombra que passasse pela sua alma logo se refletia na minha. Suas alegrias eram as minhas e minhas as suas tristezas.

Como me punha feliz aquela doce convivência...

Mas a nuvem passou afinal e pude ve-la de novo entregue aos acontecimentos do ano 2228.

— Na véspera da 88.a eleição presidencial, prosseguiu miss Jane, o país apresentava o grave aspecto desses instantes de imobilidade precursores de tormenta. Como que a armazenar forças para uma explosão trágica, todos os homens permaneciam silenciosos, num estado de repouso muito semelhante a cansaço por antecipação. Só nos arraiais femininos era intenso o rebuliço. Estavam as sabinas seguras da vitoria e lá com as diretoras do movimento já repartiam os despojos da batalha.

Devo dizer que a presidência de uma elvinista não inquietava grandemente os homens de espirito filosófico. Sabiam muito bem como o poder modifica as ideias dos que lhes galgam as cumeadas. E havia até curiosidade pela vitoria sabina por parte dos homens de temperamento artístico — dos que só encaram o mundo através de prismas estéticos. Já a massa masculina enxergava na vitoria de miss Astor o fim do tradicional predomínio do homem na terra.

– Eram ainda as eleições ao nosso sistema de hoje?

– As eleições do século 23 em nada lembravam as de hoje, consistentes na reunião dos votantes em pontos prefixados e no registro dos votos. Tudo mudara. Os eleitores não saíam de casa — radiavam simplesmente os seus votos com destino á estação central receptora de Washington. Um aparelho engenhosissimo os recebia e apurava automática e instantaneamente, imprimindo os totais definitivos na fachada do Capitólio.

De há muito se havia eliminado as hipóteses de fraude, não só porque a seleção elevara fortemente o nivel moral do povo, como ainda porque a mecanização dos trâmites entregava todo o processo eleitoral ás ondas hertzianas e á eletricidade, elementos estranhos á política e da mais perfeita incorruptibilidade.

Mas só os habitantes de Washington gozavam do privilegio de ler no Capitólio os números decisivos. O resto da população americana tambem os lia e na mesma hora, mas em suas próprias casas.

Certo que estava da vitoria, o partido feminino delirava no antegozo de um prazer inédito: bater o macho em seu reduto supremo — a Presidência da Republica!

Na antevéspera das eleições miss Elvin organizou em Washington uma passeata memorável.

– Ainda havia disso? perguntei.

– Já não havia disso, respondeu miss Jane. Miss Elvin apenas ressuscitou a velha praxe a titulo de curiosidade estética. Como vemos hoje exposições de arte retrospectiva, teve ela a ideia de organizar coisa semelhante — uma passeata á nossa moda, com discursos em
rançoso estilo retórico, nos quais se expusessem á luz do dia caducas imagens há muito aposentadas. Reuniu um lote de dez mil correligionárias para um desfile diante do Capitólio. Cada qual traria uma bandeirola ou cartaz onde se caricaturassem de maneira cruel os homens ou se inscrevessem legendas insultantes — Abaixo o macaco glabro! Morram os raptores! Viva o sabino! Basta de gorilas evoluídos!

Essa manifestação realizou-se á noite — e por falar em noite... como imagina que eram as noites desse tempo, senhor Ayrton?

– Como as de hoje, ora essa! Talvez com menos grilos, respondi.

– Pois saiba que nenhum espetáculo futuro me surpreendeu tanto como as noites das cidades americanas. A noite urbana que temos hoje não passa da noite natural picada de focos luminosos — um jogo, portanto, de sombra e luz. O que lá vi não recordava essa alternativa. Sofrera completa mudança a iluminação artificial — tamanha como a do transporte depois da vinda do rádio. Inventara-se a luz fria. Por dentro e fora eram pintadas as casas de uma tinta de luar, que dava ás cidades o aspecto de emersas de um banho de fósforo. Paredes, muros, telhados, todas as superfícies emanavam um palor uniforme de sonho. Mas o escuro é tão necessário ao homem como o luminoso, de modo que todas as casas possuíam cômodos não revestidos de luar ou apenas aquarelados de leve. Que deliciosas penumbras vi no Oblivion Park, em Eropolis!…

– Quê? Havia Eropolis, a cidade do Amor?

– Sim. Uma cidade das Mil e Uma Noites erguida no mais belo recanto dos Adirondacks e exclusivamente dedicada ao Amor. Para lá iam os enamorados, os casados em lua de mel, nela só permanecendo durante o período da ebriedade amorosa. O senhor Ayrton com certeza já amou e sabe como o amor desabrocha as criaturas em flores e perfumes. Pois imagine um éden criado pela fantasia de todos os grandes amorosos — Dante, Petrarca, Romeu, Leandro, de colaboração com todas as grandes amorosas, Julieta, Hero... Imagine a rainha Mab a provocar sonhos nesses inebriados, e Ariel a realiza-los com o carinho que punha nas comissões de Prospero. O bafo de Caliban nem de leve embaciava os mármores de Eropolis — a maravilha suprema das artes humanas ao serviço do Amor.

Nada lembrava ali o organismo que é uma cidade comum — mixto de órgãos nobres e vísceras de funções humilhantes. Em vez de ruas geométricas, meandros irregulares, ganglionados magicamente de pelouses e moitas nupciais. Sumiam-se nelas os amorosos passeantes e em tais ninhos de doçura trocavam o beijo que elabora o porvir. Tudo fora planejado em Eropolis com o intento de dar ás criaturas as mais finas sensações estéticas, de modo que os seres ali concebidos já se plasmassem em beleza e harmonia desde o contacto inicial dos gametos. Os filhos de Eropolis passaram a constituir uma elite na América — a nova aristocracia dos filhos do Amor e da Beleza.

Suspirei. Vi-me em Eropolis de mãos dadas a miss Jane, olhos nos seus olhos e em tal enlevo amoroso que todas as maravilhas da nova ilha de Calipso eram como se não existissem para mim…

– Mas deixemos em paz a cidade do Amor, disse minha amiga fechando o delicioso parenteses. Trepada a uma estátua fronteira ao Capitólio espera-nos a irrequieta miss Elvin com o seu discurso flamante, perfeitamente vieux jeu.

– "Eis", dizia ela apontando para o Capitólio com ademanes dos nossos oradores mitingueiros, "eis o símbolo da Bastilha masculina que será amanhã tomada de assalto! É a casa-mestra da força, a odiosa cabina das manivelas que dirigem tudo. Ali têm habitado os
piores monstros da humanidade. Moraram ali Gengis-Kan, Cesar, Luis 14, Frederico da Prussia, Pedro o Grande, Cromwell, todos os gorilas cesáreos que através dos séculos vêm trazendo preso ao seu carro de triunfo um ser de espécie diferente, arrancado ao companheiro natural por um gesto de violência e rapina!" e por aí além...

O presidente Kerlog ouviu pelo seu receptor de bolso a curiosa arenga e disse com muita filosofia ao ministro da Equidade:

– "Parece grotesco tudo quanto ela diz, no entanto a história mostra que nós homens temos sido arrastados por fábulas ainda mais grosseiras".

– "Isso só prova", retrucou Berald Shaw, "que miss Elvin está errada. Homens e mulheres somos positivamente da mesma espécie..."

E enquanto a passeata de miss Elvin barulhentamente prosseguia no seu percurso, voltaram os ministros á conferência, retomando-lhe o fio no ponto em que a arenga da sabina os interrompera.

– "Dentro de 48 horas tudo estará resolvido, disse o Presidente, e conto com a reeleição. Apesar de não haver obtido de Jim Roy promessa formal, estou absolutamente certo de que ele nos dará os votos negros. Deve neste momento estar apreensivo, o pobre Jim, com
o discurso de miss Elvin. Se ela nos trata a nós brancos de gorilas, que expressões reservará para os pretos de Jim?”

– "Mas miss Astor tambem conta com os votos negros", disse o ministro da Seleção Artificial.

– "Engano. Miss Astor espera de Jim uma traição. Ora, a traição para miss Astor significa não votar em seu nome. Logo, está convencida de que Jim Roy nos dará os votos negros.”

– "E nesse caso derrogaremos a lei seletiva?”

– "Sem duvida. O pigmento reclama contra o rigor excessivo da Lei Owen. Isso aliás pouco importa, porque antes dos maus efeitos da derrogação dessa lei já teremos solvido o problema. Os ultimos estudos tecnicos da exportação dos negros para a Amazonia já se acham conclusos. Jim é hábil e domina como déspota a massa negra. Havemos de nos entender. Havemos de impor-lhe por bem ou por mal a solução branca. No momento o caso se resume em obtermos dele o concurso eleitoral, pois quem lá pode saber que rumo tomarão os acontecimentos caso vençam as elvinistas? É impossível protelar por mais tempo com paliativos ilusórios a solução do binômio racial. Ou expatriamos os negros já, ou dentro de meio século seremos forçados a aceitar a solução negra, asfixiados que estaremos pela maré montante do pigmento.”

– "Destruído, aliás…

– "Oh, antes o não fosse! A mim chega a me repugnar o aspecto desses negros de pele branquicenta e cabelos carapinha. Dão-me a ideia de descascados ...”

– E miss Astor? perguntei. Continuava perplexa?

Miss Jane respondeu:

— A poucos passos da Casa Branca tambem miss Astor conferenciava com varias sumidades do seu partido.

— "Estás ministra, minha cara Dorothy Glynor, se vencermos..." dizia ela a uma linda criatura candidata ao Ministerio da Educação Social.

– "Se?..." fez. Dorothy Glynor. "Pois ainda admite duvidas depois da entente com Jim Roy?”

– "Tudo me leva a crer que Jim Roy não perderá a oportunidade de ajudar-nos a apear o macho branco inimigo tradicional da sua raça. A lógica me conduz a esse raciocínio, mas acima da lógica há em mim uma voz interna, uma ressonância que raro falha — e essa voz me diz que Jim vai trair...”

– "A nós?”

– "Não sei. Sinto no ar a traição, e sinto-a tão forte que ando presa de um estranho mal estar. É com esforço que procuro conter os meus nervos. O entusiasmo com que me apresento em campo não passa de mera atitude. O que há em mim — e cada vez mais angustiante — é uma profunda depressão nervosa..."

Miss Evelyn Astor estava á sua mesa de trabalho, em permanente comunicação com todos os distritos do país. Recebia de minuto em minuto informações animadoras, mas ouvia-as quasi desatenta. O imenso entusiasmo reinante nos arraiais femininos — entusiasmo que ela mesma acendera com suas famosas irradiações — só não contagiava a sua autora. Miss Astor metia os olhos do pressentimento pela fachada do Capitólio e não lia lá o seu nome...

Bem outra se apresentava a situação nos arraiais de Jim Roy. A população negra permanecia numa espécie de calma fatalista, aguardando com insidiosa quietude de pântano a senha que o grande lider ficara de irradiar uma hora antes do pleito. Até esse momento a formidável massa de cinquenta e tantos milhões de votantes conservar-se-ia neutra. Tinham compreendido as imensas vantagens da coesão e delegação de todas as vontades numa só, além de que depositavam em Jim Roy uma fé que nem Moisés merecera do povo hebraico. Qualquer coisa de majestade havia naquele oceano submisso — escravo de novo, escravo como sempre, mas desta vez escravo por heróico e livre consentimento.
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continua… XVI – O Titã Apresenta-se

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Trova 199 - Nemésio Prata Crisostomo (Fortaleza/CE)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 361)

Ademar Macedo sendo premiado em Caicó/RN pelas trovadoras Mara Garcia e Ieda Lima

Uma Trova Nacional

Que alegria te encontrar,
que prazer te conhecer,
ó meu irmão Ademar...
Poeta do Amanhecer.
–VANDA FAGUNDES QUEIROZ/PR–

Uma Trova Potiguar

Ao chegar neste recinto
das terras de Caicó,
com todo fervor eu sinto
que aqui não me sinto só.
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Uma Trova Premiada

2011 - “Relâmpago“ Caicó/RN
Tema: CAICÓ - Venc.

Ah! Caicó, acabou-se,
foram três dias... Amei!
Tanta alegria que eu trouxe,
quanta saudade levei!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Uma Trova de Ademar

Com a brilhante chegada
dessa geração mais nova,
Caicó será chamada:
“Berço Sagrado da Trova!”
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Na conquista de troféus,
um só, quero merecer:
chegar às portas dos céus
e a mão de Deus me acolher.
–AUROLINA DE CASTRO/AM–

Simplesmente Poesia

Aos Irmãos Trovadores...
–ADEMAR MACEDO/RN–

Nas competições de trovas
feitas por nós, Trovadores,
não nos importa diplomas,
troféus, medalhas, valores.
Em Caicó e em Natal
eu vi no mais alto astral
um grupo de Vencedores...

Estrofe do Dia

Oito e nove de outubro, certamente,
vão ficar nos arquivos da memória,
Caicó e Natal, juntas fizeram,
da poesia a mais linda trajetória;
tanta gente feliz e abraçada
numa festa que vai ficar guardada
nos mais lindos registros desta história!
–PROF. GARCIA/RN–

Soneto do Dia

Colheita
–HAROLDO LYRA/CE–

Aquelas árvores que nós plantamos
na lavoura dos sonhos conjugais,
cresceram como crescem os vegetais
que dão bons frutos quando os cultivamos.

Punhos fortes romperam matagais,
sulcando a terra onde por lá deixamos
sementes em que ambos preservamos
o vigor das raízes paternais.

Arrostando galhaças perigosas,
muitas vezes, as mãos silenciosas
removeram espinhos que encontramos.

Hoje vamos, na idade já provecta,
à sombra que das frondes se projeta,
colhendo os frutos que nós dois plantamos.

Fonte:
Textos e foto enviados pelo Autor

Iara (O Telefonema)


Ela estava sentada no sofá com o namorado vendo um filme de amor.

Era uma noite gostosa de primavera, uma brisa fresca entrava pela janela e trazia o perfume gostoso das folhas de laranjeira. Na melhor parte do filme o telefone toca, ela dá uma pausa e vai atender.

-Alo.

Do outro lado uma voz ansiosa, apressada.

-Amanda, é o Fernando, não desligue desta vez por favor.

-Não tem....

-Amanda, não diga que não tens tempo pra falar comigo, hoje não, já tentei tantas vezes falar contigo, já perdi a conta das vezes que te liguei.

-Olha, não tem....

-Por favor Amanda, me escute, eu só quero saber se algum dia você me amou, eu sei que não fui o cara que deveria ter sido pra você, eu sei que te magoei, mas é só isso que preciso, saber se algum dia você me amou. Preciso saber para encerrar tudo isto de vez, e aproveitar para pedir desculpas, eu me arrependo tanto Amanda, das vezes que eu não disse que te amo, mesmo amando. Eu deveria ter te dado mais atenção, te beijado mais, te abraçado mais vezes, te pedido mais desculpas e te escutado, eu devia.

-Mas aquela mania de ser homem, de não se abrir, de falar pouco, se achar sempre certo e não confessar o sentimento.

-Olha, só deixa eu dize....

-Não Amanda, não diga nada, me escute, e depois só responda se algum dia tu me amou. Só isso. Lembro que tu reclamavas, pedia que eu dissesse mais vezes que sentia saudades, que senti tua falta, eu dizia uma ou duas vezes e depois voltava ao meu silêncio. Sabe o que é pior Amanda, eu agia assim e temia te perder, mas não queria me mostrar inseguro, não queria me mostrar carente, na verdade não queria me mostrar. Eu sei que não tem volta, mas eu sinto tanta saudade, tu me faz tanta falta. Me arrependo tanto de não ter aproveitado a paciência que tinhas comigo e mudado, três anos Amanda, não se fica tanto tempo com alguém por nada, eu sei que havia amor, mas queria que me dissesse. Era amor de verdade, aqueles que tu chegou a pensar que não acabaria? Desculpe, mas eu precisava tanto saber, só por isso te ligo hoje, porque é o único jeito de eu acreditar que vale a pena Amanda, que eu posso mudar e também encontrar alguém e ser feliz. Assim como tu encontrou, porque eu sei que sim Amanda, que hoje és feliz, com certeza ele te escuta, te pede desculpas, fala que sente saudade, que sente tua falta. Sei que esse babaca que hoje te abraça te trata bem, faz tudo que esse babaca aqui não fez. E por isso é feliz, porque ter você Amanda, é ser feliz.

-Amanda me responde só isso, só pra eu acreditar que posso ser feliz de verdade. Tu me amou Amanda?

-Fernando, te amei sim, e muito, todos os dias, todas as horas, te amei de verdade, e pensei sim que era pra sempre. Não foi porque cansei Fernando, de falar e não ouvir, de sentir necessidade de um abraço, de querer um beijo e você com esse medo todo de te entregar. Mas te amei sim, e sei que podes amar, e fazer alguém feliz, e ser feliz. Te amei muito Fernando,muito mesmo.

-Obrigado Amanda, por me ouvir, por dizer que me amou. Adeus Amanda, adeus.

Ela volta para o sofá, ao lado do namorado, ele olhando para ela, desconfiado pergunta.

-Quem era Mariana?

-Um Fernando que amava muito uma Amanda e precisava saber se ela tinha amado ele também.

-Quem é Fernando, quem é Amanda?

-Não sei, mas ele só precisava saber que ela tinha amado ele um dia, porque eu diria que não.

Fonte:
http://www.iarapoesias.com.br/2011/10/o-telefonema.html

Eduardo White (Poesias Avulsas)


A PALAVRA

A palavra renova-se no poema.
Ganha cor,
ganha corpo,
ganha mensagem.

A palavra no poema não é estática,
pois, inteira e nua se assume
no perfeito,
no perpétuo movimento
da incógnita que a adoça.

A palavra madura é espectáculo.
Canta.
Vive.
E respira. Para tudo isso
basta
uma mão inteligente que a trabalhe,
lhe dê a dimensão do necessário
e do sentido
e lhe amaine sobre o dorso
o animal que nela dorme destemido.

A palavra é ave
migratória,
é cabo de enxada,
é fuzil, é torno de operário,
a palavra é ferida que sangra,
é navalha que mata,
é sonho que se dissipa,
visão de vidente.

A palavra é assim tantas vezes
dia claro
sinal de paisagem
e por isso é que à palavra se dá,
inteiramente,
um bom poeta
com os seus sonhos,
com os seus fantasmas,
com os seus medos
e as suas coragens,
porque é na palavra que muitas vezes está,
perdido ou escondido,
o outro homem que no poeta reside.

ASSUME O AMOR COMO UM OFÍCIO

Assume o amor como um ofício
onde tens que te esmerar,

repete-o até à perfeição,
repete-o quantas vezes for preciso
até dentro dele tudo durar
e ter sentido.

Deixa nele crescer o sol
até tarde,

deixa-o ser a asa da imaginação,
a casa da concórdia,

só nunca deixes que sobre
para não ser memória.

HÁ VEZES EM QUE NEM É A MORTE QUE SE TEME,

Há vezes em que nem é a morte que se teme,
o seu sossego de cinza,
a sua solidão escura,
mas como se morre.

Quando morrer
quero fazê-lo sem rumor algum,
sem ninguém que me chore
ou a quem doa.

E queria a morte uma ave,
nocturna ave
sigilosamente partindo
para outro tempo.

Para morrer, fá-lo-ia
em total silêncio,
severo
e lúcido.

POEMAS DA CIÊNCIA DE VOAR

Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro."
...
Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.

POEMA DA PERGUNTAÇÃO

Não somos todos, os envergonhados, os verdadeiros culpados?

Não somos nós, os indignados, os verdadeiros carrascos?

O que antes e agora julgamos, não foi apenas uma pequena evidência? O que nós prendemos não foi a mão obscura de uma consciência? E mesmo o que matamos, não foi tão somente uma ínfima parte da verdade?

E procuramos grades? E procuramos muros altos e seguros? E procuramos homens obtusos para que os possamos vigiar? E procuramos armas para os tornarmos intransponíveis? De nada nos valerá, de nada nos adiantará. Não há ferro, nem betão, nem servilismo nenhum que nos possam salvar da luz da verdade.

Uma mentira não tem sempre sede de liberdade? Uma mentira não é a cela da verdade? E quantas vezes a pretendemos prender? E com quantas grades a desejamos ocultar? E com quantas mãos a ameaçamos estrangular?

Não vale a pena. Desistamos. Em nenhum maciço de betão podemos esconder o que a nossa consciência sabe. Em nenhuma anedota, em nenhum boato, em nenhuma suposição, em nenhuma imparcialidade e em nenhum juiz e em nenhum desmentido nos jornais e em nenhum país. Nem de nós, nem dos outros.

Somos todos nós os verdadeiros culpados, são nossos os muros e as grandes onde escondemos a verdade. E deles ninguém se evadiu, somos todos nós os verdadeiros evadidos.

Fonte:
– Revista Literatas. Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona. ano 1. n. 13. 11 outubro 2011. Maputo: Movimento Literário Kuphaluxa. Gentilmente cedida por Amosse Mucavele.
– ma-schamba
– As Tormentas

Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco (Eduardo White: A «Grande Viagem,» na e Para Além da Língua...)


Para o Poeta Fernando Couto, cujos versos e os olhos deslumbrados também navegam e fazem a língua navegar.

«O navio na língua. O navio e a língua. (...) O navio está num caminho e a língua está para além dele. Olho pelas redondas vigílias da máquina tudo isto e descubro que a língua tem essa sede de viajar caminhos. Não de sê-los mas de conhecê-los, de os sonhar, de os evocar.»

Assim se inicia Dormir com Deus e um navio na língua, sexto livro de poesia do moçambicano Eduardo White. Singrando a memória e a escrita, o eu-lírico embarca na nave e na língua, zarpando em uma viagem introspectiva e metapoética pelos meandros de si, da história e de sua poesia. A imagem do navio, metaforicamente, traz a idéia da "travessia difícil", do convite à «grande viagem»(2) , rumo ao Eros primordial, centro irradiador da vida, e aos sentidos sacralizados da criação. «Ancorado na saliva», esse navio se faz evocação, espuma seminal, voz, imaginação. Viabiliza, dessa forma, a trajetória interior do poeta que se move por entre reminiscências do outrora e sombras que «entardecem o presente de seu país»(3), por entre a magia cósmica das palavras e os eróticos rumores da língua.

«E a língua, essa, poderá rumorejar?» (4) A poesia de White demonstra, na prática, que sim e Roland Barthes, teoricamente, confirma: «o rumor denota um ruído limite, um ruído impossível, o ruído daquilo que, funcionando na perfeição, não tem ruído; rumorejar é fazer ouvir a própria evaporação do ruído; o tênue, o confuso, o fremente são recebidos como os sinais de uma anulação sonora.» (5) O rumor da língua é frêmito, «fulguração da desordem» (6) que só a linguagem poética é capaz de produzir, pois, se afastando dos significados desgastados pelo uso ordinário e denotativo, alcança sentidos outros, inusitados.

E fugindo do retórico e do lugar comum que é supor que tudo isto se pensa, resultar-me nas perguntas e nas respostas que jamais fiz com a finalidade única de as pensar.(7)

Ousadia constante, «assombro amilagrado» (8) , o ato poético não almeja respostas prontas e fechadas: só se quer canto e rumor. Este, portanto, «é o ruído da fruição plural» (9) , a musicalidade própria da poesia, cujo discurso filigranado, prenhe de metáforas dissonantes, leva a língua, suavemente, a deslizar leve como um navio em sonho pelos mares de sentidos «nunca dantes navegados».

Para Barthes, «o rumor da língua forma uma utopia: a de uma música do sentido «(10). Segundo o referido teórico, somente em "seu estado utópico, a língua pode ser alargada, desnaturada»(11), atingindo a plenitude polissêmica do verbo poético.

Em White, cada palavra, cada metáfora e cada imagem criam tremores de sentidos, que, amplificados, possibilitam à língua um sonoro e musical rumorejar, resultante do embate de suas encapeladas vagas de encontro às quilhas que vão sulcando as oceânicas trilhas percorridas através dos séculos: um navio na língua, a língua e o navio... Metapoeticamente, o eu-lírico de Dormir com Deus e um navio na língua reflete sobre o próprio itinerário, absorvendo sons, ruídos e sonoridades que emanam de sua criação: A música aprofunda-nos, eleva-nos para dentro, para os ilimites que somos e não nos apercebemos. Azul e quente, amarela e doce, verde e fresca. A música a arder toda como se vinda de tudo. Da língua na música e da música da língua.(12)

É uma poiesis que mergulha na melodia própria da linguagem lírica, traçando um percurso de interiorização capaz de penetrar os abismos do ser, ao mesmo tempo que se eleva em direção a longínquas heranças da língua, «flor inicial», ampliada por infinitas trocas e diálogos: «Esse é o longe de onde vos fala a minha língua. O lugar onde a amo e a sonho para todos os outros lugares.» (13)

O poeta está só. Inicialmente, se encontra sentado à mesa de um restaurante chinês, voltado aos silenciosos traços de um Oriente que tanto marcou sua pátria e a língua portuguesa nessas margens índicas de onde se interroga, angustiado, e em sobressalto, acerca de seu próprio ofício e de sua escrita. Mas a angústia que o toma, entretanto, não interdita inteiramente a erótica que lhe anima o caminho. Intui que é necessária a inquietação para o prosseguimento da travessia. Sabe que «sonhar exige uma língua» e esta, metaforicamente transformada em navio, o transporta pelos desvãos dos tempos, trazendo-lhes memórias antigas, insuflando-o à imaginação de distantes futuros:

Agora até posso deitar-me sob ela. Refestelar-me na possibilidade de ali estar sem utilidade nenhuma. Ouvir-lhe a música, pedir-lhe absurdos. Ler um livro como um exercício e resultar, depois, no exercício de ter lido. Sentir os sonhos que se sonharam nela, as vagas que quebrou até chegar a mim. A minha língua com especiarias dentro e tecidos e bijuterias. Os sabores etílicos dos vinhos. O arroz da China. As missangas coloridas dos dromedários. O cheiro triste e ácido dos porões negreiros, os seus fatídicos destinos, o reluzente dos aços das espadas e dos elmos, a profunda nostalgia dos poetas e dos versos deportados. Esta é minha língua e não tenho outra. E sinto-me feliz de falá-la e de estar de pé no que isso significa.(14)

Um erotismo, permeado de remotos odores, sabores e cores, perpassa suas recordações e a história de seu país emerge como um híbrido mosaico de intercâmbios múltiplos que deixaram na pele do idioma e da sociedade moçambicana vestígios de diversas culturas. O poeta sorve a bebida e a memória. Entristece-se com a lembrança dos «fatídicos destinos» da diáspora negra. Delicia-se com certas minúcias e delicadezas chinesas que, esparsamente, Moçambique guardou como reminiscências do antigo comércio de porcelanas em seu litoral índico, «janela aberta ao Oriente»... Outras presenças, ao ritmo da vitrola, «girando em sua caixa convexa»(15) , se entrecruzam em seu imaginário. Ao ouvir uma canção cubana de Pablo Milanês, nostalgicamente, o eu-lírico relembra os tempos da sonhada liberdade defendida por líderes socialistas, entre os quais Fidel e Mandela. Procura, então, evocar, pelo exercício da linguagem criadora, o «outro lado da vida», «o outro lado das palavras», o outro lado da língua o além ilimitado da própria poesia, onde, sempre, «cada reverso esconde uma nova descoberta» (16) . Distraído, contempla a foto de um relógio em uma revista. A imagem do cronômetro desafivela-lhe reflexões, mas o tempo em que está inserido é outro. Como poeta, compreende que «o tempo ontológico da poesia está fora e liberto do tempo do relógio, embora possa habitá-lo e penetrá-lo nos momentos de epifania». (17)

O leve tecido da escritura poética se cruza, então, com a imagem de uma aranha no teto. A fragilidade da teia se confunde com a da diáfana caligrafia dos sonhos engendrados. Senhora da fiação e da tecelagem, a aranha se revela uma alegoria do próprio tecer poético. Criadora cósmica, aracne representa a interioridade, sendo, em muitas lendas africanas, a tecelã por excelência, a intermediária entre os deuses e os homens. Comparando-se a ela, no poder de trepar e escorregar pelos próprios fios tecidos, o poeta se vale da língua que rumoreja, galgando metafóricos sentidos por intermédio de um jogo erótico com a linguagem:

A minha língua dá-me esta visão meio enloucada que me faz supor subir as paredes da casa e buscar os seus cantos mais altos, os pensamentos que aí pousaram para os habitarem, talvez, até, os ouvidos empedrados do betão, sonoros para dentro de si e mudos para onde se exteriorizam. (...) A casa tem aranhas das quais não me quero separar que são as do texto que flutuam e as da própria vida que me procura. (18)

O texto e a teia. O poeta e a aranha. Tecidos aéreos de sonho e poesia que aprisionam e libertam. No emaranhado de reflexões, a consciência do real; no deslumbramento da criação, a sede de liberdade. Num dos mais belos trechos de Dormir com Deus e um navio na língua, ouve-se o grito social do poeta que, simultaneamente, se extasia com a beleza estética e se choca com a miséria circundante:

Atordoam-se as palavras todas e voam sobre a língua. (...) Minhas palavras luzidias, frescas, algas lentas que de rompante são pelas minhas mãos o ar onde se querem existidas. Palavras que lavram a beleza da língua e me despem quando as visto. Aqui ocorre-me pensar que vivo no país da nudez, da miséria absoluta, das crianças com suas grandes barrigas cheias de vazio, esquálidas, frágeis e tristes (...) Que palavras haveriam de dizer este quadro trágico, estes meninos sepultos por sobre o chão mas a viver para que a esperança os acredite e os ame e os furte ao desespero, estes anjos absurdos, este disforme séquito dos párias e dos canalhas, da luxúria e da trivialidade a arrotar pelos palácios. Não, não haveria nunca poesia na minha língua que pudesse ser demasiadamente bela sem chorar o grito e a revolta(19)

Ante à trágica condição dos meninos famintos de Moçambique, o sujeito lírico se desnuda e, atordoado, se questiona: «Que razões moverão a liberdade a cantar isto? Porque a liberdade aspira-se enquanto conceito e assusta como pura e profunda realidade?«(20) A consciência de ter como presente o mórbido espetáculo da fome faz o poeta sangrar. Errando, agora, solitário, em outro espaço o do quarto em que escreve , assume «a voz da tristeza» a recobrir-lhe as próprias memórias. A inquietação inerente ao poético converte-se em desencanto e dor. Porém, se indaga: «a escrita e o escritor como podem crescer (se não for) de tal modo?» (21) Intertextualizando-se com Fernando Pessoa, reafirma que o «pensar embacia tudo». Todavia, está ciente de que a poesia amadurece o ser e quanto mais dói, maior lucidez gera. Com a clareza de que «estar lúcido não é ver luzes, é ter» , passa, então, a empreender a «grande viagem» na e para além da língua. Vai à procura da cintilação divina e decide dormir com Deus. Porém, sabe que precisa se despojar de todos os luxos, alcançar a delicadeza de uma sexualidade indizível, abraçar o mais humano de si, provando a humildade «do milagre real de ser pequeno». (23) Semelhante mensagem de despojamento e humanidade traz a letra da canção brasileira Se Eu Quiser Falar com Deus, do compositor Gilberto Gil: I

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós dos sapatos
Da gravata, dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

II

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

III

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas para segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar(24)

É também nu, sentado a sós dentro de seu sonho, que o sujeito poético de Dormir com Deus e um navio na língua, após «abrir as aspas de sua angústia» e «estender as asas das alegrias», se prepara para deitar com Deus, expondo seu lado mais humilde, mais humano. «Deus é um lugar para estremecer, mapa do arrepio». Deus é «perturbadora desordem», «subversiva febre» a queimar as entranhas do poeta. É fulguração de infindas significâncias que ultrapassam os convencionais limites dos significados, é o rumorejar da linguagem da poesia no coração dos homens. É o mistério da arte e da criação instaurado no âmago do ser. Deus é a língua infinita, é a respiração emotiva do desconhecido. É a fruição plural do rumor da língua. É o além, a margem suplementar dos sentidos, a «grande viagem» do verbo e do texto em direção ao Nada:

E tendo a noite como única certeza, rebolo-me no sono e pouso a cabeça na imensidão humana do colo Dele. (...) O colo de Deus não é quente. É fundo e único, é uma vontade, um músculo inacabado e expressa-se com dignidade quando nele rimos ou choramos. Cresço para dentro reatado a mim mesmo, ao conhecimento do desconhecimento, à honra da ingenuidade porque não existem caminhos aqui para a ignorância, para o desconfiado, para o ambicionado e tão somente para a profundidade inteira e indivisível do Nada.(25)

Em Dormir com Deus e um navio na língua, a memória poética reintegra o tempo humano e histórico à eternidade cósmica da criação artística. O sonho acordado dos devaneios poéticos se situa entre o sono e a vigília, espaço limítrofe entre imaginação e realidade. É «o volante brilhante a conduzir o poeta para os caminhos de si mesmo»(26) .O percurso trilhado, contudo, fica em aberto: fora realmente vivenciado ou apenas escrito por um «eu de papel»? «Só Deus julgará isso»(27) , porque foi dormindo com Ele que o sujeito lírico se despiu das defesas e máscaras e, semi-adormecido, conseguiu vislumbrar o que totalmente deperto seria incapaz de enxergar. Neste entrelugar, ingressou no tempo Aion, na atemporalidade da arte, no Alfa, realizando a epifânica redescoberta da própria humanidade que, desvencilhada da materialidade mundana, logrou tangenciar os territórios do divino.

Configurando esse ilimitado alcançado pelo discurso lírico de Dormir com Deus e um navio na língua, os versos se dilatam e transgridem os contornos tradicionais do poema e da retórica, esgarçando as fronteiras entre poesia e prosa, entre Poesia e Filosofia. A viagem do navio na língua se transforma, assim, na travessia do próprio texto, desvelando-se como um exercício (meta)poético que, além de se tecer como pura poesia, discute semiológica e filosoficamente os caminhos da língua, da história, da linguagem, da criação literária e do próprio Homem.
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Notas
(1) WHITE, Eduardo. Dormir com deus e um navio na língua. Braga: Ed. Labirinto, 2001. p. 9.
(2) CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. RJ: José Olympio, 1999. p. 632.
(3) WHITE, E.(2001), p. 29.
(4) BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1984. p.76.
(5) Idem, . p.75.
(6) SECCHIN, Antônio Carlos. Poesia e desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 18.
(7) WHITE, E.(2001), p. 28.
(8) Idem, p. 24.
(9) BARTHES, R. (1984). p.76.
(10) Idem, p. 76.
(11) Idem, p. 76.
(12) WHITE, E.(2001), p. 27.
(13) Idem, p. 14.
(14) Idem, p. 13.
(15) Idem, p. 15.
(16) Idem, p. 16.
(17) BOSI, A. In: NOVAES, A . Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 29.
(18) WHITE, E.(2001), p. 20.
(19) Idem, p. 21.
(20) Idem, p. 21.
(21) Idem, p. 21.[Grifo do autor]
(22) Idem, p. 24.
(23) Idem, p. 31.
(24) GIL, G. Se Eu Quiser Falar com Deus. (25) WHITE, E.(2001), p. 46 e p.47. [Grifos nossos]
(26) Idem, p. 49.
(27) Idem, p. 49.


Fonte:
Críticas e Ensaios

Eduardo White (1963)


Escritor moçambicano, Eduardo Costley White nasceu em Quelimane (Moçambique), a 21 de novembro de 1963.

Após uma formação durante três anos no Instituto Industrial, o escritor exerceu funções diretivas numa empresa comercial, foi membro do Conselho de Coordenação da revista “Charrua” e dirigente da Associação de Escritores de Moçambique.

Recebeu vários prémios literários e foi considerado, em 2001, pela Associação de Imprensa Moçambicana, a Figura Literária do ano.

Livros publicados

Amar sobre o Índico (1984)
Homoíne (1987)
“País de Mim (1990); Prémio Gazeta revista Tempo
Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave (1992); Prémio Nacional de Poesia
Os Materiais de Amor Seguido de O Desafio à Tristeza (1996)
Janela para Oriente (1999)
Dormir com Deus e um Navio na Língua (2001); bilingue português/inglês; Prémio Consagração Rui de Noronha (Editora Labirinto)
As Falas do Escorpião (novela; 2002)
O Homem a Sombra e a Flor e Algumas Cartas do Interior (2004).

Numa preocupação com as origens, Eduardo White tenta na sua poesia refletir sobre a sua história e sobre Moçambique, numa tentativa de apagar as marcas da guerra e de dignificar a vida humana. Para isso, escreve através de um amor diversificado que pode ser pela amada, pela terra ou mesmo pela própria poesia, sempre num tom de ternura, de onirismo, de musicalidade e, por vezes, de erotismo.

Moderníssimo, kafkiano, os seus textos apontam para uma leitura poética metalinguística, ou seja, em que os poemas, ao engendrarem a si mesmos, contam, paralelamente, a história de seu povo (amores, sofrimentos, opressões, miséria, estigmas das guerras, etc.) e a história da própria linguagem literária. (Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante , 2005)

Empenhado em cantar o Amor, a fim de que a paz se consolidasse nos âmagos individual e nacional, White desenvolveu uma escrita poética que almejou erotizar uma terra acometida pelas degradantes conseqüências de sucessivas guerras. Exaltando a vida e tudo o que dela pulsasse, o poeta exibiu um eu-lírico marcadamente otimista, embora, muitas vezes, melancólico e indignado. […]

Os versos de Eduardo White ultrapassaram o raio de visão do senso comum. Sem perder de vista os escombros, os cadáveres, os mutilados e a miséria, a poética do autor se propôs apontar caminhos e motivações para alcançar uma estabilização social. Nesse sentido, aprendemos com White que Amor e Poesia não significam instituições alienadas ou alienantes, visto que a própria mensagem poética, em O país de mim, nos tenha advertido: “ao amor não ponhas vendas, nunca, nem sequer aos poemas” (WHITE, 1989, p. 20).

“Como explicar que um jovem escritor dê tanta importância ao tema lírico [do amor] num país tão marcado pela violência?” – questionou Michel Laban numa entrevista que integra o livro Moçambique: encontro com escritores. White justificou a seleção de seu material poético, grifando o canto subjetivo como um discurso de resistência e persistência da memória: “Antes de mais nada gostaria de ressaltar que a temática que eu usei nos dois livros11 é acima de tudo uma temática de protesto e também de relembrança. A minha geração é uma geração de guerra: da guerra colonial [...] e agora e sempre a guerra com a Renamo. O que eu procurei é levar ao leitor uma relembrança do que afinal está em nós ainda vivo, do que a gente acredita como sendo possível, como sendo real, que é o amor.” (WHITE, in: LABAN, 1998, p. 1179 apud ALMEIDA, 2006

Fontes:
– Revista Literatas. Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona. ano 1. n. 13. 11 outubro 2011. Maputo: Movimento Literário Kuphaluxa. Gentilmente cedida por Amosse Mucavele.
– http://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_White
– http://lusofonia.com.sapo.pt/white.htm

Monteiro Lobato (O Presidente Negro) XIV - Eficiência e Eugenia


CAPITULO XIV
Eficiencia e Eugenia


— O aspecto da vida americana, continuou miss Jane, mudara muito por efeito das invenções e de um grande principio peculiar ao yankee.

Quem olhasse de um ponto elevado o panorama histórico dos povos, veria, na França, uma flâmula com três palavras; na Inglaterra, um principio diretor, Tradição; na Alemanha, uma formula, Organização; na Asia, um sentimento, Fatalismo. Mas ao voltar os olhos para a América perceberia fluidificado no ambiente um principio novo — Eficiencia.

Só a América encontrara o Sésamo que abre todas as portas. Só a América, portanto, era Ação num mundo a insistir em caminhos errados e sempre a oscilar entre dois pólos — Agitação Estéril e Marasmo Fatalista.

O principio da Eficiencia resolvera todos os problemas materiais dos americanos, como o eugenismo resolvera todos os seus problemas morais. Na operosidade e uniformidade do tipo, aquele povo lembrava a colméia das abelhas. Quasi não havia distinguir um indivíduo de outro, pois tomar um homem ao acaso era ter nas mãos uma poderosa unidade de eficiencia dentro de um admirável tipo de ariano pele-avermelhado.

As mulheres não mais evocavam fisicamente as suas avós, magras umas, outras gordas, esta toda nádegas, aquela uma tábua ou de enormes seios e dentes de cavalo — verdadeira coleção de monstruosidades anatêmicas. Nem recordavam socialmente as pobres cativas de dantes, forçadas a girar no triangulo de ferro — casamento, celibato á força ou promiscuidade.

Finas sem magreza, ágeis sem macaquice, treinadas de músculos por meio de sábios esportes, conseguiram alcançar a beleza nervosa das éguas puro-sangue — o que trouxe a decadência do hipismo. Já não necessitavam os homens de dedicar-se aos cavalos para satisfação da ânsia secreta da beleza perfeita…

– Que pena ter-se perdido o porviroscópio do professor Benson! exclamei. O que eu não daria para uma espiadela nesse maravilhoso futuro!... Lindas, então, assim? perguntei levemente assanhado.

– E hábeis, respondeu miss Jane. Competiam com o homem em todas as profissões num absoluto pé de igualdade, realizando o velho ideal da independência. Os filhos lhes pertenciam e não ao progenitor, sistema matriarcal muito mais dentro da natureza, visto como o filho é mais da mãe do que do pai na proporção de nove meses para meio minuto.

Tossi uma tossezinha de encomenda; miss Jane não o percebeu e continuou:

– O característico mais frisante dessa época, toda via, estava na organização do trabalho. Todos produziam. Muito cedo chegou o americano á conclusão de que os males do mundo vinham de três pesos mortos que sobrecarregavam a sociedade — o vadio, o doente e
o pobre. Em vez de combater esses pesos mortos por meio do castigo, do remédio e da esmola, como se faz hoje, adotou solução muito mais inteligente: suprimi-los. A eugenia deu cabo do primeiro, a higiene do segundo e a eficiencia do ultimo. Aliviada da carga inútil que tanto a embaraçava e arfeava, pôde a América aproximar-se de um tipo de associação já existente na natureza, a colméia — mas a colméia da abelha que raciocina.

– Que maravilha! exclamei pesaroso de ter vindo ao mundo cedo demais. E o governo, miss Jane? Deixou de ser essa calamidade que é hoje?

– Os princípios da eficiencia tambem haviam penetrado no organismo governamental. Deixou o governo de sugerir a lembrança dos hediondos "sistemas de parasitismo" de outrora e de hoje, como a realeza de França ou o devorismo orçamentário de certas repúblicas nossas conhecidas, onde fazer parte do estado é conquistar o direito à inação da piolheira vitalícia — dormir, apodrecer na sonolência da burocracia que não espera, não deseja, não quer, não age — suga apenas. Tudo isso desapareceu, todas essas baixas formas de parasitismo. Tornou-se o estado americano uma organização em coisa nenhuma diversa das organizações particulares. Apenas maior e com funções privativamente suas.

– Sempre sob o sistema representativo?

– Sim. O sistema representativo persistiu. Mas só eram eleitos homens cujo viver social os apontava como seres de escol pela força e equilibrio do cérebro. Não constituía uma situação sujeita a disputas, o ser deputado ou senador. Era uma contingência. Os homens de elite viam-se colocados nesses postos naturalmente, como o melhor músico das orquestras sobe naturalmente á cadeira da regência. O equilibrio mental tornou-se perfeito — mas apenas da parte dos homens. As mulheres, não obstante o levantamento físico e moral, permaneciam variáveis como no tempo de Francisco I.

– Souvent femme varie…

– Sim. Conquistaram a mais perfeita igualdade de direitos, mas ondeavam, arrastadas pelo vento das ideias. Trocaram o souvent do bom Francisco I pelo toujours de miss Elvin. Como a simplicidade dos trajes fizera desaparecer a hoje obsedante preocupação da moda, talvez em virtude do vinco mental elas mudaram a moda para o campo das ideias. O elvinismo, por exemplo, avassalou as mulheres americanas com a tirania do nosso cabelo á la garçonne. Excelentes mães de família e ótimas esposas batiam-se pelo "sabino" com inconsciência de pasmar. Mas chegadas em casa despiam o cérebro da extravagância e beijavam na testa o Homo que na rua vinham de condenar como "infame raptor".

O orgão de miss Elvin — Remember sabino! mantinha a exaltação dos espíritos num constante estado de fervura.

– Ainda havia jornais nesse tempo?

– Sim, mas jornais nada relembrativos dos de hoje. Eram irradiados e impressos em caracteres luminosos num quadro mural existente em todas as casas.

– E os cegos?

– O cego ficou para trás, Cegueira, mudez, surdez, estupidez, tudo isso não passava de reminiscências dum tempo de que os homens sorriam com piedade.

O rádio que temos hoje é um simples ponto de partida. Vale como valem para a eletricidade moderna as primeiras experiencias de Volta. Descobriram-se novas ondas, e o transporte da palavra, do som e da imagem, do perfume e das mais finas sensações táteis, passou a ser feito por intermédio delas. A consequência lógica foi uma grande transformação da vida. Pelo sistema atual vai o homem para o serviço, para o teatro, para o concerto — um ir e vir que constitui um enorme desperdício de energia e é o criador dos milhões de veículos atravancadores do espaço, bondes, autos, bicicletas, trens, aviões e outros. Com a fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins, e sua consequente escravização aos interesses do homem, o ir e vir forçado se reduziu a escala mínima. O serviço, o teatro, o concerto é que passaram a vir ao encontro do homem. Foi espantosa a transformação das condições do mundo quando a maior parte das tarefas industriais e comerciais começou a ser feita de longe pelo rádio-transporte. Para dar uma ideia do que isso representava de economia de esforço e tempo, basta vermos o que era o jornal de miss Elvin. Pelo sistema atual, o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escreve-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; esse tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa não acaba mais! Ê uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá inicio á nova cadeia que desfecha no leitor — correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo.

– Já estive numa oficina de jornal e sei o que é isso. Puro inferno…

– Pois toda esta complicação desapareceu. Cada colaborador do Remember radiava de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas ideias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes.

– Que maravilha!…

– Sim, não houve industria que como a do jornal não sofresse a influencia simplificadora do radio-transporte — e isso tirou ao viver quotidiano a sua velha feição de atropelo e tumulto.

As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego. Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, corno outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é indice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado. Parece coisa muito evidente isto; no entanto foi a maior descoberta que fez o povo mais apressado do mundo…

– — Realmente! exclamei, chocado pelo imprevisto daquele aspecto do futuro. Eu que por assim dizer moro na rua, só com este quadro da rua futura já me estou assombrando com o horror da rua moderna. E, no entanto, se miss Jane nada me revelasse continuaria a ter como muito natural o tumulto de hoje.

– O hábito não nos deixa ver os defeitos, e daí a vantagem de convulsões como a de miss Elvin. O grande obstáculo ao progresso sempre foi o hábito, a ideia feita, a preguiça de constante exame do único problema material da vida — o do transporte.

– Único?

– Sim, único. Tudo é transporte na vida, senhor Ayrton, e o tumulto de hoje vem das imperfeições dos nossos sistemas de transporte. Tudo é transporte! A minha voz transporta ideias do meu cérebro para o seu. Esse livro que o senhor tem nas mãos é um sistema de transporte de impressões mentais. Que faz a firma Sá, Pato & Cia. senão transportar mercadorias de um lado para outro, com o fim ultimo de transportar para as burras dos sócios o dinheiro dos clientes? E que é o dinheiro senão um maravilhoso e engenhosissimo meio de transporte?

– For isso são as moedas redondas…

– Rodinhas... O homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão do seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história até nós e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda. Mas do ano 2200 em diante começará o seu declínio e em 3000 e tantos estará passada. Num corte anatômico dessa época vi certo museu nos arredores de Pittsburgh que muito me impressionou — o Museu da Roda. Dormiam nas vitrinas, como dormem hoje os machados de sílex dos nossos avós, as modalidades infinitas de rodas sobre as quais ainda gira hoje a civilização, desde o rodízio brutesco dos carros de boi até a mínima engrenagem dos relógios de pulso. O rádio matará a roda, concluiu miss Jane.

Pus-me a refletir naquilo e a comparar a estreiteza do meu cérebro com a amplidão do cérebro da filha do professor Benson. Quantas rodas tinha ele mais do que o meu! E como rodavam bem lubrificadas as rodinhas do cérebro de miss Jane, todas postas sobre mancais de bilhas…

– De tudo quanto miss Jane acaba de expor concluo que a vida nos Estados Unidos passou a ser um céu aberto, comentei eu.

Não vou até lá, contraveio ela. Havia uma pedra no sapato americano: o problema étnico. A permanência no mesmo território de duas raças dispares e infusiveis perturbava a felicidade nacional. Os atritos se faziam constantes e, embora não desfechassem como
outrora nas violências da Ku-Klux-Klan, constituíam um permanente motivo de inquietação.

A ideia do expatriamento para o vale do Amazonas tinha um ponto fraco: só podia ser voluntária e o negro não se mostrava inclinado a trocar a cidadania americana por outra qualquer. O processo cientifico de embranquece-los aproximava-os dos brancos na côr, embora não lhes alterasse o sangue nem o encarapinhamento dos cabelos. O desencarapinhamento constituía o ideal da raça negra, mas até ali a ciência lutara em vão contra a fatalidade capilar. Se isso se desse, poderia o caso negro entrar por um caminho imprevisto, a perfeita camouflage do negro em branco, Tal saída, entretanto, era apenas um sonho dos imaginativos impenitentes. E como a repartição do país em duas zonas não fosse forma aceita pelos brancos, iam os Estados Unidos entrar no seu 88.° período presidencial com o mesmo problema que trezentos e trinta e nove anos antes preocupara o grande George Washington.

Enquanto miss Jane falava, naquele tom impessoal e frio de sábio a fazer conferência pública, toda ela cérebro e cultas expressões na boca, eu, humano que sou, envolvia-a nos meus ternos olhares de carneiro amoroso, e essa minha excessiva atenção á parte corpórea da encantadora vidente me fez perder muita coisa interessante das suas revelações. Distraia-me, preso àquele lindo presente de olhos azuis sempre a pairar pelas eras futuras. Quando, por exemplo, ela entrou a descrever o tipo dos negros descascados do ano 2228, confesso que perdi metade das suas observações. Achava-me no momento a namorar o mimoso lóbulo da sua orelha esquerda, onde brincava um raio de sol. Esse fio de luz acendia-lhe em ouro a penugem finíssima e o tornava do róseo translúcido de certos veios da ágata. Perdi-me no gracioso pedacinho de carne, como a sua dona andava perdida em plena despigmentação do século XXIII. A poesia falou em mim e uma imagem lírica entreabriu a pieguice das suas pétalas. Lembrei-me do baiser de Rostand, point rose sur l'i du verbe aimer, e perpetrei coisa melhor: depor naquele ninho de colibri o ovinho de um beijo...

Depois filosofei e pareceu-me apreender uma grande verdade: a beleza não passa de um total de parcelas que a mão da Harmonia soma.

Que terríveis torneiras abre o amor!

Mas ao chegar naquele ponto das suas revelações, miss Jane ergueu os olhos para o relógio. Em seguida apertou o botão da campainha.

Veio um criado.

— Chá, disse ela.

Eu já sabia da significação do chá, engenhoso ponto e virgula com que miss Jane punha fim ás nossas palestras domingueiras.

Regressei á cidade mais apaixonado do que nunca pela encantadora filha do velho sábio — sábia tambem ela, mas, ai! bem pouco feminina... O Amor que ardia em meu peito não a contagiava. Talvez nem sequer o percebesse. Ou percebera desde o inicio e dissimulava? Mulher, mulher... Sabina vingativa — false as water...

Fiquei na dúvida. Seria miss Jane um puro espirito, uma vibração de éter jamais interferida, ou tinha nervos como as demais, coração, sensibilidade como todas as mulheres?

No dia seguinte, no escritório, notou o patrão o ar distante com que eu colecionava umas faturas. Meu pensamento estava longe da firma, vogando em pleno período da simbiose desmascarada. Não sei por que motivo o senhor Sá mostrava-se nesse dia alegre e familiar. Vira o passarinho verde, com certeza. Tão familiar e alegre que em certo momento me atrevi a fazer--lhe uma pergunta:

— Acha o senhor Sá que é a mulher a fêmea natural do homem?

O honrado negociante não respondeu, mas fulminou-me com tais olhos que achei prudente esgueirar-me para a sala vizinha com o pacote de faturas na mão. Vim a saber depois que em conferência com o senhor Pato ele chegara á conclusão de que a queda no precipício me tinha evidentemente "perturbado as faculdades mentais"...
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continua… XV – Vésperas do Pleito

Fonte:
Monteiro Lobato. O Presidente Negro. Editora Brasiliense, 1979.

Elaine Bueno (Amigo)

Fonte:
Poema e imagem enviadas pela poetisa

Ivan Carlo (Manual de Redação Jornalística) Parte 5


CAPÍTULO 4
O JORNALISMO É ESSENCIALMENTE REFERENCIAL

Você já deve ter estudado em língua portuguesa as funções da linguagem. Elas estão intimamente ligas ao processo de comunicação. Então vamos lembrar um pouco de como funciona o processo de comunicação.

Vamos imaginar uma conversa. Temos duas pessoas conversando. Como ocorre o processo de comunicação nesse caso?

Para que o processo comece é necessário haver um emissor. É ele que vai transmitir a mensagem. A mensagem será transformada em um código (língua portuguesa) a ser transmitido através de um canal (ondas sonoras).

A mensagem deve fazer referência a algo exterior a ela. Se eu digo “Olhe a cor desta mesa”, os referencias são a mesa e sua cor. Se um namorado declara seu amor à namorada, o referente é o amor do qual ele está falando.

A mensagem será recebida por receptor, que decodificará a mensagem e reagirá a ela, através de um feed-back. Feed-back é a resposta à mensagem. Ele pode vir tanto pelo mesmo canal e pelo mesmo código, quanto por canal e código diferentes. Se o namorado diz que ama a garota e recebe um beijo, o feed-back é o beijo. O processo de comunicação, portanto, ficaria mais ou menos assim:

EMISSOR RECEPTOR
REFERENTE
MENSAGEM
CÓDIGO
CANAL

A cada elemento do processo de comunicação ( com exceção do feeed-back) corresponde uma função da linguagem. Quando a mensagem é centrada no emissor, temos a função emotiva. É quando o texto fala de quem o está escrevendo. É um tipo de texto usado, por exemplo, em declarações de amor. Notem o pronome na frase “Eu te amo”.

Quando a mensagem é centrada no receptor, temos a função apelativa, ou conativa. Função normalmente usada na publicidade:
“Compre isso!”, “Beba Coca-cola!”.

A comunicação centrada no código é metalinguística. É o caso, por exemplo, de um filme sobre o cinema.

A função fática é usada quando queremos testar o canal. É a função que usamos quando queremos Ter certeza de que o receptor está captando a mensagem. Alguns exemplos de frases fáticas: “Alô”, “Você está me ouvindo?”. Nesse caso, a carga de informação da mensagem é quase nula.

A função poética é quando a comunicação é centrada na mensagem.

Finalmente, a função referencial ocorre quando a comunicação é centrada no referente: “Esta cadeira é azul”. O referente da frase são a cadeira e sua cor.

O jornalismo trabalha, essencialmente, com a linguagem referencial. Ou seja, o que realmente interessa são os fatos e seus personagens.

Para cumprir sua função referencial, o jornalismo deve recorrer às seis perguntas (o que, quando, onde, como, quem, por que). Mas a busca da função referencial leva a um cuidado ainda maior. O jornalismo deve procurar informar o momento exato em que o evento ocorreu, o local exato, as pessoas que realmente participaram, etc.

O jornalismo evita o achismo (função emotiva – eu acho) e o parecismo (parece que fulano estava bêbado, parece que o presidente vai falar à nação).

O texto deve ser referencial. Se o jornalista quiser dizer que determinado motorista estava bêbado, ele deve procurar fatos que comprovem isso (teste de bafômetro, depoimento de testemunhas, declarações do policial rodoviário).

FEED.BACK
Também se evita frases ou expressões que tenham sentido vago ou impreciso. Deve-se, sempre que possível, trocá-los por informações concretas.

Veja alguns exemplos:

Comerciante próspero - o correto seria lista os bens do comerciante.

Bela mulher – o ideal seria um fato dela ou opinião de pessoa abalizada, como um descobridor de talentos.

Grande salário - dizer o salário.

Grande distância - distância correta.

Edifício alto - número de andares.

Episódio chocante - contar o episódio e deixar ao leitor a interpretação.

General anunciou a abertura de inquérito rigoroso - pela lógica, não deveria haver inquérito não rigoroso.

Ligeiramente desafinado - ou está desafinado ou não.

Aparentemente grávida – ou estava grávida ou não.

Na calada da noite – horário exato em que ocorreu o fato.

Fora do prazo estipulado – um dia atrasado.

Fazia um calor de rachar – 40 graus à sombra.

Parlamentar – deputado federal

continua… CAPÍTULO 5 – O JORNAL NÃO PRODUZ INFORMAÇÃO, ELE A DIVULGA

Fonte:
Virtualbooks

Casimiro de Abreu (As Primaveras) Parte 2


NO ÁLBUM DE J.C.M.

Nestas folhas perfumadas
Pelas rosas desfolhadas
Desses cantos de amizade,
Permite que venha agora
Quem longe da pátria chora
Bem triste gravar: - saudade !
Lisboa

NA REDE

Nas horas ardentes do pino do dia
Aos bosques corri;
E qual linda imagem dos castos amores,
Dormindo e sonhando cercada de flores
Nos bosques a vi!

Dormia deitada na rede de penas
- O céu por dossel,
De leve embalada no quieto balanço
Qual nauta cismando num lago bem manso
Num leve batel!
Dormia e sonhava - no rosto serena
Qual um serafim;
Os cílios pendidos nos olhos tão belos,
E a brisa brincando nos soltos cabelos
De fino cetim!
Dormia e sonhava - formosa embebida
No doce sonhar,
E doce e sereno num mágico anseio
Debaixo das roupas batia-lhe o seio
No seu palpitar!
Dormia e sonhava - a boca entreaberta,
O lábio a sorrir;
No peito cruzados os braços dormentes,
Compridos e lisos quais brancas serpentes
No colo a dormir!
Dormia e sonhava - num sonho de amores
Chamava por mim,
E a voz suspirosa nos lábios morria
Tão terna e tão meiga qual vaga harmonia
De algum bandolim!
Dormia e sonhava - de manso cheguei-me
Sem leve rumor;
Pendi-me tremendo e qual fraco vagido,
Qual sopro da brisa, baixinho ao ouvido
Falei-lhe de amor!
Ao hálito ardente o peito palpita...
Mas sem despertar;
E como nas ânsias dum sonho que é lindo,
A virgem na rede corando e sorrindo...
Beijou-me a sonhar!
Junho - 1858

A VOZ DO RIO – NUM ÁLBUM

Nosso sol é de fogo, o campo é verde,
O mar é manso, nosso céu azul!
- Ai! porque deixas este pátrio ninho
Pelas friezas dos vergéis do sul?
Lá nessa terra onde o Guaíba chora
Não são as noites, como aqui, formosas
E as duras asas do Pampeiro iroso
Quebra as tulipas e desfolha as rosas.

A lua é doce, nosso mar tranqüilo,
Mais leve a brisa, nosso céu azul!...
- Tupá! Quem troca pelo pátrio ninho
As ventanias dos vergéis do sul?
Lá novos campos outros campos ligam
E a vista fraca na extensão se perde!
E tu sozinha viverás no exílio
- Garça perdida nesse mar que é verde! -
Nossas campinas como doces noivas
Vivem c’os montes sob o céu azul!
- Há vida e amores neste pátrio ninho
Mais rico e belo que os vergéis do sul!
Essas palmeiras não têm tantos leques,
O sol dos Pampas mareou seu brilho,
Nem cresce o tronco que susteve um dia
O berço lindo em que dormiu teu filho!
Nossas florestas sacudindo os galhos
Tocam c’os braços este céu azul!...
- Se tudo é grande neste pátrio ninho
Porque deixá-lo p’ra viver no sul?!
Embora digas: - essa terra fria
Merece amores, é irmã da minha -
quem dar-te pode este calor do ninho,
A luz suave que o teu berço tinha?!
Eu - Guanabara - no meu longo espelho
Reflito as nuvens deste céu azul;
- Ó minha filha! acalentei-te o sono,
Porque me deixas p’ra viver no sul?!...
Lá, quando a terra s’embuçar nas sombras
E o medroso sol s’esconder nas águas,
Teu pensamento, como o sol que morre,
Há de cismando mergulhar-se em mágoas!
Mas se forçoso t’é deixar a pátria
Pelas friezas dos vergéis do sul,
Ó minha filha! não t’esqueças nunca
Destas montanhas, deste céu azul.
Tupá bondoso te derrame graças,
Doce ventura te bafeje e siga,
E nos meus braços - ao voltar do exílio -
Saudando o berço que teu lábio diga:
“Volvo contente para o pátrio ninho,
“Deixei sorrindo esses vergéis do sul;
“Tinha saudades deste sol de fogo...
“Não deixo mais este meu céu azul!...”
Rio - 1858

SETE DE SETEMBRO - A D. PEDRO II

Foi um dia de glória! - O povo altivo
Trocou sorrindo as vozes de cativo
Pelo cantar das festas!
O leão indomável do deserto
Bramiu soberbo, dos grilhões liberto,
No meio das florestas!
Lá no Ipiranga do Brasil o Marte
Enrolado nas dobras do estandarte
Erguia o augusto porte;
Cercada a fronte dos lauréis da glória
Soltou tremendo o brado da vitória:
- Independência ou morte!
O santo amor dos corações ardentes
Achou eco no peito dos valentes
No campo e na cidade;
E nos salões - do pescador nos lares,
Livres soaram hinos populares
À voz da liberdade!
Anos correram; - no torrão fecundo
Ao sol de fogo deste novo-mundo
A semente brotou;
E franca e leda, a geração nascente
À copa altiva da árvore frondente
Segura se abrigou!
À roda da bandeira sacrossanta
Um povo esperançoso se levanta
Infante e a sorrir!
A nação do letargo se desperta,
E - livre - marcha pela estrada aberta
Às glórias do porvir!
O país, n’alegria todo imerso,
Velava atento à roda só dum berço
Era o vosso, Senhor!
Vós do tronco feliz doce renovo,
Vede agora, Senhor, na voz do povo
Quão grande é seu amor!
Rio - 1858

POESIA E AMOR

A tarde que expira,
A flor que suspira,
O canto da lira,
Da lua o clarão;
Dos mares na raia
A luz que desmaia,
E as ondas na praia
Lambendo-lhe o chão;
Da noite a harmonia
Melhor que a do dia,
E a viva ardentia
Das águas do mar;
A virgem incauta,
As vozes da flauta,
E o canto do nauta
Chorando o seu lar;
Os trêmulos lumes,
Da fonte os queixumes,
E os meigos perfumes
Que solta o vergel;
As noites brilhantes,
E os doces instantes
Dos noivos amantes
Na lua-de-mel;
Do templo nas naves
As notas suaves,
E o trino das aves
Saudando o arrebol;
As tardes estivas,
E as rosas lascivas
Erguendo-se altivas
Aos raios do sol;
A gota de orvalho
Tremendo no galho
Do velho carvalho,
Nas folhas do ingá;
O bater do seio,
Dos bosques no meio
O doce gorjeio
Dalgum sabiá;
A órfã que chora,
A flor que se cora
Aos raios da aurora,
No albor da manhã;
Os sonhos eternos,
Os gozos mais ternos,
Os beijos maternos

E as vozes de irmã;
O sino da torre
Carpindo quem morre,
E o rio que corre
Banhando o chorão;
O triste que vela
Cantando à donzela
A trova singela
Do seu coração;
A luz da alvorada,
E a nuvem dourada
Qual berço de fada
Num céu todo azul;
No lago e nos brejos
Os férvidos beijos
E os loucos bafejos
Das brisas do sul;
Toda essa ternura
Que a rica natura
Soletra e murmura
Nos hálitos seus,
Da terra os encantos,
Das noites os prantos,
São hinos, são cantos
Que sobem a Deus!
Os trêmulos lumes,
Da veiga os perfumes,
Da fonte os queixumes,
Dos prados a flor,
Do mar a ardentia,
Da noite a harmonia,
Tudo isso é - poesia!
Tudo isso é - amor!
Indaiaçu - 1857

ORAÇÕES - A***

A alma, como o incenso, ao céu s’eleva
Da férvida oração nas asas puras,
E Deus recebe como um longo hosana
O cântico de amor, das criaturas.
Do trono d’ouro, que circundam os anjos

Sorrindo ao mundo a Virgem-Mãe s’inclina
Ouvindo as vozes d’inocência bela
Dos lábios virginais duma menina.
Da tarde morta o murmurar se cala
Ante a prece infantil, que sobe e voa
Fresca e serena qual perfume doce
Das frescas rosas de gentil coroa.
As doces falas de tua alma santa
Valem mais do que eu valho, oh! querubim!
Quando rezares por teu mano, à noite,
Não t’esqueças - também reza por mim!
Rio - 1858

BÁLSAMO

Eu vi-a lacrimosa sobre as pedras
Rojar-se essa mulher que a dor ferira!
A morte lhe roubara de um só golpe
Marido e filho, encaneceu-lhe a fronte,
E deixou-a sozinha e desgrenhada
- Estátua da aflição aos pés dum túmulo!
O esquálido coveiro p’ra dois corpos
Ergueu a mesma enxada, e nessa noite
A mesma cova os teve!
E a mãe chorava,
E mais alto que o choro erguia as vozes!
..............................................................
No entanto o sacerdote - fronte branca
Pelo gelo dos anos - a seu lado
Tentava consolá-la.
A mãe aflita
Sublime desse belo desespero
As vozes não lhe ouvia; a dor suprema
Toldava-lhe a razão no duro transe.
“Oh! padre! - disse a pobre s’estorcendo
Co’a voz cortada dos soluços d’alma -
“Onde o bálsamo, as falas d’esperança,
“O alívio à minha dor?!”
Grave e solene,
O padre não falou - mostrou-lhe o céu!
Rio - 1858

DEUS

Eu me lembro! eu me lembro! - Era pequeno
E brincava na praia; o mar bramia
E, erguendo o dorso altivo, sacudia
A branca escuma para o céu sereno.
E eu disse a minha mãe nesse momento:

“Que dura orquestra! Que furor insano!
“Que pode haver maior do que o oceano,
“Ou que seja mais forte do que o vento?!” -
Minha mãe a sorrir olhou p’r’os céus
E respondeu: - “Um Ser que nós não vemos
“É maior do que o mar que nós tememos,
“Mais forte que o tufão! meu filho, é - Deus!”-
Dezembro - 1858

Fonte:
ABREU, Casimiro de. As Primaveras. São Paulo: Livraria Editora Martins S/A co-edição Instituto Nacional do Livro, 1972. Texto-base digitalizado por Raquel Sallaberry Brião.

As Mil e Uma Noites (Parte 2)


O CONSELHEIRO

Contam que certo lavrador possuía um burro que o repouso engordara e um boi que o trabalho abatera. Um dia, o boi queixou-se ao burro e perguntou-lhe: “Não terás, ó irmão, algum conselho que me salve desta dura labuta?” O burro respondeu: “Finge-te de doente e não comas tua ração. Vendo-te assim, nosso amo não te levará para lavrar o campo e poderás descansar.” Dizem que o lavrador entendia a linguagem dos animais e compreendeu o que eles conversaram. Na manhã seguinte, viu que o boi não comera sua ração. Deixou-o e levou o burro em seu lugar. O burro foi obrigado a puxar o arado o dia todo, e quase morreu de cansaço. E lamentou o conselho que dera ao boi. Quando voltou à noite, perguntou-lhe o boi: “Como vais, querido irmão?” Respondeu o burro:

“Vou muito bem. Gostei da luz do sol e da alegria dos campos. Mas ouvi algo que me fez estremecer por tua causa. Ouvi nosso amo dizer: “Se o boi continuar doente, deveremos matá-lo para não perdermos sua carne.” Minha opinião é que comas tua ração e voltes para tua tarefa a fim de evitar tamanho infortúnio.”

O boi concordou e devorou toda a sua ração. O lavrador estava ouvindo, e riu.

O HOMEM E SUA MULHER / O GALO E AS 50 GALINHAS

Na história intitulada O conselheiro, quando o homem deu uma risada ao ouvir o segundo conselho dado pelo burro ao boi, sua mulher (que não conhecia a linguagem dos animais) ficou perplexa e curiosa e quis saber por que ele riu. O homem não podia revelar que conhecia a linguagem dos animais. Respondeu à mulher que esse riso envolvia um segredo que lhe era proibido divulgar sob pena de morte. - Quero que me contes esse segredo, mesmo que tenhas que morrer insistiu a mulher. Como o homem amava sua mulher e nada lhe recusava, consentiu em revelar-lhe o segredo e perder a vida. Mandou, pois, vir o cádi e as testemunhas para deixar consignadas oficialmente suas últimas vontades. E mandou vir seus parentes e os de sua mulher para despedir-se deles. Todos aconselharam à mulher desistir de seu propósito e não empurrar para o túmulo seu marido e pai de seus filhos. Ela, porém, teimou, repetindo: “Quero conhecer o segredo, mesmo que ele tenha que morrer”. Toda essa movimentação despertou a atenção do cão e dos animais da capoeira. O cão censurou o galo por estar cantando quando o amo deles todos estava para morrer. O galo perguntou: “E por que nosso amo está para morrer?”

O cão contou-lhe a história. Comentou o galo: “Por Alá, nosso amo é muito tolo. Eu tenho cinqüenta esposas. Agrado a uma; desagrado a outra; mas não permito nenhuma rebelião entre elas. E ele tem apenas uma esposa e não consegue controlá-la. O que ele deve fazer é apanhar umas varas verdes nas amoreiras e bater nela até que se arrependa e não mais lhe exija nada.” O homem ouviu o que o galo disse ao cão, pensou e decidiu seguir o conselho do galo.

Cortou umas varas das amoreiras, escondeu-as no quarto do casal e chamou a mulher: “Vem comigo até nossa alcova para que te conte o segredo e me despeça de ti para sempre”. Quando a mulher entrou no quarto, o homem trancou a porta, apanhou as varas e bateu nela até que ficou cega de dor e gritou: “ Arrependo-me.“

E beijou lhe as mãos e os pés. Em seguida, saíram juntos em paz para iniciar uma nova vida. E os parentes e os vizinhos se regozijaram por eles.

AS BOTAS DE ABU-KASSIM ATTANBURI

Contam que vivia certa vez em Bagdá um homem chamado Abu-Kassim At Tanburi, que usava as mesmas botas havia sete anos. Todas as vezes que alguma parte delas se rasgava, ele a remendava, de modo que as botas se tornaram excessivamente pesadas e passaram a ser citadas em provérbio. Um dia, Abu-Kassim foi ao mercado de vidros. Um corretor lhe disse: “Ó Abu-Kassim, chegou hoje um negociante de Alepo com um carregamento de frascos dourados que ninguém quer comprar. Compra-o. Eu o revenderei para ti mais tarde, e tu ganharás o dobro de teu investimento”. Abu-Kassim comprou os vidros por sessenta dinares. Foi em seguida ao mercado de perfumes, e outro corretor lhe disse: “Ó Abu-Kassim, chegou-nos hoje de Tassibina um negociante com um carregamento de água de rosas da melhor qualidade! O negociante precisa prosseguir logo sua viagem, e podes, por isso, comprar-lhe a mercadoria por um preço muito barato; compra-a. Eu a revenderei para ti dentro em pouco, e tu ganharás o dobro de teu investimento”. Abu-Kassim comprou a água de rosas por sessenta dinares, colocou-a nos frascos dourados e levou-os para casa e os arrumou sobre uma prateleira. Depois, foi aos banhos públicos.

Enquanto se banhava, um de seus amigos o interpelou: “Ó Abu-Kassim, gostaria de ver-te mudar essas botas; elas já estão feias demais, e tu és um homem de posses pela graça de Deus”. “Tens razão”, retrucou Abu-Kassim, “seguirei teu conselho”.

Quando saiu do banho para vestir-se, viu junto de suas botas um par de sandálias novas. Pensou que fosse o seu amigo que lhas havia ofertado; calçou-as e dirigiu-se para casa. Ora, as sandálias novas pertenciam ao cádi, que estava tomando banho naquele mesmo local. Quando saiu, procurou suas sandálias e não as encontrou. “Meus amigos”, perguntou ele,”aquele que levou minhas sandálias não deixou nada no seu , lugar?” Procuraram e só encontraram as botas de Abu-Kassim, que todo mundo reconheceu, pois eram famosas. O cádi mandou os seus homens revistarem a casa de Abu-Kassim. As sandálias estavam, de fato, lá. O cádi ordenou a Abu-Kassim comparecer à sua presença, confiscou-lhe as sandálias e fê-lo flagelar, multar e encarcerar. Abu-Kassim saiu da cadeia cheio de cólera contra suas botas. Levou-as e atirou-as ao rio Tigre. Elas afundaram. Mas um pescador, tendo atirado sua rede à procura de peixes, recolheu as botas. Reconheceu-as e pensou: “Abu-Kassim deve tê-las perdido no Tigre.” Levou-as para a casa de Abu-Kassim; não o encontrou; mas viu uma janela aberta e jogou as botas para dentro da casa. As botas caíram sobre a prateleira onde estavam os frascos com a água de rosas. A prateleira desmontou-se; os vidros caíram no chão e se quebraram; toda a água de rosas se perdeu. Ao voltar, Abu-Kassim compreendeu o que se passara e começou a se lamentar e desesperar: “Ó desgraça! Estas malditas botas me arruinaram!” Então, foi de noite abrir um buraco para enterrá-las e livrar-se delas. Mas os vizinhos, ouvindo o ruído da escavação, pensaram que alguém estivesse procurando demolir a sua casa.

Queixaram-se ao governador, que mandou prender Abu-Kassim e o repreendeu: “Como te permites cavar junto ao muro de teus vizinhos?” Então, aprisionou-o e só o soltou depois de Ihe ser cobrada uma multa. Abu-Kassim saiu da cadeia mais furioso ainda contra as suas botas. Levou-as e atirou-as nas privadas do caravançarai. Mas as botas entupiram os esgotos; as imundícies transbordaram; o povo protestou contra o mau cheiro. Procuraram a causa e acharam as botas; examinaram-nas: eram as botas de Abu-Kassim! Levaram-nas ao governador e relataram-lhe o ocorrido. O Governador mandou vir Abu-Kassim, censurou-o severamente, encarcerou-o e obrigou-o a pagar o conserto dos esgotos e outra soma igual a título de multa. Abu-Kassim saiu da prisão com as botas e, na sua ira, jurou nunca mais se separar delas. Lavou-as e pô-las a secar no terraço de sua casa. Um cão as viu e, tomando-as por uma carniça, pegou-as. Mas enquanto pulava para outro terraço, as botas lhe escaparam e caíram sobre um homem, ferindo-o gravemente.

Examinaram as botas e reconheceram-nas. O caso foi levado ao juiz, que condenou Abu-Kassim a indenizar o homem, de todas as despesas requeridas pelo seu tratamento. Assim, Abu-Kassim gastou o último dinar que possuía. Apanhou então as botas e levou-as ao cádi e disse-Ihe: “Solicito de Vossa Excelência que redija um ato de separação solene entre minhas botas e eu, que proclame que nada mais temos um com o outro, que nenhum de nós é responsável pelo outro e que eu não poderei ser culpado pelo que minhas botas venham a fazer”.E contou ao cádi tudo que lhe sucedera por causa dessas botas.

O cádi soltou boas gargalhadas e deu um presente a Abu-Kassim antes de despedi-lo.
–––––––-
Observação:
Afrit (masc. sing.), afrita (fem. sing.), afarit (plural): seres de outro mundo, ora visíveis ora invisíveis, possuindo em ambos os casos poderes ilimitados que escapam a qualquer lei.
Alá: Deus
Cádi: juiz.
---------
continua…


Fontes:
Domínio Publico
Imagem = Diário da Manhã
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