domingo, 13 de novembro de 2011

Paraná em Trovas Collection - 2 - Adélia Maria Woellner (Piraquara/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 1


PRÓLOGO

Estrelas que luzis na abóbada infinita,
Inquietamente, assim, como um olhar que fascina,
Vendo-vos palpitar, meu coração palpita,
Mordido de paixão por essa luz divina...

Largos céus ideais, região diamantina,
Mirífico esplendor, ó pérola esquisita,
Quanta cobiça vã, que nunca se imagina,
Quanto furor enfim o ânimo me excita!

É o impossível, pois, que eu amo unicamente,
A névoa que fugiu, a forma evanescente,
A sombra que se foi tal qual uma visão...

E por isso também, por isso é que eu suponho
Que a vida, em suma, é um grande e extravagante Sonho,
E a Beleza não é mais do que uma Ilusão!

***

Plumas

***

DAMA

A noite em claro, o mundo inóspito, e dessa arte
Urdem contra a Beleza as coisas mais abjetas...
Reina o Pesar, mas como um Rei, por toda parte;
E ordena Herodes que degolem os poetas...

Cavaleiros por terra e plumas inquietas;
Esqueletos, que importa? a rir... Hei de vibrar-te
Aos quatro ventos, e com formas obsoletas,
Ó gládio nu! meu esotérico estandarte!

Delírio! assim no ar este sinal eu traço...
Escarótico pois? É bem! Vibrião do Ganges?
Combaterei, se for mister, num circo d’aço...

Combaterei, embora eu saiba que me perdes,
Com versos d’ouro, que reluzam como alfanjes,
Dama! com teu orgulho! ó dama de olhos verdes!

O MEU ORGULHO LEVANTOU-ME...


O meu orgulho levantou-me pelo braço:
“Olha, como esse abismo é infinito! Através
Do universo tu és grão de areia no espaço;
Mas tudo há de ficar um dia sob teus pés!”

A Vaidade me olhou: “Eu sou o antigo leito,
A púrpura ideal com que te cobrirei;
Trabalha que serás o Artista perfeito,
O Domínio, a Grandeza, o Poder e o Rei!”

A Glória me sorriu como uma primavera:
“Este diadema é teu, e este ramo d’hera
É para te cingir a fronte. Tu hás de ver!”

E eu cri nesse milagre de apoteoses,
E nunca poderei deixar de crer, ó deuses!
Porquanto se eu deixar, então antes morrer!

Março – 1905

VOZES

... bercé par ce continuel bourdonnement
qu’entendent ceux qui n’entendent d’autre voix.
Francis Jammes

Ó rumor ideal! Ó ilusão secreta!
Vozes tristes, vozes doces que me chamais,
Com a saudade cruel e a lembrança completa
De um outro mundo, que eu perdi, não acho mais...

Vozes antigas como as barbas d’um profeta,
Ó vozes de paixão, ó vozes de metais,
Ó vozes que feris a minha alma inquieta,
Vozes de multidão ruidosa sobre o cais...

Vozes lindas assim como um efebo louro,
Vozes, filhas, não sei, das entranhas do Ar,
Vozes d’Apolo e de marfim e prata e ouro...

Ó vozes de embriaguez, ardentíssimas vozes,
Vozes, bem como se quebrasse, ao longe, o mar
Sob penhascos nus e rochedos atrozes!...

QUANDO UM POETA NASCEU...

Quando um poeta nasceu, como o sol que desponte,
Logo por sobre o mar longas e brancas velas
Desfraldam-se; e por fim, tudo palpita, o monte,
O céu, a flor, a luz – ó róseas bambinelas!

É um barulho de rio, um murmúrio de fonte,
Uma palpitação universal de estrelas;
Um sussurro, um fragor de beijos quentes pelas
Ondulações sem fim e rubras do horizonte!

Menino, homem depois, de um assalto ele ganha
Os ermos, que transpõe, os vales e os barrancos,
Tendo sempre a sorrir nos olhos a Quimera...

Chegam os anos e vêm os cabelos brancos...
Todavia, ele só, em pé sobre a montanha,
Inda sonha, inda crê, inda deseja e espera!...

A MÃO...

Ao Dr. Claudino dos Santos

Tantas vezes, bem sei, e eu ouço, quando cismo,
Meu coração bater depressa, não o nego,
Mão invisível tem-me salvo, a mim, um cego,
Rolando como se rolasse num abismo...

Babilônias de horror, e montanhas de lodo,
E torres de Babel, sangrentas como lava,
Eu mais afoito do que um jovem deus, mais doido,
Eu passei sem saber por onde é que passava...

Sorrindo pelo ar, miraculosa e a esmo,
Tudo pôde abrandar, os ventos, e a mim mesmo,
Por um prodígio enfim que eu não explico, ateus!

...Donde veio essa mão nervosa, que me arranca
Dos abismos do mal, a Mão ideal e branca,
A mim, que nem sequer mais acredito em Deus?...


EMBARQUE PARA CITERA


De resto, quanto a mim, a mais doce quimera
É sempre essa ilusão de uma nova paisagem,
E por isso também, por isso quem me dera
Que a minha vida fosse uma grande viagem.

Quem me dera poder, à tarde, quando a aragem
Sopra ríspida, entrar na primeira galera,
E errando sobre o mar, ó rude marinhagem,
No outono, estar aqui, e ali, na primavera!

Quando o encanto, porém, sorri, quando me vejo,
Ora num coração, ora noutro, que esteve
A palpitar por mim de orgulho e de desejo;

Ah! quando vibro assim! É melhor, na verdade,
Que se andasse no mar, numa trirreme leve,
De prazer em prazer, de cidade em cidade...

1907

ORGULHO

Ao João Itiberê

Nasci para viver no meio do que é belo.
A miséria me causa um horror sem igual.
Eu não posso tocar de leve com o escalpelo
Numa ferida, sem que isso me faça mal.

Nasci para viver no meio d’um castelo,
Onde eu domine, mas com um gesto senhorial.
Não quero conhecer o mal, não quero vê-lo;
O mando d’um artista é um manto imperial.

Antes morda-me o Ódio assim do que a Piedade;
Antes quero rugir, do que chorar de dor;
E prefiro ao pesar, que o coração me invade,

E abate-me a tremer, tal qual uma criança,
O furor de brandir nas mãos, como uma lança,
Este Orgulho, que enfim é uma giesta em flor!
23–12–1902

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Guilherme Voitch (Curitiba de Musas e Símbolos)

Festa da Primavera,
na Rua XV de Novembro,
no início do século 20

Ao comentar o frisson que Emiliano Perneta causava na Curitiba do início do século 20, o crítico literário Andrade Muricy afirmou que o poeta parecia sempre andar com uma banda de música à frente, tamanha a agitação do séquito de seguidores que ele arrastava pelas ruas da cidade. O deslumbramento atingiu seu ponto máximo em agosto de 1911, quando Perneta, depois de chegar em uma carruagem, foi coroado – literalmente –“príncipe dos poetas paranaenses” diante de uma multidão que se espremia no Passeio Público.

A idolatria se explica. Perneta foi o mais destacado em uma geração de escritores curitibanos que contou com Dario Vellozo, Silveira Neto, Júlio Perneta, Leôncio Correia, Romário Martins, entre outros. O grupo de poetas fez Curitiba ser uma espécie de capital do movimento simbolista no Brasil e revolucionou a vida cultural curitibana. “Eles foram a representação artística de uma cidade que se transformava”, afirma o historiador Marcelo Sutil.

A transformação era evidente. Em dez anos, de 1890 a 1900, a população de Curitiba tinha duplicado. A cidade via nascer uma nova elite econômica, respaldada pelo dinheiro do mate. Com essa elite, surgia uma maior preocupação estética. A cidade avançava rumo a dois extremos: o Batel e o Alto da Glória. As casas e casarões construídos já não eram as meias-águas, umas grudadas nas outras. Pela primeira vez, as residências eram construídas mais para dentro dos terrenos, separadas de seus vizinhos. “As casas passaram e ter jardins e serem vistas em três eixos, o que garantia uma série de melhorias sanitárias e de iluminação”, conta o arquiteto e professor da Universidade Positivo, Irã Dudeque.

A transformação atingia também os espaços públicos. Parques e praças eram construídos. Surgem nesse período o Passeio Público, a Praça Carlos Gomes e a Pracinha do Batel, cujo desenho fazia as referências aos temas gregos cantados pelos simbolistas.

A Rua XV de Novembro, consolidada como centro da cidade, recebia cafés, livrarias, cinemas e teatros e via nascer, onde antes era um depósito de lixo, a Universidade Federal do Paraná (UFPR).

A XV era o trajeto obrigatório de quem queria ver e ser visto e os simbolistas, no melhor estilo dândi, eram especialistas em chamar a atenção dos passantes pelo refinamento dos trajes.

Era a Belle Époque curitibana.

Na biblioteca

O grupo que mandou na cultura curitibana nas primeiras décadas do século 20 está intimamente relacionado a dois dos principais símbolos da cidade: o Gymnásio Paranaense, atual Colégio Estadual, e o Clube Curitibano. “Foi na biblioteca do Curitibano, que funcionava no centro da cidade, que esse grupo de amigos resolveu criar sua primeira revista literária, a Cenáculo”, explica a pesquisadora e professora aposentada da UFPR, Cassiana Lacerda.

A Cenáculo foi a primeira de muitas revistas em que os poetas publicavam suas obras. Por muito tempo, a própria revista do Clube Curitibano foi conduzida por Vellozo e Perneta. Era no Salão do Clube que Daryo Vellozo, principal orador do grupo, fazia suas apresentações e recebia autores de fora.

Mais tarde, Vellozo decidiu criar uma sede para as reuniões dos poetas e seus pupilos. Em sua própria chácara, na Vila Isabel, foi levantado o Templo das Musas, sede do Instituto Neo-Pitagórico.

O instituto, mantido pelo genro de Vellozo é um dos poucos locais a conservar obras e documentos dos simbolistas e do tempo da Curitiba das musas.

Movimento deu início à literatura curitibana

Para o crítico literário Wilson Martins, o movimento simbolista marca uma espécie de nascimento da literatura curitibana. “Foi um movimento organizado que produziu bastante e teve relevância nacional”. Os autores curitibanos produziram algumas das principais revistas literárias nacionais, entre elas a Cenáculo, Victrix, A República, Palium e Jerusalém. Para Martins, o principal autor do grupo é mesmo Emiliano Perneta. “É um grande poeta e o que teve, merecidamente, mais destaque nacional.”

Na visão da professora aposentada da Universidade Federal do Paraná Cassiana Lacerda, uma das principais pesquisadoras do simbolismo brasileiro, o culto a Perneta, no entanto, foi prejudicial ao poeta. “A província o idolatrou pelo que ele não merecia e não o idolatou pelo que ele merecia”, explica. O melhor da produção do autor, segundo ela, foi feito quando ele estava longe de Curitiba, em contato com escritores de maior relevância. Mais do que pela obra em si, porém, Perneta era comemorado em Curitiba pelo seu reconhecimento nacional.

A influência dos simbolistas durou até a década de 30, quando o modernismo vindo de São Paulo e do Rio de Janeiro passou a ditar as regras na produção literária.

O simbolismo foi uma típica manifestação cultural da passagem do século. Teve como característica a sofisticação, o culto a valores aristocráticos, usados como uma reação ao pensamento racionalista, o misticismo e a influência de culturas orientais.

Fonte:
Gazeta do Povo

Amosse Mucavele (Relógio)

Pintura de Salvador Dali
Á Marilía mulher que o tempo levou

É impossível que eu durma sem dar uma palmada no teu vertiginoso trilho

Impossível é, o meu acordar sem saudar a sua majestade voz

É impossível que eu me sente a mesa antes de namorar a sua redonda face

Impossível é, que eu vá ao serviço na sua ausência

Resumindo é impossível que eu viva sem ti, pois você é a menina dos meus olhos, de beleza infindável, incontornável é a sua sabedoria secular.

O teu silêncio ensina a pontualidade a falar todas as línguas

Querida ensina-me a fabricar verdades a hora certa. sabe admira-me bastante este seu jeito de ser e estar. mulher de mil e uma face pintadas a mesma cor ..

No pulso da parede que assombra a sala você declara o seu amor de forma leve, e eterna

Na parede do meu braço nossos sentimentos percorrem 365 dias sem intervalo, acendem o brilho das estrelas que iluminam o mundo.

A surdez dos ponteiros apontam o gatilho a nudez dos números, pois a muito que anda teso

Nós impávidos, assistimos a interminável guerra dos dois amantes

Que a cada hora carregam a certeza da morte dos sonhos e o nascer da nova aurora

Eu e você meu amor , escalaremos a montanha que cresce a cada olhar esboçado a compasso No cronômetro da distância que tem a nossa cara: o tempo - onde a hora se enamora com os minutos e os segundos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Thomas Bonnici (Lançamento do livro “Multiculturalismo e Diferença”)


Thomas Bonnici é organizador deste livro, que conta com outros autores do Brasil e outros países.
––––––––––-
Não é suficiente falar de identidades de raça, classe e gênero; devemos também debater as identidades em sua relação com o poder, ou seja, até que ponto cada um se identifica com as forças de dominação e participa em atividades que reforçam a predominância e a exploração que a acompanha.
(T. Córdova: Power and Knowledge: Colonialism in the Academy)
(citação da contra-capa)

––––––––––-
(O texto a seguir se encontra na primeira orelha do livro)

No mundo altamente globalizado contemporâneo, a presença de imigrantes, outrora colonizados, e seus descendentes nas metrópoles imperiais, tornou-se um fator constantemente conflituoso diante de paradigmas coloniais ainda enraizados nos povos europeus. Multiculturalismo e diferença mostra como a literatura representa a afirmação e a negociação da identidade não-européia no contexto de políticas multiculturais de países hegemonicamente brancos, caracterizados por atitudes de racismo e outremização. Vários autores brasileiros e estrangeiros discursam sobre a literatura contemporânea no Reino Unido, Malta, Nigéria, Austrália, Brasil e outros países latino-americanos e analisam as tentativas de negociação identitária para uma maior conviviabilidade na diversidade.

Multiculturalismo e Diferença é dividido em três partes. Precedendo a análise de várias obras literárias, principalmente da primeira década do século XXI, na primeira parte discutem-se os problemas levantados pelo multiculturalismo e pela literatura escrita por autores ‘negros’ britânicos. Baseada nos termos do parâmetro latino-americano da antropofagia, a identidade do não-europeu é afirmada no contexto hostil da exclusão e da outremização. Analisam-se na segunda parte os romances britânicos Dentes Brancos (2000), de Zadie Smith; The White Family (2002), de Maggie Gee; Fruit of the Lemon (1999) e Pequena Ilha, de Andrea Levy; Foreigners (2007) e In the Falling Snow (2009), de Caryl Phillips; e Um lugar chamado Brick Lane (2003), de Monica Ali. Nestes romances o sujeito diaspórico adota uma variedade de atitudes e comportamentos, a partir da assimilação à subversão, para remembrar a sua subjetividade rompida pela hegemonia branca. A terceira parte faz surgir vozes multiculturais da Nigéria, Austrália e Malta, verificando a negociação cultural envolvendo outras culturas e povos.

A discussão sobre o ensino da literatura estrangeira no Brasil, a representação do excluído e a ética de inclusão constituem o Epílogo. O ensino da literatura jamais é uma atividade neutra, mas altamente política, especialmente em sua dimensão de conscientização e de afirmação identitária.

Fonte:
BONNICI, Thomas (organizador). Multiculturalismo e diferença: narrativas do sujeito na literatura negra britânica e em outras literaturas. Maringá/PR: EDUEM, 2011.

Thomas Bonnici e Helliane Christine Minervino de Oliveira Corrêa (Representações Multiculturais na Literatura Infantil Inglesa Contemporânea)


(excerto do artigo dos autores acima apresentado no CELLI – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários, na Universidade Estadual de Maringá)

A questão do multiculturalismo é amplamente discutida na Inglaterra contemporânea devido ao fato de a nação inglesa ser constituída por uma vasta gama de culturas e identidades.

Hall (2001) assevera que a mídia britânica, TV, rádio, jornais, revistas e Internet, demonstra acentuado stereotyping quando se refere às comunidades negras. O autor jamaicano, em 1971, já chamava a atenção para o fato, em entrevista à BBC inglesa, afirmando que havia algo de radicalmente errado na forma como os imigrantes negros eram apresentados pela mídia. Hall defende que não é apenas uma questão que vai ser resolvida colocando “mais alguns rostos negros na tela ou fazer um ou dois documentários sobre os problemas dos imigrantes” (p.1), mas deve-se rever as estruturas dos meios de transmissão e difusão. Ele completa Os meios de comunicação em massa desempenham um papel crucial para definir os problemas e questões de preocupação pública. Eles são os principais canais de discurso público em nossa sociedade segregada. Eles transmitem estereótipos de um grupo para outros grupos. Eles anexam sentimentos e emoções a problemas. Eles determinam os termos em que os problemas são classificados como ‘centrais’ ou ‘marginais’ (p.2).

Hall acredita que a situação atual se explica devido à invisibilidade dos negros na história da Grã-Bretanha por séculos. O autor afirma que os negros foram o componente oculto no destino e no sucesso da Grã-Bretanha como uma potência imperialista mundial e que, quando esse poder começou a diminuir, os negros vieram em grandes números para viver e trabalhar naquela que acreditavam ser a “pátria mãe”, a qual, no entanto, ao invés de acolhê-los, os excluía.

Segundo Hall, o que é mostrado na mídia sobre os negros pode levar a um tipo de doutrinamento em massa. O autor cita
Quando os negros aparecem em documentários ou noticiários, estão sempre associados a alguma ‘questão de imigração’: eles têm que estar envolvidos em algum tipo de crise ou drama para tornarem-se agentes visíveis para a mídia. Mas programas centrados em problemas como estes, selecionam e processam os participantes com base em fórmulas muito rígidas. Os negros participam, então, de programas da mídia definidos pelos meios de comunicação como ‘problemas relacionados aos negros’[...] É muito raro ver programas onde os próprios negros tenham definido o problema da maneira como eles o vêem (p.3).

Além dos documentários e noticiários, Hall também ressalta que os programas de entretenimento e drama reforçam os estereótipos e acredita que eles exerçam um impacto ainda maior na formação de atitudes em relação a outros grupos. O autor afirma que os programas infantis são ‘whiter than white” [mais brancos que o branco] e os filmes mostram mais vilões negros que brancos e mais famílias negras problemáticas.

O autor adverte que se deve ter consciência de que esses programas educam, mesmo que informalmente e que, ao se lidar com problemas e situações da vida real na ficção, eles podem criar imagens que podem perfeitamente desencadear sentimentos e emoções em situações reais.

Telles (2003) cita uma pesquisa realizada em 1995 que comprova a existência de estereótipos raciais no Brasil. Idéias como “as únicas coisas que os negros sabem fazer bem são música e esportes”, foram confirmadas por uma considerável parcela da população, seja ela representada por negros, brancos ou pardos. O autor afirma, portanto, que “tanto negros quanto brancos expressam estereótipos semelhantes sobre os negros” (p.237). Bailey (2002, apud Telles, 2003) sugere que isso se deve à falta de uma consciência de grupo racial no Brasil. Nos Estados Unidos, a situação é diferente, conforme menciona Telles (2003). Segundo o autor, ao comparar a questão “quem são mais inteligentes, os brancos ou os negros?”, 83% dos brasileiros afirmaram não haver diferença quanto ao nível de inteligência. Nos Estados Unidos, apenas 42% dos brancos acreditavam não haver diferença contra 57% que indicavam que os brancos eram mais inteligentes. Entre os negros, 66% apontavam não haver diferença, 18% acreditavam que os brancos eram mais inteligentes e 16% que os negros eram mais inteligentes.

Na literatura, estudos demonstram a presença de estereótipos raciais em obras direcionadas ao público infantil. Gouvêa (2005), desenvolveu um estudo sobre as imagens do negro na literatura infantil brasileira nas primeiras décadas do século XX, o período escolhido se deveu ao fato de haver considerável produção artística e científica nacionais, a partir de 1920, discutindo a identidade brasileira. A autora observou que até a década de 1920, havia a ausência de personagens negros ou, quando apareciam, eram remetidos ao recente passado escravocrata. As obras analisadas demonstraram um deslocamento: os personagens negros tornaram-se mais freqüentes e descritos de forma a caracterizar uma suposta integração racial.

No entanto, Gouvêa (2005) conclui que os negros ainda apareciam como “personagens estereotipados, descritos a partir de referência culturais marcadamente etnocêntricas que, se buscam construir uma imagem de integração, o fazem a partir do embranquecimento de tais personagens” (p.1). A autora acredita que a literatura analisada dirige-se e produz um leitor modelo identificado com os personagens e as referências culturais brancas.

Além dos negros, outros grupos que representam minorias são estereotipados. Segundo Brah (2002), o termo ‘minoria’ (minority) foi aplicado primeiramente para categorizar cidadãos britânicos de ascendência africana, caribenha ou asiática. A autora esclarece que, na verdade, era um “código pós-colonial que atuava como um substituto polido, cortês para ‘pessoas de cor’ ” (p.186). Consoante Jongman & Schmid (1994), um grupo minoritário (minority group) refere-se a “um grupo numericamente inferior comparado ao restante da população de uma nação, que estão em uma posição não dominante e cujos membros – sendo nascidos naquele país – possuem características étnicas, religiosas ou lingüísticas que os distinguem do resto da população. Os autores ressaltam, porém, que às vezes, o grupo chamado minoritário pode representar a maioria numérica, mas ocupam a posição de um grupo minoritário, o que pode ser determinado a partir de fatores referentes a algum tipo de discriminação. Brah (2002) sustenta que mesmo com as tentativas de mudança no conceito de ‘minoria’, há, ainda, uma forte tendência em se usar o termo para descrever apenas grupos étnicos e raciais. A autora entende que, ao se falar em referências numéricas, “reduz-se o problema das relações de poder a [apenas] um problema de números” (p.186).

Banks (1991, apud Dietrich & Ralph, 1995) aponta que até o ano 2020, um em cada dois estudantes nos Estados Unidos será uma pessoa de um grupo chamado minoritário. Verifica-se, então a necessidade de a literatura, principalmente a infantil, abordar valores e experiências de outros grupos étnicos e culturais, já que, muitas sociedades atualmente não podem mais ser consideradas homogêneas.

Apesar de ser reconhecida a importância de uma literatura multicultural na formação da criança, pertencente ou não um grupo minoritário, pesquisas revelam que há uma grande carência de obras autenticamente multiculturais na literatura infantil, incluindo clássicos, obras premiadas e bestsellers. Muitas vezes, percebe-se a ausência total de personagens ou temas que envolvam outras culturas, outras, quando aparecem, são apresentados de maneira estereotipada.

Adams (1981, apud Pirofski, 2003) analisou 57 obras publicadas entre 1697 e 1981, 25 clássicos e 32 livros premiados, a fim de verificar a representação multicultural nas obras. A autora levou em consideração fatores como idade, gênero, situação sócio-econômica, religião, deficiências físicas, ascendência étnica, cultura regional e língua. Desses fatores, apenas os relacionados à idade, situação sócioeconômica e cultura regional apresentaram aspectos mais favoráveis. Em Mary Poppins, um clássico da literatura infantil, foi encontrado um exemplo negativo no que se refere à língua usada por um personagem Afro-americano em uma viagem de Mary Poppins ao Pólo Sul. A mulher diz a Mary Poppins:
Ah bin ‘specting you a long time Mar’Poppins…You bring dem chillum dere into my li’l house for a slice of watermelon right now. My but dem’s very white babies. You wan’ use a lil bit black boot polish on dem (Adams, 1981 apud Pirofski, 2001, p.19).

A autora encontrou outras distorções referentes a dialetos Afro-americanos, principalmente nos clássicos. A categoria que apresentou menor nível de aceitabilidade, segundo Adams (1981, apud Pirofski, 2001), foi relacionada à ascendência étnica dos personagens que não eram anglo-saxões. A autora constatou estereótipos negativos com respeito à aparência dos personagens. Ela cita o personagem Prince Bumpo, um Afroamericano, no livro Doctor Doolittle como exemplo de estereótipo pejorativo. O personagem diz a Doctor Doolittle:

Se você me transformar em branco, eu poderei ir até a Bela Adormecida. Eu lhe darei metade do meu reino e qualquer outra coisa além dele...Nada mais me satisfará [mais que isso]. Eu preciso ser um príncipe branco (Gary, 1984, apud Pirofski, 2001, p.20).

Gary (1984, apud Pirofski, 2003) também observou a presença de estereótipos negativos na descrição física de Afro-americanos, como a ilustração de um garoto com a cabeça maior que o normal, e sua mãe, obesa e com traços exagerados, ou uma garota com lábios e nariz de proporções grandes. Gary (1984) também encontrou exemplos de stereotyping negativo relativos ao status da comunidade Afro-americana. O lugar habitado pela comunidade era descrito como desorganizado, superpopulado e em condições precárias.

Reimer (1992, apud Pirofski, 2003) pondera que os livros infantis tendem a não apresentar grupos minoritários, os personagens principais são basicamente brancos. Quando há a presença de personagens pertencentes às minorias, eles tendem a retratar estereótipos de Afro-americanos, hispânicos ou asiáticos, por exemplo.

De acordo com o Cooperative Children’s Book Center, da Universidade de Wisconsin, dos 4.500 livros infantis publicados nos Estados Unidos em 1997, 88 foram escritos ou ilustrados por Afro-americanos, 88 por autores latinos ou abordavam temas relativos aos latinos e 66 eram sobre os asiáticos. A partir desses dados, podemos observar que os números representam apenas 5,3% dos livros publicados. Esses números, ou outros até menores, provavelmente representam a realidade em muitos outros países do mundo. Pirofski (2003) acredita que um dos fatores que colaboram para o presente estado da questão é a escassez de autores pertencentes aos grupos minoritários, bem como de membros desses grupos no júri de conceituados prêmios outorgados em várias partes do planeta.

Independente da sociedade à qual pertençam, as crianças estão expostas a atitudes racistas. Essas atitudes, muitas vezes, perpetuam-se na literatura e na mídia levando a criança a uma imagem distorcida da realidade. No entanto, pouco a pouco, essas imagens, esses estereótipos com relação às raças, às minorias, à mulher e tantos outros, podem ser aceitos como fatos reais.

Vandergrift (1993) compara a história do desenvolvimento da literatura infantil multicultural às teorias feministas no sentido de que o foco primeiro de ambas seria na necessidade do sujeito em definir a si mesmo ao invés de ser definido pelo outro. Christian (1985, apud Vandergrift, 1993) corrobora:
Como pobre, mulher e negra, a mulher Afro-americana teve que gerar a sua própria definição para sobreviver, pois ela descobriu que foi forçada a negar seus aspectos essenciais para adequar-se à definição de outros. Se definida como negra, sua natureza de mulher era freqüentemente negada; se definida como mulher, sua negritude era muitas vezes ignorada; se definida como classe trabalhadora, seu
gênero e raça eram silenciados. É primariamente em suas expressões de si mesma que ela poderia ser sua [própria] totalidade” (p. 355).

Vandergrift levanta a questão de como jovens negras reagem ao serem definidas por outros quando são pobres, mulheres e destituídas de poder. O autor sustenta que há a carência de uma literatura que propicie “poderes básicos de linguagem expressiva que permita a um [indivíduo] que defina e crie a si mesmo” (p.355).

O autor postula que os estudos da teoria feminista contribuem para a discussão da literatura infantil multicultural. De acordo com Vandergrift, na primeira parte do século XX, muito pouca literatura infantil ou juvenil multicultural foi produzida nos Estados Unidos, e provavelmente, na Inglaterra, no auge do imperialismo e colonialismo. Apesar desses grupos multiculturais possuírem suas estórias, as editoras não se interessavam em tornar essas estórias disponíveis para a cultura dominante, os jovens americanos tinham acesso a publicações sobre culturas de terras distantes, mas muito pouco sobre as culturas presentes em sua própria sociedade. Segundo o autor, algumas seleções de contos folclóricos poderiam ser encontradas, mas obras com retratos realistas de outras culturas que não as sobre a cultura da classe média branca raramente encontravam-se disponíveis: “a cultura da classe branca dominante é apresentada como se todo o mundo fosse um grupo homogêneo ou, ao menos, como se todos aqueles que diferem sejam indignos de inclusão, e, sendo assim, permanecem invisíveis” (p. 357)

Pirofski (2003) descreve vários estudos que revelam resultados semelhantes, como apresentamos anteriormente. Os estudos demonstram que apesar de um número maior de obras infanto-juvenis multiculturais entre 1950 e 2000, se comparados com a primeira metade do século XX, personagens representantes de outras raças e grupos que não da classe branca dominante ainda permanecem escassos.

Nos livros analisados neste trabalho, o quadro se repete: apenas um personagem negro é apresentado e nominado, Ezzie, no livro Who’s Afraid of the Big Bad Book?. É um personagem secundário, amigo de Herb, o protagonista, e que aparece em apenas duas ilustrações. O personagem aparece de forma positiva, brinca com Herb e colabora com ele no final, colocando os personagens dos contos de fadas nos livros aos quais pertenciam originalmente e ajudando Herb a limpar seus rabiscos..

A outra obra, Rapunzel - a Groovy Fairy Tale, apresenta apenas ilustrações de duas pessoas da raça negra, a primeira é um aluno que aparece no refeitório com cara de assustado, sendo servido pela temível Aunt Esme, e a segunda pessoa é um dos músicos da banda de Roger, que aparece em duas ilustrações. No entanto, nenhum dos dois tem participação ativa ou alguma fala ou menção é dedicada a eles.

Dos 141 personagens, entre principais e secundários, identificados nas obras, apenas um pode ser contabilizado, e como personagem secundário, e das 1253 ilustrações, apenas 5 apresentam personagens negros, ou seja, 0,4% do total. Nenhuma mulher da raça negra faz parte das estórias ou é ilustrada nas obras, o que retrata uma total falta de representatividade da combinação gênero feminino e raça negra no corpus analisado.

Esses resultados reforçam estudos desenvolvidos previamente, que atestam que o cânone literário infantil é dominado por obras que relatam as estórias de brancos do sexo masculino ( Vandergrift, 1993).

Quanto à representatividade de outras culturas, o quadro muda timidamente. No livro The Story Giant, de Brian Patten, escrito em 2004, dois dos personagens principais são representantes de outras culturas: Hassan, que é árabe, e Rani, que é indiana. A presença de personagens multiculturais é positiva, todavia, algumas imagens podem ser detectadas ao longo da descrição dos personagens que os colocam em contraste com os personagens de Betts, uma americana e de Liam, um inglês.

Em nenhuma das outras obras há a presença de personagens representantes de outras culturas ou raças, resultado que confirma estudos feitos previamente que constatam ainda haver uma carência de obras multiculturais na literatura infantil (Vandergrift, 1993, Pirofki, 2003), mesmo considerando que na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, uma considerável parte da população é constituída de representantes de outras culturas.

Sumarizando, ao analisarmos a representação multicultural nas obras, constatamos que ainda apresenta-se significativamente modesta. Poucos personagens representam outras culturas que não a branca ocidental. Menos de 0,5% é representativo da raça negra, sendo que desse número, apenas um personagem é dotado de nome e tem alguma participação ativa na estória. Nenhuma mulher negra aparece nas narrativas e nem mesmo nas representações pictóricas. O achado corrobora a denúncia de Vandergrift (1993) que afirma que há uma preocupante carência na representação da mulher negra na literatura infantil.

Apenas uma obra apresenta personagens de outras culturas, um árabe e uma indiana. Embora, em alguns momentos detectam-se certas imagens sutilmente estereotipadas, a mensagem contida na estória está a favor da construção de uma maior integração entre as culturas e uma aceitação das diferenças. Os resultados sugerem que esforços ainda são necessários por parte das editoras e autores para proporcionar às crianças uma literatura que dialogue com todas as crianças e que reflita a coexistência de diversas comunidades em uma mesma sociedade.

REFERÊNCIAS

BRAH, A. Cartographies of Diaspora: Contesting Identities. London: Routledge, 2002.

DIETRICH, D. & RALPH, K. S. Crossing Borders: Multicultural Literature in the Classroom. The Journal of Educational Issue of Language Minority Students, v. 15, 1995.

GOUVÊA, M. C. S. Imagens do negro na Literatura Infantil Brasileira: análise historiográfica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n.1, p.77 – 89, janeiro/abril 2005.

HALL, S. Revealed: How UK Media Fuelled Race Prejudice. Chronicle World, 2001. Disponível em http://www.thechronicle.demon.co.uk .Acesso em: 8/5/2006.

JONGMAN, A. J. & SCHMID, A. P. Monitoring Human Rights. Manual for Assessing Country Performance. Leiden: LISWO, 1994.

PATTEN, B. The Story Giant. London: Harper Collins, 2004.

PIROFSKI, K. Multicultural Literature and the Children’s Literary Canon. EdChange, 2001. Disponível em http://www.medchange.org/multicultural/papers/.html. Acesso em: 5/5/2006.

PIROFSKI, K. Multicultural Representations in Basal Reader Series. Edchange, 2003. Disponível em http://www.medchange.org/multicultural/papers/basalreader.html. Acesso em: 5/5/2006.

TELLES, E. Racismo à Brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Trad. Nadjeda Rodrigues Marques e Camila Olsen. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

VANDERGRIFT, K. E. A Feminist Perspective on Multicultural Children’s Literature in the Middle Years of the Twentieth Century. Library Trends, v. 41, p.354 – 377, winter 1993.

Fonte:
CELLI – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 455-463.

Thomas Bonnici


Possui graduação em Letras Anglo-Portuguesas pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jandaia do Sul (1984), graduação em Filosofia - Faculdades Associadas do Ipiranga (1983), graduação em Inglês e Literaturas em Língua Inglesa, Literatura Italiana e Latina - Royal University of Malta (1964), graduação em Filosofia - Royal University of Malta (1962); doutorado em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1988).

Professor da Universidade Estadual de Maringá, onde leciona as literaturas em lingua inglesa.

Editor da Acta Scientutarium: Language and Culture.

Publicações em Acta Scientiarum (UEM), Teoria e Prática da Educação (UEM), Diálogos (UEM), Gragoatá (UFF), Revista de Letras (UNESP), Revista Letras (UFPR), Mimesis (USC, Bauru).

Desenvolve pesquisa sobre racismo, diáspora e multiculturalismo nas literaturas da África do Sul e do Caribe e na Literatura Negra Britânica.

Publicações:
– Short stories: An Anthology for Undergraduates (2005);
– Poetry of the Nineteenth and Twentieth Centuries (2004, 2010);
– Pós Colonialismo e Literatura: Estratpegias de Leitura (2000; 2005);
– Conceitos-chave da Teoria Pós-Colonial (2005);
– Teoria Literária: Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas (em parceria, 2000, 2004 e 2009);
– Teoria e Crítica Literária Feminista (2007);
– Resistência e Intervenção nas Literaturas Pós-Coloniais (2009)

Fontes:
Currículo Lattes
BONNICI, Thomas (organizador). Multiculturalismo e diferença: narrativas do sujeito na literatura negra britânica e em outras literaturas. Maringá/PR: EDUEM, 2011.

Quintino Lopes Castro Tavares (Multiculturalismo e Diferença)


(excerto do artigo do autor “Multiculturalismo”)

A diferença é um dos conceitos centrais do multiculturalismo. É necessário saber como tratá-la, qual lugar ela ocupa no sistema social, se é um fator de enobrecimento ou empobrecimento, um trunfo ou uma ameaça. Não se trata simplesmente de um conceito filosófico ou uma forma de semântica. Nas palavras de Semprini, “a diferença é antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e social, que os homens empregam em suas práticas cotidianas e encontra-se inserida no processo histórico”.32

Conforme determinada teoria do liberalismo (L1), as pessoas têm iguais liberdades de ação, sob a forma de direitos fundamentais e, nos casos litigiosos, os tribunais decidem a quem corresponde o direito ou os direitos. Deste modo, a igual consideração toma corpo apenas sob a forma de uma autonomia protegida juridicamente de que cada um pode se valer para construir e/ou levar adiante seu projeto de vida. Trata-se do Liberalismo do tipo desenvolvido por Rawls ou Dworkin, que exige um sistema jurídico eticamente neutral, capaz de assegurar a cada um oportunidades iguais para defender sua própria concepção do bem.

A tradição liberal democrática de direito (L1), como já dissemos, se constituiu como um ideal de liberdade, igualdade e direitos universais que, quando muito, apenas parcialmente conseguiu realizar seu intento, uma vez que se comprometeu quase que absolutamente com os direitos individuais e, a partir destes, com um Estado neutro, sem projetos culturais, religiosos ou qualquer espécie de objetivos coletivos para além da liberdade das pessoas, segurança, bem-estar e seguridade social.

Mas a compreensão do multiculturalismo pode ser estendida e alcançar um liberalismo mais ampliado (L2), que possibilita um Estado comprometido com a sobrevivência e o florescimento de grupos particulares, de modo que os direitos básicos de seus membros possam realmente ser protegidos. Neste sentido, a política e a ética da dignidade humana são aprofundados e ampliados, de maneira que o respeito das individualidades possa ser compreendido de forma a não envolver somente o respeito ao potencial humano universal de cada um, mas também o respeito ao valor intrínseco das diferentes formas culturais, mediante o qual cada indivíduo reanima sua humanidade e expressa sua personalidade própria e única. Assim, o multiculturalismo, longe de se guiar por metas antiliberais, se insere no próprio contexto do liberalismo (L2), mas na perspectiva daquele que espera do Estado o asseguramento dos direitos fundamentais em geral, tanto quanto a intervenção em prol da sobrevivência e fomento do marco cultural em que cada indivíduo, preferencialmente os menos favorecidos, encontra-se inserido e com o qual se identifica. Trata-se de uma forma liberal-universalista que considera entre os seus princípios básicos a cultura e o contexto cultural que dignificam os indivíduos.

Se aceitarmos que a maioria precisa de um marco cultural seguro para dar sentido e orientação a seu plano de vida, então um contexto cultural seguro faz também parte dos artigos primários básicos para as perspectivas das pessoas com vista à vida boa. Deste modo, os Estados democrático-liberais têm a obrigação de ajudar os grupos em desvantagem, visando permitir a eles preservar a sua cultura contra as interferências das culturas majoritárias ou “de massas”.

Reconhecer a diferença exige não só o respeito à singularidade de cada um, independentemente do marco no qual se encontra inserido ou é identificado, mas também a consideração à sua visão de mundo, inseparável de si mesmo, construída por força do grupo ao qual pertence. Como explica Gutmann, o pleno reconhecimento público da igualdade pode exigir duas formas de respeito: 1) o respeito à identidade singular de cada um, independente de seu sexo, raça ou etnia; 2) o respeito àquelas atividades, práticas e modos de ver o mundo que são objeto de uma valoração singular ou inseparáveis dos membros dos grupos (principalmente os) em desvantagem.

Se o liberalismo (do tipo L1) reconhece a diferença, ele a restringe ao espaço privado, longe do diálogo aberto e na medida em que não interfira na esfera pública. Amy Gutmann37 coloca bem a questão ao concordar com Taylor:38 a identidade humana se produz dialogicamente, em resposta às nossas relações, o que inclui nossos diálogos reais com os outros. Por conseguinte, se a identidade de cada um se forma e se constitui dialogicamente, é preciso mais do que uma exigência negativa de não discriminar ou positiva de tolerar o diferente. É necessário um reconhecimento público da identidade de cada um, capaz de possibilitar a discussão pública de ações políticas que possam favorecer os aspectos identitários.

Dialogicamente o indivíduo cria a sua referência identitária: com base no que recebe de seu grupo de pertença, projeto de conscientização sobre si mesmo, e no que extrai nas relações sociais da realidade do dia-a-dia. É assim que a sua determinação enquanto pertencente a um determinado grupo social diferenciado é constituída; não dependente, como diz Semprini, apenas de sua consciência enquanto formação social diferenciada, mas, com igual peso, do fato de ser externamente percebido como “minoria”. Pois, muitas vezes, é o sentimento de marginalização que leva os indíviduos a se identificarem como possuidores de valores comuns e, portanto, um grupo à parte.

Para terminar: reconhecer a diferença exige o respeito ao plano de vida de cada um, sua construção social inerente e inseparável de si mesmo, construída por força dos valores que compartilha e do grupo no qual está inserido ou com o qual é identificado. Apoiado pelo ideal da dignidade humana, o reconhecimento público aponta, no mínimo, para duas direções: 1) para a proteção dos direitos básicos dos indivíduos enquanto seres humanos e 2) para o reconhecimento das necessidades particulares dos indivíduos enquanto membros de grupos culturais distintos.

Fonte:
Quintino Lopes Castro Tavares. Multiculturalismo. Disponível em BuscaLegis.ccj.ufsc.br.
Imagem = autor anonimo

Manuel Rui (Poesias Avulsas)


SERENATA

Caem à noite pedras
sobre o templo
do silêncio
de espaço
um ruído de automóvel
um toque de sinos de uma igreja
monotonia diurna que não quebra
a queda das pedras
no silêncio

De dia o templo é
noite
e à noite há o silêncio
o esgaravatar de uma gaivota em fogo
o estalar de folhas novas
numa árvore
sabendo a vício este cigarro
de cheira a seiva dos pinheiros

E as pedras caem
como chuva ou neve
todas as noites que noites
já são poucas

E a seiva pedra sobre o templo
e a gaivota
o vício
a folha
quebrando este silêncio

Onde as guitarras?
Os quissanges acontecem longe

NÃO VALE A PENA PISAR

O capim não foi plantado
nem tratado,
e cresceu. É força
tudo força
que vem da força da terra.
Mas o capim está a arder
e a força que vem da terra
com a pujança da queimada
parece desaparecer.
Mas não! Basta a primeira chuvada
para o capim reviver.

MAR NOVO

1

E a embarcação aparecia como um barco de recreio.
Do pescador a musculatura dolorosamente suada
merecia uma simples pincelada
de silhueta negra
impressionismo fácil
afirmação exótica de que o dongo
não andava sozinho.

2

Mas é novo este azul tela rasgada
é novo o nosso olhar.
É nova esta forma gestual de espuma
feita sabor de amor de guerra e de vitória
em nossas bocas férteis em nossa pálpebras
de antigo medo clandestino
soletrando a lágrima
quando era o nosso mar recordação também
escravizada:
caminho secular de ir e não vir.

3

É nova esta areia
este marulhar de fogo nos ouvidos
quase notícia do rebentamento maior
sobre o inimigo.
É novo este calor como se o sol
fosse um ananás coletivo suculento
rasgado pelos dedos da madrugada mais quente
e mais suave.

4

E é bom medir a água evaporada
sobre a concha
a alga
a rocha.
Medir também teu corpo natural
onde encontrar a boca
os pés
os olhos
a palavra.

5

E é bom verificar as mãos. Principalmente
as nossas mãos umedecidas pelo mar.
As mãos que tocam as coisas
As mãos que fazem as coisas
As mãos. As mãos terminal de carga
e de descarga do nosso pensamento
As mãos mergulhadas sob a água.
na (re)descoberta tímida das essências
no pulsar submarino de uma nova esperança.

6

Tudo é fugaz
entre o desenho do teu pé na areia
e a onda que desfaz
a marca

Entre a guerra e a paz
retorno fisicamente o poema a onda
constante meditação primeira.

Nós e as coisas.

Nada permanece que não seja
para a necessária mudança.
Que o diga o mar.

Fonte:
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/capas/obras-literarias/manuel-rui.php

Manuel Rui (1941)


Manuel Rui Monteiro nasceu na cidade do Huambo, Angola, em 1941. Fez os estudos primários e secundários no Huambo. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra.

Publicou O Regresso Adiado , Memória de Mar, Sim, Camarada!, Quem me Dera ser Onda, Crónica de um Mujimbo, 1 Morto & Os Vivos, Rio Seco, Da Palma da Mão.

A sua prosa ficção está profundamente marcada por preocupações estéticas de um realismo social que celebra o homem comum. Quando focaliza categorias de personagens da classe média, fá-lo para produzir caricaturas de comportamentos perversos. É aqui que este autor exibe a sua mestria no tratamento da sátira e da ironia. São recursos de grande eficácia no plano semântico-pragmático.Isto é , no que diz respeito ao conjunto de significações que se lhes associam e ao modo como os leitores os interpretam.

O que pode ser provado pelo número de edições e tiragens de Quem me Dera ser Onda, título que suscitou grande empatia do público leitor. É a história de um porco que habita um apartamento na companhia de uma família cujo chefe é Faustino. Da hilaridade ao patético, a presença do animal vai provocando uma série de transtornos aos moradores do prédio, muitos dos quais pautam a sua conduta por regras e valores de um mundo urbano que começa a ser outro, como é este o da domesticação de animais no espaço residencial para a satisfação das necessidades de consumo de carne. É uma sátira mordaz a respeito de fenómenos de mobilidade social de determinadas categorias, do mimetismo dos novos ricos, e do populismo político. O realismo social, a sátira e a ironia logram níveis de elaboração estética em Rioseco, um romance cuja história decorre numa ilha adjacente à parte continental de Luanda. Um casal de refugiados do sul e leste de Angola, em que o marido e a mulher pertencem a etnias diferentes, vai acoitar-se no mundo insular de pescadores pertencentes a uma outra etnia d norte .

Tecem profundas relações sociais de solidariedade, e apesar das suas origens étnicas, acabam todos eles,por construir um mundo diferente em que procuram banir a violência que dilacera o continente.

No plano da linguagem, Manuel Rui Monteiro experimenta o recurso à diglossia imprópria, através do qual os dircursos das personagens são impregnados de estruturas frásicas e semânticas que vazam das línguas autóctones e de uma psicologia equivalente. Não sendo ainda de desprezar a semântica do antropónimo de uma personagem feminina que é Noíto. Aqui vemos Manuel Rui lançar mão da memória que debita materiais para a ficção, pois trata-se de uma personagem que viveu no Huambo, afamada por ser uma grande quimbanda, ou seja, terapeuta tradicional a quem eram reconhecidos poderes do mundo intangível. E no romance Noíto é, no essencial, uma mulher capaz de decifrar os segredos da natureza e pressagiar infortúnios.

Fontes:
www.nexus.ao
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/manuel-rui/manuel-rui.php

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo IX – As muletas do besouro


Enquanto Rabicó suava o suor da morte nas unhas de Tom Mix, Narizinho e Emília chegavam ao palácio das Colméias, donde vários zangõess saíram a recebê-las com gentis rapapés.

— Salve, princesinha do Narizinho Arrebitado! – exclamaram eles, curvando-se.

— Obrigada! — respondeu a menina, dando-lhes a mão a beijar. — Recebi um convite da rainha, mas estou na dúvida se foi da rainha das Abelhas ou da rainha das Vespas. Portei aqui para saber...

— O convite foi da rainha das Abelhas — declarou um dos zangõess. Fui eu mesmo quem o redigiu. A rainha das Vespas anda furiosa com a menina por ter matado uma das suas súditas.

— Vê, Emília, de que escapamos? — cochichou Narizinho. Se tivéssemos errado o caminho e ido parar na terra das Vespas, com certeza nas matavam a ferroadas... E voltando-se para os zangõess:

— Permitam-me, senhores que vos apresente a senhora condessa de Três Estrelinhas. Esta ilustre dama foi vítima dum desastre no caminho e não consegue andar sem encosto. Poderá algum dos senhores arranjar-lhe um par de muletas?

— Podemos, sim, mas antes deverá consultar o grande médico que por acaso se acha aqui, vindo do reino das Águas Claras.

— O doutor Caramujo está aqui? — exclamou a menina muito alegre. — Conheço-o muito! Chamem-no depressa.

Os zangõess partiram rápidos, regressando instantes depois em companhia do doutor Caramujo, o qual, reconhecendo a menina e a boneca, saudou-as respeitosamente.

Depois arrumou os óculos para examinar a perna de Emília.

— É grave! — exclamou. — A senhora condessa está sofrendo duma anemia macelar no pernil barrigóide esquerdo. Caso muito sério.

— E que receita, doutor? Pílula de sapo outra vez? — indagou a menina.

— Esta doença — explicou o grande médico — só pode sarar com um regime de superalimentação local.

— Alimentação macelar, eu sei — disse a menina rindo-se da ciência do doutor. — Tia Nastácia sabe aplicar esse remédio muito bem.

Em dois minutos, com um bocado de macela e uma agulha com linha ela cura Emília para o resto da vida.

— Tia Nastácia! — exclamou o médico escandalizado. – Com certeza é alguma curandeira vulgar! Macela! Alguma mezinha vulgar também! Oh, santa ignorância! Admira-me ver uma princesa tão ilustre desprezar assim a ciência de um verdadeiro discípulo de Hipócrates e entregar a condessa aos cuidados duma reles curandeira!...

— Reles curandeira? — exclamou a menina indignada. – Chama então Nastácia de reles curandeira? Se tem algum amor à casca, retire-se, senhor cascudo, antes que eu faça o que fiz para a tal dona Carochinha. Reles curandeira! Já viu Emília, um desaforo maior?

O doutor Caramujo meteu o rabo entre as pernas e sumiu-se.

Narizinho estava ainda a comentar o desaforo quando os zangõess que tinham saído em procura das muletas apareceram.

— Aqui no palácio não há muletas, senhora princesa, mas aí fora costuma andar um besouro manco que possui duas. Quer ir até lá conosco ?

Narizinho foi. Três esquinas adiante encontraram o besouro mendigo, de chapéu na mão à espera de esmolas.

A menina já lhe ia oferecendo um pedacinho de bolo quando o mendigo perguntou:

— Não me reconhece mais?

A menina encarou-o com olhos atentos.

— Sim!... Estou reconhecendo!... Não foi você que lá na beira do ribeirão esteve passeando pela minha cara e me arrancou um feixinho de fios da sobrancelha?

— Isso mesmo! — confirmou o besouro. — Por sinal que por causa daquele espirro levei um tombo de mau jeito e fiquei aleijado para o resto da vida.

Pesarosa da sua desgraça, Narizinho pô-lo no bolso, dizendo:

— Fique quietinho aí e divirta-se com esses bolos. Vou levá-lo para o sítio de vovó, onde poderá viver uma vida sossegada sem ser preciso tirar esmolas.

Depois, tomando suas muletinhas, deu-as à boneca.

— Arrume-se nisso depressa, senhora condessa da Perna Vazia, que a hora da audiência está próxima.

E, precedidas pelos zangõess, as duas de novo entraram no palácio.
––––––––
Continua... Saudades

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte XVI


SER PÁSSARO

Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares
Para as asas abrir, ruflantes e nervosas,
Dos parques através e dos moitais de rosas,
Nos floridos jardins, nas hortas e pomares.

Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,
Pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,
Das auroras de abril nas cristalinas festas.
Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso

O quente lar do amor, o carinhoso ninho,
De onde sairá mais tarde o pipilar mavioso
De um outro mais gentil e meigo passarinho.
Não temer o verão e não temer o inverno

Para tudo alcançar na leve subsistência,
No contínuo lidar, no labutar eterno,
Que é talvez da alegria a mais feliz essência.
Viver, enfim, de luz e aromas delicados

Nascido dentre a luz, gerado dentre aromas,
Sonorizando o azul, sonorizando os prados
E dormindo da flor sob as cheirosas comas.
Voar, voar, voar, voar eternamente,

Extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,
E ser pássaro, é ter em cada asa fremente
Um sol para aquecer o frio de algum seio.

O BOTÃO DE ROSA

A uma atriz

O campo abrira o seio às expansões frementes
Das árvores senis, dos galhos viridentes.

Caía a tarde fresca
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.
A iluminada esfera
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,
Dava um brilho-cetim às verdes folhas d’hera.
No ar uma harmonia avigorada e casta,
No crânio uma vertigem
Duma idéia viril, duma eloqüência vasta.

Tardes formosíssimas,
Ó grande livro aberto aos geniais artistas,
Como tanto alargais as crenças panteístas,
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.

Quanta vitalidade indefinida, quanta,
Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,
Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens
Opunhas o largo campo às vistas deslumbradas.
As múrmuras ramagens,
À luz serena e terna, à luz do sol -- que espadas
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,
Tinham falas de amor, segredos vacilantes
Finos como os brilhantes.

A música das aves
Cortava o éter calmo, em notas multiformes,
Límpidas e graves
Que estouravam no ar em convulsões enormes.
Aqui e além um rio
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo
Áspero e sombrio.
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo
E o espírito mudo,
Como um herói gigante avassalavam tudo...

Nuns madrigais risonhos
Abria-se o país fantástico dos sonhos.
Alavam-se os aromas
Leais, inexauríveis
Das largas e invisíveis
Selváticas redomas.

A seiva rebentava
Em ondas — irrompia
Na doce e maviosa e plácida alegria
De uma ave que cantava,
Dos belos roseirais
Que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças
Dos árvoredos altos,
Rígidos, atléticos,
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos
Dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explosindo aos saltos.
E toda a natureza
Robusta de saúde e estrênua de grandeza
Libérrima e vital,
Erguia-se pujante, audaz e redentora,
No gérmen material da força criadora,
Dentre a vida selvagem mística, animal...

Dos roseirais preciosos
Nos renques primorosos,
Numa linda roseira abria castamente,
Como um sonho de luz numa cabeça ardente,
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.
Tinha essa cor formosa,
Tinha essa cor da aurora,
Quando ensangüentada em rubro a vastidão sonora

Era um botão feliz
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea
Que uma estrofe não diz.
Das pétalas macias,
Das pétalas sanguíneas,
Doces como harmonias
Brandas e velutíneas
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.
Perfumes excelentes,
Perfumes dos melhores,
Perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores
O viver natural dos vegetais alegres;
Eles são mais ditosos
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
E por mais que tu regres
Ó matéria fatal, a tua vida inteira,
No rigor da higiene;
E por mais que a maneira
Do teu grande existir, desse existir -- perene
De ironias e pasmos,
Explosões de sarcasmos
Tu completes, matéria — ó humanidade ousada —
Com a ciência altanada;
E por mais que no século,
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,
Será sempre maior e exuberante e forte,
Ó matéria fatal,
Essa vida tão rica
Que se corporifica
Na valente coorte
Do poder vegetal.

Era um botão feliz,
Cuja roseira, impávida,
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos — ávida
De completa fragrância,
Palpitava com ânsia
Desde a própria raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente
Como um supremo Rubens,
Jorrando à curvidade etérea do poente,
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,
Numa distribuição simpática de cores,
De tintas e de luzes
De galas e fulgores
Rubros como o estourar dos fervidos obuses.

O cérebro em nevrose,
No pasmo que precede a augusta apoteose
De uma excelsa visão perfeitamente bela,
De uma excelsa visão em límpidos dóceis,
Exaltava o acabado artístico da Tela
E o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares
Os pálidos crepúsculos.
Os fúlgidos altares
Do homem primitivo — a relva, o prado, o campo
Onde ele ia buscar a força de uma crença
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa
Morriam de clarões — os poderosos músculos
Da fértil mãe de tudo — a natureza ingente —
Deixavam de bater. — O olhar do pirilampo
Oscilava, tremia — azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham
Lembrando um batalhão d’espectros que caminham
E a casta nitidez sintética das cousas
Tomava a proporção das funerárias lousas.

Completara-se então o mais extraordinário,
O mais extravagante
Dos fenômenos todos:
A noite. — Enfim descera a treva do Calvário,
A treva que envolveu o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.
A abóbada espaçosa, a física amplitude,
Mostrava a profundez da angústia de ataúde
De um operário pobre,
Quando se escuta o dobre
Amplíssimo e funéreo,
Sinistro e compassado,
Rolar pela mansão gloriosa do mistério,
Assim com um soluço aflito, estrangulado.

Devia ser, devia
Por uma noite assim,
Como esta noite igual,
Que derramou Maria
A lágrima da dor, — que o célebre Caim
Sentiu do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,
Traído pelo estranho zéfiro da sorte,
Rolou como uma cisma
Intensa e luminosa
Ardente e jovial em que a razão se abisma
E foi cair, cair no pélago da morte,
Em um dos mais raivosos,
Em um dos mais atrozes
Rios impetuosos,
Cheios de surdas vozes,
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,
Em meio à placidez
Dos astros no infinito
E a mesma irracional e fúnebre mudez.

Depois e além de tudo,
Além do grave aspecto inteiramente mudo,
Ao tempo que morria
O cândido botão — em um dos tantos galhos
Virentes da roseira — alegre no ar se abria
Um outro que ostentava as pétalas sedosas,
As pétalas gracis de cores deliciosas,
De cores ideais.

As auras musicais
Passavam-lhe de leve,
Nos tímidos rumores,
De um ósculo mais breve

E dentre a exposição das delicadas flores,
Das rosas — o botão
Aberto ultimamente as cúpulas austeras,
As plagas da esperança, a irmã das primaveras,
Pendido um quase nada, esbelto na roseira,
Mostrava aquela unção,
A ínclita maneira
De quem se glorifica
Subindo ao céu azul da majestade pura,
Da eterna exuberância,
Da fonte sempre rica,
Da esplêndida fartura
Da luz imaculada — a egrégia substância
Que faz das almas claras
Pela fecundidade olímpica do amor,
Magníficas searas,
De onde se difunde a vida sempiterna,
A vida essencial, a lei que nos governa,
A idéia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz,
Como o botão de rosa
Tão meigo e tão feliz,
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,
Na treva silenciosa,
Onde o espírito vai, atordoado e cego,
Cair, entre soluços,
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,
Ou pode equilibrar-se em admirável base
Estética e profunda,
Assim, bem como o outro, a mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase.
Precisas para isso uma alma mais fecunda.
Precisas de sentir a artística loucura.

Ó ADALZIZA DOS SONHOS

Ó Adalziza dos sonhos;
Estrela dos firmamentos
Dos meus cantares risonhos
Ó Adalziza dos sonhos
Enquanto este sangue ferve
Rasga esses véus enfadonhos
Dos teus louros pensamentos,
Ó Adalziza dos sonhos,
Estrela dos firmamentos.

ENQUANTO ESTE SANGUE FERVE

Enquanto este sangue ferve
Com força, com toda a força,
Palpite a fibra da verve
Esmague-se o que não serve
Na treva o Mal se contorça,
Enquanto este sangue ferve,
Com força, com toda a força.

COMO UM CISNE, EST’ALMA FRISA

Como um cisne, est’alma frisa
O mar de luz de teus olhos,
Ó simpática Adalziza
Como um cisne, est’alma frisa,
Vagueia, paira, desliza
Sem naufragar nos escolhos
Como um cisne, est’alma frisa
O mar de luz de teus olhos.

MERECE O BOM DO VIDAL

Merece o bom do Vidal
Que é mesmo um Joca de truz,
Ter também com o seu Fiscal,
Merece o bom do Vidal
Um banquete bambual,
De cem milhões de bambus
Merece o bom do Vidal
Que é mesmo um Joca de truz!

ZULMIRA DOS MEUS AMORES

Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas,
Resplandece como as flores,
Zulmira dos meus amores
Abre os olhos sedutores
Nos quais a minh'alma abismas,
Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas.

DEIXAI QUE A MINH'ALMA ESCASSA

Deixai que a minh'alma escassa
De luz -- aos astros emigre
Como gaivota que passa
Deixai que a minh'alma escassa
De amor -- na plúmbea desgraça De atrozes garras de tigre,
Deixai que a minh'alma escassa
De luz -- aos astros emigre.

QUANDO ELA ESTÁ DE COLETE

Quando ela está de colete,
Espartilhada, irradiante
Vestida de azul-ferrete
Quando ela está de colete
Em mim cruzando o florete
Do seu olhar -- que elegante
Quando ela está de colete,
Espartilhada, irradiante.

Ó CINTILANTE QUIQUIA

Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares,
Flor azul da simpatia,
Ó cintilante Quiquia,
Rasga este céu da alegria
Dos meus risonhos cantares,
Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares.

OLHOS PRETOS SONHADORES

Olhos pretos sonhadores,
Olhos pretos, sonhadores
Ó celeste Carolina,
Como são esmagadores
Como vibram dos amores
A noss'alma cristalina,
Olhos pretos, sonhadores,
Ó celeste Carolina.

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

57a. Feira de Livros de Porto Alegre (Programação de 14 de Novembro, Segunda-Feira)


A Arte Levada a Sério
14/11/2011 - 09:00
Programação do Ministério da Cultura - Apresentação dos Pontos de Cultura e Leitura

Políticas públicas para o livro e leitura
14/11/2011 - 10:00
Encontro da rede dos Pontos de Leitura e Bibliotecas Comunitárias da região Sul

Canal Futura na Feira - Umas Palavras, episódios: Inês Pedrosa; MV Bill
14/11/2011 - 10:00

Uma Aventura no Quintal, de Samuel Murgel Branco
14/11/2011 - 10:30
Contação e cantação de histórias com a equipe do QG

Oficina: Poetizando nosso viver
14/11/2011 - 13:30
Se nossa vida é um poema, por que não poetizar? Oficina em módulo único

Canal Futura na Feira - Umas Palavras, episódios: Lídia Jorge; José Eduardo Agualusa; João Gilberto Noll
14/11/2011 - 15:00

Campos dos morros de Porto Alegre
14/11/2011 - 15:30
Lançamento do livro sobre biodiversidade desta vegetação composta por cerca de 740 espécies diferentes de plantas

Cine SESC
14/11/2011 - 15:30
Exibição do filme O pequeno Nicolau

Mitos de criação
14/11/2011 - 16:00
Diferentes versões para a criação do mundo e dos seres: grega, cristã, oriental, indígena e iorubá

Só Perdido
14/11/2011 - 16:00
Editora: Meia Lua

Expresso das Letras
14/11/2011 - 16:00
Editora: Revolução

Contação de Histórias
14/11/2011 - 17:00

Escritos IV
14/11/2011 - 18:00
Editora: Revolução

Diário de um peregrino
14/11/2011 - 18:30
Editora: Editora Alcance

Reflexo no espelho
14/11/2011 - 18:30
Editora: Editora Alcance

Cine Santander Cultural
14/11/2011 - 19:00
Sessão Comentada

Fonte:
http://www.feiradolivro-poa.com.br

sábado, 12 de novembro de 2011

José Feldman (Trova Ecológica 43)

Carolina Ramos (Lançamento do Livro de Poesias "Destino")

Clique sobre a Imagem para Ampliar
Fonte:
A Poetisa

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes IX)


A VIDA PASSADA A LIMPO

Ó esplêndida lua, debruçada
sobre Joaquim Nabuco, 81.
Tu não banhas apenas a fachada
e o quarto de dormir, prenda comum.

Baixas a um vago em mim, onde nenhum
halo humano ou divino fez pousada,
e me penetras, lâmina de Ogum,
e sou uma lagoa iluminada.

Tudo branco, no tempo. Que limpeza
nos resíduos e vozes e na cor
que era sinistra, e agora, flor surpresa,

já não destila mágoa nem furor:
fruto de aceitação da natureza,
essa alvura de morte lembra amor.

Itabira do Mato Dentro - MG - 1902

ATRIZ

A morte emendou a gramática.
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só. Era tantas.
Professorinha pobre de Pirassununga
Cleópatra e Antígona
Maria Stuart
Mary Tyrone
Marta de Albee
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteirona
a velha senhora Clara Zahanassian
adorável Júlia
outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo
e um mendigo esperando infinitamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um nos mitos cênicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Morrem mil Cacildas em Cacilda.

AINDA QUE MAL

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

ANTEPASSADO

Só te conheço de retrato,
não te conheço de verdade,
mas teu sangue bole em meu sangue
e sem saber te vivo em mim
e sem saber vou copiando
tuas imprevistas maneiras,
mais do que isso: teu fremente
modo de ser, enclausurado
entre ferros de conveniência
ou aranhóis de burguesia,
vou descobrindo o que me deste
sem saber que o davas, na líquida
transmissão de taras e dons,
vou te compreendendo, somente
de esmerilar em teu retrato
o que a pacatez de um retrato
ou o seu vago negativo,
nele implícito e reticente,
filtra de um homem; sua face
oculta de si mesmo; impulso
primitivo; paixão insone
e mais trevosas intenções
que jamais assumiram ato
nem mesmo sombra de palavra,
mas ficaram dentro de ti
cozinhadas em lenha surda.
Acabei descobrindo tudo
que teus papéis não confessaram
nem a memória de família
transmitiu como fato histórico
e agora te conheço mais
do que a mim próprio me conheço,
pois sou teu vaso e transcendência,
teu duende mal encarnado.
Refaço os gestos que o retrato
não pode ter, aqueles gestos
que ficaram em ti à espera
de tardia repetição,
e tão meus eles se tornaram,
tão aderentes ao meu ser
que suponho tu os copiaste
de mim antes que eu os fizesse,
e furtando-me a iniciativa,
meu ladrão, roubaste-me o espírito.

ASPIRAÇÃO

Tão imperfeitas, nossas maneiras
de amar.
Quando alcançaremos
o limite, o ápice
de perfeição,
que é nunca mais morrer,
nunca mais viver
duas vidas em uma,
e só o amor governe
todo além, todo fora de nós mesmos?
O absoluto amor,
revel à condição de carne e alma.

Carlos Drummond de Andrade (Amor)


Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.

Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você esta esperando desde o dia em que nasceu.

Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d'água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.

Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente divino - o amor.

Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por algum motivo e em troca receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram feitos um pro outro.

Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida.

Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do seu lado...

Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados...

Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...

Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...

Se você tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela...

Se você preferir morrer, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida. É uma dádiva.

Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Ou às vezes encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam o amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.

Por isso, preste atenção nos sinais - não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: o AMOR!

Paraná em Trovas Collection - 1 - A. A. de Assis (Maringá/PR)

Yêda Schmaltz (Poesias Avulsas)


POEMA BISSEXTO
Aos nascidos em 29 de fevereiro

Num ano não bissexto
de meses absurdos
e de horas escritas,
o teu dia não existe,
o teu dia absoluto.
Hoje é a véspera, mas amanhã acabou.
Agora, é cedo ainda
pra eu ir cantar na tua porta,
mas amanhã, é tarde, Inês é morta.

Uma interrogação escorre luminosa
sobre o imponderável
do teu dia não-dia,
mas eu dou uma rosa
pro teu dia não-dia,
ante-dia,
adversus,
carpe-diem.

No teu ante-aniversário
que não fazes este ano
porque amanhã é primeiro,
não será mais fevereiro,
quisera ver o teu rosto:
a face triste do baiano
e o riso largo do mineiro.

Perdido nas estrelas
de um zodíaco azul
ficou teu dia
nadando, peixenauta,
pelo espaço,
— olhando para o céu é que te abraço
enquanto estabilizas tua idade
de sempre criança,
de sem gravidade.

E nem temos taças para o ritual,
nem temos a nós mesmos
(dançamos um longínquo carnaval)
nem tenho teus braços
que o vento, que o tempo,
que a nave levou.
Mas um vidro parco
ou acrílico largo
tilinta: trim!
A festa acabou.

O DESVIO

A mim pouco me importa
aberta ou fechada a porta,
vou entrar.

E pouco me importa estar
sendo amada ou não amada:
vou amar.

Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!

A mim pouco me importa
se a tua amada é doente,
se a tua esperança é morta.

E me importa muito menos
se aceitas solenemente
a nossa vida parca e torta.

Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.

A mim pouco me importa
se a lira quebrou a corda:
vou cantar.

E pouco me importa estar
no picadeiro do circo:
vou rodar.

Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!

A mim pouco me importa
se estamos todos presos
por uma invisível corda.

E me importa muito menos
sermos todos indefesos
ante o destino que corta.

Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.

AMOR

Amor, se houve, eu tive.
De lembrar o amor
em poesia,
minha alma
sobrevive.

CAVALO DE PAU

Quando amo, sou assim:
dou de tudo para o amado
— a minha agulha de ouro,
meu alfinete de sonho
e a minha estrela de prata.

Quando amo, crio mitos,
dou para o amado meus olhos,
meus vestidos mais bonitos,
minhas blusas de babados,
meus livros mais esquisitos,
meus poemas desmanchados.

Vou me despindo de tudo:
meus cromos, meu travesseiro
e meu móbile de chaves.
Tudo de mim voa longe
e tudo se muda em ave.

Nos braços do meu amado,
os mitos se acumulando:
um pandeiro de cigana
com mil fitas coloridas;
de cabelo esvoaçando,
a Vênus que nasceu loura.
(E lá vou eu navegando.)

Nos braços do meu amado,
os mitos se acumulando,
enchendo-se os braços curtos
e o amado vai se inflando.

— O que de mais me lamento
e o que de mais me espanto:
o amado vai se inflando
não dos mitos, mas de vento
até que o elo arrebenta
e o pobre do amado estoura.

(Nenhum amado me agüenta.)

OITANTE

Alguém fabricou para mim
Uma estrela particular;
Este calor sem-fim.

Receita para se fabricar
uma estrela: é só queimar
átomos de hidro/gênio
por meio da fusão do olhar,
isto é, nuclear.

Fórmula: Bill Gates
que é igual a Olavo Bilac,
ouvindo as janelas,
(E acreditar que vai brilhar, ter fé.)

Mas não se esqueça:
amai para entendê-la.
Quantos celulares fantasmas
há por aqui! Cibernéticos na linha.
Ai, que saudade que eu tenho
do tempo de Ivanhoé!

BACANTE A OESTE

A manhã mastiga
o canto do melro:
pão de trigo e mel.
Nossa vida é de sal
e de vinagre
apesar do passarinho
e o sal da terra.

Meu canto a Dionísio
é benfazejo
e o que desejo,
é amenizar os caminhos
do homem
com cristais de doçuras
de mulher.

E a poesia é doidivanas,
louca e séria
e vai arando
nossos caminhos de sede
e de torturas,
nossos caminhos de fome
e de miséria.

De noite
os pirilampos vagam
seus vagos lumes
pelos campos de buritis
e guarirobas.
— Cocos iluminados
de lantejoulas.

A POBREZA II
(DECLARAÇÃO DE BENS)

Escolhi para mim
— cabeça de poeta,
adolescência pura —
o que não deveria escolher
vivendo no Terceiro Mundo:
dediquei minha vida
à Educação e à Cultura.
Professora da Universidade Brasileira,
não pude comprar fazenda,
chácara, terreno ou boi,
( essa goiana maneira de ser ).
Eu só pude criar,
no meu curral de sonho,
o canto do cavalo,
o canto da boiada
em poesia aberta e hermética;
essa boiada que tanto aflige,
ruminando na janela
da minha aula de Estética.

Apenas com um salário de sucata,
sustentei o filho e as filhas
que partilhei ao gerar,
mas que não dividi na hora
dos divórcios, das partilhas.
(Apenas com o salário,
pois dispensei o tal “alimento”
da descasada profissional.)

Fiquei com a Poesia,
esse bagulho
terceiromundista,
este meu Bem;
fiquei com a Pobreza,
o meu orgulho:
nunca roubei ninguém.
Não fui grileira e nem
posseira de nada
e, se invadida,
como fui, certa vez,
por astutas fazendeiras,
ora, que bobagem!
A minha obra está datada.
A Poesia
é o meu Patrimônio:
a palavra certa,
a palavra dura.
A poesia canta
e eu fico muda,
de espanto.

Meu Patrimônio maior
é a Literatura.

A POETISA

Canto
o prazer e a esperança,
a loucura e a liberdade.

Cabelos soltos
véus diáfanos
minha flauta
e minha jarra

de vinho.
Que Deus inventou a uva
e Baco inventou o vinho
com seus efeitos.

(Cabelos punk
eus de afanos
minha falta
e minha farra.)

Ao coração humano
medroso, dou alegria
e coragem.

Cabelos soltos
véus diáfanos
minha flauta
e minha garra.

Fonte:
Antonio Miranda