quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Nilton Manoel (Didática da Trova) Parte 1

Quem faz versos não vive só, tem a mente repleta de ilusão.
Teixeira, Nilton da Costa, Mãe,1979,p.3,Vermelhinho Editora.


RESUMO

Neste trabalho, procuramos oferecer ao leitor um pouco da animação do Movimento de Brasileiro de Trovadores. Temos aqui os detalhes da trova popular e da trova literária no contexto da pluralidade cultural de nossa terra. O passado e o presente deste gênero poético engrandecem a literatura através dos séculos. Apoiamo-nos me em livros de autores consagrados, publicações da União Brasileira de Trovadores – UBT e livros de Jogos Florais para ressaltar as fases desta composição poética de quatro versos heptassílabos com rimas ABAB ou ABCB em conceito atual de trova literária. As trovas com rimas ABAB são as que se exigem em concursos literários do Brasil e do exterior. Busquei em dicionários escolares a definição de trova e trovador e reforcei a definição estatutária da União Brasileira de Trovadores. A UBT maior entidade literária do país e com textos de autoria de Luiz Otávio ofereço ao leitor material que revela a magnitude do movimento criado por Luiz Otávio de forma espontânea  e compartilhada. Temos 101 anos de coletas contínuas de trovas, considerando como marco inicial o volume Descantes. de Adelmar Tavares. No entanto, de épocas distintas temos, Bocage. Fernando Pessoa, Castilho, Olavo Bilac, Emílio de Menezes, Belmiro Braga, Luiz Otávio entre outros que, enriquecem a crônica social com trovas literárias, circunstanciais e de conveniência. Os epigramas e sátiras têm fases marcantes em nossa literatura consagrando a trova através dos séculos. A estrutura poética da trova anima nos dias de hoje a vida literária do Brasil. Como fazer trovas e ser trovador laureado é a  preocupação da maioria de poetas de nossos dias. O ensaio Meus Irmãos, Os Trovadores, de autoria de Luiz Otávio, propiciou o surgimento de uma corrente denominada Movimento Brasileiro de Trovadores. No entanto, a trova, ainda não vive como movimento poético no ensino oficial. O trovador e a trova são donos do universo.  Espero que deixemos de ser terráqueos diante de cantante e rica fonte da cultura brasileira e tenhamos nas salas de aula, à luz da história, alunos e professores envolvidos na arte de escrever e declamar trovas.

Palavras-chave: Jogos Florais, Trova, Trovador, Quadrinhas.

INTRODUÇÃO


A literatura brasileira solidificou-se através das escolas literárias.

                 Nos almanaques e nos livros literários, a trova está presente em todos os estilos: lírica, humorística, política e, sem precisar de erudição, filosófica do jeito que o povo gosta. Na vida escolar, a Trova popular aparece de forma ilustrativa em projetos pedagógicos como em Escola nas Férias (SEESP, 2001, p.49) e Ler e Escrever – Livro de Textos do Aluno (da Educação paulistana, 2005, adotado em 2008 pelo Governo Paulista), revelando a importância da poesia de forma fixa e rimada na aprendizagem dos estudantes

Didática da Trova procura movimentar a importância histórica e literária da trova neste momento em que a poesia ganha força na Educação brasileira. Os quatro versos da trova continuam a buscar maior aceitação escolar. No interesse pelo gênero, novos poetas aparecerão. O Brasil clama por jovens poetas.

O Movimento Literário de Trovadores revela que a trova mantém-se acesa, mas que a produção moderna do gênero, distante dos livros. Os autores de livros didáticos, ainda, desconhecem a definição editada em Meus Irmãos, os Trovadores há mais de cinqüenta anos.

Lembramos que, sem interrupção, há mais de 100 anos, a Trova vem sendo coletada por estudiosos. A trova bem elaborada enobrece a vida de todos nós. Nos anexos, encontramos a fartura cultural dos trovadores, os meios de aprendizagem e envolvimento literário. Como afirma  BELTRÃO (1975, p.18): A trova é, em verdade, sinônimo de amor.         

CAPÍTULO I

A TROVA ATRAVÉS DOS SÉCULOS


 Desde a infância convivemos com a poesia. Inicialmente, com os versinhos do cancioneiro escolar, quando as meninas à frente da classe exercitavam a oralidade com movimentos teatrais.

Eu pedi um copo d´água,
e trouxeram na caneca
Isto mesmo que eu queria,
cinturinha de boneca.
                               (anônima)

Esta é uma quadra muito conhecida entre nós os brasileiros!. Os estudiosos popularizaram a definição: “composição poética de quatro versos de sete sílabas, rimando pelo  menos o segundo com o quarto e tendo sentido completo”. A redondilha maior é conhecida em algumas localidades como versinhos, quadrinha ou verso.

Em recorte de jornal, sem data, tendo apenas iniciais S.S. por assinatura, em  Vida Social,  Penas de Papagaio (Quadras antigas) revela:

Estas quadrinhas foram compostas por mim, há quinze annos, numa noite em que eu e vários amigos e admiradores de Belmiro Braga lhe oferecemos um jantar modesto, no Hotel Garcez, no Rio de Janeiro.

Ó  Belmiro das quadrinhas,
cantor de Minas Geraes;
deixa as máguas, que são minhas,
por favor,  não cantes mais...

Meu coração tambem sente
tudo isto que te magôa...
Meu coração é doente,
meu coração chora atôa...

Tu que zombas da Saudade
que me faz tanto soffrer,
pagarás tua maldade:
de saudade hás de morrer...

Patativa regateira,
que hoje choras na gaiola,
a saudade brasileira,
também chora na viola...
Podemos sentir na ortografia a antiguidade destas quadrinhas em homenagem ao trovador Belmiro Braga, natural de Juiz de Fora (MG) 7/1/1872 e falecido a 31/03/1937. Belmiro Braga, entre outros livros, é autor de Montezinas (1902) e Redondilhas (1934).

Encontramos em Goldstein (1991,p.51)

O verso de sete sílabas, heptassílabo ou redondilha maior, é o mais simples, do ponto de vista das leis da métrica. Basta que a última sílaba seja acentuada, os demais acentos podem cair em qualquer outra sílaba. Talvez por isso ele seja predominante nas quadrinhas e canções populares. O verso tradicional em língua portuguesa, já era freqüente nas cantigas medievais.

Os livros didáticos dos anos trinta a sessenta viviam cheios de quadrinhas que eram lidas e declamadas com freqüência. Naqueles tempos todos sabiam de cor a trova de Jerônimo Guimarães:
              
Até nas flores se encontra,
a diferença de sorte!
umas enfeitam a vida,
outras enfeitam a morte!.
                No Almanaque Saúde (Serviço Nacional de Educação Sanitária) - (DF) encontramos esta trova de Gustavo Khulmann:

Quero aprender na virtude,
a honrar a  pátria querida,
conservar minha saúde,”
para ser útil na vida!. (1949, p.30)

 Na vida escolar, ampliamos as leituras poéticas e as noções de versificação. Envolvemo-nos com trovas populares e literárias. Procuramos descobrir novas formas de declamar um mesmo texto. Colecionamos almanaques e revistas. Garimpamos, ainda, nos sebos, quadrinhas da seção humorística  Garotas da  revista O Cruzeiro. À luz da ortografia, FERREIRA, informa com esta quadrinha de Castilho, que, alguns poetas usam, à espanhola, minúscula no princípio de cada verso, quando a pontuação permite:

Aqui, sim, no meu cantinho,
vendo rir-me o candeeiro,
gozo o bem de estar sozinho
e esquecer o mundo inteiro. (1964, p.XXXI)

Verificamos aqui, a preocupação literária quanto à forma (corpo) do poema. Na mensagem (fundo)o poeta fala do bem de estar só, no seu canto,  com a chama do candeeiro (antigo aparelho de iluminação, alimentado por óleo) quando esquece do mundo.

Cândido de Oliveira, em seus livros,divulga trovas com exemplos gramaticais.  No Admissão ao Ginásio (IBEP anos 60, p 21), comenta:

Imaginem que Aleixo, o trovador português analfabeto que tanto admiro, certo dia  foi ridicularizado por um homem que se dizia doutor e que dava a entender que quem não o fosse não poderia ombrear com ele. Aleixo não conversou e improvisou esta:

Uma mosca sem valor
Pousa com a mesma alegria
Na cabeça de um doutor
Como em qualquer porcaria.
(Pedro Bloch)

          O filólogo José Marques da Cruz, também trovador tem trovas de sua autoria, como esta:

São guarda-chuvas de porte,
os amigos que eu conheço:
-quando o vento é muito forte,
viram logo do avesso. (1966, p.377)

Vários prosadores têm quadrinhas em suas obras. José de Alencar tem diversas, como esta em O Sertanejo:
              
Corra, corra camarada,
Puxe bem pela memória;
Quando eu vim de minha terra.
Não foi p’ra contar história. (p.173)
 
Continua…

Fonte:
Nilton Manoel. A Didática da Trova. Batatais, 2008.

Godofredo de Oliveira Neto (Ana e a Margem do Rio)

Em Ana e a margem do rio, publicado em 2002, o autor, Godofredo de Oliveira Neto, cria um universo onde mitos indígenas brasileiros se chocam com valores da civilização ocidental. Uma narrativa fluida e elegante conduzida através de fábulas repletas de paixões, revoltas, frustrações, raivas, medos e ambições presentes nas sociedades, primitivas ou não, do mundo inteiro.

Ana e a margem do rio conta a história de Ana (a narradora), índia da nação Nauá, educada numa missão de freiras em plena floresta amazônica. Ana possui um talento inato: o de escrever. E isso foi notado não apenas pelos professores locais, mas por pesquisadores do Brasil e do exterior. Ana registra em um caderno uma das velhas histórias que ouviu da mãe: a da parceria entre um jacaré e uma jibóia, com o concurso de outros animais e de dois índios que vagam à procura de sua gente, uma odisséia que parece não ter fim, tão complexa é a questão da identidade para os nativos americanos. Assim é também para Ana, cuja história vai sendo contada à medida que sua narrativa avança e se aprofunda, mesclando à lenda Nauá elementos de outras tradições e da própria cultura do colonizador. Quem é essa jovem, tão sensível, tão consciente e ao mesmo insegura de sua própria identidade? Qual dos caminhos que lhe são apresentados ela vai escolher? Em que margem do rio e da vida decidirá ficar?

Aos poucos, a jovem índia, dividida entre o mundo da oralidade, herdado de sua tribo, e a religiosidade, imposta pelo sistema educacional, divide com os amigos as aventuras fabulosas tantas vezes ouvidas de sua mãe. Mas a história vai sendo modificada pela influência que Ana recebe das freiras salesianas.

Em Ana e a margem do rio, o autor intercala, como recurso literário, a vida de Ana e a lenda narrada (A jibóia e o jacaré), separando-as em capítulos escritos na primeira e na terceira pessoas. O efeito é revelar ao leitor as dificuldades da índia de etnia Nauá em montar sua própria identidade, tornando-o cúmplice desse conflito interno. Nessas narrativas, o autor demonstra a dificuldade que Ana enfrenta para montar sua própria identidade. Além disso, como já citado, há narrações de várias lendas amazônicas realizadas por animais, evidenciando o respeito à diferença.

Ana e a margem do rio aborda, ainda, a explicação indígena para os mais diferentes fenômenos naturais e segredos do universo. Com a fala hipotética de animais, Godofredo explora como a tolerância pode, e deve, coexistir com a diferença.

No começo da obra, Ana tenta delinear uma identidade segregada, dividida:

Resolvi, então, escrever uma lenda que sempre ouvi de minha mãe, lenda que ela dizia ter ouvido da minha vó, e assim para trás, até as origens da nossa nação. Eu escutava aquela história maravilhada e tomava cuidado para que mamãe repetisse exatamente os mesmos detalhes [...] Uma viva emoção me invade só de pensar que vou passar para o papel imagens impregnadas do perfume da minha infância e assim perpetuar uma parte da história do povo Nauá [...] Sei que, na lenda, irá também, necessariamente, muito de mim em pedaços de personagens, trechos de rio, pétalas de flores e em fragmentos de reações animalistas humanamente plasmadas. Tudo bem. E vou tentar fugir no texto, do sonho que sempre vem, em que me vejo cercada por animais da floresta que obedecem ao meu canto, rios que escoam sob meu comando, raios que se fixam no céu escuro por minha simples ordem. (2002: 13-14)

Mas, no decorrer da escrita, percebe o intercurso, o entrelaçamento de sujeitos, posições, diferenças e identidades que fazem parte dela, que a constituem como um ser em pleno processo identitário. Mas essa percepção não foi fácil, pois ao mesmo tempo em que decidia aceitar e negar o outro, tinha medo de se perder, de se desfigurar.

Ana está em plena floresta amazônica, mais especificamente Xapuri – Rio Branco. E este lugar é uma das regiões ameaçadas do mundo; e junto com a região, a cultura, as lendas, as histórias, os costumes. Quando percebe que sua escrita está sendo esperada ansiosamente por pesquisadores sulistas e estrangeiros, sente-se ameaçada, vigiada, controlada, e, a partir daí, tenta estabelecer uma territorialização fechada, una, centrada.

Fonte:
Passeiweb

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 630)

Uma Trova de Ademar 

Debruçado sobre a mata,
o luar, tal qual pintor,
pinta as folhas cor de prata
e pinta o chão de outra cor.
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Mineira de Monte Santo,
estudei em Paraíso;
Paraná hoje é meu canto
e Londrina o meu sorriso.
–Cidinha Frigeri/PR–

Uma Trova Potiguar 


Por amor, buscando a vida,
procuro os meus sonhos tantos...
Então deixo, em despedida,
as dores e os desencantos.
–Mara Melinni/RN–

Uma Trova Premiada 


2012  -  Caxias do Sul/RS
Tema  -  COR  -  2º Lugar


Num arco-íris de cores,
fui descendo de mansinho
sem, sequer, pisar nas flores,
que plantaste em meu caminho.
–Lisete Johnson/RS–

...E Suas Trovas Ficaram 


Essa Maria - que existe,
chorando nos versos meus,
foi a saudade mais triste,
que alguém deixou num adeus!
–Anis Murad/RJ–

Uma  Poesia 


Dessas ilusões removo
do poeta a profissão,
meu verso flui livremente
sem qualquer obrigação,
muitas vezes, sem querer,
chega um verso, ao bel- prazer,
da mais pura inspiração.
–Hélio Pedro/RN–

Soneto do Dia 
UM BEIJO.
–Olavo Bilac/RJ–


Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior...Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...

Yara Maria Camillo (Noite de Gala)

Passa da uma da manhã. A Missa do Galo foi longa e a fila para beijar os pés do Menino Jesus estende-se, procissão para além do pátio, até a esquina da Rua Glicério.

A Menina arregala os olhos para tudo: esta sua Noite de Gala. Delicia-se com o Hosana das Filhas de Maria e o presépio junto ao altar, onde chegará para beijar os pés do Deus feito Menino.

Não a incomoda, como às vezes ocorre, a mão esquecida da mãe sobre a sua, nem o ajuntamento, nem o olhar do "tio" que, meio-rude-meio-terno, afasta-lhe a outra mão que estava a explorar o nariz meio chato, nariz que é a primeira coisa que ela sente ao acordar, porque a avó o aperta de leve, todas as manhãs, . afilando-o para que assuma a forma do nariz materno, para que perca a qualidade esborrachada, herança do pai, herança de negro. Apenas, a avó, nesse obstinado ato de esculpir um novo nariz, se esquece de arrebitar-lhe a ponta, de modo que com o passar dos anos ele se tomará afilado, sim, mas ligeiramente adunco.

—TIra a mão do nariz — diz o "tio". — É feio.

Ela consente. Peçam-lhe o que quiserem.

A fila anda mais rápido.

— Beijem o Deus Menino e deixem para rezar em volta do presépio; não vamos retardar a fila — adverte o Padre Romano, que a Menina acha muito bonito, assim, vestido de branco.

A poucos passos do altar a mãe se abaixa e avisa:

— Não encoste a boca no Menino Jesus. Beije de longe, que é a mesma coisa.

...Coisa que a Menina não obedece, porque tomada pelo Adeste Fidelis, porque feliz. Sabe que na volta a mãe e o "tio" Rodrigues serão os primeiros a entrar no kitchenette, sabe que ficará na portaria esperando, junto com a avó, enquanto os dois vão ver se os presentes já chegaram.

Sabe e não tem pressa, prolonga com delícia o gozo próximo.

Se a mãe a viu beijar de verdade os pés do Menino, se a viu encostar a boca onde todos encostam, fingiu que não.

A noite é sereno na volta, os quatro dobram a esquina da Rua Oscar Cintra, a Menina de mãos dadas com a avó, e entram no Edifício Ouro Branco.

A mãe passa altiva pelas louras oxigenadas e um marinheiro, todos aglomerados na portaria, tomando champanhe barato com o zelador. Passa altiva, braços dados com o "tio", que assume ares de carranca.

A avó, soltando a Menina, senta-se no banco de madeira, junto à árvore de Natal, armada perto dos elevadores.

A Menina acha bonitas aquelas moças decotadas, de cabelos cor de ouro; sorri de volta aos sorrisos, e também para o marinheiro Rosalvo, que uma vez lhe deu um chinezinho de louça, pelado.

— Eu queria ser bonita como a Nina — ela disse, um dia, à mãe, que comentou com o "tio" a urgência de sair daquele prédio, "antes que a Menina cresça e comece a entender".

Também agora a Menina queria ser Nina, a mais loura, a mais linda; queria ser Rosalvo, que a abraça.

O "tio" volta pelo corredor e avisa que os presentes chegaram. Estabanada ante o gozo iminente, a Menina dispara corredor afora, escorrega no capacho para deslumbrar-se com os jogos, a boneca, uma xícara com desenhos de flores, um vestido amarelo, tanta coisa, um carrossel com cinco cavalinhos que giram como no Parque Xangai.

Foi-se a surpresa, nada mais a esperar. A Menina sabe que agora virá o guaraná e avelã e amêndoas, sabe que virá o sono e então o dia, os dias.

Mas a noite acontece em outro tom: a avó se levanta da mesa e se apóia na guarda da cama, arfante, a mãe atrás. A Menina quer ir para as duas, o "tio" avisa que fique onde está.

— Rodrigues, corre aqui.

O "tio" se ergue, depois de repetir a ordem.

— Acode aqui, Rodrigues.

Não é a primeira vez da avó doente.

— Um táxi. Chama um táxi.

A Menina se agita. Ela pode ajudar? Não pode, e termina o guaraná que de repente perdeu o gosto. Com quem a deixarão dessa vez, se a vizinha, Dona Laura, viajou?

Demora.

A avó respira com dificuldade, dói só de olhar.

Demora.

A mãe reza, lamenta-se, "linda, a minha mãe", pensa a Menina.

Demora.

O "tio" volta, o táxi chegou. A Menina segue os três pelo corredor, a porta ficou aberta.

Na portaria, as mulheres e o marinheiro correm a ajudar. A mãe chama o zelador para pedir que fique com a filha, desiste ao vê-lo cambaleante e solícito.

Com quem deixar a Menina?

— Você fica — o "tio" propõe à Mãe, que não responde, apenas olha todas aquelas pessoas coloridas, não tem muito tempo, a avó arqueja.

- Se o problema é a Menina, pode deixar que eu tomo conta —diz Nina. — Deixe comigo... Senhora.

A mãe, altivez pejada, assente:

— Obrigada... Nina.

— Por nada... Senhora.

A Menina quer juntar a alegria de ficar com Nina a essa hora triste dos seus, da avó que parece um brinquedo quebrado, assim, encolhida.

A mãe avisa a Nina que a porta do kitchenette ficou aberta, agradece, olha a filha, sai. O táxi contorna a praça, entra na contramão na Rua Helena Zerrener e desaparece. Chuvisca.

A sós com tantos ídolos, a Menina quer rir.

— A tal pensa que tem o rei na barriga — ouve Nina dizer. — Grande senhora ela é, só porque tem um caso permanente.

As mulheres brincam com a Menina, inesperada boneca. Uma delas passa-lhe batom. Rosalvo, o marinheiro, promete-lhe uma tiara. De que cor? Azul. Você gosta de azul?

Gosta, a Menina diz que sim. A avó doente vai virando uma dor longínqua, com gosto de ontem; a alegria do agora vai contagiando a Menina, que não sente medo, como quando fica com Dona Laura, que logo a põe na cama e apaga a luz.

Nina deixa que ela experimente o champanhe, um gole só. A Menina quer... E adora.

O tempo não passa, de tão novo. É um olhar demoradamente para cada mulher, brincos, golas, saias, relógios, meias, é um gostar demais do uniforme azul-marinho de Rosalvo. Timidamente, a Menina aponta-lhe o quepe:

— "Seu" Rosalvo, deixa eu ver seu chapéu?

É bom que todos sorriam com ela, o centro, o miolo da flor cujo pólen é inteiro e somente para Nina, que se despede dos outros e, tomando a mão da Menina, pergunta cadê a chave.

— A porta ficou aberta.

— É mesmo.

A mão conducente de Nina é um suave caminho.

— Então é aqui que você mora? Que chique!

Nina é toda sorrisos, a Menina deslumbra-se mil vezes, mostra os presentes, oferece avelãs e amêndoas e nozes. As duas comem e brincam e riem e tudo parece assim, diferente.

— Agora, cama.

— Não.

— Já, gracinha.

O tempo se apaga, a Menina acorda e vê Nina sentada aos pés da cama, fumando, olhando. A luz acesa.

— Mamãe não voltou ainda, meu bem. Pode dormir de novo, que a Nina está aqui com você.

— Nina?

— Que é?

— Eu suei.

— Você o quê?

— Suei.

— Você... — Dos cabelos louros de Nina, que se abaixa para descobri-Ia, exala um perfume forte.

— Deixa eu ver... Ah, você fez pipi. Levanta daí.

Em pé, na cama, a Menina apóia-se na mulher, que lhe tira o vestido e a calcinha.

— Vamos trocar de roupa.

— Erguendo-a nos braços, leva-a até o bidê. — Senta aí pra eu te lavar. Veja se a água está muito fria... Muito fria?

— Não.

— Bom. Então... Pronto.

A toalha não é tão macia quanto as mãos de Nina.

— Agora me diga onde estão suas roupas.

— Ali — a Menina aponta a cômoda.

— Vem.

Nina a coloca em pé sobre o colchão e abre a primeira gaveta.

— Nina, você foi na Missa do Galo beijar o Menino Jesus?

— Você é meu Menino Jesus, benzinho.

Risos. Nina encontra uma camiseta, uma calcinha:

— Tá bom assim?

— Tá.

— Deixa eu te vestir. Dá o pé, louro.

A Menina obedece e enlaça Nina, aspira com deleite o perfume dos cabelos claros. A mulher a aperta contra si. A Menina não quer soltar-se nunca mais.

— Você é meu Menino Jesus — Nina repete, repelindo-a com doçura.

— Jura?

— Juro.

—  Você é linda, Nina. Linda como a Nossa Senhora.

— Não fala assim, gracinha. É pecado.

A Menina se atira no colo que ainda quer rejeitá-la, mas não consegue. E é como se algo nascesse, na noite sem idades.

O marinheiro Rosalvo bate levemente e entra. Com os olhos, Nina lhe pede silêncio. A Menina está quase dormindo. Rosalvo toca o ombro da mulher, deixa que a mão escorregue até os seios. Nina o repele com um tapa. A Menina se mexe um pouco, depois se abandona. Rosalvo volta a apoiar a mão no ombro de Nina, perguntando-se que bicho a terá mordido. Mas não ousa outro gesto e apenas fica ali, imóvel, olhando e olhando.

Num quintal da Rua Tabatingüera, o primeiro galo canta.
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Yara Maria Camillo (1957) nasceu e mora em São Paulo, capital. Escritora, diretora e atriz, desde cedo freqüentou a biblioteca próxima a sua casa, na Vila Buarque. É formada em Comunicações, com especialização em Cinema, pela Faculdade Armando Álvares Penteado - FAAP. 
Fonte:
"Hiatos", RG -  Editores - S. Paulo, 2004. in http://www.releituras.com/ne_ymcamillo_noite.asp

Nelson Rodrigues (Vestido de Noiva)

Análise da obra

    Vestido de Noiva vai aos palcos em 1943, sob a direção de Ziembinski, marcando a renovação do teatro brasileiro ao se voltar para a realidade de cunho psicológico. A peça causou polêmica na época e ainda hoje é considerada forte em sua linguagem e no tratamento do tema, transplantando para o palco a profunda angústia do autor, que contamina os atores e os espectadores.

    Despojada da leveza da cena e compondo diálogos fortes e desnudados, a peça apresenta ainda outra inovação, a subdivisão do palco que aparece iluminado de três maneiras, representando três planos: o plano da realidade, o plano da alucinação e o plano da memória. Através da intersecção desses três planos tem-se o conteúdo da peça.

    Plano da realidade: é o que dá início à peça, o estrépito de um acidente de carro é seguido de repórteres que comunicam o atropelamento de uma mulher. Esta é identificada: Alaíde Moreira, 25 anos, casada com o industrial Pedro Moreira. Na mesa de cirurgia, Alaíde delira – assim o espectador passa aos planos da memória e da alucinação. Por fim, os médicos anunciam a morte da jovem.

    Plano da alucinação: sem a interdição da censura moral, todos os desejos de Alaíde se libertam. Às cenas de delírio soma-se a lembrança de fatos reais, vividos pela personagem. Divagando, Alaíde procura Madame Clessi, prostituta do início do século que fora assassinada por um amante adolescente. Na representação da memória, o espectador descobre que Alaíde tinha um diário da mundana, encontrado no sótão da casa em que vivera antes de casar. O casamento sem grandes aventuras e o cotidiano banal haviam transformado Alaíde numa Bovary carioca, o que a faz projetar seus impulsos e seus desejos na figura da prostitua Clessi.

    Plano da memória: Alaíde concentra o esforço ordenador da memória na reconstituição das cenas do casamento. Um dado verdadeiro que já surgira no plano da alucinação: ela roubara Pedro da irmã, Lúcia. É da consciência culpada da protagonista que surge a imagem da Mulher de Véu – que depois se revelará como sendo a própria Lúcia. Misturando num ritmo gradativo as ações dos três planos, a peça encaminha-se para o desfecho no qual Lúcia acaba por casar-se com Pedro. É Alaíde quem entrega o buquê à noiva, acompanhada de Madame Clessi. A peça se encerra com apenas uma luz sobre o túmulo de Alaíde.

    O entrecruzamento memória / alucinação / realidade - A primeira cena é desenvolvida a partir do entrecruzamento dos planos da alucinação, da memória e da realidade. Enquanto o leitor/espectador é apresentado a uma realidade exterior - a referência ao acidente - e ao subterrâneo psicológico da personagem, presente o mergulho que será dado no que existe de mais profundo na alma humana. De imediato, ganha-se a convivência do público, o que vem a facilitar o desenvolvimento da trama

    Existe o predomínio dos planos da memória e da alucinação. Este procedimento que se tornará comum em inúmeras peças de Nelson Rodrigues. A realidade é apresentada a partir do filtro da mente dos personagens. Com forte efeito psicológico, esse procedimento é evidente em Vestido de Noiva. A matéria fundamental da peça está no plano do delírio e, ao mesmo tempo, no plano da memória de Alaíde.

    Ao situar a ação da obra no território livre do subconsciente (em que se situam o plano da memória e mesmo o da alucinação) o autor favorece as possibilidades de criação. Fora do alcance da censura – que a psicanálise chamaria de super ego –, a heroína pode liberar sua libido, seus desejos reprimidos. É assim que surge, em Alaíde, como projeção de suas fantasias na figura da prostituta, Madame Clessi. Infeliz no casamento, insatisfeita com a realidade mesquinha da vida ordinária, a protagonista encontra na identificação com a prostituta uma compensação.

    Percebe-se também em Vestido de Noiva, a inclinação do autor para uma estética expressionista, em que o exagero, a deformação ou a obsessão dos personagens, ao invés de proporcionarem o tom cômico, funcionam como elementos intensificadores da dramaticidade de cenas e situações.Além de reforçar a capacidade de criação visual, imagética, os elementos grotescos da peça contribuem para estabelecer uma visão pessimista e sombria da realidade.

    Há nesta peça a presença do folhetinesco, traduzida na disputa das duas irmãs por Pedro. O dramaturgo sempre foi um entusiasmado leitor de folhetins e soube usar os temas simplistas e melodramáticos do gênero para buscar um sentido psicológico profundo para seus personagens, alcançando, muitas vezes, uma concepção trágica da existência.

    Estrutura / espaço / ação

    A peça tem três atos e sua ação transcorre no âmbito familiar. A família é o núcleo de todas danações dos personagens de Nelson Rodrigues, nesta e em suas demais peças, seja esta família de origem suburbana, de classe média ou burguesa. É no interior dessa comunidade que deveria proteger seus membros, que os dramas ocorrem. Paixões proibidas, ódio recalcado, violência, crueldade e outros sentimentos degradados implodem a estrutura familiar, transformando-a em um inferno em que os personagens das peças vivem como seres para sempre amaldiçoados.

    O peça inicia com buzina de automóvel, barulho de derrapagem violenta, vidraças partidas, sirene de ambulância. O cenário é dividido em três planos, que o autor denomina: alucinação, memória e realidade. Os sons ouvidos referem-se ao atropelamento de Alaíde, que é levada a um hospital.

    O universo dramático de Vestido de Noiva é a classe média carioca nas imediações dos anos quarenta. Nessa sociedade, predomina a hipocrisia, os preconceitos e os símbolos eleitos pela cultura judaico-cristã como eternos em relação à família e ao casamento.

    Temática e símbolos

    Partindo do princípio de que as relações sociais são perversas, todas as atitudes das pessoas revelam a hipocrisia, a competição desleal, os desejos proibidos, o conformismo imbecilizado ou o inconformismo agressivo, enfim, é um universo de obsessivo pessimismo.

    Todas as imagens e símbolos que emergem da peça convergem para essa amarga concepção da existência, sem nenhuma surpresa, com pouca sutileza, de maneira bem clara, em que pese a manifesta intenção de ironizar símbolos sagrados à cultura judaico-cristã. Assim Vestido de Noiva que deveria simbolizar a virgindade, a ingenuidade de sentimentos, a paixão pelo noivo com o qual ocorrerá a união sob a benção de Deus e dos homens, nos mostra um cenário completamente a este apenas descrito e acaba dessacralizando a pureza e a castidade para se tornar a representação das discórdia, da competição, e, a considerar o inequívoco desfecho da peça, em que a marcha fúnebre se sobrepõe à marcha nupcial, termina por adquirir a conotação de mortalha.

    As outras imagens também convergem para o mesmo universo simbólico, como o bouquet, espécie de troféu às avessas e metáfora de um casamento destinado ao fracasso, e a aliança - "grossa ou fina, tanto faz" nas palavras de uma prostituta, ao invés de celebrar a união do casal, funciona como índice de disputa, rivalidade, ameaça de morte.

    A mulher de véu também se constitui numa imagem de pessimismo. É a mulher que não se revela, mas está sempre pronta a dar o bote, em seu desejo de vingança. É a retaliação sempre presente, que Alaíde só consegue identificar claramente ao final do segundo ato. Provavelmente será a próxima vítima do marido.

    Personagens

    Alaíde - neurótica e oportunista, é a protagonista de Vestido de Noiva. É uma mulher insatisfeita e inconformada com a condição feminina. Seduz os namorados da irmã como uma tentativa de auto-afirmação, que a faz parecer melhor aos próprios olhos. É como ela diz a Lúcia, em tom de provocação: "Eu sou muito mais mulher do que você - sempre fui! Após conquistar Pedro, que se torna seu marido, demonstra um certo desinteresse e frustração pela vida de casada, ao mesmo tempo em que se sente ameaçada de morte por Pedro e Lúcia. O atropelamento é um desfecho trágico da tensão dos últimos dias da protagonista, e tanto pode ser suicídio como acaso ou assassinato. Em seu delírio e lembranças, reconstrói no subconsciente as injustiças de que se julga vítima e revela seu fascínio pela vida marginal de Madame Clessi.

    Lúcia - irmã de Alaíde, aparece em quase toda a peça como Mulher de Véu. É uma pessoa também insatisfeita, incompleta, que vive atormentada pelo sentimento de ter sido passada para trás pela irmã. Parece ter conseguido uma grande vitória com a morte de Alaíde e seu casamento com Pedro, mas as cenas finais sugere que ela não estará melhor em seu casamento do que Alaíde em seu túmulo.

    Pedro - é o elemento dominador, é quem manipula as mulheres para conseguir o que quer. Namora Lúcia inicialmente, deixa-se seduzir por Alaíde, com quem se casa pela primeira vez, e depois concebe um plano macabro de eliminar a esposa para retornar aos braços da irmã. É o industrial bem sucedido, que representa o bom partido para as moças casadoiras que conseguirem fisgá-lo, mesmo sabendo que viveram à mercê do macho opressor. Pedro e Lúcia são presumidos assassinos e hipocritamente se casam, com o consentimento dos pais de Lúcia e da inexpressiva mãe de Pedro.

    Madame Clessi - é a prostituta do início do século que povoa a mente de Alaíde, desejosa de viver um mundo de sensações picantes. Ela havia residido na casa de Alaíde décadas atrás, e os pais da protagonista resolvem queimar seus pertences, alguns dos quais são salvos, inclusive  o diário. Clessi representa (para Alaíde) o ideal de mulher liberada, que agride a sociedade hipócrita que Alaíde nega, mas na qual ela transita.

    Os demais personagens desempenham papéis secundários, como o namoradinho adolescente de Clessi, que a assassina com uma navalhada, e os pais de Alaíde e Lúcia e a mãe de Pedro, que representam a classe média conformada e deslumbrada com as convenções sociais, que devem ser preservadas.

    Enredo

    A obra é a história de um triângulo amoroso. Alaíde, a protagonista, rouba o namorado da irmã, Lúcia, e casa-se com ele. Lúcia, por sua vez, fica com o marido da irmã, e os dois formam um complô, que leva Alaíde à loucura e à morte. A mulher sai enlouquecida pela rua, é atropelada, e vai parar num hospital, agonizando numa mesa de operações. E a peça reconstitui em cena aquilo que se passa nessa mente em desagregação da protagonista.

    O peça inicia com buzina de automóvel, barulho de derrapagem violenta, vidraças partidas, sirene de ambulância. O cenário é dividido em três planos, que o autor denomina: alucinação, memória e realidade. Os sons ouvidos referem-se ao atropelamento de Alaíde, moça rica da sociedade carioca, é atropelada numa das noites do Rio e é levada a um hospital.

    No plano da realidade, jornalistas correm para se informar e publicar em seus jornais o fato, enquanto médicos correm para salvar o corpo inerte da mulher, jogada numa mesa de operação entre a vida e a morte. No plano da alucinação, Alaíde procura por uma mulher chamada Madame Clessi, sua heroína, que foi assassinada no início do século, vestida de noiva, pelo seu namorado. As duas se encontram e conversam. Um homem acusa Alaíde de assassina, e ela revela a Madame Clessi que assassinou o marido Pedro com um ferro após uma discussão (o plano da memória reconstitui a cena). Mais tarde, ambas percebem que o assassinato de Pedro não passou de um sonho de Alaíde. O principal símbolo da libertação feminina é para ela Madame Clessi, uma prostituta do início do século que havia residido na casa em que então moravam seus pais. Diante do propósito dos pais de incinerarem os pertences da cafetina que haviam ficado no sótão da casa, Alaíde consegue resgatar o diário dela, e fica conhecendo detalhes de sua trajetória, complementados com recortes de jornais da época encontrados na Biblioteca Nacional.

    Enquanto os médicos tentam quase o impossível para salvá-la da morte no plano da realidade, Alaíde e Madame Clessi conversam no plano da alucinação, tentando se lembrar do dia do casamento da primeira, e de duas mulheres que estavam presentes enquanto Alaíde se preparava para a cerimônia: a mulher de véu e uma moça chamada Lúcia. Ambas são, na verdade, a mesma pessoa: a irmã de Alaíde, que reclama o fato desta ter lhe roubado o namorado.

    Segue-se uma série de intercalações entre os planos: no plano da realidade, o trabalho dos médicos para reanimar Alaíde, e dos jornalistas querendo informações sobre a tragédia do atropelamento. Nos planos da alucinação e da memória, a história de Madame Clessi, com seu namoro com um jovem rapaz e sua morte, se funde com a de Alaíde no dia do casamento com Pedro. Segue-se a discussão com Lúcia minutos antes da cerimônia, que a acusa violentamente de ter lhe roubado o noivo. O casamento acontece, e Alaíde se vê vítima de uma conspiração entre Lúcia e Pedro, que pretendem matá-la para ficarem juntos.

    No plano da realidade, Alaíde morre na mesa de operação. Enquanto Alaíde assiste com Madame Clessi cenas de seu enterro e de sua discussão com Lúcia momentos antes do atropelamento, quando jura que mesmo morta não a deixaria ficar com Pedro. Inconformada com as convenções sociais repressoras da mulher, Alaíde não consegue em vida opor-se a elas, mas consegue manipular as pessoas com seu poder de sedução. Perto da morte, seu desejo de transgressão toma corpo e salta aos olhos nas cenas em que se torna amiga da prostituta e consegue inclusive matar, com a maior frieza, o marido traidor. Lúcia, no entanto, casa-se com Pedro, mesmo tendo em sua mente a imagem de Alaíde com seu vestido de noiva.

Fonte:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/v/vestido_de_noiva

Malba Tahan (O Homem que Calculava)As 8 Moedas

CAPÍTULO IV

Do nosso encontro com um rico cheique. O cheique estava a morrer de fome no deserto. A proposta que nos fez sobre os 8 pães que trazíamos, e como se resolveu, de modo imprevisto o pagamento com 8 moedas.
As três divisões de Beremiz: a divisão simples, a divisão certa e a divisão perfeita. Elogio que um ilustre vizir dirigiu ao Homem que Calculava.


Três dias depois, aproximava-nos das ruínas de pequena aldeia denominada Sippar [1] – quando encontramos caído na estrada, um pobre viajante, roto e ferido.

Socorremos o infeliz e dele próprio ouvimos o relato de sua aventura.

Chamava-se Salém Nasair, e era um dos mais ricos mercadores de Bagdá. Ao regressar, poucos dias antes, de Báçora, com grande caravana pela estrada de el-Hilleh [2], fora atacado por uma chusma de nômades persas do deserto. A caravana foi saqueada e quase todos os seus componentes pereceram nas mãos dos beduínos.

Ele – o chefe – conseguira, milagrosamente escapar oculto na areia, entre os cadáveres dos seus escravos.

E, ao concluir a narrativa de sua desgraça, perguntou-nos com voz angustiosa:

- Trazeis por acaso, ó muçulmanos, alguma coisa que se possa comer? Estou quase, quase a morrer de fome!

- Tenho, de resto, três pães – respondi.

- Trago ainda cinco! – afirmou a meu lado, o Homem que Calculava.

- Pois bem – sugeriu o cheique [3] -, juntemos esses pães e façamos uma sociedade única. Quando chegar a Bagdá prometo pagar com 8 moedas de ouro o pão que comer!

Assim fizemos. No dia seguinte, ao cair da tarde, entramos na célebre cidade de Bagdá, a pérola do Oriente.

Ao atravessarmos vistosa praça, demos de rosto com aparatoso cortejo. Na frente marchava em garboso alazão, o poderoso Ibrahim Maluf, um dos vizires [4] .

O Vizir [5] ao avistar o cheique Salém Nasair em nossa companhia, chamouo, e, fazendo parar a sua poderosa guarda, perguntou-lhe:

- Que te aconteceu, ó meu amigo? Por que te vejo chegar a Bagdá, roto e maltrapilho, em companhia de dois homens que não conheço?

O desventurado cheique narrou, minuciosamente, ao poderoso ministro, tudo o que lhe ocorrerá em caminho, fazendo a nosso respeito os maiores elogios.

- Paga sem perda de tempo a esses dois forasteiros – ordenou-lhe o grãovizir.

E, tirando de sua bolsa 8 moedas de ouro, entregou-as a Salém Nasair, acrescentando:

-Quero levar-te agora mesmo ao palácio, pois, o Comendador dos Crentes deseja com certeza ser informado da nova afronta que os bandidos e beduínos praticaram, matando nossos amigos e saqueando caravanas dentro de nossas fronteiras.

O rico Salém Nasair disse-nos, então:

- Vou deixar-vos, meus amigos. Antes, porém, desejo agradecer-vos o grande auxílio que ontem me prestastes. E para cumprir a palavra dada, vou pagar já o pão que generosamente me destes!

E dirigindo-se ao Homem que Calculava disse-lhe:

-Vais receber pelos 5 pães, 5 moedas!

E voltando-se para mim, ajuntou:

- E tu, ó bagdáli, pelos 3 pães, vais receber 3 moedas!

Com grande surpresa, o calculista objetou respeitoso:

- Perdão, ó cheique. A divisão, feita desse modo, pode ser muito simples, mas não é matematicamente certa! Se eu dei 5 pães devo receber 7 moedas; o meu companheiro bagdali, que deu 3 pães, deve receber apenas uma moeda.

- Pelo nome de Maomé![5] – interveio o vizir Ibrahim, interessado vivamente pelo caso. – Como justificar, ó estrangeiro, tão disparatada forma de pagar 8 pães com 8 moedas? Se contribuíste com 5 pães, por que exiges 7 moedas? Se o teu amigo contribuiu com 3 pães, por que afirmas que ele deve receber uma única moeda?

O Homem que Calculava aproximou-se do prestigioso ministro e assim falou:

- Vou provar-vos, ó Vizir, que a divisão das 8 moedas, pela forma por mim proposta, é matematicamente certa. Quando durante a viajem, tínhamos fome, eu tirava um pão da caixa em que estavam guardados e repartia-o em três pedaços, comendo cada um de nós, um desses pedaços. Se eu dei 5 pães, dei é claro, 15 pedaços; se o meu companheiro deu 3 pães, contribuiu com 9 pedaços. Houve, assim, um total de 24 pedaços, cabendo, portanto, 8 pedaços para cada um. Dos 15 pedaços que dei, comi 8; dei na realidade, 7; o meu companheiro deu, como disse, 9 pedaços, e, comeu também, 8; logo, deu apenas 1. Os 7 pedaços que eu dei e que o bagdali forneceu formaram os 8 que couberam ao cheique Salém Nasair. Logo, é justo que eu receba 7 moedas e o meu companheiro, apenas uma.2

O grão-vizir, depois de fazer os maiores elogios ao Homem que Calculava, ordenou que lhe fossem entregues sete moedas, pois a mim me cabia, por direito, apenas uma. Era lógica, perfeita e irrespondível a demonstração apresentada pelo matemático.

- Esta divisão – retorquiu o calculista – de sete moedas para mim e uma para meu amigo, conforme provei, é matematicamente certa, mas não é perfeita aos olhos de Deus!

E tomando as moedas na mão dividiu-as em duas partes iguais. Deu-me uma dessas partes (4 moedas), guardando para si, as quatro restantes.

- Esse homem é extraordinário – declarou o vizir. – Não aceitou a divisão proposta de 8 moedas em duas parcelas de 5 e 3, em que era favorecido; demonstrou ter direito a 7 e que seu companheiro só devia receber uma moeda, acabando por dividir as 8 moedas em 2 parcelas iguais, que repartiu, finalmente com o amigo.

E acrescentou com entusiasmo:

-Mac Allah![6] Esse jovem além de parecer-me um sábio e habilíssimo nos cálculos e na Aritmética, é bom para o amigo e generoso para o companheiro.

Tomo-o hoje mesmo para meu secretário!

- Poderoso Vizir – tornou o Homem que Calculava - , vejo que acabais de fazer 32 vocábulos, com um total de 143 letras, o maior elogio que ouvi em minha vida, e eu, para agradecer- vos, sou forçado a empregar 64 palavras nas quais figuram nada menos que 286 letras. O dobro, precisamente! Que Alá vos abençoe e vos proteja!

Com tais palavras o Homem que Calculava deixou a todos nós maravilhados com sua argúcia e invejável talento. A sua capacidade de calculista ia ao extremo de contar as palavras e as letras de uma frase que acabara de ouvir.

==========
Notas:
1 Antiga aldeia nos arredores de Bagdá.
2 Pequena povoação na estrada de Báçora.
3 Termo de respeito que se aplica, em geral, aos sábios, religiosos e pessoas respeitáveis pela idade ou posição social.
4 Vizir é o termo para ministro. Califa é o soberano dos muçulmanos. Os califas diziam-se sucessores de Maomé. A ele era concedido o título honroso de Comendador dos Crentes.
5 Fundador do Islamismo, a religião dos árabes. Nasceu em Meca no ano 571 e morreu em 632. Uma das personalidades mais notáveis da história.
6 Exclamação usual entre muçulmanos que significa “Poderoso Deus”. Leia-se: Maque-alá.

Fonte:
Malba Tahan.O Homem Que Calculava. Ilustrações Sílvio Vitorino. Digitalização e Revisão Arlindo_San

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 629)

Uma Trova de Ademar 

Relembro o saudoso Anis
que numa bela oferenda,
fez Maria tão feliz
com seu vestido de renda!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Diz-me esta ruga esculpida,
entalhe que o tempo fez,
que a primavera da vida
só nos floresce uma vez.
–Jaime Pina da Silveira/SP–

Uma Trova Potiguar 


Quando a lua nasce cheia
ante a face do horizonte,
sua luz dança na areia,
onde o mar reclina a fonte.
–Francisco Bezerra/RN–

Uma Trova Premiada 


2012  -  Caxias do Sul/RS
Tema  -  COR  -  4º Lugar


Brancos, negros e amarelos,
se a causa é justa e loquaz,
juntam braços, que são elos
forjando as cores da Paz!
–Flávio Roberto Stefani/RS–

...E Suas Trovas Ficaram 


Este azul de um infinito
bordado de branco véu,
mostra o aspecto bonito
do santuário do céu.
–Chico Mota/RN–

Uma  Poesia 


Jamais se pode negar
que revidar é defeito.
Quem não exerce o perdão
vive a vida de mau jeito,
pois não conhece a verdade
da Lei de Causa e Efeito.
–Thalma Tavares/SP–

Soneto do Dia 

O ESPANTALHO - 1.
–Reginaldo Albuquerque/MS–


Sempre inerte naquele cruzamento,
a figura alegórica e isolada
de um espantalho erguendo as mãos ao vento
nos êxtases de eterna gargalhada.

Sem lembranças, idade ou pensamento,
sob a carícia estúpida do nada
apenas o nariz de um cão sarnento
ousa roçar-lhe a calça amarrotada.

Que faz ali alheio à plantação
em lugar tão contrário à enxada e ao grão,
nessa matéria seca e vã de agora?

Sabe-se que ele tem o dom fantástico
de retirar de um embornal de plástico,
lumes que alvejam os vitrais da aurora...

Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (Cabo Verde – 2. Narrativa)

2.     NARRATIVA

Embora o primeiro texto ficcional da moderna literatura cabo-verdiana se deva a Manuel Lopes («Um galo que cantou na baía» in Claridade, n.° 2, excerto do conto mais tarde inserido no livro, sensivelmente com o mesmo título (1959), é com o romance Chiquinho (1947) de Baltazar Lopes que se abre a série da ficção cabo-verdiana. Narrativa a todos os títulos importante como expressão do mundo insular e ainda pela reinvenção da escrita   que   se   organiza,   em   parte,   a   partir   da incorporação na linguagem de signos, expressões ou formas sintácticas dialectais. Longe, é certo, da ruptura abissal que o brasileiro Guimarães Rosa ou o angolano Luandino Vieira mais tarde levariam às últimas consequências.

É legítimo, no entanto, considerá-lo pioneiro na busca de processos para a construção de novas línguas no espaço africano de expressão portuguesa; e, para melhor se poder avaliar deste mérito, há que ter em conta que a sua experiência data de 1938, altura em que aquele romance foi acabado. Isto se pode aplicar enquanto contista disperso por revistas, incluindo Claridade. E se é legítimo adiantar-se que a ruptura iniciada por este narrador é ponto corrente em quase toda a narrativa cabo-verdiana, não menos legítimo é dizer que nenhum outro autor logrou ir tão longe nem tão conseguida pesquisa foi obtida em qualquer outro como em Baltazar Lopes. Alguns, mesmo, preferiram a utilização do português fundamental, com o recurso normal a signos dialectais, embora os diálogos das personagens de extracção social popular (são a maioria) se construam de harmonia com a sua fala e, neste caso, as interferências do dialecto crioulo sejam notáveis e constantes.

Não nos esqueçamos de que se trata de um espaço bilingue e que o dialecto crioulo pode ser considerado uma língua novi-latina (a língua cabo-verdiana) de léxico na sua quase totalidade (noventa e sete por cento) oriundo da língua portuguesa, e naturalmente a reapropriação (com tudo quanto a palavra implica: reelaboração fonética, morfológica, sintáctica e semântica) continuada de palavras (sintagmas) portuguesas por parte do dialecto crioulo que são depois devolvidas, já modificadas, à escrita em português. Eis assim um português cabo-verdianizado onde, inclusive, por vezes, o eixo sintagmático é alterado. Quer a narrativa quer a lírica se enriquecem pelos mais variados processos de reconstrução linguística: convivência, hibridismo, neologismo s e daí a novidade, a invenção permanentemente revelada do insupeitado lastro de uma linguagem de recursos inesgotáveis.

Com obra ficcional publicada, além dos autores assinalados, são António Aurélio Gonçalves, Teixeira de Sousa, Teobaldo Virgínio, Luís Romano, Gabriel Mariano, Ovídio Martins, Onésimo Silveira, Nuno Miranda, João Rodrigues (Montes Verde-Cabo, 1974), Artur Carvalho (Um natal em S. Miguel, 1975), Orlanda Amarilis. Isto sem a exclusão de outros nomes, como Virgílio Pires, estreado em 1958 (n.° 8 de Claridade) e tido como revelação incontestável; Maria Margarida Mascarenhas, que participou em «Sèló» e com larga colaboração no Cabo-Verde e Presença crioula (Lisboa), evidenciando qualidades de mérito real; Pedro Duarte, Francisco Lopes, Manuel Serra, Leitão Graça, Aydeia Avelino Pires, mas estes últimos quase episodicamente, através do Cabo Verde, sem terem dado a medida exacta do seu talento; e também a recente amostra de Oswaldo Osório (vide excertos de romance in Voz di Povo, 1976), demasiado exígua para que possamos formular um juízo consciente.

Já há largos anos, Oscar Lopes, a propósito da Antologia de ficção cabo-verdiana contemporânea (1960) [94] e de outras obras da ficção cabo-verdiana, pronunciava-se nestes termos: «Eu agradeço à literatura de autoria ou temática cabo-verdianas umas horas de leitura vivamente interessada: o prazer de tantas pequenas ou grandes obras (refiro-me a dimensões gráficas) surpreendentemente bem consumadas» [95].

Com efeito, os narradores cabo-verdianos a partir de Claridade souberam centrar-se no mundo específico insular e procederam a uma denúncia muito viva da sociedade a que pertenciam. Nesta primeira fase era natural que estivessem todos eles sensíveis aos dramáticos problemas do Arquipélago: a seca, a fome, a emigração. (Pode mesmo dizer-se que a fome, é a grande personagem da narrativa cabo-verdiana). São elas algumas das grandes linhas temáticas da ficção cabo-verdiana. Mas na certeza de que a partir dessas motivações se desencadearia e, por vezes, de modo seguramente logrado, o tratamento de muitos dados e aspectos da vida social, económica, cultural. Níveis de vida, níveis de língua, níveis de cultura, personagens várias, populares ou não, de miséria ou grandeza, ali se fixaram, mercê da capacidade de análise social e psicológica, capacidade criadora, diríamos invulgar. Se a uma literatura do terceiro mundo buscarmos a expressão da sua própria mundividência, a expressão do seu universo específico, a resposta cabo-verdiana é positiva.

Baltazar Lopes abriu o caminho e como que muitas das propostas dos escritores que vieram depois por ele tinham já sido postuladas. Mas os segmentos sociais foram-se alargando, desenvolvendo, enriquecendo. Ao mundo da fome, da tragédia, de germinação da consciência política e da miséria social — à emigração, por exemplo, e ao mundo mítico que a envolve, com incidência na ilha de São Nicolau da parte de Baltazar Lopes — sucede o mundo epopaico de Manuel Lopes (Chuva brava, 1956; os contos O galo que cantou na baía, 1959; Os flagelados do vento leste, 1960) na ilha de Santo Antão, atravessado também pela fome, mas colocando o grande dilema de ter necessidade de partir, querendo ficar, terminando por ficar, o que contraria a tese da radicalização do evasionismo atribuído a Claridade.

Pretendeu-se, infundadamente, acusar de «paisagística» (e de muitas outras coisas más) a ficção cabo-verdiana subscrita pelos «claridosos», não sabemos se, em grande parte, com o pensamento em Manuel Lopes. Acusação estranha e injusta, chegando a dar a impressão de que Onésimo Silveira, autor de Consciencialização na literatura cabo-verdiana (1963), onde o fenómeno foi desencadeado, teria falado daquilo que não conhecia ou conhecia mal, pelo menos naquela altura. Os romances de Manuel Lopes constituem uma inserção vigorosa no real cabo-verdiano, profundamente desagregado em tempo de fome provocada pela estiagem. Podemos lamentar que aos seus romances faleça uma perspectiva aberta ao futuro. O drama cabo-verdiano surge, por assim dizer, como uma fatalidade e por isso limitado na visão estática do autor-narrador. Mas, de um ou de outro modo, é inegável a sua significação literária e a importância capital que preenche na ficção cabo-verdiana.

Luís Romano (Famintos, 1962) vem situar a acção também na ilha de Santo Antão, juntando ao mundo destruído pela fome o mundo da repressão administrativa e laborai. Pensamos, no entanto, que um certo verbalismo, na fala das personagens funciona como interferências longas do narrador que prejudica o equilíbrio da estrutura romanesca. Documento generoso e libelo acusatório, virtude é, certeza, o largo recurso do léxico dialectal, inesgotável em Luís Romano. Onésimo Silveira da sua permanência em S. Tomé trouxe a experiência do homem cabo-verdiano em tempo de fome emigrado para as roças daquele Arquipélago, de que e testemunho o conto longo Toda a gente fala: sim senhor (1960).

Teobaldo Virgínio, irmão de Luís Romano, situando o desenvolvimento das suas narrativas no espaço social da mesma ilha de Santo Antão, primeiro em Distância (1963) e Beira do Cais (1963), inclui naquele uma expressão telúrica, sensual, em que os elementos líricos e romantizados se fundem na coexistência de um humor irreverente, ao mesmo tempo que uma aderência ao drama real do homem cabo-verdiano se desenvolve no dom da invenção de uma linguagem de carácter poético, muito viva. Em Vida crioula (1967), escrito em Luanda, transita para uma visão de apelo teórico e sentimental às raízes da crioulidade e para a adesão universal, um tanto como aconteceu com a sua última poesia. Ovídio Martins (Tcòucòinòa, 1962) procede à abordagem da amorabilidade e do sentimento profundo do envolvimento lírico e social da terra, abandonando, depois, pelos vistos, a narrativa.

Gabriel Mariano (O rapaz doente, 1963) acaba, porém, de reunir em volume (Vida e morte de João Cabafume, 1977) a quase totalidade dos seus contos dispersos por várias publicações, com relevo para o Cabo Verde. Agora sujeitos a cuidada revisão, dão-nos a medida inteira de um contador de histórias grudado ao real significativo do homem cabo-verdiano. Narrador, personagens, ambientes se identificam através de uma linguagem cabo-verdianizada, sabiamente estruturada para a expressão da epopeia quotidiana feita de sofrimentos, anseios, frustrações, desencontros e grandezas, e onde também o drama da subalimentação crónica tem a sua fala expressiva. Avança por vezes na exploração de comportamentos sociais diversificados, incluindo a pequena burguesia cabo-verdiana residindo em Iisboa. O picaresco se introduz neste espaço textual não como intenção gratuita, mas relevando de um campo semântico autêntico. Além do mais, o drama da emigração para S. Tomé, a tradução oral colada à intimidade social cabo-verdiana, figuras moduladas na corajosa dignidade de afrontar os abusos e as prepotências. Com este Vida e morte de João Cabafume (um título e raiz) de Gabriel Mariano a narrativa cabo-verdiana continua a revelar-se na sua inegável originalidade.

Em Nuno Miranda (Gente da ilha, 1961; Caminho longe, romance, s/d [1975]), de há muito radicado em Iisboa, a escrita verte uma certa nostalgia da terra de origem e do passado. Mas ele é um exemplo acabado de como um autor, à partida dotado, não alcança ultrapassar o jogo de contradições que ele em si próprio criou e assumiu. Isto se aplica sobretudo em relação a alguns contos e se insinua em muitas páginas do romance que reflectem a angústia do desencontro numa identificação do narrador com o autor. No romance, de estrutura um tanto ou quanto desequilibrada, há momentos de real interesse que são aqueles em que o narrador se concilia numa linguagem adequada. Mas certos diálogos por demais artificiosos, sobretudo quando se pontua filosoficamente, empobrecem o texto caracterizado por um estilo pretensioso e visivelmente untuoso que torna a leitura penosa. É nossa convicção que o autor pode, se quiser, no futuro, vencer as debilidades através de uma severa auto-crítica (de autor e de narrador). Ao cabo, «o que é preciso é coragem!» como diz o narrador no fechamento do romance.

Teixeira de Sousa, nos anos quarenta ligado aos neo-realistas portugueses e, deste modo, um dos pioneiros da ficção cabo-verdiana, só recentemente reuniu os seus contos em Contra mar e vento (1972). Histórias centradas no quadro da ilha do Fogo, lá onde se tornaram resistentes conflitos e tensões decorrentes de uma estrutura social sedimentada sob o signo do latifúndio. A infância, certos aspectos da confrontação social de classes, a desesperada luta pela sobrevivência, o heroísmo quotidiano, a honradez, ressonâncias da labuta aventurosa do cabo-verdiano pela América, são alguns dos segmentos incisivos que estruturaram esta obra. Picaras, dramáticas, poéticas, ou impregnadas de um certo humor ou de uma certa ironia, ou ainda às vezes de uma fina melancolia, mas sempre profundamente significativas, num estilo caracterizado pela limpidez, incisivo, com este discurso, Teixeira de Sousa dá-nos um dos enunciados mais equilibrados e autênticos da narrativa cabo-verdiana, revelando um fôlego de narrador excepcional.

Em meio deste panorama, encontramos o nome de António Aurélio Gonçalves. Uma espécie de outsider. De um tempo anterior aos homens de Claridade, uma larga permanência em Iisboa, onde conviveu com alguns intelectuais africanos (Castro Soromenho, Viana de Almeida) e portugueses (Castelo Branco Chaves e Álvaro Salema que tem dedicado, através do seu longo exercício da crítica, entusiastas e excelentes palavras à literatura cabo-verdiana) regressa à ilha de S. Vicente e aí partilha da aventura do grupo de Claridade na qual se estrearia como novelista. Alguns dos seus textos, que faz e refaz, e sempre arrancados das suas mãos à força, aparecem no Cabo Verde e, entretanto, espaçadamente, são-lhe editadas quatro noveletas (a designação é sua): Pródiga (1956); O enterro de nha Candinha Sena (1957); Noite de vento (197 0);Vitgens loucas (1971).

O tempo histórico é o dos nossos dias; o espaço, exclusivamente o da ilha de S. Vicente. Dotado de uma capacidade notável para a análise subjectiva e elaboração dos diálogos, organiza o seu espaço literário numa relação muito íntima entre o aprofundamento psicológico e o meio social em que as personagens estão concretamente inseridas. Com um conhecimento firme e atento do micro-universo da cidade do Mindelo, revela um raro dom de manipulação de ingredientes, aparentemente ínfimos, para uma significação larga desse real, não raro num trajecto mítico. No gosto da exploração de parábolas bíblicas (filho pródigo: Pródiga; virgens imprudentes: Virgens loucas) «sóbrio e sucinto, o texto toca o lírico, o dramático e o trágico, apresentando uma galeria de tipos caboverdianos que nos chegaram cheios de vida e de verdade», nas palavras de Maria Lúcia Lepecki [97]. Textos abertos que surpreendem e fazem o leitor participar e continuar o desenvolvimento do seu processo inventivo.

A última revelação vem com o livro de contos Caes-do-Sodré té Salamansa (1974) de Orlanda Amarilis, que esteve ligada ao grupo de Certeza. Orlanda Amarilis sagra-se como a primeira narradora cabo-verdiana com livro publicado. Histórias tecidas de uma experiência cabo-verdiana e ecuménica, o espaço literário repartido entre a ilha de S. Vicente e a cidade de Lisboa, é assim um pouco também sobre a diáspora cabo-verdiana. De um lado, um certo «desencanto» (título de um dos contos), ou a mal contida amargura, ou a nostalgia no exílio em terra onde aos protagonistas fazem sentir que são estranhos; por outra, a inserção no mundo de carências da terra natal ou o reencontro possível com as raízes e uma penetração no fantástico adequado a certos níveis mentais do arquipélago. Texto de excelentes recursos estilísticos, uma reapropriação do lastro dialectal de inegável rigor e sugestivo efeito, eis-nos na fruição (barthiana) de uma linguagem cabo-verdianizada, das mais bem conseguidas da ficção crioula. Sensibilidade marcadamente feminina, cativa dos gestos, das falas, das apetências quotidianas, o seu discurso alarga o tecido de análise social e psicológica e aprofunda a perspectiva do drama na narrativa cabo-verdiana.
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Notas

94 Antologia da ficção cabo-verdiana contemporânea, selecção e notas de Baltasar Lopes, introdução de Manuel Ferreira e comentário de António Aurélio Gonçalves. Praia, Cabo Verde, 1960.

95    Oscar Lopes, Lm- e depois. Porto, Editorial Inova, 1969. Recolha de críticas publicadas no suplemento «Cultura e Arte» de O Coméráo do Porto.

96    Um dos tópicos da literatura cabo-verdiana é a «partida». Teria cabido a Eugênio Tavares glosar pela primeira vez o drama da emigração no poema «Hora di bai»: hora da partida, hora   da   despedida,   «hora   di   dor».   Partida   que   é   uma consequência da seca, da fome: emigração. Paralelamente, há uma outra atitude que se insinua e depois se define: o desejo de partir pela necessidade de ver outras terras, outras gentes. Necessidade    de    compensar,    em   meios    de    acentuado desenvolvimento social e intelectual, a vida estreita das ilhas. Estado de espírito este de natureza cultural e sentimental. E às vezes mais «literário» do que real. A isto se chamou, depois, evasiomsmo.   Querendo-se  significar a fuga,  o  abandono,  a desresponsabilização. O nosso esquema seria este:
emigração:      origem      económica      — motivação real
Terralongismo — evasionismo:      origem      intelectual      — motivação real ou não Onésimo da Silveira, no ensaio citado, desencadeou um ataque directo à literatura cabo-verdiana subscrita pelos homens da Claridade e de alguns outros que vieram depois, acusando-a de vários males e um deles seria o de «evasionismo». Isto levar-nos-ia longe. Mas desejaríamos aqui deixar consignado o seguinte:
a) — Nos anos 30-40, de um modo geral, os escritores sentiam a necessidade de alargar os seus horizontes e isso não pressupunha de modo nenhum um desenraizamento;
b) — No discurso da «evasão» não estava explícito o abandono e sim implícito o regresso;
c) — Se virtude possui a literatura cabo-verdiana dessa época é exactamente a do elevado grau de responsabilização que os autores demonstraram no empenhamento de se inserirem no centro do universo crioulo, rompendo, de vez, com um passado de alienação literária.

97   Maria  Lúcia  Lepecki  —   crítica   a   Virgens  loucas  in COLÓQUIO /Letras, n.° 11. Lisboa, janeiro de 1975, p. 77.

Continua…3. Drama

Fonte:
Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa I Biblioteca Breve / Volume 6 – Instituto de Cultura Portuguesa – Secretaria de Estado da Investigação Científica Ministério da Educação e Investigação Científica – 1. edição — Portugal: Livraria Bertrand, Maio de 1977

Cândida Vilares Gancho (Como Analisar Narrativas) Parte 10: Machado de Assis (Pai Contra Mãe)

       A seguir você pode aplicar o roteiro de análise ao conto de Machado de Assis.

Pai contra Mãe

       A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos se não por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

       O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

       Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram mui tos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

       Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia da gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: “gratificar-se-á generosamente”, —ou “receberá uma boa gratificação”. Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.

       Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

       Cândido Neves, - em família, Candinho,- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza quando adquiriu o ofício de pegar escravos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.

       Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara alguma lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender de pressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.

       Contava trinta anos, Clara vinte e dois. Ela era órfã, mora com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mira-la cheira-la, deixa-la e ir a outras.

       O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro ofício do namorado, — tal foi a Página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.

       -Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.

       - Não, defunto não; mas é que...

        Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.

       - Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

       - Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.

       Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

       A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo.

       Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

       - Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

       A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajuda é certo, ainda que de má vontade.

       - Vocês verão a triste vida, suspirava ela.

       - Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.

       - Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco...

       - Certa como?

       - Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem, gasta o tempo?

       Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que de costume, e lhe pergunto se já algum dia deixara de comer.

       - A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...

       - Bem sei, mas somos três.

       - Seremos quatro.

       - Não é a mesma coisa.

       - Que quer então que eu faça, além do que faço?

       - Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu, é vaga. Você passa semanas sem vintém.

       - Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

       Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

       Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo segura-lo, amarra-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

       Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis.

       Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez- se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.

       - E o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe- se disso; Candinho; procure outra vida, outro emprego.

       Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

       A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.

       - Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

       Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjunta da, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio:

       - Titia não fala por mal, Candinho.

       - Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês de vem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é cerro morrer, se viver à míngua Enfim...

       Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já isinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, - crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

       - Quem é? perguntou o marido.

       - Sou eu.

      Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.

       - Não é preciso...

       - Faça favor.
      
O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo, o dono da casa não cedeu mais.

       - Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo

       Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios Achou vários alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário não alcança mais que a ordem de mudança.

       A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma Senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.

       Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança á Roda. ‘Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à rua dos Barbonos.” Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.

       Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela rua e largo da Carioca, rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

       Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do me nino; seria maior miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu o pai pegou dele, e saiu na direção da rua dos Barbonos.

       Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é cerro; não menos certo é que o agasalha muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto para preserva-lo do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.

       - Hei de entrega-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.

       Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar á direita, na direção do largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Uni adjetivo basta; diga enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou achou o farmacêutico pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.

       - Mas...

       Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximouse dela. Era a mesma era a mulata fujona.

       - Arminda bradou, conforme a nomeava anúncio.

       Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la ao contrário. Pediu entào que a soltasse pelo amor de Deus.

       - Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!

       - Siga! repetiu Cândido Neves.

       - Me solte!

- Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, Porque a escrava, gemendo arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, — coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.

       - Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.

       Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

       - Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.

       - É ela mesma.

       - Meu senhor!

       - Anda, entra...

       Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, leva da do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

       O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.

       Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-reis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

       - Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

Continua…

Fonte:
Cândida Vilares Gancho . Como Analisar Narrativas. 7. Ed. Editora Ática. http://groups.google.com.br/group/digitalsource/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 628)

Uma Trova de Ademar 

Se não vês mais a saída,
se estás perdido e sozinho...
É nos atalhos da vida
que a gente encontra o caminho!
–Ademar Macedo/RN–

Uma Trova Nacional 


Num egoísmo profundo
penso ao sentir os teus mimos,
que Deus só fez esse mundo
porque nós dois existimos.
–Geraldo Amâncio/CE–

Uma Trova Potiguar 


Me ajudem por caridade,
meu caso está se agravando!
Se eu não matar a saudade
ela finda me matando!
–Luiz Xavier/RN–

Uma Trova Premiada 


1985  -  Nova Friburgo/RJ
Tema  -  BRINQUEDO  -  1º Lugar


Infância é um brinquedo usado,
que um dia a vida resolve;
tomar um pouco emprestado
e nunca mais nos devolve!
–Arlindo Tadeu Hagen/MG–

...E Suas Trovas Ficaram 


Zerando ofensas e afrontas,
o beijo é o mago auditor
que faz o ajuste de contas
depois das brigas de amor!
–Waldir Neves/RJ–

Uma  Poesia 


Duas mãos face a face dando adeus
bem após tantas somas de carinhos,
uma estrada aberta em dois caminhos
fez a subtração dos sonhos meus.
Meu pesar muitas vezes mais que os teus,
tantos risos movidos por meus ais
não renderam a mim nada capaz
de propor um sorriso pra depois;
dividi a saudade pra nós dois
mas parece que a minha doeu mais.
–Lima Júnior/PE–

Soneto do Dia 

RASCUNHO.
–Benedicta de Mello/PE–


Eu fui papel que te serviu de prova...
Tu eras estudante e eu me prestava
a ser a humilde folha que gravava,
cada exercício da matéria nova.

Jamais lançaste em mim canção ou trova...
Eram notas de moço que estudava.
Julgando bem servir-te, eu não pensava
em ter na cesta de papéis, a cova.

Olhei-me um dia e achei-me mal escrita...
Caligrafia assim de quem hesita.
Não parecia do teu próprio punho.

E quando vi depois a tua escolha,
tive ciúmes sem fim da outra folha,
eu que fora somente o teu rascunho...