segunda-feira, 26 de agosto de 2013

IX Concurso de Trovas da Academia Mageense de Letras/ 2013 (Resultado Final)

TEMA:
ACADEMIA
(Líricas/Filosóficas)


1.º LUGAR

Deus proteja a Academia
e seus nobres beletristas
que exibem, com euforia,
um Jubileu de conquistas!!!
JOSE OUVERNEY
Pindamonhanbaga/SP


2.º LUGAR
Que glória para a cidade
ter a sua Academia:
- sinal de que a sociedade
cultiva ainda a poesia!
ANTONIO AUGUSTO DE ASSIS
Maringá/PR


3.º LUGAR
Na Arte da Sabedoria –
Escrita em Dez Mandamentos...
A vida é uma Academia,
Perpétua em todos momentos...
ANA MARIA GUERRIZE GOUVEIA
Santos/SP


4.º LUGAR
É o mundo globalizado
um deserto sem mesura
e a Academia, a seu lado,
um oásis de cultura!
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP


5.º LUGAR
Fértil templo do cultivo
das letras e probidade,
a Academia é um arquivo
da Cultura da cidade!
EDMAR JAPIASSU MAIA
Nova Friburgo/RJ


6.º LUGAR
Academia é cultura
ou saber, em movimento,
que se aprende e que perdura
no livro do pensamento.
ANTÓNIO JOSÉ BARRADAS BARROSO
Parede/PORTUGAL


7.º LUGAR
O dono da funerária,
bom de prosa e de poesia,
fez-se em vida literária
o imortal da academia...
NILTON MANOEL
Ribeirão Preto/SP


8.º LUGAR
Vida longa à Academia
na nobre missão de ser:
seu viver para a poesia
faz a poesia viver.
DULCIDIO DE BARROS MOREIRA SOBRINHO
Juiz de Fora/MG


9.º LUGAR
Na sala da academia,
fonte da literatura,
jorra emoção em poesia,
para a sede da cultura.
VANDA ALVES DA SILVA
Curitiba/PR


10.º LUGAR
Tens, Ó nobre Academia
por teus feitos culturais,
a glória da confraria:
a láurea dos Imortais!
FABIANO DE CRISTO MAGALHÃES WANDERLEY
Natal/RN


TEMA:
TREM
(Humorística)


1.º LUGAR
Olho grande?!... Diz Francisco
igual mineiro não tem,
pois se cair no olho um cisco
ele diz: Caiu um trem!!!...
GIOVANELLI
Nova Friburgo/RJ


2.º LUGAR
É certo que prometi
Ir contigo nesse trem,
Mas quando te conheci
Ele partiu sem ninguém.
OLÍVIA ALVAREZ MIGUEZ BARROSO
Parede/PORTUGUAL


3.º LUGAR
No vagão superlotado
É tanto o calor no trem
que quem se abana, sentado,
abana os troços de alguém!
EDMAR JAPIASSU MAIA
Nova Friburgo/RJ


4.º LUGAR
Com muito orgulho, dizia,
lá na Central, a mocinha:
“Eu pego o trem todo dia
pra mostrar que ando na linha!”
MARIA MADALENA FERREIRA
Magé/RJ


5.º LUGAR
Ante o acidente de trem,
O luso quebra um trenzinho
E se explica para alguém:
- Mato enquanto é filhotinho!
RENATA PACCOLA
São Paulo/SP


6.º LUGAR
Por assédio à passageira,
o maquinista apanhou!!!...
Na maca, diz pra enfermeira:
- O meu trem... descarrilhou...
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP


7.º LUGAR
Rebolando num vaivém
que esbanja provocação,
sempre que ela entra no trem,
leva os homens da estação!
JOSAFÁ SOBREIRA DA SILVA
Rio de Janeiro/RJ


8.º LUGAR
Sempre que o trem apitava,
rompendo na madrugada,
o casalzinho acordava,
e aumentava a filharada!
CAMPOS SALLES
São Paulo/SP


9.º LUGAR
Sogra Maria-fumaça
Foi o “trem” que Deus me deu,
Fumar é sua desgraça,
Quem leva fumo sou eu.
FLÁVIO FERREIRA DA SILVA
Nova Friburgo/RJ


10.º LUGAR
A prudência nos ensina
que a boa escolha faz bem!
Por isso, desde menina...
não embarco em qualquer trem!
DIVA MARIA DE MORAES
Nova Friburgo/RJ

Fábio Viana Ribeiro (O Vazio da Vida)

Há muito para fazer de Whisky um filme bastante incomum. Para alguns, um filme sem pé nem cabeça, sobre o qual nada há para dizer ou entender. Para outros, um filme praticamente convencional, com um tema igualmente convencional e abordado de forma convencional. E para ainda outros, um filme sobre o nada.

Não foram poucos os escritores escreveram algumas de suas histórias sobre o tema. Tchekhov, por exemplo. Vidas monótonas que se arrastam pelo tempo, onde nada acontece, contínua e vagarosamente. Uma dessas histórias veio, aliás, a ser o último filme do diretor Louis Malle: Tio Vânia em Nova York. Com chances de ter sido um dos filmes mais baratos da história do cinema, considerando que praticamente todo o filme vem a ser tão somente a filmagem do ensaio da peça homônima de Tchekhov por um grupo de atores…

Mas, em Tio Vânia e outros muitos exemplos, a descrição do nada é quase sempre feita em companhia de circunstâncias que, por assim dizer, engrandecem sua existência. Por meio de sua glamourização, de sua transcendentalização, de sua politização, etc. Ou seja, vazios existenciais que terminam por servir de contraste a vidas altamente perturbadas por sua precisa consciência do mundo.

Um dos grandes méritos de Whisky foi o de captar o nada de tipo comum; desglamourizado, cotidiano, repetitivo, exausto de ser exata e inexoravelmente uma rotina, um hábito, um fastio. O mundo das pessoas comuns, no sentido mais exato da palavra. E sobre o qual, talvez até mesmo pela lógica do cinema, por sua característica espetacularizante, somos levados a acreditar que existe em proporções muito reduzidas: mesmo as vidas mais comuns já foram, afinal e pelo cinema, transformadas em boas histórias… Mas talvez possa não ser o caso de pensarmos assim; e simplesmente concluirmos que a vida da maioria das pessoas transcorre dessa forma, sem serem senão o arrastar monótono de hábitos, rotinas e circunstâncias. Mundos dos quais, com maiores ou menores chances de sucesso, todos nós tentamos fugir.

Em Whisky, seus personagens parecem estar presos a um mundo de coisas vazias. Contra o qual não podem contar nem mesmo com o auxílio da tristeza ou do desespero. Dois irmãos, que há muito não se viam, se reencontram por ocasião da morte da mãe. Ambos proprietários de pequenas fábricas de meias, um vivendo no Uruguai e outro no Brasil. O reencontro reacende antigas rivalidades e ressentimentos. A ponto do primeiro, que não se casara, solicitar à sua gerente na fábrica, que represente diante do irmão o papel de sua esposa. De algum modo o espectador é levado a imaginar que seria esse o centro da história, e que, em determinado momento, o irmão visitante perceberia a farsa. Mas também isso será aos poucos coberto pela monotonia, pela falta de graça e sabor do mundo em que vivem. O mundo pouco emocionante da fabricação de meias, a decadência da própria fábrica, a monotonia das máquinas, a falta de palavras, sentimentos e emoções. A insipidez dos presentes trocados, a constrangedora falta de confiança nas funcionárias que trabalham na fábrica, o carro que mal funciona, o passeio que pouco lhes diz, o hotel decadente. A vida, para eles, foi enfim isso; estão agora velhos, cansados e a fotografia que fazem no passeio mostra-lhes quem são. É preciso que o fotógrafo lhes peça, para que apareçam sorrindo na foto, que digam whisky.

WHISKY B

Curiosamente, Whisky bem poderia ser considerado o melhor filme brasileiro dos últimos tempos. Mesmo sendo um filme uruguaio, com uma história que se passa no Uruguai, a descrição que faz da realidade (e que, caso fosse excluído o idioma, poderia perfeitamente ser a de uma cidade ou pessoas do Brasil) parece mais verossível que a maioria dos filmes brasileiros que tentaram o mesmo. E que não o conseguiram por tentarem reproduzir a linguagem do cinema americano, por seus diretores terem sido incapazes de captar convincentemente a realidade de seus temas, por terem se perdido em meio às suas pretensões de realismo… No caso de Whisky tal mérito possivelmente deveria ser atribuído a seus diretores, ao conseguirem descrever um mundo que, por conta de seu vazio e de aparentemente não ocupar nenhum lugar significativo na realidade, seria ainda muito mais difícil de ser descrito que tantos outros, já mostrados pelo cinema. Sem que tenham, inclusive e para isso, lançado mão do fácil expediente, tão comum em nossos dias, de transformar seus personagens em vítimas – os que não têm voz, os despossuídos, etc. – “a vida apenas, sem mistificação”.[1]

Ficha Técnica
Título original: Whisky
Ano: 2004
Direção: Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll
País: Uruguai
Duração: 99 minutos


============================
FÁBIO VIANA RIBEIRO é Doutor em Ciências Sociais (PUC/SP) e professor da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Ciências Sociais.
[1] C. D. de Andrade – “Os ombros suportam o mundo”.

Fonte
Revista Espaço Academico. Maringá: UEM. http://espacoacademico.wordpress.com/2013/07/10/o-vazio-da-vida/

Guilherme de Azevedo (A Alma Nova) II

foi mantida a grafia original.
===================
GRAÇA PÓSTUMA

Depois da tua morte eu hei de ver se arranco,
Numa noite serena, ao teu berço final,
Um produto mimoso; — um grande lírio branco
Da alvura do teu colo ebúrneo e divinal!

Aquela flor suave, ó minha visão etérica,
Debruçada gentil, na taça em que a puser,
Far-me-á lembrar a graça cadavérica
Do teu corpo franzino e etéreo de mulher!

E mesmo conterá, decerto, alguma cousa
Do que me traz submisso e preso ao teu olhar:
— Teu corpo a pouco e pouco irá fugindo à lousa
Depois tornado em lírio à terra há de voltar! —

E em longas noites, nele, eu beberei sozinho,
Sonhando as convulsões duns lindos braços nus,
A fragrância que exala a candidez do linho
Em que hoje ondeias leve e onde os meus lábios pus,

— Saudando a boa mãe que faz com que eu te goze
Depois do verme vil teu seio poluir,
Mais pura no frescor de tal metamorfose
Do que eras a cismar, do que eras a sorrir!

Ó minha doce Ofélia! Os rápidos momentos
Da vida são cruéis mas passam como um som!
Um dia quando enfim dos velhos sedimentos
Teu corpo renascer num lírio imenso e bom,

Talvez que eu durma já também sob os matizes
Das flores, ao sorrir das mil germinações,
Dando um pasto fecundo às tuas sãs raízes
Depois de te sagrar as últimas canções!

HISTÓRIA SIMPLES

Havia um rapaz são, robusto, bom, valente,
De espádua larga e rija; um ceifador gentil.
Cavava todo o dia, andou sempre contente
E a féria dava à mãe sem falta dum ceitil*.

Ele amava a campina e os céus largos, serenos.
Aos domingos a mãe deixava-lhe uns dez reis.
Deitava-se ao luar, dormindo sobre os fenos,
Na fragrância do trevo, ao pé dos cães fiéis.

A mãe tinha de seu duas vaquitas mansas:
Num cerro agreste e vil alguns palmos de chão.
E tinha ainda mais não sei quantas crianças
Que andavam nuas sempre e sempre a pedir pão.

O pai mal se sustinha às vezes sobre as pernas:
Era bêbado e mau, batia na mulher;
E à noite, ao cintilar dos vinhos nas tabernas.
Cantava canções vis de a gente ensurdecer.

Um dia uma senhora honesta da cidade,
Esplêndida, gentil, sabendo-se sorrir,
Reparou no rapaz; achou-lhe própria a idade
E fez-lhe um certo gesto: — o moço não quis ir.

Teve um assomo de raiva, então, sua excelência.
Ordenou-lhe que fosse: o moço disse, — irei!
Despediu-se dos seus: devia obediência
À senhora gentil que se chamava... A Lei!

Pegou no velho alforge e no bordão nodoso
E meteu-se a caminho. Os pobres dos irmãos
Choravam à partida: — um quadro doloroso!
A mãe louca de dor torcia as magras mãos!

Chegando no outro dia ao ponto onde o chamaram
Primeiro foi medido e todos a final,
Depois de bem revisto, à uma, concordaram
Que ao serviço do rei convinha este animal!

Aqueloutra senhora, astuta, grave, terna,
— A Ordem — jubilava em doces pulsações!
Contava mais um servo, um filho, na caserna,
Gastando pouco mais: — uns cobres e uns feijões!...

Agora quando passa o batalhão luzente
Na rua, podeis ver o pobre cavador
Com modos imbecis, marchar pesadamente
— herói por conta alheia — ao rufo do tambor!

Não sabe onde caminha entre as guerreiras hostes!
Perguntem-lhe o que é pátria e liberdade e lei!
Caminha simplesmente às ordens dos prebostes*
Que trazem no chicote a salvação do rei.

E na pobre cabana ainda se conserva
O mesmo quadro triste: — a lacrimosa mãe;
Alguns pequenos nus rolando sobre a erva,
E um ébrio que pragueja e não pensa em ninguém!

Mulher não chores mais: a quadra é pura e bela:
Enquanto na campina alouram os trigais,
Teu filho guarda o mundo e a Deus faz sentinela:
Receiam que Deus faça andar o mundo mais.

Em breve ele virá de júbilo e de assombro
Encher tua alma, enfim, quando amanhã voltar
Com seu velho canudo, a trouxa posta ao ombro,
Trazendo novamente a luz ao pobre lar.

E tu perguntarás: o que é meu filho, é ouro!
A quantas guerras foste? Ó céus, como tu vens!
— Mãe tome essa lata! Esconda o meu tesouro
E deixe-me ir dormir no feno ao pé dos cães!

À mesa do festim, cercada de formosas,
O canto dos cristais e o cintilar dos vinhos
Saudavam juntamente os belos desalinhos
Das galantes visões das ceias luminosas!

Molhavam-se em champanhe as pétalas das rosas!
E em baixo, a nossos pés, em leves murmurinhos
A gaze sobreposta à candidez dos linhos
Erguia-se num mar de vagas caprichosas!

Ali tudo era paz! Nem ódios vis nem zelos!
Os lábios pois limpando às rendas e aos cabelos
Da menos trivial das fadas tentadoras,

Eu brindo aos mortos! — disse: à legião sagrada
Que foi à solidão, à eternidade, ao nada!
— Às almas e ao pudor destas gentis senhoras.

===============
Notas:
Ceitil – Moeda antiga portuguesa que valia um sexto de real.
Preboste – Nome dado antigamente a um magistrado militar que havia nos corpos do exército e nos navios.


Fonte:
http://luso-livros.net/

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 27

CAPÍTULO XIX

A vida de André ficou muito mais desafrontada depois da morte de Ernestina, graças ao magro legado que a infeliz deixara ao outro.

O bom rapaz principiou logo a por de parte algum dinheiro do que ganhava, para ver se podia afinal realizar o seu casamento; pois, a despeito das insistências do amigo, não houve meio de lhe fazer aceitar das mãos deste um só vintém.

— Não, não! Dizia. Isso, nas condições em que te achas, mal chega para te equilibrares de novo! Nada, meu amigo, é preciso que endireites a tua vida; que a ponhas em ordem e possas manter por algum tempo certa independência. Paga aos teus credores e não te preocupes comigo; deixa-me cá, deixa-me cá com os meus rapazes e trata de aplicar agora o que possuis melhor do que fizeste da outra vez! Isso é que é! Lembra-te das privações e dissabores por que passaste!...

Mas qual! Teobaldo, mal empolgou a herança, tornou à mesma ou pior vidinha que levara antes de empobrecer; não era homem para ficar quieto com dinheiro no bolso. Enquanto tivesse o que gastar, não pensaria noutra coisa; e dir-se-ia até que as suas provações dos últimos tempos, em vez de o corrigirem, serviram apenas de lhe estimular a febre da prodigalidade.

Quem o visse um ano depois não acreditaria que ali estava o desesperado herdeiro de Ernestina; que ali estava aquele mísero rapaz a quem, por castigo, o remorso e o arrependimento arrastaram de novo aos braços de Leonília. E, a julgar pelas aparências, tão proveitoso lhe fora o tal castigo, que Teobaldo acabara de esquecer totalmente a culpa.

Todo ele agora respirava júbilo, elegância e prosperidade; seus esplendidos vinte e sete anos luziam por toda a parte. Também a época não podia ser melhor para isso: o Rio de Janeiro passava por uma transformação violenta, estava em guerra; e, enquanto as províncias se despiam para cobrir com os seus filhos, os sertões paraguaios, o Alcazar erguia-se na rua da Vala e a opereta francesa invadia-nos de cabeleira postiça e perna nua.

Durante o dia ouvia-se o Hino Nacional acompanhando para bordo dos vasos de guerra os voluntários da pátria; à noite ouvia-se Offenbach. E o nosso entusiasmo era um só para ambas as músicas. A guerra tornava-nos conhecidos na Europa e uma nuvem de mulheres de todas as nacionalidades precipitava-se sobre o Brasil, que nem uma praga de gafanhotos sobre um cafezal; as estradas de ferro desenvolviam-se facilitando ao fazendeiro as suas visitas à corte e o dinheiro ganhado Pois escravos desfazia-se em camélias e champanha; abriam-se hotéis onde não podiam entrar famílias; multiplicavam-se os botequins e as casas de penhores. Redobrou a loteria e a roleta, correram-se os primeiros cavalos no prado; surgiram impostos e mais impostos, e o ouro do Brasil transformou-se em papel-moeda e em fumaça de pólvora.

Teobaldo estava, pois, com o seu tempo; já demandando todas as noites o Alcazar dentro do seu cabriolé, que ele mesmo governava com muita graça; já percorrendo a cavalo as ruas da cidade em marcha inglesa; já servindo de juiz de raia no Jóquei Clube ou madrugando nas ceias do Raveaux ao lado das Vênus alcazarinas.

Entretanto, posto esquecesse a culpa, não se descuidava totalmente da sua penitencia a respeito de Leonília e tinha para ela uma espécie de estima obrigatória, como a de alguns maridos pela competente esposa. A cortesã, já então um pouco ofuscada pela concorrência estrangeira, resignava aquele meio amor, esperando, cheia de fé, que o seu amado haveria, mais cedo ou mais tarde, de recorrer aos braços dela como supremo recurso quando lhe chegasse a ele a saciedade ou quando se lhe esgotassem recursos para a peraltice.

Aquela vidinha não podia durar muito e, uma vez comido o último vintém, não seria com as francesas que ele se havia de achar! Com efeito, ainda não estava em meio o segundo ano da nova opulência de Teobaldo e já este começava de retrair-se da pândega, não para tornar fielmente a Leonília, mas torcendo para o lado de Branca, de cujo namoro se descuidara um pouco nos últimos tempos. E ao sentir murcharem-lhe de todo as algibeiras, veio-lhe uma ardente febre de liquidar quanto antes aquele casamento, que passava a ser de novo para ele o extremo porto de salvação. Aguiar, porém, que não desistia uma polegada de suas pretensões sobre a prima, deu logo por isso, pôs-se de sobreaviso, estudou-os a ambos e afinal, sem mais se poder conter, interrogou abertamente a menina, de uma vez em que a pilhou de jeito.

Branca respondeu que não reconhecia nele direito algum que o autorizasse a fazer semelhante interrogatório e, depois de muito instigada pelo primo, confessou que votava ao Sr. Teobaldo particular afeição e que estaria disposta a casar-se com ele, no caso que ele a desejasse.

— Com que a senhora o aceitaria para marido?

— A ter de escolher.

— Escolhia-o...

— É exato.

— Quer dizer que o ama!...

— Não sei o que é o amor; apenas reconheço no seu amigo todas as qualidades que eu sonhava no meu noivo; assim pensasse ele a meu respeito.

— Ah! Descanse que não! Aquilo não é homem para sentimentos dessa ordem! É um libertino!

— Meu primo!

— A senhora já o defende... Bravo!

— Decerto, porque o senhor o está caluniando!

— E minha prima o conhece porventura? Saberá ao menos quais são os precedentes da vida dele?

— Não, mas calculo.

— Pois erra no cálculo! Fique sabendo que Teobaldo não a merece; é, repito, um homem incapaz de qualquer afeição séria e duradoura; é um homem que se gastou, que se estragou em amores de todo o gênero e…

— Se continua falar desse modo, vou para junto de meu pai…

— Ah! Não quer ouvir as verdades a respeito dele; está bom, está muito bom!... Não sabia que a coisa chegara a este ponto; mas, enfim, sempre lhe direi que o seu rico Teobaldo até hoje tem vivido, por bem dizer, a' custa de mulheres!...

Branca ergueu-se indignada e fugiu.

— Miserável! Considerou o Aguiar; é preciso ser muito infame para fazer o que ele fez! Apresento-o a esta casa, confio-lhe as minhas intenções, declaro-lhe quanto adoro minha prima, e o patife responde a tudo isso procurando disputar-ma. Ah! Mas a coisa não lhe há de ser assim tão doce! Eu cá estou para te cortar os planos, especulador! Queres apanhar-lhe o dote? Pois tens de te haver comigo! Não te lamberás com o dinheiro de meu tio como te lambeste com o dinheiro da pobre Ernestina!

Daí a dias falava o Aguiar com o comendador:

— É preciso abrir os olhos, meu tio, é preciso abrir os olhos. Aquele tratante é capaz de tudo! Abra os olhos, se não quiser que ele lhe pregue alguma peça...

— Mas, com a breca! Não foste tu mesmo que mo apresentaste?

— Não o conhecia nesse tempo: andava iludido; só hoje sei a bisca que ali está.

E contou a respeito de Teobaldo todas as verdades que sabia e mais ainda o que lhe pareceu necessário para as realçar; assim, disse que ele era um grande devasso e um grande hipócrita; que ele para conseguir qualquer desiderato não hesitava defronte de obstáculos, nem considerações de espécie alguma, e que, no caso presente, se o comendador não tratasse de defender a filha, o patife conseguiria apoderar-se dela, pois já lhe havia captado a confiança e talvez o coração.

— Estás sonhando com certeza!

— Não! Digo a verdade. Branca deseja casar com ele!

— Não creio! Isso não pode ter fundamento!

— Juro-lhe que tem! Ela própria mo confessou!

— Nesse caso vou interrogá-la.

— Pois interrogue, e verá!

Branca respondeu ao pai com toda a franqueza que — Se tivesse de escolher noivo preferia o Sr. Teobaldo a qualquer outro…

— Bem, filha, isso é lá uma questão de gosto; não se argumenta! Mas, sempre te direi que é de minha obrigação evitar que dês um passo mal; preciso esclarecer-te sobre os precedentes e sobre o caráter desse moço, a quem na tua inocência escolheste para marido.

— Oh! Mas foi vossemecê justamente quem me deu o exemplo de gostar dele!. ... Não posso compreender como um rapaz, até aqui tão querido e simpatizado por todos nesta casa, mereça o que meu pai acaba de dizer.

— Sim, minha filha, mas o casamento é coisa muito séria; pode a gente simpatizar com uma pessoa, achar que ela tem talento, que é bonita, que é engraçada; sim, senhor! Daí, porém, a querer mete-la na família vai uma distância enorme!...

— Não sei que possa faltar Aquele rapaz para ter direito à minha mão!...

— Não se trata do que falta, meu bem, mas do que lhe sobra!...

— Como assim?

— É que há feios boatos a respeito da vida que ele tem levado aqui na corte...

— Intrigas de meu primo...

— Eu, pelo menos, preciso tomar certas informações antes de consentir que penses nele.

— Ora, papai, isso de pensar ou de não pensar em alguém não depende da vontade; e, quase sempre, quanto mais a gente faz em não pensar em uma pessoa ou em uma coisa, é quando mais ela não lhe sai da idéia.

— Bem, bem, bem! Disse o velho afastando-se contrariado; mais tarde havemos de falar neste assunto; por ora não tens a cabeça no seu lugar.

Toda esta conversa foi a noite desse mesmo dia relatada minuciosamente a Teobaldo por Branca, que se encontrou com ele em casa de uma família conhecida de ambos.

— Estás disposta a casar comigo? perguntou-lhe o rapaz.

— Bem sabes que sim.

— Mesmo sem a autorização de teu pai?

— Sim, mas exijo que lhe faças o pedido.

— E se ele negar!

— Insistiremos.

— E se ele insistir também na recusa?

— Esperaremos.

— E se ele nunca mudar de idéia?

— Não sei... Havemos de ver...

— E se ele quiser casar-te à força com teu primo?

— Oh! Isso não consinto.

— Pois fica sabendo que é essa a sua intenção!

— Não creio!

— E, se for, estás disposta a reagir?

— Estou.

— E sabes qual é o único meio que há para isso?

— Qual é?

— Fugindo.

Branca teve um sobressalto e repetiu quase que mentalmente:

— Fugindo?...

— Sim, e desde já preciso saber se devo ou não contar contigo; nestes casos não há meias medidas a tomar: se estás disposta a ser minha esposa, arrostaremos tudo; se não estás, desaparecerei para sempre de teus olhos. Decide!

— Sim, mas tu hás de falar primeiro a papai…

— Está claro e só me servirei do rapto no caso que este me recuse a tua mão.

— Talvez não recuse.

— E se recusar?

Ela abaixou os olhos.

— Responde! Disse ele.

— Irei para onde me levares...

— Bem. Estamos entendidos.

E Teobaldo afastou-se disfarçadamente.

Quando tornou a casa, foi direito ao Coruja, a quem por último confiava as suas esperanças de casamento, e disse-lhe sem mais preâmbulos:

— Sabes?! O Aguiar está me fazendo uma guerra terrível! Intrigou-me com o comendador! Creio que vou ter muito vento contrário pela proa! Ah! Mas comigo aquele miserável perde o seu tempo porque estou resolvido a raptar a menina!

— Não sei se farás bem com isso... observou o outro; esses meios violentos provam quase sempre muito mal... Eu, no teu caso, me entenderia com o pai.

— Ah! Está bem visto que lhe farei o pedido! Faço, que dúvida! Mas já sei que vou levar um formidável "não" pelas ventas! O bruto nega-ma com certeza!

— Quem sabe lá, homem! Experimenta…

— Pois se o demônio do Aguiar não faz senão desmoralizar-me aos olhos do velho!.
— Pois desmente-o, provando com a tua conduta o contrário do que ele disser. Olha! Queres ver o meio de chegar mais depressa a esse resultado? Procura trabalho. Emprega-te!

— Mas onde?

— Em casa do próprio pai da menina…

— Em casa do comendador? Tem graça.

— Não sei por quê…

— Pois eu sirvo lá para o comércio!…

— Procura servir.

— Ele não tomaria a sério o meu pedido.

— Nesse caso a culpa já não seria tua; e o bom cumprimento do teu dever, procurando trabalho, seria já argumento que ficava de pé contra as intrigas do Aguiar.

— Tens razão. Amanhã mesmo vou falar ao velho; talvez consiga alguma coisa...

— Hás de conseguir, pelo menos, provar que desejas ganhar a vida.

Teobaldo ficou pasmado quando, no dia seguinte, às suas primeiras palavras com o pai de Branca, este disse sem o menor constrangimento:

— Ó meu caro senhor, por que não me falou há mais tempo?... Tenho muito prazer em ser-lhe útil; diga quais são as suas habilitações e pode ser que entremos em algum acordo.

Teobaldo viu-se deveras embaraçado para responder a semelhante pergunta. Ele, coitado, não tinha habilitações; tinha dotes, sentia-se com jeito para tudo em geral, mas imperfeito e inepto para qualquer especialidade. O comendador foi em auxílio dele, perguntando-lhe se sabia o francês e o inglês.

— Perfeitamente, apressou-se a responder o interrogado. — Falo e escrevo com muita facilidade qualquer dessas línguas.

— Pois então trabalhará na correspondência. Tem boa letra?

— Sofrível; quer ver?

E, tomando a pena que o negociante havia deposto em cima da carteira, escreveu primorosamente sobre uma folha de papel as seguintes palavras:

"Convencido de que a ociosidade é a mãe de todos os vícios e de todos os males, desejo evitá-lo, dedicando-me a um trabalho honesto e proveitoso."

— Muito bem! Disse o comendador, olhando por cima dos óculos para o que estava escrito. Pode amanhã mesmo apresentar-se aqui; meu guarda-livros se entenderá com o senhor.

— Devo vir a que horas?

— Aí pelas sete da manhã.

Teobaldo correu a contar ao amigo o resultado da sua conferencia com o pai de Branca.

— Então? Que te dizia eu?... Exclamou Coruja, nadando em júbilo. Vês?! Tudo se pode arranjar por bons meios! Não dou muito tempo para que o comendador morra de amores por ti e esteja disposto a proteger-te mais do que protegeria a um próprio filho! Assim tenhas tu cabeça e saibas te agüentar no emprego!

— Vamos a ver.

— Olha, meu caro, ali tens um futuro, sabes? Talvez não ganhes muito ao princípio, mas pouco a pouco o comendador te aumentará o ordenado e, quando deres por ti, estarás com a tua vida independente e garantida. Então, sim, pede a menina e casa-te, antes disso — é asneira!
–––––––––––––
continua…

sábado, 24 de agosto de 2013

Estatística do Blog

O Blog funciona desde dezembro de 2007. Este final de ano estará completando 6 anos de atividade.
Até agora, houveram :

 Agradeço a todos que prestigiaram, prestigiam e espero que continuem prestigiando-o.
José Feldman

Francisco Pessoa (Lançamento do Livro "Isto é coisa do Pessoa - em Prosa e Verso", em 13 de Setembro)




Antonio Brás Constante (A Simplicidade Viva da Morte)


A morte mesmo em sua forma mais incerta é a única certeza que temos. Depois de uma vida de incertezas encontramos na certeza da morte nosso destino final. Ela está sempre à espreita de nossas vidas como uma fera que cedo ou tarde vai nos atacar e subjugar.

Para quem sofre sem ter mais esperanças ela se torna uma amiga bem vinda e aguardada. Uns dizem que ela é violenta, outros que é gelada, pois ao seu toque o sopro da vida se esvai, deixando apenas uma carcaça fria para ser enterrada. Após sua chegada abandonamos nosso transporte terrestre chamado de corpo, que irá reciclar com o universo físico, e deixamos que nossa alma imortal (se é que ela existe) possa enfim voar leve e solta, provavelmente, fazendo aquilo que almas leves e soltas ficam fazendo por aí para passar seu tempo infinito.

Se alguém me perguntasse se existe algo pior que a morte, eu lhes responderia: “Sim, TUDO!”. A morte não é cruel para aqueles que morrem, e ao pensar nisso percebo que quando ouvimos que fulano ou beltrano teve uma morte horrível, na verdade eles tiveram um final de vida horrível. A morte é a mesma para todos, quando ela chega não há mais dor, ou qualquer sofrimento. A paz reina eterna. Nossa existência finita se encontra com a derradeira inexistência infinita. A morte é igual em qualquer parte do mundo, é universal.

Qualquer um que sente que vai morrer torce para encontrar uma luz para seguir, e torce mais ainda para que aquela luminosidade toda não seja obra de algum vaga-lume superdotado. A morte acontece de maneiras implacáveis (não confundam com “emplacáveis” segunda pessoa do plural do pretérito imperfeito do verbo emplacar, pois em se tratando da ceifadora, quando ela emplaca o jogo da vida acaba).

A morte muitas vezes tem a ver com o DNA (Data de Nascimento Antiga) do indivíduo. Ninguém escapa de seu abraço frio, que não escolhe raça, credo, idade, ou time do coração. Teoricamente, aqueles que têm fé deveriam receber sua chegada com mais alegria e menos tristeza, visto que em todas as fábulas religiosas o além é um lugar muito melhor do que esta nossa conhecida, temporária e carnal estadia terrena. Porém, o que vejo é o contrário, ninguém quer morrer, por mais que se acredite em paraísos divinos, ninguém quer largar este tênue lampejo existencial.

A dona morte nada mais é do que o ponto final em um texto, totalmente alheia ao que ali foi escrito, sem julgar se o conteúdo foi bom ou ruim, não é maleável ou influenciável. Ela é uma marca, um final de sentença, um bilhete de ida para o eterno descanso. Claro que talvez alguns punhados de fantasmas possam vir a discordar de mim, mas não devemos nos assombrar com estas assombrações.

Dizem que quando alguém morre uma parte da pessoa continua viva dentro de nós, mas o contrário também é verdadeiro, pois uma parte de nós sempre acaba morrendo junto da pessoa que amamos. A tristeza transformada em depressão, a depressão baixando a imunidade de nosso corpo, nos enfraquecendo, nos atordoando, nos desamparando, arrancando a dor de nosso peito sem qualquer pudor, e expondo-a ao mundo para quem quiser ver. Uma força que nos força chorar, não há como evitar.

Nos velórios vislumbramos muitas faces amigas transfiguradas, onde antes víamos cultivados sorrisos doces, naquele instante brotam lágrimas salgadas, forjadas na mais pura melancolia. O enterro é a pior parte, uma espécie de marcha do sofrimento, seres unidos pela agonia rumando em passos lentos para sepultar aqueles que se foram, para nunca mais voltar.

Em aproximadamente 30 dias deste ano de 2013 a morte me visitou duas vezes, de forma indireta, porém, arrebatadora. Na primeira delas, no inicio de julho, levou meu mestre e amigo Zé Gadis, responsável direto por eu ter seguido esta lida de pretenso escritor. Em sua segunda visita levou minha querida mãe, dia 04 de agosto.

E aqui estou eu, com minhas mãos vivas registrando a morte. A mente instigada e sugestionada pela perda de um mestre e uma guerreira, deixando aqui meu pequeno tributo de lembrança a eles, que merecem bem mais que isso, muito mais mesmo, mas por enquanto, por hoje, e talvez por um indeterminado tempo, ainda longe de meu campo de visão, é tudo que posso lhes oferecer. Um tributo de certa forma inútil, visto que é dedicado em homenagem a pessoas que nunca poderão ler, chorar, rir, ou mesmo desfrutar de qualquer outra maneira desta dedicatória.

Enfim, eles me conheceram assim, um palhaço das palavras perdidas, que transforma a própria tragédia em picadeiro, buscando esboçar um sorriso ainda que em um texto triste, enquanto duas lágrimas deslizam dentro do peito, acariciando meu coração...

Fonte:
O autor

8º Prêmio Escriba de Contos (Resultado Final)

1º Lugar:
Domino gratias
Zulmar José Lopes de Vasconcellos
Rio de Janeiro – RJ


2º Lugar:
Colecionador de pedras
Elias Araújo
Américo Brasiliense – São Paulo – SP


3º Lugar:
O terno
André Telucazu Kondo
Jundiaí – SP

- Melhor trabalho de Piracicaba:


Ao Crepúsculo
Sebastião Aparecido Ferreira

- Menções Honrosas:

1 - A cartomante e as probabilidades
Davi Menossi Gonzales
São Caetano do Sul – SP


2 - O botão e o sobretudo
Elda Nympha Cobra Silveira
Piracicaba – SP


3 - Pele
Vera Lúcia Valim Beernhard
Porto Alegre – RS


4 - Avarina e o Andina
Célia Maria da Conceição Chamiça Pereira
Odivelas – Portugal


5 – A farinha e o sonho
Luis Pimentel
Rio de Janeiro – RJ


6 - O homem virado música
Marcelo Ribeiro de Souza
Rio de Janeiro – RJ


7 - Ceias
Vanessa Maranha
Franca – SP


Selecionados:

1 - Vagalumes
Emir Ross
Porto Alegre – RS


2 - Enfado
Rui Trancoso de Abreu
Limeira – SP


3 - Como um quadro de Dalí
Didiane Vally Figueiredo Chinalli
Santos – SP


4 - La vida és sueno
Henrique Pedro Queiros Veludo Gouveia
Rio de Janeiro – RJ


5 - O poço
Alberto Arecchi
Cidade Pávia - Itália


6 - Castanho café
Valentina Silva Ferreira
Portugal


7 - Flor de novembro
Leopoldo Kempinski Mezzomo
Pinhais – PR


8 - A calamidade
Danito Gimo da Graça Avelino
Província de Sofala – Moçambique


9 - O rio
Lygia Roncel de Rodrigues Ferreira
São Paulo -SP


10 - O barulho da chuva
Wesley de Andrade Ferreira
Maringá – PR


Fonte:
http://golp-piracicaba.blogspot.com.br/2013/08/resultado-do-8o-premio-escriba-de.html

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Guilherme de Azevedo (A Alma Nova)

Obs: - o significado de algumas palavras (que possuem asterisco ao lado)  foram colocadas ao final da postagem, sob o título notas. 
- foi mantida a grafia original do poeta português.
----------------------
INTRODUÇÃO

Eu poucas vezes canto os casos melancólicos,
Os letargos* gentis, os êxtases bucólicos
E as desditas cruéis do próprio coração;
Mas não celebro o vício e odeio o desalinho
Da musa sem pudor que mostra no caminho
A liga à multidão.

A sagrada poesia, a peregrina eterna,
Ouvi dizer que sofre uma afeção moderna,
Uns fastios* sem nome, uns tédios ideais;
Que ensaia, presumida, o gesto romanesco
E, vaidosa de si, no colo ebúrneo* e fresco,
Põe cremes triviais!

Oh, pensam mal de ti, da tua castidade!
Deslumbra-os o fulgor dos astros da cidade,
Os falsos ouropéis* das cortesãs gentis,
E julgam já tocar-te as roçagantes* vestes
Ó deusa virginal das cóleras celestes,
Das graças juvenis!

Retine a cançoneta alegre das bacantes*,
Saudadas nos vagões, nos cais, nos restaurantes,
Visões de olhar travesso e provocantes pés,
E julgam já escutar a voz do paraíso,
Amando o que há de falso e torpe no sorriso
Das musas dos cafés!

Oh, tu não és, decerto, a virgem quebradiça
Estiolada* e gentil, que vem depois da missa
Mostrar pela cidade o seu fino desdém,
Nem a fada que sente um vaporoso tédio
Enquanto vai sonhando um noivo rico e nédio*
Que a possa pagar bem!

Nem posso mesmo crer, arcanjo, que tu sejas
A menina gentil que às portas das igrejas
Enquanto a multidão galante adora a cruz,
A bem do pobre enfermo à turba pede esmola
Nas pampas ideais da moda, que a consola
Das mágoas de Jesus!

E nas horas de luta enquanto os povos choram
E a guerra tudo mata e os reis tudo devoram,
Não posso dizer bem se acaso tu serás
A senhora que espalha os lânguidos fastios*
Nos pomposos salões, sorrindo a fazer fios
À viva luz do gás!

Tu és a aparição gentil, meia selvagem,
De olhar profundo e bom, de cândida roupagem,
De fronte imaculada e seios virginais,
Que desenha no espaço o límpido contorno
E cinge na cabeça o virginal adorno
De folhas naturais.

Teus a linha ideal das cândidas figuras;
As curvas divinais; as tintas sãs e puras
Da austera virgindade; as belas correções;
E segues majestosa em teu longo caminho
Deixando flutuar a túnica de linho
Às frescas virações!

Quando trava batalha a tua irmã Justiça
Acodes ao combate e apontas sobre a liça
Uma espada de luz ao Mal dominador:
E pensas na beleza harmónica das cousas
Sentindo que se move um mundo sob as lousas
No gérmen duma flor!

Num sorriso cruel, pungente de ironia,
Também sabes vibrar, serena, altiva e fria,
O látego febril das grandes punições;
E vendo-te sorrir, a geração doente,
Sentir cuida, talvez, a nota decadente,
Das mórbidas canções!

Oh, voa sem cessar traçando nos teus ombros
O manto constelado, ó deusa dos assombros,
Até chegar um dia às regiões de luz,
Aonde, na poeira aurífera dos astros,
Contrito, Satanás enxugará de rastos,
As chagas de Jesus!

Lugar à minha fada ó lânguidas senhoras!
E vós que amais do circo as noites tentadoras,
Os flutuantes véus, os gestos divinais,
Podeis vê-la passar num turbilhão fantástico,
Voando no corcel febril, nervoso, elástico,
Dos novos ideais!

Eu vi passar, além, vogando sobre os mares
O cadáver de Ofélia: a espuma da voragem
E as algas naturais serviam de roupagem
À triste aparição das noites seculares!

Seguia tristemente às regiões polares
Nos limos das marés; e a rija cartilagem
Sustinha-lhe tremendo aos hálitos da aragem,
No peito carcomido, uns grandes nenúfares*!

Oh! Lembro-me que tu, minha alma, em certos dias
Sorriste já, também, nas vagas harmonias
Das cousas ideais! Mas boje à luz mortiça

Dos astros, caminhando; apenas as ruínas
Das tuas criações fantásticas, divinas,
De pasto vão servindo aos lírios da justiça!

VELHA FARSA

Rufa ao longe um tambor. Dir-se-ia ser o arranco
Dum mundo que desaba; aí vai tudo em tropel!
Vão ver passar na rua um velho saltimbanco
E uma fera que dança atada a um cordel.

Ó funâmbulos* vis, comediantes rotos,
O vosso riso alvar agrada à multidão!
E quando vós passais o arcanjo dos esgotos
Atira-vos a flor que mais encontra à mão!

Lá vai tudo a correr: são as grotescas danças
Duns velhos animais que já foram cruéis
E agora vão sofrendo os risos das crianças
E os apupos da turba a troco de dez réis.

Conta um velho histrião*, descabelado e pálido,
Da fera sanguinária o instinto vil e mau,
E vai chicoteando um urso meio inválido
Que lambe as mãos ao povo e faz jogo de pau.

Depois inclina a face e obriga a que lha beije
A fera legendária olhada com pavor:
E uma deusa gentil, vestida de barege*,
Anuncia o prodígio a rufo de tambor!

E as mães erguem ao colo uns filhos enfezados
Que nunca tinham visto a luz dos ouropéis*:
E acresce à multidão a turba dos soldados,
— ao hilota* da cidade o escravo dos quartéis.

E o funâmbulo* grita; impõe qual evangelho
À turba extasiada a grande narração.
E sobre um cão enfermo um orangotango velho
Passeia nobremente os gestos de truão*.

Correi de toda a parte, aligeirai o passo,
Deixai a grande lida e vinde à rua ver
As prendas duma fera, as galas dum palhaço,
E um arcanjo que sua e pede de beber!

A tua imagem tens, ó povo legendário
No cómico festim que mal podes pagar,
Pois tu ainda és no mundo o velho dromedário
Que a vara do histrião* nas praças faz dançar.
===============
Notas:
Bacantes = (Fig)Mulher sem pudor, de costumes dissolutos
Barege = tecido fino de lã combinada com seda ou algodão, usado no vestuário feminino
Ebúrneo = Que é branco e/ou liso como o marfim
Estiolada = enfraquecida, debilitada
Fastio = falta de apetite, enfado, aborrecimento
Funâmbulo = indivíduo que muda facilmente de opinião ou partido
Hilota = em Esparta, escravo que cultivava o campo; pessoa de ínfima condição social ou que foi reduzida ao grau extremo da miséria, da servilidade ou da ignorância
Histrião = bufão, comediante
Letargo = que possui incapacidade de reagir e de expressar emoções; apatia, inércia e/ou desinteresse
Nédio = brilhante
Nenúfar = lótus
Ouropéis = Lâminas de metal amarelo que imitam o ouro
Roçagante = se arrasta pelo chão
Truão = pessoa que diverte as outras; palhaço, saltimbanco

Fontes:
http://luso-livros.net/
Dicionário Caudas Aulete. Aulete Digital.