quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Humberto de Campos (Morfina)

Quando o Carvalho Souto, meu companheiro de escritório, sofreu aquele acidente de automóvel em que fraturou duas costelas e o braço esquerdo, eu, ia vê-lo quase diariamente à Casa de Saúde Santa Genoveva, na Tijuca. A solicitude persistente com que velava pelo meu amigo, fez-me, em pouco tempo, íntimo dos médicos do estabelecimento. E de tal maneira que, trinta e quatro dias depois, quando o Souto recebeu o boletim concedendo-lhe "alta", eu contava já um amigo novo, na pessoa amável e mansa do Dr. Augusto de Miranda, que exercia, então, ali, as funções de subdiretor. Filho de médico, e neto de médico, Miranda nascera, pode-se dizer, no quarto ano de medicina. Aos sete anos já utilizava o seu pequenino serrote de fazer gaiolas, serrando, com ele, a perna dos passarinhos que apareciam com alguma unha doente.

Mediano de estatura, robusto de tórax, cabelos alourados e olhos entre o azul e o verde, o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva era uma figura grave e simpática. O rosto largo, e escanhoado, transpirava a energia serena e boa das almas fortes e tranquilas. Daí a confiança que entre nós rapidamente se estabeleceu, a franqueza com que me falou, naquela manhã, de uma das suas doentes que ali se achava, ainda, hospitalizada.

- Quer vê-la? Vamos... - convidou.

A Casa de Saúde Santa Genoveva está situada, como se sabe, na Estrada Velha da Tijuca, em um ponto pitoresco, dominando a cidade. Ensombram-lhe as cercanias de antigo solar, algumas dezenas de mangueiras enormes, e árvores outras, de fronde compacta e agasalhadora. Sob uma dessas mangueiras, estirada em uma espreguiçadeira de pano branco e vermelho, achava-se uma senhora alta, de rosto longo e olhos cavados, mas apresentando na fisionomia cansada e enferma os traços da antiga distinção. Devia ter sido bela, com os seus cabelos negros de ondulação larga. E elegantíssima de porte, a avaliar pela graça do busto posto em relevo na postura em que se encontrava.

- Preste atenção, vamos passando... Depois que você conhecer a história trágica de sua vida, voltaremos... - disse-me o Dr. Miranda.

Entramos por uma estrada de mangueiras vetustas, e, enquanto caminhávamos lentamente na manhã fresca, o subdiretor, a voz tranquila e pausada, me falava desta maneira:

- Aquela senhora que acaba de ver, foi casada com um dos meus companheiros de turma na Faculdade, e é a heroína de uma das tragédias mais terríveis que vieram ter aqui dentro o seu desfecho...

- O marido morreu? - indaguei.

- Não. Ela, porém, o perdeu sem que ele morresse: está desquitada. As senhoras desquitadas, são, em nossa terra, as viúvas dos maridos vivos.

Apanhou, no chão, um pequeno ramo, uma nódoa na estrada limpa, e reatou:

- Filha de um advogado que morreu sem fortuna, esta moça, aos dezessete anos, casou com o colega de que lhe falo, o qual fez um dos mais belos cursos do seu tempo, mas não foi igualmente feliz na vida prática. No primeiro ano de casamento, veio-lhe um filho. Linda criança! Vi-a uma tarde, na rua, em companhia do pai, e não esqueci, jamais, a sua graça infantil... Quatro anos depois de casados, foi esta senhora uma noite atacada de cólica hepática de extraordinária violência. O marido recorreu à terapêutica indicada no caso, mas inutilmente. Compadeceu-se, e aplicou-lhe uma injeção de morfina. A doente sentiu alívio imediato, e dormiu, até à noite. Ao acordar, pôs-se a gemer novamente, e, em seguida, a gritar. Nova injeção. Novo sono. No dia seguinte, à tarde, voltaram os gemidos queixando-se ela dos mesmos padecimentos. Gemia, debatia-se, gritava, reclamando a injeção. Profissional inteligente, o marido certificou-se de que, verdadeira a princípio, a dor, agora, era simplesmente simulada. A morfina havia exercido a sua influência funesta! Por isso, não deu a injeção. Desiludida de alcançar o que pretendia, a esposa calou-se. E a tranqüilidade voltou, de novo, à intimidade do casal.

- E a tragédia?

- Espere que a história é longa... Ao fim de algumas semanas, começou o meu colega a observar na senhora uns ímpetos de temperamento, uns excessos de paixão que o encantavam, porque ele era homem, mas que o preocupavam porque era médico e o alarmavam porque era marido. Pôs-se vigilante, e descobriu a verdade terrível: a esposa, seduzida pelas sensações das injeções que ele lhe aplicara, era presa, já, da morfinomania, consumindo diversas ampolas por dia! A sua assinatura havia sido falsificada, já, por mais de uma vez, no papel do consultório, em receitas de responsabilidade, pondo em perigo a sua reputação profissional.

O Dr. Miranda parou, por um momento, para acender um cigarro, e tornou:

- Com a sua experiência de clínico, o marido compreendeu a ineficiência do seu esforço individual para salvar a companheira infeliz. Por esse tempo, havia chegado da Europa um colega nosso, o Dr. Stewenson, que se tinha especializado na Alemanha e na Suíça na cura da toxicomania. Era um belo homem e um belo espírito, e o marido daquela senhora foi à sua procura, e expôs lealmente o seu caso doméstico. Pediu-lhe que tomasse sob os seus cuidados a esposa, e levou-a, no dia seguinte, ao consultório. Stewenson marcou o início do tratamento para outro dia. A moça foi, sozinha. O médico fê-la entrar para o seu gabinete, e fechou-o a chave. Em seguida, encheu duas seringas, aplicando uma injeção na cliente, e outra em si mesmo. E rolaram, os dois, abraçados, como dois loucos... Stewenson era morfinômano, e o seu anúncio como especialista contra os entorpecentes não visava senão atrair as senhoras viciadas, conquistando companheiras para os seus delírios...

- Que horror!...

- Ao fim de algumas semanas, o marido da pobre moça descobria a extensão tomada pelo seu infortúnio. A esposa, ela própria, confessou-lhe tudo, fornecendo-lhe os elementos para apurar a verdade. E ele apurou que era duas vezes desgraçado: o Dr. Stewenson era amante de sua mulher!... Diante disso, veio a separação, com o desquite. Não tendo sido judicial, o meu antigo colega de turma passou a dar uma pensão à esposa, que fixou residência apartamento em Copacabana, ficando ele num hotel no centro da cidade. Ele era, porém, um homem de temperamento apaixonado, e não podia esquecer a criatura a quem amara tanto, e que lhe havia dado as horas de paixão mais intensas da vida. Nenhuma outra mulher lhe satisfazia os sentidos e o coração. E ei-lo, na da noite, alta madrugada, abandonando o seu hotel e indo secretamente, bater à porta do apartamento de Copacabana, tornando-se um dos amantes de sua antiga mulher.

- Mas, isso é verdade? - perguntei,

- É verdade, e é ciência - respondeu-me o Dr. Miranda.

Havia rodeando um tronco de mangueira, um banco circular, de pedra. Sentamo-nos. E o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva reatou:

- A esposa, agora entregue a si mesma, continuava a tomar morfina, absorvendo doses espantosas. Uma tarde, achando-se em casa, encheu a seringa, e meteu a agulha na parte anterior da coxa. Apertou o sifão. O líquido desapareceu da agulha. No mesmo instante, porém, a pobre rapariga soltou um grito. Uma nódoa vermelha surgira-lhe diante dos olhos. E essa nódoa se transformou em chamas, em labaredas enormes, que a envolviam como se a tivessem precipitado numa fogueira. Um calor intenso, infernal, subia-lhe pelo corpo todo, e tudo era vermelho, tudo era fogo ante os seus olhos horrivelmente abertos. As mãos na cabeça, o pavor estampado na face, a infeliz gritou para a criada, que lhe fazia companhia: "Chamem meu marido, que eu estou morrendo!". Dizia, aos gritos, que estava sendo queimada viva, e rasgava as roupas, correndo pela casa, batendo-se nos móveis, pois que se achava completamente cega, não vendo senão línguas de fogo, chamas que se enroscavam no seu corpo, em furiosos turbilhões. Quando o ex-marido chegou, encontrou-a totalmente nua, o sangue a correr-lhe da testa. E descobriu, logo, a origem daquela crise: a agulha alcançara a artéria, entrando a morfina, diretamente, na circulação... Daí a sensação de incêndio dentro do qual se debatia, e a impressão de labaredas que a envolvessem e as tivesse diante dos olhos... Não podendo detê-la sozinho, chamou o ex-esposo dois empregados do prédio, que a subjugaram, e a amarraram, inteiramente despida, na cama, a fim de receber a única medicação aconselhável no caso, e evitar que se mutilasse na fúria com que se atirava pelo chão, pelos armários, pelas paredes...

- Coitada!

- Afinal, passou a crise. Dias e dias tinha ela permanecido entre a vida e a morte. Após as injeções sedativas desamarraram-na. Mas ficara com os braços feridos, as mãos feridas, o rosto ferido... O ex-esposo foi, então, de uma solicitude acima de todo louvor... Não a abandonou um só instante. Amor ou piedade, o certo é que ficou a seu lado até que a viu fora de perigo... Um dos primeiros cuidados da pobre moça, logo que recobrou os sentidos, foi ver o filhinho, que contava, então, cinco anos, e ficara com o pai, que o internara em um colégio em Botafogo. O desejo era legítimo, e, ao vê-la melhor, o pai foi buscar o menino. A desventurada, chorou muito, beijou muito o garoto, e, como fosse hora do almoço, o meu colega foi para a mesa, com outras pessoas da família que ali se achavam de visita, ficando a mãe e o filho no quarto próximo. De repente as Pessoas que se encontravam à mesa ouviram um grito: "Corram que eu estou matando meu filho! Corram, pelo amor de Deus!". Correram todos, e soltaram, diante do que viam, um grito de terror. A morfinômana tinha as mãos crispadas em torno do pescoço da criança, e estrangulava-a sem querer! Queria retirar as mãos, e não podia! Ao contrário do seu desejo, os dedos cada vez mais se contraíam, comprimindo as carnes do pequenito, que se tornara roxo, e cuja língua saía já da boca com um filete de sangue... "Salvem meu filho!... Matem-me, mas salvem meu filho!...", gritava a pobre. Bateram-lhe nas mãos até lhe ferirem os dedos. Quase lhe quebram os braços, com as pancadas que lhe deram, para libertar a criança. Quando o conseguiram, era tarde. Minutos depois, o pequenino morria...

O subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva não procurou ver o espanto que se estampava em meu rosto. Acendeu outro cigarro, e pôs-se de pé. Fiz o mesmo.

- Agora, - continuou - a desventurada senhora que ali viu, está boa. Mas a nossa vigilância em torno dela é enorme.

- Para que não volte à morfina?

O Dr. Miranda sacudiu a cabeça, lentamente:

- Não. Para que não corte, como tem tentado, as mãos com que estrangulou o seu filho!

E pusemo-nos a andar, de regresso, a cabeça baixa, em silêncio, um ao lado do outro.

Fonte:
Humberto de Campos. O Monstro e Outras Histórias.

Carlos Lúcio Gontijo (Pedra Literária)

Gosto de ler artigos de opinião e creio que eles nos conduzem à reflexão tão necessária em nosso dia a dia. As opiniões nem precisam estar de acordo com o que defendemos, pois o que importa é promover a evolução de nossa forma de pensar. Em 2007, quando o “Diário da Tarde”, fundado no dia 14 de fevereiro de 1931, fechou as portas e pôs fim a uma página em que desfilaram articulistas como Paulo Francis, Professor Aluísio Pimenta, Celso Brant, Professor Silveira Neto, poetisa e escritora Regina Morelo, Mário Clark Bacelar, Barbosa Lima Sobrinho, Fábio P. Doyle, Floriano Nascimento, José Carlos Alexandre e tantos outros, aos quais tive o prazer de editar e estar entre eles às quintas-feiras quando publicava o meu artigo na democrática e eclética página de opinião do velho, bom e saudoso DT, como era popularmente denominado pelos leitores.

Hoje, deleito-me com as edições do jornal “O Trem Itabirano”, onde posso encontrar muitos artigos semeadores de novas luzes em minha mente, carente do alimento proporcionado por considerações bem colocadas e que têm o mérito de me fazer situar diante de questões importantes para o desenvolvimento da coletividade como um todo. Confesso-me orgulhoso de estar entre os articulistas que compõem as linhas gráficas de “O Trem Itabirano”, que indubitavelmente representa uma publicação diferenciada, uma vez que, com o advento dos tabloides, os espaços para a inserção de matérias de opinião foram diminuídos, existindo publicações que abrem mão até do editorial, no qual poderiam expressar a sua visão socioeconômica.

A cultura de facilidades, em perfeita sintonia com o fast-food, incute-nos a ideia de que tudo deve vir embalado e pronto para consumo, erigindo entre nós a indústria de entretenimento, que pouco ou quase nada tem a ver com a definição de produto ou bem cultural de antigamente, pois dentro do prisma vigente não há lugar extenso para elementos culturais mais complexos, ainda que simples, como solicita a arte de qualidade e raiz. Não é à toa, portanto, que estejamos embebidos em tanta música ruim e tanta poesia desprovida de metáfora, que é a essência estrutural da arte poética.

Itabira tem tudo para se transformar em cidade literária, grafando nas pedras que o poeta Carlos Drummond de Andrade detectou existir nos caminhos da trajetória humana toda palavra e toda arte de sua gente e, claro, do povo mineiro. Explicitamente, a filosofia editorial do jornal “O Trem Itabirano” está dentro desse destino natural impregnado na atmosfera da cidade de Itabira, que tatuou nas páginas petrificadas de seu solo o desejo de manifestação e opinião sincera, tendo como meta elevar o nível de conscientização e cultura dos cidadãos, que então, por si mesmos, partirão em busca de dias melhores e, certamente, mais próximos da verdadeira materialização, pois dependentes da união construtiva entre irmãos dispostos a tomar em suas mãos o enredo da projeção do futuro que almejam para suas vidas.

Fonte:
O Autor
site: www.carlosluciogontijo.jor.br

Ciranda da Primavera (Seleção por Simone Borba Pinheiro) Parte 5

JOYCE LUAZUL
Primavera e Vida

 Primavera... sem demora!
 Primavera a inspirar
 Poemas e canções a embalar...
 A poesia flui, agora!

 Eterna melodia do coração!
 Pássaros e animais a festejar...
 Ela, com suas flores a perfumar,
 Quando vem, há comemoração.

 Quando se vai deixa seu olor
 Para lembrar que retornará um dia...
 Ao voltar semeará poesia e melodia:
 Momento de cantar poema de amor!

 Deixar fluir a saudade por onde passar...
 Como a vida tem tempo para ser vivida!
 Vida pode, em breve momento, ser perdida.
 Existência breve... eis a razão de hoje amar!
––––––––––––––––

JOYCE LUAZUL
Árvore na Primavera


 Primavera...das estações a mais bela
 Muitos dias do ano esperei por ela
 Árvore com folhas e flores revestida
 Que no inverno frio foi despida

 Árvore do amor por mim plantada
 Aguardo na Primavera sua florada
 Caminhando feliz por entre as flores
 Sigo relembrando todos os meus amores

 Vejo na árvore copada e florida
 As alegrias que oferece a vida
 Ser uma flor cor-de-rosa eu quisera
 Uma flor da árvore na Primavera

 Árvore com folhas e flores coloridas
 Na Primavera renascem suas vidas
 Sinto na alma também o renascer
 Fazendo a árvore da vida florescer
––––––––––––

LIGIA TOMARCHIO
Primavera Poema


Densos tapetes de folhas esquecidas
pretéritos sons, esvoaçantes cortinas
nuas árvores emolduradas pela retina
do tempo perene e repetitivo.

Derradeiro sonho outonal
desdenha o inverno
criando em si um eterno desejo
do imaginar cores e flores.

Memória viva, atenta
desperta involuntária paixão
um amar intenso a verdejar
nos campos e versos do poeta.

Ciclo da vida mensageira
não mais sussurra
eclode florida primavera
poema único da existência.
––––––––––––––––––––-

LINA ROCHA
Primavera


As cores invadindo o espaço
colorindo tudo sem embaraço
sob o perfume das flores
e o gorjear dos pássaros
os amores que se renovam
brincam nesse arco-íris
os momentos se tornam mais felizes
mais cheios de brilhos das matizes
a esperança que é sempre verde
brota nos corações como magia
trazendo um novo alento
para o renascer do dia
o céu espalha seu manto azul
refletindo pelas planícies
acalmando os dias difíceis
O sol aquece as emoções
que aos poucos criam raízes
e solidifica as relações
O desabrochar da primavera
abre todas as janelas
deixando sair aos poucos o bolor
dos longos dias frios do inverno
das noites escuras sem calor
––––––––––––––-

LORENZO YUCATÁN
A Primavera Chegou...


Enfim, chegou a estação das flores!
Minh'alma canta... e não é pra menos!
Vejo, da natureza, seus lindos acenos;
Novos tempos, de nuances multicolores.

Tenho a sensação do paraíso a meu redor...
Há algo de diferente... Um convite ao amor.
Assim como a primavera seduz o beija-flor,
Nela, a paixão entre os amantes fica maior.

Quero ficar mais a teu lado, a partir de agora,
Passear de mãos dadas pelos bosques e jardins,
Feliz, apanhar e te oferecer violetas e jasmins,
Ouvindo o canto dos pássaros, admirando a flora.

Nestes três meses floridos que temos à frente,
Contigo, pretendo namorar no banco da praça,
Apreciar teu jeitinho de mulher, cheio de graça,
E que tudo faz para me ver e deixar contente.

Nas noites primaveris, já nos vejo abraçadinhos,
Pertinho da fonte luminosa e sob seu hídrico véu,
Desgarrado dos jatos d'água que procuram o céu,
Uma cortina de respingos que nos deixa molhadinhos.
––––––––––––––––––––––––––

LUIZA DE MARILLAC BESSA LUNA MICHEL
A Rosa e o Espinho


Vida curta e vã
Beleza e Alteza
Numa breve manhã

Galho selvagem
Estupendo rebento
Em espinhos tantos

Pétalas são alvas
Deslizando sob mãos
Sem tocar nos espinhos

Assim é a vida
Doçura e fel
Ventura e Desilusão

Rosa aventureira
Deste meu coração
Atravessa a vida

Ferindo o cultivo
Floresce tão amada
Fenece tão pisoteada...
––––––––––––––––––––

MANUELA NEVES
Primavera


Nascida de vida renovada
Carente de festas e afectos
És ardente Primavera em flor
A estação que me fez renascer
e tornar flor

Magia de momentos breves
Movimentos de vida multicor
És Primavera fonte inesgotável
Fé no amanhã, eterno amor.
––––––––––––––––––––-

MARCIAL SALAVERRY
Estamos na Primavera


Primavera, dita do amor, a estação,
estimula o amor no coração,
para a alma, dá mais vida,
para vida, mais amor,
para o amor, mais calor...
A Natureza se enche de cores,
com a explosão das flores,
perfumando o ar com seus odores,
estimulando corações enamorados,
a seus amores apaixonados...
Um bouquet florido...
Um desejo declarado...
Um amor acontecido...
Um prazer desejado...
Com um ramo de flores,
conquistam-se amores...
Com uma simples rosa,
um verso, uma prosa,
declaramos nosso amor...
Assim é a Primavera, enchendo a vida de cor...
Assim ficam nossos corações, prontos para amar
a quem seu amor nos venha declarar...
––––––––––––––––––––––––––––-

MARGARET PELICANO
Seja Bem Vinda Primavera


Dos tinteiros mais imprecisos,
espalhou-se em cores a primavera!

Do artista mais impressionista,
expressou-se em formas a primavera!

Da vontade mais narcisista
surgiram as flores e seus olores...

Assim, como quem não quer nada,
vão chegando e abafando
parecem longas saias,
com a terra se misturando,
nos galhos se espalhando
ó primavera rendada...

Das janelas é o decote,
de onde saltam os seios da natureza,
jorrando belezas tantas
que quem tem olhos para ver não se cansa
de acordar e ver o amanhecer e o anoitecer...

São dias e dias de belezas,
frescores, correntezas de bem viver...
Seja bem vinda primavera,
mais uma vez doce quimera,
a amaciar a caminhada
dos seres na morada Terra!

Fonte:
Seleção por Simone Borba Pinheiro. in http://www.familiaborbapinheiro.com

Selma Lagerlöf* (O Hóspede da Noite de Natal)

Há muito tempo, um grupo de boêmios e de artistas havia encontrado refúgio numa velha mansão da província de Varm-land e sob o nome de cavaleiros de Ekeby, viveram ali uma vida desenfreada de divertimentos e aventuras.

Um deles chamava-se Ruster e era um jovem músico que tocava flauta.

De origem humilde, pobre, necessitando de um lar e de família, conheceu tempos muito duros quando aquele alegre bando se dispersou. Já não tinha cavalo, nem carros, nem peliça, nem um bom cesto carregado de provisões. E teve de ir a pé de casa em casa, com uma trouxa na mão, a roupa embrulhada num lenço, para melhor dissimular o estado do colete e da camisa. Trazia toda a fortuna nas algibeiras: uma flauta desarmada, uma cabaça de aguardente e a pena.

Se os bons tempos não tivessem mudado, um copista de música como êle não teria mãos a medir, mas, ai! a gente de Varmland se desinteressava cada vez mais das melodias e das lindas árias. Dependuravam nos celeiros as guitarras, com as suas fitas desbotadas e as cravelhas já gastas, bem como as buzinas de caça, com as borlas meio desfiadas e o pó amontoava-se em camadas espessas sobre a caixa dos violinos. E à medida que a flauta e a pena de Ruster trabalhavam menos, a garrafa, que nunca o abandonava, trabalhava mais. Tornou-se um bêbedo incorrigível. Embora fosse recebido como um velho amigo, a sua chegada produzia uma certa contrariedade, e a sua saída, alegria. Estava sempre cheirando a álcool, que exalava de todos os poros, e logo ao segundo ponche, os olhos já turvos, entabolava as conversas mais desagradáveis. Era o eterno pesadelo das casas hospitaleiras.

Dias. antes do Natal, chegara a Lofdala, onde vivia a grande violinista Liliécrona, que fora também cavaleiro de Ekeby e um dos mais entusiastas daquela vida desregrada. Depois Liliécrona voltara para junto da família, e nunca mais a deixou. Quando Ruster lhe apareceu pedindo trabalho, no meio de toda a azáfama para os preparativos da festa, Liliécrona deu-lhe alguns trechos de música para copiar.

— Terias feito melhor se o tivesses deixado ir — disse-lhe a mulher; — vai prolongar o seu trabalho de tal forma que seremos obrigados a tê-lo conosco durante o Natal.

— Em alguma parte há de o passar — respondeu Liliécrona.

E ofereceu de beber a Ruster, fazendo-lhe companhia e recordando os seus dias de boêmia. No fundo, a convivência de Ruster incomodava-o um pouco e entristecia-o, mas nada queria dizer porque, para êle, as recordações de velhos amigos e os seus deveres hospitalares eram coisas sagradas.

Havia três semanas já que na casa de Liliécrona se faziam preparativos para a festa do Natal; há três semanas que tudo andava numa roda-viva, numa atividade febril. Os olhos já estavam vermelhos e cansados de fabricar tanta vela, as mãos geladas de tanto bater cerveja no lavadouro, e, lá embaixo, na tenda das provisões, não se parava um instante de salgar carne e de fazer salsichas. Mas tanto os criados como a dona da casa suportavam, sem resmungar, aquele acréscimo de trabalho, porque sabiam que, finda a tarefa e chegada a noite santa ia baixar do céu um suavíssimo encanto que abençoaria a todos: que as graças e os ditos alegres lhes saltariam naturalmente dos lábios, os pés iriam ganhar asas nas danças da terra e as antigas árias e as velhas modas esquecidas irromperiam dos recantos mais escuros da memória. E que alegres se sentiriam então!

Mas, quando viram chegar o jovem Ruster, tanto a dona da casa, como as criadas e as crianças, todos pensaram que êle lhes vinha estragar a noite de Natal.

A presença de Ruster pesava-lhes no coração. Receavam que Liliécrona ao impulso de lembranças revolvidas sentisse despertar a sua vocação nômade e que o grande violinista, que outrora não podia estar muito tempo ao lado dos seus, se perdesse novamente para a família. E como se fizera amar naqueles dois anos que tiveram a felicidade de o possuir! Dava-se a todos, era a alma da casa, sobretudo na Noite de Natal. Sentava-se então perto da lareira, não no sofá ou na cadeira de balanço, mas num grande banco, já poído pelo uso e pelos anos, umas vezes contando histórias, outras, executando música, no meio de toda a família atenta; pendente dos seus lábios e dos gestos, corria às aventuras mais loucas e galopava através do mundo até às estreias. E a vida se fazia grande, formosa e rica perante a irradiação daquela alma. Amavam-no assim como se ama a noite de Natal, como se ama o sol e a primavera. Mas a presença do jovem Ruster vinha-lhes comprometer a festa. Todas as suas canseiras para nada serviriam se o espírito do dono se afastasse de casa. E, depois, quem podia olhar com calma para aquele bêbedo sentado à mesa no meio da família honrada e piedosa, cuja alegria êle estragava?

Na véspera de Natal, pela manhã, Ruster tinha acabado de copiar a música. Falou vagamente em partir, embora tivesse intenção de ficar. Sob a influência da má vontade geral, Liliécrona respondeu, em termos também vagos, que talvez Ruster fizesse melhor em passar o Natal onde estava. Mas Ruster era orgulhoso e suscetível; retorceu os bigodes e sacudiu os cabelos que se lhe erguiam sobre a cabeça como uma nuvem negra. Que queria dizer Liliécrona? Acaso êle, Ruster, estaria incomodando? Em todas as casas de ferreiro da região o esperavam com cama feita e o copo cheio. Tinha tanto trabalho e tantos convites que não sabia por onde começar.

- Muito bem, — disse-lhe Liliécrona — não te reterei.,

Depois do almoço, o jovem Ruster pediu uma peliça e uma pele emprestadas, mandaram atrelar um trenó e recomendaram ao criado que devia conduzi-lo que fustigasse bem o cavalo, porque o tempo ameaçava nevar.

Ninguém ali acreditava que Ruster fosse gostosamente recebido debaixo de qualquer teto; mas afastavam de si aquele pensamento desagradável; regozijando-se por se verem livres de tal personagem.

— Quis ir-se embora — diziam — ninguém o obrigou. — E agora, alegremo-nos.

Todavia, quando, por volta das cinco horas, se reuniram em torno da árvore para dançar, Liliécrona, preocupado e taciturno, não se sentou sobre o escabelo maravilhoso nem tocou na tijela do ponche. Não se recordava da menor dança e o seu violino não estava afinado. Teriam de cantar e dançar sem êle. Então a mulher ficou inquieta c as crianças começaram a dar mostras de agitação. Tudo correu mal: o serão do Natal foi um fracasso completo. O arroz pegava-se ao fundo das caçarolas, e as candeias espirravam e cuspiam em lugar de arder; a lenha fumegava e nas dependências da casa penetravam golfadas de ar glacial. O criado que acompanhara Ruster, ainda não tinha regressado. A cozinheira chorava e as criadas brigavam umas com as outras. De repente, Liliécrona reparou que não tinham posto no pátio o molho de trigo para os pássaros e queixou-se amargamente daquelas mulheres, que esqueciam as tradições antigas e não tinham coração.

Mas todas compreenderam que, muito mais do que nos pássaros, era no jovem Ruster que êle pensava, arrependido de o ter deixado partir na Noite de Natal. Meteu-se no seu quarto, fechando a porta, e ouviram-no tocar no violino árias estranhas, como nos tempos passados, quando sentia a casa estreita demais para êle; árias cheias de provocação e de mofa, plenas de torturante nostalgia.

A mulher pensava: "Amanhã ir-se-á embora, se Deus não fizer um milagre esta noite. E aqui está como a nossa falta de hospitalidade produziu a desgraça que tanto queríamos evitar."
*

Entretanto o jovem Ruster corria sob a tempestade. Andou de porta em porta pedindo trabalho, mas não foi recebido em parte alguma. Nem sequer o convidaram a descer do trenó. Uns tinham a casa cheia de convidados; outros tinham de passar a noite em casa de pessoas amigas. Poderiam suportá-lo durante alguns dias, em outras ocasiões, mas não numa noite de Natal. Em todo o ano não há senão uma e as crianças preparam-se desde o outono para a gozar. Como sentar aquele homem à mesma mesa que as crianças? E agora, que deu para beber, não sabiam onde alojá-lo. O quarto dos criados não era suficientemente bom para êle e o dos hóspedes era-o demasiado. E Ruster continuava o seu caminho, açoitado pelos turbilhões de neve. O bigode, molhado, caía-lhe tristemente e os olhos injetados já não viam; mas pouco a pouco, os vapores da aguardente que tinha bebido dissiparam-se.

Admirado do que lhe sucedia, começou por perguntar a si mesmo qual seria a razão disto. Seria possível que ninguém tivesse querido recebê-lo? E, de repente, viu-se a si mesmo; viu-se tal qual era: rebaixado, uma verdadeira ruína, um miserável, que ninguém acolhia de boa vontade.

Acabou-se tudo — disse. — Nem música para copiar, nem árias de flauta! Ninguém no mundo tem necessidade ou compaixão de Ruster.

As rajadas sucediam-se, levantando colunas de neve, que arrastavam para o meio dos campos, num rodopio vertiginoso. Depois, cessavam, e a neve, terminada a sua dança, tornava a cair, enchendo o vazio dos fossos.

— Assim é a vida — disse Ruster consigo. — Dança–se e, depois da dança, vem a queda. Somos um pobre floco que outros flocos vêm cobrir. Mas quando chega o momento, então é que são as queixas e as lágrimas. Agora é a minha vez!

Não o preocupava saber para onde o criado o levava; para onde senão para a morte? O jovem Ruster não maldizia a flauta, nem a alegre boêmia dos tempos passados, não pensava em que teria sido melhor para êle cultivar a terra ou trabalhar em peles para calçados. Todavia lamentava não ter sido até ali senão um instrumento usado, cuja alegria nunca mais deixaria de soar falso. Não acusava ninguém. Quando a corrente está partida e a guitarra rachada, a gente desfaz-se delas. Sentia-se muito ruim, muito só, inteiramente inútil, completamente perdido: o frio e a fome matá-lo-iam naquela noite de Natal.

O trenó deteve-se, viu luzes à sua volta e ouviu vozes carinhosas. Algumas pessoas ajudaram-no a entrar numa sala bem aquecida, e fizeram-lhe beber chá quente, ao mesmo tempo que lhe tiravam a peliça; e umas mãos tépidas esfregavam-lhe os dedos enregelados e saudações de boas-vindas zuniam-lhe aos ouvidos. Sentiu-se tão atordoado que demorou pelo menos um quarto de hora a reconhecer que se encontrava em casa dos Liliécrona.

O criado, cansado de correr duma herdade para a outra, debaixo da tempestade, havia decidido regressar à casa.

Mas muito menos compreendia Ruster o acolhimento de que era alvo. Não lhe ocorreu que a sua hospedeira, cheia de compaixão ante a idéia da triste viagem que havia feito e de que todas as portas se lhe tinham fechado naquela noite de festa, esquecera as suas próprias preocupações.

Liliécrona, sempre metido no seu quarto, desconhecendo o regresso de Ruster, continuava a tocar no violino a sua música louca e selvagem.

Ruster estava sentado na sala de jantar com as crianças. Os criados, que costumavam sentar-se ali na noite de Natal, tinham ido para a cozinha como que em busca de um refúgio contra o aborrecimento que nessa noite se apossara dos seus amos. A mulher de Liliécrona aproximou-se de Ruster:

— Meu marido tocará durante toda a noite — disse — e eu tenho de tratar da ceia. Os pequenos estão sós. Quer você, Ruster, tomar conta dos dois menores?

Ruster não estava habituado a lidar com crianças. Não as encontrava nem debaixo das tendas, nem nas estalagens, nem nas orgias, nem nos caminhos da boêmia. Sentia diante delas uma grande timidez e não sabia o que dizer-lhes. Sacou da flauta e deixava-os mexer nas chaves e nos buracos. O menor, que tinha quatro anos, e o maior, que tinha seis, receberam a sua primeira lição da flauta e mostraram-se vivamente interessados.

— Este é o dó — disse — e este, o ré.

E, pegando numa folha de papel, desenhou as notas.

— Não, não! — exclamaram eles. — Não é assim que se escreve dó.

E correram para buscar o alfabeto.

Então Ruster fêz-lhes perguntas acerca das letras. Sabiam umas, mas ignoravam outras. Seus conhecimentos não eram ainda muito extensos. Ruster, interessado no caso, sentou-os nos joelhos e julgou de seu dever completar-lhes a instrução. A mãe ia e vinha da cozinha para a sala de jantar, e escutava cheia de surpresa. Os pequenos riam, repetindo docilmente o abecedário. Mas pouco a pouco a atenção de Ruster fatigou-se, a alegria desvaneceu–se-lhe as idéias, que se tinham agitado dentro dele sob a tempestade, vieram-lhe à mente. Sim, tudo aquilo era bom e encantador, mas passageiro; nem por isso deixara de estar menos acabado e morto. E, de repente, levou as mãos à cara e começou a chorar.

A mulher de Liliécrona acorreu solícita:

— Ruster – disse — compreendo-o bem; você julga que já não tem nada a fazer no mundo. A música dá pouco e a aguardente arruína-o. Mas nem tudo está perdido.

— Oh, sim! — soluçou o jovem flautista.

— Vejamos: não seria melhor que você ensinasse as crianças a ler e a escrever? Ficar sentado junto delas como nesta noite? E quem quisesse dedicar-se a esta tarefa, não seria bem recebido em toda parte? Não são as crianças instrumentos mais sensíveis do que a flauta e o violino? Olhe bem para elas, Ruster.

— Não me atrevo »— murmurou êle, porque lhe parecia doloroso contemplar as suas almas puras através dos seus formosos olhos.

A mulher de Liliécrona começou a rir, com um riso feliz e claro.

— Em breve se acostumará, Ruster. Este ano ficará em nossa casa como mestre-escola.

Liliécrona, que ouvira a risada, saiu do quarto.

— O que há?

— Não há nada — respondeu-lhe a mulher. .— Foi Ruster que voltou e já o levei a comprometer-se a que ensinaria as crianças a ler e a escrever.

— Fizeste isso? — disse em voz baixa — fizeste isto? Mas, êle prometeu. . . ?

— Não; não prometeu nada. Mas compreenderá que é preciso privar-se de muitas coisas, quando todos os dias a gente tem de encontrar-se com os olhos das crianças. Se não fosse Noite de Natal talvez eu tivesse hesitado ou voltado atrás. Mas, quando Deus não receou pôr o seu filho, o seu próprio Filho, entre nós, pecadores, penso que posso dar aos meus filhos a ocasião de salvar uma alma.

Liliécrona não respondeu nada, mas todas as rugas do seu rosto se distenderam e tremeram. Inclinou-se para a mulher, pegou-lhe na mão e beijou-a piedosamente.

Depois gritou:

— Meninos, venham todos aqui e beijem a mão de sua mamã.

E em casa de Liliécrona houve uma noite de Natal muito alegre e feliz.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
*Prémio Nobel de Literatura e sendo talvez o autor mais apreciado das letras escandinavas contemporâneas, Selma Lagerlöf tem hoje um renome universal.
    Nascida em Marbacka, na Suécia, a 20 de novembro de 1857, passou a infância e parte da juventude na província onde nasceu, terra rica em costumes e tradições.
    Aos vinte e dois anos mudou-se para Estocolmo onde freqüentou a Escola Normal, graduando-se professora. Como tal, nenhum espírito houve, melhor dotado que o seu, para dirigir-se ã alma das crianças incutindo-lhes o amor da Pátria e da Humanidade.
    Seu primeiro livro, "A Saga de Gosta Berling" apareceu em 1891, obtendo grande sucesso e alcançando inúmeras edições, o que assegurou à sua autora a glória e a fortuna.
    Selma realizou várias viagens pela Europa e pela Ásia e, em 1907, teve a satisfação de ver celebrado o cinqüentenário do seu nascimento com grandes festas, às quais se associou toda a Suécia e particularmente as crianças das escolas.
    "A viagem maravilhosa de Nils Holgerson", concebido a princípio como livro para o ensino de geografia, é hoje considerado como uma das obras-primas da literatura infantil.
    Em 1909 Selma foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura e em 1914 ingressou como membro da Academia Sueca.
    Selma é considerada a verdadeira herdeira e continuadora da geração pré-naturalista e uma viva representante da comiseração ante as calamidades sociais.
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Fonte:
http://www.consciencia.org

Folclore dos Estados Unidos (O Legado do Povo Assiniboine)

Nos tempos antigos, eles tinham um belo costume de capturar um pássaro (1), para liberá-lo sobre a sepultura na noite do enterro, assim o pássaro carregaria o espírito do morto para o descanso celestial. E a sua ansiedade de resgatar os corpos dos guerreiros mortos em batalha, e a impossibilidade de deixar os velhos e indefesos para morrerem sozinhos no deserto, foi  o resultado de uma crença de que as almas daqueles que não receberam os ritos funerários vagariam inquietos e infelizes.

Pode-se facilmente imaginar que um povo que tanto amou o seu lar e reverenciou o túmulo de seus pais, ficaria indignado e com raiva, ao ver-se tratados desumanamente e tendo as relíquias sagradas dos mortos arrancadas e espalhadas com indiferença como se fossem pedras, ou ossos dos alces e os veados da floresta.

Foi este sentimento que muitas vezes os levou a atos de hostilidade, que aqueles que testemunharam atribuíram a eles grande crueldade e barbárie. Um exemplo ocorreu em Nova Inglaterra, onde as peles postas na sepultura da mãe de um Sachem foram roubadas e o cacique reuniu seu povo e os convocou para a vingança. Ele se inspirou em sua piedade filial, e os ditames de sua religião. Ele assim ele falou:

“Quando a última das gloriosas luzes de todo o céu ficaram debaixo deste mundo, e as aves ficaram em silêncio, eu começo meu repouso, como é de meu costume. Antes que os meus olhos se fechassem, julguei ver uma visão, em que meu espírito estava muito perturbado, e tremendo nessa visão triste o espírito gritou, “Eis, meu filho, aquele em que me alegrei, veja os seios que te amamentaram, as mãos que te mantiveram quente, e alimentaram. Podes esquecer de se vingar daqueles povos selvagens que desfiguraram o meu túmulo, desdenhando de nossa relíquias e honrados costumes? Veja agora que a sepultura de um Sachem é igual a de pessoas comuns, desfigurada por uma raça ignóbil. Tua mãe queixa-se, e implora tua ajuda contra essas pessoas gatunas, que recentemente invadiram a nossa terra. Se isso não for feito não vou descansar tranquila no meu eterno descanso.”

Essa tribo tem sido conhecida a visitar o local que havia habitado, em tempos antigos, e o lugar do enterro de seu povo, apesar de abandonado há eras, e passar horas em silenciosa meditação, e fará isso até que toda a esperança tenha morrido em seus peitos, ou a última gota de sangue seja derramada, não deixam a grama que cobre o pó de qualquer de seus parentes seja pisado por estranhos.

Sobre sua hospitalidade  a qual me referi várias vezes,  há muitas estórias para ilustrar esse traço de seu caráter. O egoísmo que continuamente vi naqueles que estavam ávidos de lucro, era algo que eles não poderiam compreender. Em muitas das suas aldeias, existia uma casa para hospedar visitantes, onde eles eram acomodados, enquanto os anciãos iam à coleta de peles para eles pudessem dormir, e comida para eles comerem, sem esperar recompensa.

Era rude para as pessoas ficar encarando os forasteiros quando eles passavam nas ruas, e  eles tinham tanta curiosidade quanto os brancos, mas eles não ficariam felizes em se intrometer entre eles e examiná-los. Eles, às vezes, escondiam-se atrás de árvores, a fim de olhar para estranhos, mas nunca se olhou abertamente para eles. Sua respeitosa atenção aos missionários era freqüentemente o resultado de suas regras de polidez, como é uma parte do código do índio, que cada pessoa deve ter uma audiência respeitosa.

Seus conselhos tem uma regra de decoro, e nenhuma pessoa é interrompida durante um discurso. Alguns índios, depois de respeitosamente ouvir um missionário, pensaram que eles deveriam relatar algumas de suas lendas. Mas o bom homem branco não pôde conter a sua indignação, e chamou-as de fábulas tolas, enquanto afirmava que o que ele tinha dito a tribo era uma verdade sagrada.

O índio, por sua vez, se ofendeu e disse: “Nós escutamos suas histórias. Porque você não ouvir as nossas? Você não sabe nada sobre as regras de civilidade!”

Em outra estória, um caçador, em suas andanças por presas, acabou em uma assentamento de brancos na Virgínia, e em virtude da inclemência do tempo, buscou refúgio na casa de uma agricultor, que ele viu na porta de casa. Foi recusada a sua entrada na casa. Estando ele com muita fome e sede, pediu um pedaço de pão e um copo de água fria. Mas a resposta a pedido foi:

“Não, você não terá nada aqui. Vá embora cachorro índio!”

Alguns meses depois, este mesmo fazendeiro se perdeu na mata, e depois de um dia cansado de andanças, chegou a uma cabana indígena, em que ele foi bem acolhido. Perguntando sobre a distância mais próxima de um assentamento, e encontrando-se longe demais para ele pensar em ir naquela noite, ele perguntou se ele poderia pernoitar. Muito cordialmente os donos da casa responderam que ele tinha liberdade para ficar, e todos eles estavam a seu serviço. Deram-lhe comida, eles fizeram uma fogueira para animar e aquecê-lo, e lhe deram pele de veado limpa para servir de cama, e prometeram conduzi-lo no dia seguinte em sua jornada. De manhã, o caçador índio e o fazendeiro partiam através da floresta. Quando chegaram à vista de uma habitação do homem branco, o caçador, antes de ir embora, voltou-se para seu companheiro, e disse: “Você não me reconhece?”

O homem branco foi tomado por horror que ele tinha ficado em poder de quem ele tinha maltratado a um tempo atrás, e esperava agora a experimentar a sua vingança. Mas, quando começava a pedir desculpas, o índio interrompeu, dizendo:

“Quando você ver pobres índios desmaiando por um copo de água fria, não lhes diga mais uma vez: “vá embora, seu cachorro índio” e voltou para suas terras.

Qual deles foi mais cristão e seguiu mais o preceito que dizia “Na medida em que vos fizestes vos ao menor destes, o fizestes para Mim? “
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Nota:
(1)
Os pássaros são ligados a jornada da alma depois da morte. Para as tribos norte-americanas, soltar um pássaro durante o enterro, significa que ele está levando a alma do morto para o seu repouso eterno.


Fontes:
http://www.mythencyclopedia.com/Be-Ca/Birds-in-Mythology.html
Texto em português disponível em http://casadecha.wordpress.com

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) IX

foi mantida a grafia original.
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À HORA DO SILÊNCIO

Eu quis ontem sonhar, sentir como um romântico
A doce embriaguez do pálido luar,
Ouvindo em pleno azul passar o imenso cântico
Dos astros no seu giro e em sua luta o mar!

A cidade dormia o sono dos devassos;
Aquele sono turvo, infecto e sensual:
E a lua, antiga fada, erguia nos espaços
Tranquila e sempre ingénua a fronte de vestal!

E sobre a quietação das coisas vis e exóticas
Sentiam-se as febris, cruéis respirações,
Dos tristes hospitais e das virgens cloróticas,
Dos amantes fatais da febre e das paixões!

A noite era em silêncio, a atmosfera doce
E ria a natureza aos beijos dum bom Deus.
De súbito escutei, ao longe, o quer que fosse
Dum canto que supus então baixar dos céus!

Atento ao vago som, porém, a pouco e pouco
Senti que era uma voz disforme e sensual,
Soltando uma canção naquele acento rouco
Da triste inspiração alcoólica e brutal! ...

O terna vagabunda, enamorada lua!
Enquanto ias assim, diáfana e sem véu,
Uma triste mulher passava, então, na rua
Cuspindo uma porção de infâmias para o céu!

Eu quisera depois das lutas acabadas,
Na paz dos vegetais adormecer um dia
E nunca mais volver da santa letargia,
Meu corpo dando em pasto às plantas delicadas!

Seria belo ouvir nas moutas perfumadas,
Enquanto a mesma seiva em mim também corria,
As sãs vegetações, em intima harmonia,
Aos troncos enlaçando as lívidas ossadas!

Ó beleza fatal que há tanto tempo gabo:
Se eu volvesse depois feito em jasmins do Cabo,
— gentil metamorfose em que nesta hora penso; -

Tu, felina mulher com garras de veludo
Havias de trazer meu espírito, contudo,
Envolto muita vez nas dobras do teu lenço!

O VELHO CÃO

Soltava ontem já tarde um velho cão felpudo
Uns doloridos ais,
Em frente dum palácio altivo, belo e mudo,
Cerrado aos vendavais.

Fazia pena ouvi-lo, o mísero molosso
Em seu triste chorar!
Era quase uma sombra: apenas pele e osso
E um vago, um doce olhar!...

Eis a sorte cruel do pobre que não come,
Dos míseros sem pão!
Em paga ainda em cima os vai tragando a Fome,
A negra aparição!

Latia o cão faminto. O frio era mordente,
Feroz, quase voraz!
E o pobre não sabia, enfim, que há muita gente
Que adora a santa paz.

Ora perto vivia uma galante rosa,
Etérea, virginal,
Que tinha um lindo colo, amava, era nervosa
E a quem fazia mal,

Aquele uivar sinistro; a ponto de em desmaios
Pender a fronte ao chão!
Saíram pois à rua impávidos lacaios
E foram dar no cão.

— Há no mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado,
— o povo sofredor,
Que às vezes vai ganir, com fome, o seu bocado
Às portas dum senhor.

O resto é velha história: ocioso é já dizer-vos
O fim que ela há de ter.
A Ordem, só de ouvi-lo, alteram-se-lhe os nervos
E manda-lhe bater!

AS VELHITAS

Eu não professo muito o culto das ruínas.
Prefiro uma oficina às velhas barbacãs;
Das velhinhas, porém, mirradas, pequeninas,
No entanto nunca insulto as prateadas cãs.

Deixá-las caminhar, curvadas, vagarosas,
Com seu bento rosário, os seus fofos beitões,
A rirem-se de nós, cruéis, maliciosas,
Sagazes comentando as nossas ilusões!

Ah, velhitas sem cor! Cabeças regeladas,
Vulcões de que só resta a cinza e nada mais:
Já fostes as visões; talvez as brancas fadas;
Prendestes vossos pés nos húmidos rosais;

Tivestes já no olhar os bons reflexos mágicos
Dos lagos ideais cobertos de luar;
As curvas sensuais, os belos dedos trágicos;
As rosas más do inferno, os lírios bons do altar!

Prendestes já cismando as frontes melancólicas
Nas varandas à noite, amantes dos Titãs
Do belo amor antigo! Ó Márcias das bucólicas!
E agora apenas sois as mães de nossas mães!

Segui vosso caminho: as graciosas fadas,
As belas da cidade, anémicas, gentis,
Sorriem-se, talvez, das fitas desbotadas,
Dos provectos chapéus, das galas que vestis!

Oh! Mostrando os troféus das vossas velhas rosas,
Dizei-lhes, a sorrir, das fúteis ilusões,
Que fostes já, também, galantes e nervosas
Mas destes isso tudo a vários corações!

Agora tendes pouco: apenas uns lamentos
Sentidos contra nós; queixumes sem valor!
E ao mundo importam muito os vossos testamentos
E importa muito pouco a vossa imensa dor!

Batei à grande porta: os belos dias vossos,
Velhitas, bem sabeis, não podem voltar mais!
A terra ide levar, enfim, nuns tristes ossos
O resíduo fatal das coisas virginais!

ÀS VISÕES

Pois que visões! Não cessa a rápida corrida
E seja noite ou dia,
Volteadoras cruéis! Vós sempre a toda a brida
Na minha fantasia!

Parti, quimeras vãs! Arcanjos ou madonnas,
Parti, que o mando eu,
Como um bando fatal de velhas amazonas
Que o circo aborreceu!

Levai tudo convosco: as setas mais a aljava;
O angélico sorriso:
E as asas de escumilha em que eu voava
À noite, ao paraíso!

Eu quero, enfim, dormir; passar as noites gratas
Sentindo-me feliz,
No sono maquinal dos velhos acrobatas
Depois das farsas vis!

Mais tarde hei de sorrir, ou escarnecer-me quase,
Lembrando-me — é verdade! -
Que onde eu supunha aurora havia apenas gaze
E uns traços de alvaiade.

Perdão se vos insulto! Oh, não, vós sois do empíreo,
Daquele meigo azul,
Que a todos tem sorrido: a Cristo no martírio,
Na dor, ao rei de mil;

E quando vos apraz, nas asas transparentes,
Mais alto ides por certo,
Do que as deusas gentis, aéreas, insolentes,
Que vemos voar tão perto!

No entanto podeis crer ó lúcidos fantasmas
Que o século, afinal,
Oculta no esplendor não sei que vis miasmas
Que fazem muito mal!

E quando vós passais, nas horas do mistério
De estrelas revestidas,
Bebemos nós, talvez, o aroma deletério
Das rosas corrompidas!

Oh sim! Parti depressa; erguei-vos deste abismo
Arcanjos ideais,
Deixando-nos colher a flor do realismo
Nas coisas triviais!

Melancolias do Outono! Eu quando além descubro,
Nas tristezas do campo, as filas mugidoras
Dos vagarosos bois que voltam das lavouras,
Compungem-me as cruéis desolações de Outubro!

Das orlas do poente, afogueado, rubro,
Ó moribundo sol! Com que poesia douras,
As formas triviais das cabecitas louras,
Que, às portas dos casais, de bênçãos também cubro!

Solta o canto final a orquestra da folhagem:
São horas de partir; apresta-se a viagem,
E as noites dos saraus hão de voltar mais belas!

Mas as vistas lançando às regiões saudosas,
Nos esforços cruéis das tosses dolorosas,
Em bandos vão partindo as tísicas donzelas!

O VELHO MUNDO

Eu vejo em toda a Terra um vasto cemitério,
A necrópole imensa, a campa dos colossos,
Aonde em paz descansa o velho megatério,
Por entre a fauna morta, os carcomidos ossos!

E os grandes leviatãs dos primitivos mares!
Os tremendos répteis, cruéis, descomunais,
Celebram no silêncio as núpcias singulares
Dos seus resíduos vis, com ricos minerais!

E os esqueletos nus dos lívidos gigantes
Abraçam-se melhor; conchegam-se na cova,
Deixando um lugar vago aos velhos elefantes
Que vão fugindo à luz da natureza nova!

Também no mundo interno as almas vão seguindo,
Na corrente da vida, em mil circulações;
E da consciência humana o largo abismo infindo
Oculta, há muito já, disformes criações!

Elas dormem na sombra imensa do passado
Aonde em breve hão de ir nos transes doloridos,
A velha Realeza e o trémulo Papado
Sem forças descansar os corpos corrompidos.

Depois virão mais tarde as gerações futuras
E os dois espectros vãos da sombra hão de evocar,
Bem como a nossa voz, as grandes criaturas
Do mundo primitivo, obriga a despertar.

E as crianças terão seus nomes de memória,
Como exemplo, na vida, a todos os momentos;
E vê-los-eis de pé, nas páginas da história.
Grotescos, maquinais, pesados, sonolentos;

Fazendo-nos pensar; de espanto enchendo tudo;
Sofrendo o riso alvar do ingénuo e do plebeu,
Iguais ao mastodonte armado para estudo
E exposto às irrisões nas salas dum museu!

Eis a velha cidade! A cortesã devassa,
A velha imperatriz da inércia e da cobiça,
Que da torpeza acorda e à pressa corre à missa!
Baixando o olhar incerto em frente de quem passa!

Ela estreita no seio a velha populaça,
Nas vis dissoluções da lama e da preguiça,
E nunca o santo impulso, o grito da Justiça,
Lhe fez estremecer a fibra inerte e lassa!

E pode receber o beijo e a bofetada
Sem que sinta o rubor da cólera sagrada
Acender-lhe na face as duas rosas belas!

Somente dum sorriso alvar e desonesto,
As vezes, acompanha o provocante gesto
Quando soa a guitarra, à noite, nas vielas!
-

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos : Dilúvio de Papel) Parte 2, final

Sonho de um jornalista poeta

VII

Calou-se a musa, e envolvida
Em tênue vapor de rosa,
Qual sombra misteriosa
Nos ares se esvaeceu;
E de aromas divinais
Todo o éter recendeu.

Qual zunido do látego vibrado
Por mãos de algoz cruento,
Nos ouvidos troou-me aquele acento,
E me deixou de horror petrificado.
Já ia arrependido aos pés prostrar-me
Da irritada, frenética deidade,
Cantar-lhe a palinódia, e em triste carme
Pedir-lhe piedade!...
Em vão eu lhe bradava: “Musa, ó musa!
Não me castigues, não; atende, escusa
A minha estranha audácia;
Um momento isso foi de irreflexão,
Em que não teve parte o coração,
E não serei mais réu por contumácia.”

Mal dou um passo, eis no mesmo instante
Encontro por diante
Jornal imenso de formato largo,
Aos meus primeiros passos pondo embargo.
Vou desviá-lo, e em sua retaguarda
Encontro um Suplemento;
Porém, pondo-me em guarda
Para a direita opero um movimento,
E encontro frente a frente o Mercantil.
Para evitá-lo esgueiro-me sutil,
Buscando flanqueá-lo, e vejo ao lado
O Diário do Rio de Janeiro
Que todo desdobrado
Ante mim se apresenta sobranceiro;
Com brusco movimento impaciente
Me volto de repente
E quase que me achei todo embrulhado
No Diário do Rio Oficial.
Então compreendi toda a extensão
E força do meu mal,
E o sentido satânico e fatal
Que encerrava da musa a maldição.
Eis-me pelos jornais de todo o lado
Em assédio formal engaiolado!
Assédio, que depois foi um Vesúvio,
Que arrojou das entranhas um dilúvio.

Porém o sangue-frio inda não perco,
Co’a ponta da bengala
Romper procuro o cerco
Que obstinado em torno se me instala.
Sobre o inimigo intrépido me atiro;
Brandindo uma estocada
Varo o Jornal, e mortalmente o firo;
E de uma cutilada
Denodado rasguei de meio a meio
O Mercantil e o Oficial Correio;
Co’as botas ao Diário faço guerra,
E debaixo dos pés o calco em terra.
Mas ai de mim! em batalhões espessos,
Ao longe como ao perto,
Resistindo a meus rudes arremessos
O inimigo rebenta em campo aberto.
Debalde lhes desfecho denodado
Mil golpes repetidos;
Debalde vou deixando o chão coalhado
De mortos e feridos.
E quanto mais o meu furor se assanha,
Mais a coorte cresce e se arrebanha!

Bem como nuvem densa,
Eu vejo chusma imensa
De folhas de papel, que o espaço coalham,
Que lépidas farfalham,
Que trêmulas chocalham,
Nos ares se tresmalham,
E sobre a fronte passam-me, e repassam,
E em contínuo vórtice esvoaçam.
Aturdido procuro abrir caminho,
Demandando o pacífico aposento,
Onde refúgio encontre a tão mesquinho
E mísero tormento.
E espreitando a custo pelos claros,
Que entre as nuvens da espessa papelada,
Já me luziam raros,
Procuro orientar-me pela estrada,
Que me conduza à casa suspirada.

E através das ondas, que recrescem
A cada instante, e os ares escurecem,
De Mercantis, Correios e Jornais,
De Ecos do Sul, do Norte, de Revistas,
De Diários, de Constitucionais,
De Coalições, de Ligas Progressistas,
De Opiniões, Imprensas, Nacionais,
De Novelistas, Crenças, Monarquistas,
De mil Estrelas, Íris, Liberdades,
De mil Situações, e Atualidades;
Através de Gazetas de mil cores,
De Correios de todos os países,
De Crônicas de todos os valores,
De Opiniões de todos os matizes,
De Ordens, Épocas, Nautas, Liberais,
Do Espectador da América do Sul,
De Estrelas do Norte, e outros que tais,
Que me encobrem de todo o céu azul,
A custo rompo, e chego esbaforido
Ao sossegado albergue, e precavido
A porta logo tranco,
E de um só arranco
Com as escadas íngremes invisto.
Mas! oh! desgraça! oh! caso não previsto!
As folhas entre as pernas se embaralham,
E todo me atrapalham,
E quase de uma queda me escangalham.
Mas salvei-me sem risco, e subo ao quarto
Do meu repouso, e onde me descarto
De tudo que me zanga e me atrapalha.
Cansado já do excesso
De golpe me arremesso
Sobre o colchão de fresca e fofa palha;
Mas apenas encosto na almofada
A fronte afadigada,
Eis começa de novo o atroz vexame;
Como importunas vespas,
De folhas me acomete novo enxame,
Zumbindo pelo ar co’as asas crespas,
Agravando à porfia o meu martírio
A ponto de me pôr quase em delírio.

Já das gavetas
E dos armários
Surgem gazetas,
Surgem diários;

Uns do tablado
Lá vêm subindo,
Ou do telhado
Descem rugindo;

Dentro da rede
Sobre o dossel,
Pela parede
Tudo é papel.

Folhas aos centos
Pare a canastra,
E o pavimento
Delas se alastra.

Té as cadeiras
E os castiçais,
E escarradeiras
Parem jornais.

Saem do centro
Dos meus lençóis,
E até de dentro
Dos ourióis

Já me sentia quase sufocado
Do turbilhão no meio,
E já tendo receio
De ficar ali mesmo sepultado,
Para sair de trance tão amargo
Resolvi-me a de novo pôr-me ao largo,
Salto da cama, rodo pela escada
E procuro safar-me da rascada,
Já não andando,
Porém nadando
Ou mergulhando
Co’esse quinto elemento em guerra crua.
Cheguei enfim à rua
Que de papel achei toda inundada!
E bracejando
Espernegando
Entrei em luta acerba
Contra a enchente fatal, que me assoberba,
Até que a muito custo surjo à tona
Do horrendo turbilhão
Que túrbido se entona
E no mundo se arroja de rondão.
Às vagas meto o ombro,
Até achar dos céus a claridade.
Oh! céus! que cena horrível! oh! que assombro!
Em todo o seu horror e majestade
A mais triste catástrofe contemplo,
De que jamais no mundo houvera exemplo.
Fiquei transido de terror mortal,
Pois vi que era um dilúvio universal.

Das bandas do Oriente
Avistei densas nuvens conglobadas,
Que sobre o americano continente
Arrojavam camadas e camadas
De fofas papeladas.

E lá vinha de Times nuvem densa
Com um sussuro horrendo
No ar as pandas asas estendendo,
Derramando nos mares sombra imensa.
E após vinha em vastíssima coorte
O Pais, a Imprensa, o Globo, o Mundo,
O Este, e o Oeste, o Sul, e o Norte,
Esvoaçando sobre o mar profundo,
Jornais de toda a língua, e toda sorte,
Que no hemisfério nosso vêm dar fundo,
Gazetas alemãs com tipos góticos,
E mil outras com títulos exóticos.

Outras nuvens, também do sul, do norte,
Mas não tão carregadas, se encaminham,
E lentas se avizinham
Com horroroso frêmito de morte.
Da tormenta fatal recresce o horror!
Até do interior
Como um bando de leves borboletas
Lá vêm surgindo lépidas gazetas,
À desastrosa enchente
Fornecer seu pequeno contingente.
Julguei que sem remédio este era o dia
Da ira do Senhor; — pois parecia,
Que se abriam do céu as cataratas
E os abismos da terra, vomitando
Em borbotões, em túrbidas cascatas,
De hedionda praga o inextinguível bando.

Enquanto esbaforido luto, e ofego
Contra as ondas, que sempre recresciam,
Já sobre o farfalhante, imenso pego
As casas abafadas se sumiam.
Em torno a vista estendo,
E vejo então, que esse dilúvio horrendo
Já tendo submergido as baixas terras
Ameaçava os píncaros das serras.
E nem diviso barca de Noé
Que me conduza aos cimos de Arará!
O mal é sem remédio!... já perdida
Toda esperança está!...

Mas não!... eis voga além batel ligeiro,
Os fofos escarcéus assoberbando;
Impávida e com rosto sobranceiro
Uma ninfa gentil o vai guiando,
De angélica beleza;
E vi então... que pasmo! que surpresa!
Que a dona, dêsse nunca visto lago
Sem mais nem menos era
A ninfa linda e fera
Que ainda há pouco em um momento aziago
Aos sons de uma canção
Fulminou-me tremenda maldição.
Era-lhe barco a concha mosqueada
De tartaruga enorme,
Com engenhoso esmero trabalhada
De lavor preciosa e multiforme.
Com remo de marfim, mimoso pulso
Ao leve barco dá fácil impulso.
E enquanto fende as chocalheiras ondas
Desse pego, que em torno se lhe empola,
Vai cantando em estrofes mui redondas
Esta estranha e tremenda barcarola:


VIII

Já tudo se vai sumindo!...
Já desparecem as terras;
Pelos outeiros e serras
Sobem ondas a garnel...
E neste geral desastre
Somente a minha piroga
Ligeira sem risco voga
Sobre as ondas de papel!
Sobre estes estranhos mares,
Voga, voga, meu batel!...

Para a triste humanidade
Não resta mais esperança;
O dilúvio cresce, e avança,
Leva tudo de tropel!...
Já imensa papelada
As terras e os mares coalha;
Já o globo se amortalha
Em camadas de papel.
Mas sobre elas resvalando
Vai vogando o meu batel.

Pobre idade, testemunha
Desta pavorosa cheia
Que dos tempos na cadeia
Vê quebrar-se o extremo anel!...
Oh! século dezenove,
Ó tu, que tanto reluzes,
És o século das luzes,
Ou século de papel?!...
Sobre estas estranhas ondas,
Voga, voga, meu batel!...

Debaixo de teu sudário
Dorme, ó triste humanidade!
Que eu chorarei de piedade
Sobre teu fado cruel!
E ao futuro irei dizendo
Sentada na tua lousa:
— Todo o mundo aqui repousa
Sob um montão de papel! —
Meu batel, eia! ligeiro,
Voga, voga, meu batel!


IX

Calou-se, e a um golpe do ebúrneo remo
Impele a concha, que veloz desliza;
Eu nesse trance extremo,
Como quem outra esperança não divisa,
Meu afrontoso fim tão perto vendo,
A musa os braços súplices estendo.

“Perdão! perdão! bradei —; musa divina,
Recebe-me a teu bordo; — é o teu vate,
A quem sempre tu foste o único norte,
Que entre estas fofas ondas se debate
Entre as vascas da morte.”

Mas de minha fervente rogativa
Não fez caso nenhum a ninfa esquiva;
Sem ao menos a mim volver o rosto
As secas ondas corta;
Continuando a remar muito a seu gosto
Comigo nem se importa.
E ei-la que continua a cantarola
De sua endiabrada barcarola:

“Meus altares abjuraste,
Agora sofre o castigo,
Que eu não posso dar abrigo
A quem me foi infiel.
Morre em paz, infeliz bardo,
E sem maldizer teu fado
Fica p’ra sempre embrulhado
Nesse montão de papel!...”
Eia, rompe as secas ondas,
Voga, voga, meu batel!...


X

Fiquei aniquilado!...
Horror! horror! há nada mais cruel,
Do que morrer a gente sufocado
Debaixo de uma nuvem de papel?!
Mas eis que de repente
A mais atroz lembrança
O desespero me sugere à mente,
Que exulta em seus desejos de vingança.
Veio-me à idéia de Sansão o exemplo,
Com seus robustos braços abalando
As colunas do templo,
E sob suas ruínas esmagando
A si e aos inimigos
Para evitar seus pérfidos castigos.
“Pois bem!... já que esperança alguma temos,
O mundo, e eu com ele, acabaremos,
Mas não por esta sorte;
Morrerei; mas também tu morrerás,
Ó ninfa desalmada,
Porém um outro gênero de morte
Comigo sofrerás:
A mim e a ti verás,
E a toda tua infanda papelada
Reduzidos a pó, a cinza, a nada!”

Enquanto isto eu dizia, da algibeira
Uma caixa de fósforos tirava,
Que por felicidade então trazia;
E já chama ligeira
Aqui e além lançava
Com o pequeno archote que acendia;
Eis já o voraz fogo se propaga,
Como em madura, tórrida macega,
E co’as rúbidas línguas lambe e traga
A seca papelada que fumega.
Como Hércules em cima da fogueira
Por suas próprias mãos alevantada,
Eu com serena face prazenteira
Vejo lavrar a chama abençoada.
Espesso fumo em túrbidos novelos
Os ares escurece.
E a rubra labareda, que recresce,
Já me devora as vestes e os cabelos.
Em tão cruel tortura
Horrenda me aparece
Da morte a catadura,
E a coragem de todo me falece.
“Perdão! perdão! ó musa! ai!... a teu bordo...
O fumo me sufoca... eu morro...” acordo!...

XI

Ainda bem, que esse quadro tão medonho
Não foi mais do que um sonho.

Vocabulário de termos e expressões regionais e populares do Centro Oeste (Mato Grosso e Goiás) Q, R, S e T

Q

QUEIJEIRO (depreciativo), — Roceiro, matuto.

QUEIXADA:— Porco-do-mato: é o javali brasileiro. Anda em varas e estala os dentes em grande alarido. Não gosta do cheiro de urina.

QUÊNQUÊM — Formiga carregadeira, de porte menor que a saúva; não é cabeçuda.

QUENTAR — Esquentar; aquecer. Quentando sol; quentar fogo; quentar o de comer.

QUICÉ — Faca vagabunda, gasta, sem ponta.

QUITANDA — Doce seco, rosca, biscoito, bolo de qualquer farinha ou fécula.

QUIZILA — Antipatia.

R


RABINHA (pop.) — Caçarola de ferro estanhado.

RABO-DE-ÉGUA — Garrucha de carregar pela boca.

RABO-DE-TATU — Taca; relho.

RAPARIGA — Prostituta.

REINAR — Pensar. Eu já reinava que isto acontecia.

REJUME (corrup.) — Regime; hábito; costume.

REVIRÃO — Pala do vestido.

RIBA (pop.) — Lugar mais alto; em riba, para riba: em cima, para cima.

RIDICAR — Sovinar.

RINGIR — Ranger.

ROQUEIRA — Pedaço de cano enfiado numa vigota de madeira e com ouvido para escorva. Nas festas usa-se enfileirar centenas delas. Um vem com uma capanga de pólvora e vai pondo um tanto que serve em cada cano; um outro com um embornal de farinha de mandioca, daquela redonda, de grão, enche o restante do cano; um terceiro vem fazendo o rastilho de pólvora. Há uma foice na fogueira, avermelhando: chega-se a foice no rastilho e está feito o inferno.

ROXA — Morena.

RUA — Cidade. Moro na rua. Vou "na" rua.

S

SAPICUÁ — Embornal.

SAPIROCA — Tersol.

SAPITUCA — Fanico; ataque, crise histérica.

SARAPANTAR — Aterrorizar; assustar; amedrontar; espantar.

SARCEIRO — Barulho, reboliço.

SECA — "Sem seca", sem cerimônia. Indivíduo sem seca: afável, acessível.

SESTRO — Costume, vício.

SIRIRI — Mariposa de cupim.

SOCA — Sobra de fósforo aceso: "Dê-me a soca…"

SOPITADO — Abafado, agoniado, oprimido do peito.

SOPITAR — Sentir aflição, opressão interna.

SORTIMENTO — Em caçada, sortimento significa munição.

SUADOR — Pequeno’ acolchoado que fica entre o baixeiro e o arreio do animal.

SUÇUARANA — Onça parda.

SUFRAGANTE (corrupt.) — de flagrante) — "No sufragante" em flagrante.

SUNGAR — Levantar; erguer. Palavra muito empregada. Usa–se mais dizer: "erguer". "Levantar" não é tão usada como no interior paulista.

SURIAR — O mesmo que arear; arrasamento de um poço pela areia conduzida pela enchente: "O poço em que pescávamos suriou…"

T

TACA — Surra, pancada.

TAIPA — Muro ou parede de terra socada entre tábuas.

TAMBORETE — Assento tradicional no sertão, de três ou quatro pernas, com forro de couro cru.

TANAJURA — Saúva fêmea provida de asas.

TEIRÓ — Antipatia.

TENDA — Pequena oficina de ferreiro.

TIMBA — Prenhez; ventre crescido.

TIMBÓ — Cipó cuja infusão, aplicada no pêlo dos animais, extermina os parasites. Batido na água do rio intoxica os peixes, aturdindo-os.

TINHOSO — Diabo, capeta.

TIU — Cão.

TIÚ — Lagarto "teiú".

TOADA — Marcha regular do animal.

TORUMBAMBA — Barulho, briga com pancadaria; confusão.

TOUÁ — Tabatinga, argila clara e liguenta.

TRABALHAR — Palavra de cangaço, que significa matar ou sacrificar alguém.

TRAIA — Total de utensílios para um determinado serviço: traia de pescaria: linhas, anzóis, tarrafa, rede etc. (tralha)

TRAIÇÃO — Combinação secreta entre roceiros para, juntos, prestarem serviço de derrubada, capina etc, a um outro roceiro. Chegam de improviso: é a "traição".

TREM — Coisa; qualquer objeto concreto ou abstrato. Este termo é largamente empregado em Goiás. "Estou com vontade de comer um trem".

Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Clevane Pessoa (Parábola em Versos: A Flor Dourada e o Pássaro Verde)

Passava um pássaro verdíssimo por um vergel variado ,
quando viu lá em baixo, o glitter de uma flor aberta,
cor de ouro fosco, calma , a aromatizar seu entorno.
Chamou-a. Perguntou-lhe mil perguntas e ela as respondeu.
Ela indagou daqueles voos, a ela desconhecidos e ele falou
de tudo que o preocupava, de seus sonhos, desejos , im/possibilidades.

De longe, dialogavam , ela fremia, a escutar encantada,
a tatalar asas de ternuras, carente e cansado de voar sozinho.
Flor, abriu pétalas e recebeu eflúvios, dialogaram solidões
e ensaiaram alegrias, a esperança derramou todos os tons
de seus verdes mais belos, nas penas dele, nas sépalas e folhas dela.
Por um tempinho, acreditaram ser possível semear felicidade perene,
nem sequer pensaram que tudo não passava de um sentimento fugaz,
de cristal puríssimo, embora, mas que poderia quebrar-se ...

Ouviu o canto da ave que prometia em breve, achegar-se
para melhor sentir-lhe aroma e formas, e desejou-lhe felicidades
na jornada ensaiada e que ele esperava cumprir.

As luas passavam, ciclicamente , pela flor saudosa,
seu tempo se encurtava , mas ela olhava para o alto
crendo que o pássaro verde retornaria para os ósculos sonhados.

Até que um dia, insone, numa noite linda e fresca,
relembrava as promessas trocadas , enganosas sem ser falsas.
Quando ouviu chamá-la a velha coruja guardiã dos corações feridos
que lhe disse:-“ Valeu, enquanto durou , enquanto acredistaste...
Valeu porque tuas palavras foram bálsamo e o curaram...
Agora, sê forte e ouve, acabo de saber por uma viajante mariposa ,
que teu amado platônico , viaja agora com uma bela pássara
- e buscam o melhor espaço ,para fazer seu ninho...”

A doce flor estremeceu , magoada e triste, mas não surpresa:
“Eu já sabia “, murmurou à coruja sábia , que girando a cabeça para melhor
olhá-la, retorquiu:-“Não, florzinha, não sabias, apenas adivinhavas
que o amor precisa de zelo e de presença, que até pode sobreviver
à distância, mas quando já está argamassado num espaço de tempo
ideal para ser forte e perene, quando houve um cotidiano a imprimir
rememórias e saudade de cousas vividas , experenciadas com o néctar
da boa convivência. Acorda, vê outras plantas a teu redor, acorda para o real.”

A flor dourada entendeu a mensagem, mas a dor rasgou-a de angústia
e ela desprendeu-se das sépalas, caiu ao solo, e preparou-se para fertilizar
a terra daquele jardim tão grande, e renascer um dia, sem nenhum pesar...

Fonte:
A Autora

Aparecido Raimundo de Souza (O “Pingado”)

TODO SANTO DIA EU SAIA DO serviço às 06h30min em ponto e dava uma paradinha na padaria para comprar pão. E sempre escutava a garçonete que rodava no salão, por entre as mesas, gritar, espavorida, para os rapazes que ficavam atendendo aos seus pedidos por detrás de um balcão imenso:

-... “Solta um pingado... Mesa cinco...”.

Não passava um minuto e ela voltava à carga:

-... “Um pingado para a mesa oito. Outro para a doze...”.

Aquilo me intrigava. O que deveria ser o tal do “pingado?”.

Como meu tempo era demasiadamente curto, os minutos contados, passava a mão no embrulho, pagava meio que correndo e voava para o ponto. Se perdesse o ônibus das 06h40min, só dali uma hora encostaria outro. Para quem passou a noite toda acordada, e, pior, de pé, andando para lá e para cá, dentro de um galpão imenso, cuidando de um bando de rapazes sobre sua responsabilidade, quando dava o final do expediente, só via pela frente o caminho da roça. Bater cartão, tirar a farda do trabalho, correr para o ponto e embarcar no 06h40min.

Quanto mais rápido no sossego do lar, mais tempo para relaxar. Antes, vinha o ritual de um banho refrescante e bem demorado para espantar a inhaca, e, em seguida, o desjejum com café feito na hora, misturado ao leite, acompanhado de pão, queijo, biscoitos de polvilho e, um variado de guloseimas extras que minha esposa gostava de preparar. Barriguinha cheia e satisfeita, a cama quentinha e solícita, abria os lençóis em braços chamativos e convidada a me aninhar no macio do colchão e esquecer, por completo, do mundo que corria, lá fora, além da cortina que enevoava, sobremaneira, o aposento, tornando-o aconchegante ao meu enfastio da noite passada em claro.

Lurdinha, minha esposa, reclamava, e, com certa razão, uma atençãozinha especial. Queria uns carinhos, um trato, um abraço. Um beijo, algo acolá do café que enfiava goela abaixo, com um acometimento fora do normal. Confesso, nesse ponto da atenção a ela, deixava a ver navios. Chegava esfalfado, estourado, enervado, aporrinhado, com dor de cabeça. Não via a hora de cair no escurinho e apagar, sair do ar. Tinha plena consciência de que se não chegasse junto, de vez em quando, se não cumprisse com as obrigações maritais, o casamento, cedo ou tarde, iria pras cucuias. Mas, por Deus, o serviço, o cansaço, a estafa, a condução com gente saindo pelo ladrão... Raramente aparecia um lugar vago e a disposição, para ajudar a digerir a hora e meia de todo o trajeto. Isso virara rotina. Minha vida se transformara num padrão estressante de comportamento, onde, o ano inteiro, repetia igual procedimento, sem fugir daquele modelo, arquétipo, como se fosse uma norma de estilo de vida escolhido a dedo, por vontade própria. Nada mudava nada acontecia de novo. Quadro imutável de uma vida em constante processo de decadência. 06h30min, pois, cravado, correr para bater o cartão, disparar para o vestiário, trocar de roupas num abrir e fechar de olhos, padaria, e a lotação às 06h40min. Na confeitaria, a garçonete, e a sua aparência imutável, o mesmo semblante, o corpo esguio metido num uniforme batido e surrado e o chavão desmilinguido: “-... Solta um pingado pra dez. Outro pra dezoito, um especial para o senhor sentado no banquinho do balcão...”.

A minha curiosidade crescia, junto com a afobação e com o atropelo de chegar logo e dormir. Sonhava com o tal do “pingado”... Jesus, Maria, José, o que seria o desconhecido “pingado”, tão disputado, tão desejado, tão amado por todos que frequentavam aquele estabelecimento? Pingado, pingado, pingado e o tempo se descorando, se desfalecendo entre o protocolo da padaria e o culto como uma idolatria ao busão das 06h40min...

-... “Amor, vamos namorar? Você não comparece tem mais de mês!...”.

-... “Lurdinha, deixa pra amanhã...”.

O amanhã chegava e eu não comparecia. Não me manifestava. Não dava no couro. Lurdinha, então, em ato extremo, subindo pelas paredes, me agarrava, me catava, como se diz, grosso modo, “à força, no laço, no tapa, no é agora ou nunca”.

-... “De hoje você não me escapa, seu safadinho malandro. Devo lembrar a você, meu marido e esposo, que estou chamando urubu de meu louro...”.

E Lurdinha se enrodilhava me beijava, me acarinhava louca, tesa, cheia de amor para dar, envolvida numa empolgação desvairada e fora de si.  De costas, de lado, de frente, de banda, como fogo morro acima, água ribanceira abaixo, ela partia pro ataque. O cansaço nesses instantes, não dava trégua, seguia junto. De braços dados, marcando presença, entranhado, duro na queda, sem dar espaço... E, de contrapeso, as recordações do cartão de ponto, a padaria, o coletivo às 06h40min atrelado ao maldito pingado. Oxalá! O que seria, afinal, esse pingado? 
                                     ***
Belo dia... Bela manhã me deu na telha, assim, de supetão, e resolvi quebrar a virgindade desse tabu que me corroía as entranhas. Às favas o coletivo das 06h40min. Não suportava mais o pingado me pingando na mente como uma torneira mal fechada. Como a chuva no telhado gotejando como um látego martirizante no meu consciente submisso. Não tinha mais saco, mais cabeça, mais paciência para sentir esse desconforto gotejando, destilando, marejando, vertendo, me corroendo o corpo, a mente, o espírito, os pensamentos, minha vida, enfim...

... “Hoje desvendo o mistério. Que se dane o resto, que se afumente o 06:40min. Embarco no próximo...”.

Resoluto, senhor de mim, cheguei pra a moça, pedi os pães... Enquanto ela ensacava, gritei para a garçonete de todas as manhãs iguais.

-... “- Me veja um pingado, por favor!...”.

-... “- Vai sentar?”.

-... “Num dos assentos do balcão”.

Aos bravios a jovem mandou a ordem:

-... “Um pingado no balcão”.

Em seguida, indagou solícita:

- “Algo para comer, senhor?”.

-... “Não, obrigado, minha fofa. Só o pingado”.

Ao me acomodar, finalmente, no balcão, me deparei com o tal do pingado. Nada além de um café com leite, servido numa xícara de porte médio, igual a que eu tomava todas as santas manhãs, no conforto da mesa, ladeado de Lurdinha, minha adorada e querida esposa.

Fonte:
O Autor

Ciranda da Primavera (Seleção por Simone Borba Pinheiro) Parte 4

GRAZI HENRIQUES VENTURA
 Não espere o amanhã!


 Canta,
 Canta, e esquece a mágoa.
 E traz alegria a este seu penar.

 Chora,
 Chora que deságua,
 Toda esta tristeza deste seu olhar.

 Viva,
 Que a vida é bela
 Saia da janela
 Venha passear.

 Vai,
 Encontra um amigo,
 Sê feliz consigo,
 Só vai aliviar.

 Vem,
 Que hoje é primavera,
 Vem e não espera.
 Pois o outono,
 Logo, logo vai chegar.

HERMES JOSÉ NOVAKOSKI
Primavera


 Harmonia de cores magníficas
 Enfeitando o jardim
 Semeando paz e amor
 Que há dentro de mim.

 A primavera convida
 À vida celebrar
 Montrando que é possível
 Sempre recomeçar

 Que as flores e o perfume
 Da Primavera possam estar
 Todos os dias de nossas vidas
 Para seu sentido renovar

HUMBERTO - POETA
Primavera!


 É chegada a primavera,
 das manhãs de céu azul!
 Quanta claridade impera
 no Brasil, de norte a sul!

 Surge o sol sobre o horizonte
 e em revérberos reluz,
 banhando de ouro o monte,
 vestindo a manhã de luz!

 Como é lindo ver na roça
 os loiros e amplos trigais!
 Toda a vida se alvoroça
 na cantiga dos pardais!

 As abelhas saem em bando
 pelas manhãs brasileiras,
 o loiro mel retirando
 das flores das laranjeiras!

 O verde cobre as colinas
 e a mata se enche de cores;
 vemos frutos nas campinas,
 e os prados cheios de flores!

 E ao sol, senhor dos espaços,
 que estupendas sinfonias
 cantam sabiás e sanhaços,
 bem-te-vis e cotovias!

 Riachos correm, vadios,
 por sob o arco das pontes;
 gargalham cascatas, rios,
 e cantam todas as fontes!

 É a estação dos sons, dos ecos,
 das mais estranhas fanfarras:
 põem-se a grasnar os marrecos,
 e a zumbir põem-se as cigarras!

 Entre as flores não há mídia,
 pois todas têm belos dotes;
 é tão graciosa uma orquídea,
 quanto é formoso o miosótis!

 Primavera é riso e flores,
 é festa em tudo que existe
 transformando em riso as dores
 da alma de quem é triste!

 Nenhuma outra supera
 o esplendor desta estação;
 vai-se o inverno, e a primavera
 veste os campos de algodão!

 Juntinhas, no mesmo atalho,
 por entre o mato e as urtigas,
 vão contentes ao trabalho
 os batalhões das formigas!

 À noite o jasmim recende
 seus exóticos perfumes...
 e a mata em festa se acende
 no piscar dos vaga-lumes!

 Molhado em gotas de orvalho,
 o pomar tem outras cores:
 há cem botões num só galho,
 e em cada ramo há cem flores!

 Flores, que em certo momento,
 o céu julgou nunca tê-las,
 mas Deus fez do firmamento
 um jardim cheio de estrelas!

 Oh, Deus, de amor tão profundo,
 eis nossa prece sincera:
 que as nações façam do mundo
 uma eterna primavera!

IZA MOTA
Primavera


 São como as flores
 diferentes formas e cores
 cheia de magia e odores
 as expressões dos amores

 Uns suaves, delicados
 uns ásperos e espinhados
 uns na forma bem definidos
 outros volúveis, são coloridos

 Depois do período de inverno
 chega de mansinho sutil e terno
 trazendo à magia do sentimento
 toda beleza e encantamento

 É a primavera das emoções
 que traz pra nossa vida paixões
 nos tirando às vezes à razão
 excitando e acelerando o coração.

JOSÉ ERNESTO FERRARESSO
Chegou para Mudar


 Olho pela janela, sinto a natureza mudar,
 Deparo com uma paisagem diferente,
 Diferente no ar.
 Estranha no tempo.
 vejo o florir dos jardins,
 Que antes estavam secos e rasteiros,
 Plantinhas crescem mostrando vida,
 Uma vida de amor, uma vida de poesia,
 Onde os poetas procuram suas inspirações,
 Onde pessoas começam a imaginar,
 A pensar, divagar.
 Entre essa beleza colorida,
 Onde as cores se misturam,
 se transformam,
 Onde as maravilhas nos demonstram:
 Uma Beleza, Um amor,
 Um lugar para amar.
 E Ela que chega,
 A nossa Primavera ,
 De mansinho e devagar,`
 Para nos deslumbrar.
Serra Negra

Fonte:
Seleção por Simone Borba Pinheiro. in http://www.familiaborbapinheiro.com

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 3, continuação – O passarinho-ninho

Gostei muito da sua última carta sobre a reforma das cidades e das gentes. Adoro você, Rã, porque você não concorda.

- Ali, não concordo mesmo! - exclamou a Rãzinha. - Vivo não concordando. Em nós, gente, por exemplo, quanta coisa errada! Por que dois olhos na frente e nenhum na nuca? Eu, se fosse reformar as criaturas, punha um olho na testa e outro na nuca. Desse modo eu dobrava a segurança das criaturas.

- Pois eu aumentava o número de olhos - disse Emília.

- Por que dois só? Assim como temos dez dedos podíamos ter dez olhos. Eu punha quatro na cabeça, a norte, sul, leste e oeste. Eu punha dois nos dedões dos pés, para evitar as topadas. Outro dia Pedrinho deu uma topada num tijolo que quase arrancou a unha. Com um olho em cada dedão não há perigo de topadas - nem de espinhos e estrepes. E eu também dava olhos a cada dedo minguinho. O minguinho é uma verdadeiro vagabundo nas mãos. Não faz nada. Fica o tempo todo assistindo ao trabalho dos outros. Ora, se o "mingo" tivesse um olhinho na ponta, podia prestar bons serviços. Às vezes a gente quer enxergar numa cova de dente ou ver se há cera no ouvido e não pode. Com o olho do "mingo", nada mais fácil.

- E esse olho do minguinho - ajuntou a Rã - podia ser como os microscópios, capaz de enxergar coisinhas invisíveis aos olhos comuns. Mas haveria um inconveniente, Emília. As mãos lidam com tudo, trabalham muito, e esses olhos do minguinho haviam de viver se enchendo de cisco ou se arranhando - e
que dor!

- Nada mais fácil do que evitar isso - lembrou Emília.

- Basta que usem dedaizinhos. Ficam cobertos quando não tiverem o que fazer. Mas por enquanto não podemos reformar gente, porque não há gente aqui. Todos os humanos do sítio foram para a Europa.

- E Rabicó?

- Esse é desumano e quadrupedíssimo. Já pensei muito na reforma de Rabicó. Podemos transformá-lo em bípede e ...

- E acabar com aquela mania de comer tudo quanto encontra - continuou a Rã.

- Eu faria assim: no focinho punha uma espécie de ratoeira, sempre armada; quando ele avançasse num doce ou em qualquer coisa séria, como aquela coroa do casamento de Narizinho, a ratoeira desarmava e segurava-lhe o focinho. E também dava-lhe pernas de tartaruga, para que não pudesse fugir quando Pedrinho o perseguisse com o bodoque.

Emília olhou para a Rã com ar desconfiado. Aquelas idéias pareceram-lhe absurdas. A ratoeira impediria Rabicó de comer não só cocadas e coroinhas como tudo mais, e ele morreria de fome.

- "Bissurdo", Rã! - disse ela. - A sua ratoeira acabava matando Rabicó e Dona Benta ficava danada.

- Você não me entendeu, Emília. A ratoeira só funcionaria quando ele quisesse comer coroinhãs. Para abóbora, milho, mandioca e o resto, não.

- Mas como a ratoeira podia saber quando era coroinha?

- Pelo cheiro. Eu punha um bom nariz na ratoeira.

Emília olhou para a Rã com o rabo dos olhos. Aquela menina estava com jeito de ser maluca ...

Apesar disso encarregou-a de reformar Rabicó. A Rã mudou de assunto.

- Na carta que você me escreveu,    Emília, encontrei a palavra "bissolutamente" em vez de "absolutamente" e agora você disse "bissurdo" em vez de "absurdo." Está reformando as palavras também?

- Ainda não, mas já pensei nisso. Por enquanto me limito a cortar uma ou outra letra com a qual me implico. O "a" de certas palavras me obriga a abrir muito a boca - e meu queixo pode cair, como o da filha de Nhã Veva. Experimente dizer absurdo sem abrir a boca.

A Rã experimentou e não conseguiu, mas "bissurdo" ela disse quase de boca fechada.

- Pois aí está! - tornou Emília. - Tudo errado, até o "a" de certas palavras. O mundo é uma grande trapalhada. Para que, por exemplo, caudinha em Rabicó? Na vaca Mocha a cauda tem razão de ser - serve para espantar as moscas. É um espanador. Mas em Rabicó? Para que serve aquele caracolzinho pelado?

- Para enfeite do fim - lembrou a Rã.

- Que fim?

- O fim de Rabicó. Todos os fins têm caudinhas. É o remate. Mamãe diz que é feio comer e deixar o prato limpo, ou beber um cálice de licor sem deixar um bocadinho no fundo. São caudinhas. São os enfeites da boa educação.

Emília estava cada vez mais desconfiada da Rãzinha. Parecia a Alice do País das Maravilhas. Só vinha com disparates. E disse:

- Enfeites são inutilidades. Não quero saber de enfeites nas minhas reformas. Tudo há de ter uma razão científica. Aquela idéia da carta sobre a reforma do Quindim me pareceu maluca. Acho que você quer brincar com a Natureza, menina. Eu quero corrigir a Natureza, quero melhorá-la, entende? Não se trata de nenhuma brincadeira. Negócio sério. Aí está a diferença entre nós. Na última carta você falou em substituir o couro do Quindim por um veludo. Isso é asneira.

- Mas que necessidade tem Quindim dum couro duríssimo, aqui no Pica-pau Amarelo, onde não há espinhos africanos?

- Concordo. Poderá ter um couro mais fino, assim como a camurça; mas de veludo. Rã, é demais. Às vezes penso que você está sabotando a minha idéia de reforma da Natureza ...
–––––––––––
continua…