quinta-feira, 21 de julho de 2016

Humberto de Campos (O Monstro)

Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.

Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.

Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num voo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.

Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.

Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.

Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?

A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:

- Para nós ambas, talvez...

- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?

A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.

- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.

- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.

E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.

- Traze mais água! - pedia.

A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.

- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.

E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.

Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.

O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.

Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.

Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.

- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!

- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?

E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.

- Eu dei a água! - tornou a Dor.

- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.

Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu…

Fonte:
Humberto de Campos. O Monstro e outros contos. Domínio Público.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Folclore Japonês (Kitsune, O Noivo da Raposa Encantada)

Essa é uma antiga história que surgiu no século VIII, durante o reinado do imperador Kinmei no Japão. Conta a lenda que um rapaz que vivia em Mino-no-Kuni, atualmente prefeitura de Gifu, certo dia montou em um belo cavalo branco e decidido, saiu à procura de uma linda noiva para com ela casar. Depois de muito cavalgar, em uma grande planície, avistou uma linda jovem colhendo flores silvestres. Ele ficou admirado com a beleza da encantadora menina, que percebendo sua presença, abriu um belo sorriso. Seus olhares se cruzaram e ele sentiu um estranho brilho em suas pupilas, como intencionassem seduzi-lo…

O rapaz tomado de súbita coragem, aproximou-se educadamente com o coração cheio de alegria. Descendo de seu cavalo, dirigiu algumas palavras a ela: 

– O que faz tão bela donzela nesta planície florida? 

– Caminhando à procura, quem sabe, de alguém que possa preencher meu coração!

O rapaz levou um choque de encantamento e, timidamente, propôs: 

– Gentil menina queira eu poder ser essa pessoa! Aceita ser minha noiva?

Um tanto ruborizada, a garota abaixou os olhos e respondeu: 

– Eu aceito!

Poucos dias depois, o rapaz voltou para sua casa na companhia da bela garota. A vila inteira se reuniu e, então, foi realizada uma grande festa de casamento.

Assim, o tempo passou e o casal vivia muito feliz.  Tempo depois, a jovem esposa engravidou e no dia 15 de Dezembro, um filho saudável nasceu. Exatamente naquela data e hora, a cadela que o rapaz criava em sua casa, desde que era menino, também teve um filhote. Os dias foram passando e o cachorrinho, todas as vezes que via a bela mulher do lavrador, começava a rosnar irritado, mostrando-lhe os dentes. Por vezes, chegou ameaçar atacar, deixando-a tremendo de medo. Um dia, ela pediu ao marido: 

– Por favor, meu querido marido, livre-se desse filhote de cachorro que vive me atormentando. Porém, seu marido ficou com dó do cachorrinho.

O tempo foi passando, chegando meados de Fevereiro; época de pilar o arroz em casca para fazer o beneficiamento. Então, a bela esposa entrou na despensa onde estava o pilão e o almofariz, para preparar a refeição da tarde. De repente, a cadela, mãe do filhote, avançou rosnando e atacou a mulher saltando sobre ela enfurecida. Ela ficou paralisada de medo e tremendo de pavor. Ao ouvir os gritos, o marido correu em seu socorro. Mas o que ele viu o deixou ainda mais espantado.

Sua bela esposa estava se transformando em uma raposa. Imediatamente, a raposa subiu sobre um armário para fugir dos dentes afiados da cadela e disse ao marido: 

– Desculpe-me querido, a cadela quebrou meu encanto e, num momento de pânico, acabei por revelar minha forma original. Como pode ver, não sou humana, e sim uma raposa. Mas, creia, eu te amo como ninguém mais poderia amar nesse mundo! Tivemos uma bela convivência como marido e mulher. Embora por um período curto, nós fomos muito felizes. A prova da nossa felicidade é essa linda criança, ela é fruto de nosso amor. Sei que, conhecendo minha verdadeira origem, é impossível permanecermos casados, por isso retornarei a floresta – assim, saltando pela janela, a raposa desapareceu na mata.

A raposa encantada em forma de mulher foi chamada de kitsune. Dizem que a raposa voltava todas as noites para dormir com seu marido humano.  Mas, na realidade, ela voltava apenas nos sonhos do jovem lavrador. Certa ocasião, a raposa encantada veio visitar o marido trajando um lindo quimono. Seu longo traje tinha a cor rosa do alvorecer e uma elegância indescritível. Mas, tomada pelo vento, ela foi flutuando para um lugar distante e desconhecido.

Desde então, o jovem nunca mais sonhou com sua encantada. Porém, aquela visão ficou gravada em sua mente e ele não conseguiu esquecê-la. O saudoso marido passou a escrever poemas e recitá-los repetidamente em homenagem a sua amada. Com o passar dos anos, o garoto, filho do lavrador e da raposa, cresceu e se tornou um rapaz de força e rapidez sem igual. O jovem, muito popular na província, acabou se tornando o organizador dos Festivais da Primavera e da Colheita. E, por ele ser conhecido como filho da raposa encantada (kitsune), o cargo de organizador dos festivais, passou a ser chamado de Kitsune-no-atae.

Fonte: 
Myths and legends of ancient Japan

terça-feira, 19 de julho de 2016

Folclore Japonês (Hakuja no Myojin, O Deus Serpente Branca)

Hakuja no Myojin é um dos mais antigos contos do folclore japonês, conta a história de Harada Kurando, que foi um dos principais vassalos do Senhor de Tsugaru. Ele era um espadachim notável e mestre de aulas de esgrima. Durante essa época, havia entre os vassalos outro mestre, Gundayu, que também ensinou esgrima, mas não era páreo para o famoso Harada, e consequentemente tinha ciúmes de seu adversário, o que acabou provocando um dramático conflito…

Um dia, para incentivar a arte da esgrima entre seus vassalos, o Daimio (Senhor Feudal) de Tsugaru, convocou todo o seu povo e ordenou-lhes para promover uma competição de esgrima em sua presença.

Após os vassalos mais jovens realizarem sua apresentação, o Daimio deu uma ordem para que Harada Kurando e Hira Gundayu competissem entre si. Para o vencedor, ele disse, iria entregar uma imagem de ouro da “Deusa de Kwannon”.

Ambos os homens vedados, deram o seu melhor, provocando grande excitação entre os presentes. Gundayu nunca tinha competido dessa forma antes, mas Harada era muito melhor. Ele ganhou o jogo, recebendo a imagem de ouro de Kwannon das mãos do próprio Daimio que entusiasmado aplaudia alto.

Gundayu deixou o local da competição, fervendo de ciúmes e jurando vingança. Acompanhado de quatro de seus fiéis amigos, que disseram, iriam ajudá-lo a atacar de surpresa Harada naquela mesma noite. Tendo organizado esse plano covarde, passaram a se esconder na estrada onde Harada deveria atravessar em seu retorno para casa.

Durante três horas eles ali permaneceram carregados de más intenções. Por fim, ao luar viram Harada aproximar-se cambaleando, pois, como era natural em tal ocasião, ele tinha com os amigos, se entregado livremente ao sakê.

Gundayu e seus quatro companheiros saltaram contra ele, Gundayu gritando: “Agora você vai ter que lutar até a morte”.

Harada tentou sacar sua espada, mas estava lento e com a cabeça girando devido à bebida. Gundayu não esperou, jogando-o ao chão e matando-o. Os cinco vilões, então vasculhando suas roupas, encontraram a estátua de ouro de Kwannon, e fugiram, para nunca mais aparecer nos domínios do Senhor de Tsugaru.

Quando o corpo de Harada foi encontrado gerou uma grande tristeza no povoado.

Yonosuke, filho de Harada, um garoto de dezesseis anos, jurou vingar a morte de seu pai, obtendo a permissão especial do Daimio para matar Gundayu da forma como escolhesse, pois o seu desaparecimento, era prova suficiente de que ele fosse o assassino.

Naquele mesmo dia, o jovem estabeleceu  sua caça a Gundayu. Ele vagou sobre o país durante cinco longos anos sem ter a menor pista de seu paradeiro, mas, ao final desse tempo, e com a orientação de Buda, ele localizou seu inimigo em “Gifu”, onde ele estava agindo como mestre de esgrima para o senhor feudal daquele lugar.

 O jovem Yonosuke descobriu que seria difícil conseguir cumprir sua missão, pois Gundayu quase nunca saía do castelo. Ele decidiu então mudar o seu nome para o de Ippai, e se candidatar a uma vaga na casa de Gundayu como “chugen” (atendente privado de um samurai).

Neste intento, Ippai (como Yonosuke agora era chamado) foi particularmente bem sucedido, pois como Gundayu tinha necessidade de tal atendimento, ele conseguiu o posto.

No dia 24 de junho, uma grande festa foi realizada na casa de Gundayu, sendo o quinto aniversário do seu serviço ao clã. Ele colocou a imagem de ouro roubada da Deusa Kwannon no Tokonoma (espécie de altar japonês, espaço elevado cerca de cinco centímetros acima do chão, onde as imagens e as flores são colocadas). Um jantar foi dado por Gundayu aos seus amigos, todos eles beberam tanto que adormeceram profundamente. No dia seguinte, a imagem de Kwannon tinha desaparecido.

Poucos dias depois Ippai ficou doente, e devido à pobreza, não foi capaz de comprar remédio adequado a sua doença, febril ele ia de mal a pior. Seus companheiros de serviço foram gentis com ele, mas eles não podiam fazer nada para melhorar sua condição. Ippai não parecia se importar, ele estava deitado em sua cama e parecia quase feliz por estar ficando cada vez mais fraco. Tudo o que ele pediu foi que um ramo de sua Omoto favorita (Rhodéa japonica) fosse mantida em um vaso próximo a sua cama, para que ele pudesse vê-lo continuamente, e este simples pedido foi naturalmente cumprido.

No outono, Ippai silenciosamente morreu e foi sepultado. Depois do funeral, quando os funcionários estavam limpando o quarto em que ele tinha morrido, notaram com espanto, que uma pequena cobra branca estava enrolada em volta do vaso que continha a Omoto. Eles tentaram removê-la, mas ela se enrolou apertado, por fim, eles jogaram o vaso na lagoa. Para sua surpresa, a água não teve efeito sobre a serpente, que continuou a agarrar-se ao vaso. Sentindo que havia algo estranho com a cobra, eles queriam enviá-la para longe. E, lançando uma rede, trouxeram o vaso com a cobra para tentar soltá-la, mais sem sucesso, lançaram mais uma vez o vaso em um córrego. Como da outra vez, fez pouca diferença, a cobra mudou um pouco sua posição, de modo a manter-se presa ao ramo da Omoto sem cair fora do vaso.

Por esta altura, houve grande consternação entre os servos, e a notícia se espalhou para as diferentes casas dentro dos portões do castelo. Alguns samurais desceram ao rio para ver, e encontraram a cobra branca ainda firmemente enrolada ao ramo sobre o vaso. Um dos samurais desembainhou sua espada e fez um corte na serpente, que soltou e fugiu.  Mas o vaso foi quebrado, e para o espanto de todos, a imagem do Kwannon caiu no córrego, juntamente com uma autorização do Senhor Feudal de Tsugaru para matar um homem, cujo nome foi deixado em branco.

O samurai que tinha quebrado o vaso e encontrou o tesouro perdido, parecia particularmente satisfeito, e apressou-se em dar a Gundayu a boa notícia, mas em vez de ficar feliz, ele demonstrou sinais de medo. Gundayu tornou-se pálido mortal quando ouviu a história da morte de Ippai e da aparência extraordinária da cobra branca misteriosa. Ele tremia quando percebeu que Ippai não era menos que Yonosuke, filho de Harada, cuja presença após o assassinato ele sempre temera.

Fiel ao espírito de um samurai, no entanto, Gundayu ‘se recompôs’, e professou grande prazer a pessoa que trouxe a imagem de Kwannon. Além disso, para celebrar a ocasião, ele deu uma grande festa naquela noite. Curiosamente, o samurai que tinha quebrado o vaso e recuperou a imagem tornou-se subitamente doente, e não pôde comparecer.

Por volta das 10:00, depois de ter se despedido de seus convidados, Gundayu retirou-se para sua cama. No meio da noite, ele acordou com o que ele considerava ser um terrível pesadelo. Havia uma sensação de asfixia em sua garganta, ele se contorcia e tossia; ruídos borbulhantes procederam de sua boca de tal forma que ele despertou sua esposa, que em terror acendeu uma vela. Ela viu então uma cobra branca enrolada firmemente em volta da garganta de seu marido, seu rosto estava roxo, e seus olhos esbugalhados se destacaram dois centímetros de seu rosto.

Ela pediu ajuda, mas já era tarde demais. À medida que um jovem samurai veio correndo, seu mestre de esgrima, com o rosto desfigurado morreu.

No dia seguinte, houve uma investigação no castelo. Mensageiros foram enviados para o Senhor de Tsugaru para saber sobre a história do assassinato de Harada Kurando, pai de Yonosuke, ou ‘Ippai’, descobrindo que Gundayu, tinha estado a seu serviço.

Tendo verificado a verdade, o Senhor de Gifu, movido pelo seu zelo de pai, e comovido pela história de Yonosuke  no cumprimento das suas funções filiais, enviou de volta a estátua de ouro de Kwannon à família enlutada de Harada. E em homenagem, ele adorou a  cobra morta em um santuário erguido no sopé da Montanha  Kodayama.  O espírito ainda é conhecido como Hakuja  no Myojin,  “O Deus Serpente Branca”

Fonte 

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Luiz Otávio, Príncipe dos Trovadores (Centenário de Nascimento)



Não, Luiz Otávio não morreu. Vive em cada coração amigo e esclarecido que lhe sabe reconhecer o valor.

Luiz Otávio continua, entretanto, presente em sua obra monumental, através da sua ternura sem limites que abraçou o Brasil inteiro numa ciranda trovadoresca que encontrou eco nos países de língua irmã. Luiz Otávio continua presente nos frutos que semeou, colhido por quem os merece e por quem não os merece, também. Presente nas suas trovas, presente nos seus versos. Fundador da União Brasileira dos Trovadores, vários livros seus foram de trovas e poesias. 

Continua presente no elo de amor que aquece o coração de quantos souberam entender a sua luminosa passagem por este mundo.E que seguiram os seus conselhos, expressos nos seus atos desassombrados nem sempre compreendidos e aceitos com a mesma sinceridade. Presentes no seu idealismo puro e autêntico, desprendido e apaixonado, como difícil encontrar igual, e também no seu acervo de trabalho, repleto de vigor e energia de alma, ainda mesmo quando lhe fugiam as forças físicas. Sublimando os próprios sofrimentos e limitações gradativas, até o último momento dirigiu em prol e em defesa da sua “Rosa”, a “União Brasileira de Trovadores”, filha dileta do seu sonho de poeta. Seu “ex-libris”: 

“Quer ser feliz? Então siga 
a minha vida bizarra 
que tem muito de formiga
e ainda mais de cigarra…”

A formiga descansa. A cigarra continua cantando. Cantando indefinidamente, em ressonâncias de ternura espalhadas por todo este Brasil, Portugal, Angola, que choraram a parida do Príncipe da Trova. 

Em sua sepultura, em Santos, estas palavras lhe servem de epitáfio:

“O que mais me comove neste Príncipe adormecido é a sua fidelidade a uma flor; é a imagem de uma rosa que brilha nele como a chama de uma lâmpada, mesmo quando dorme (Antoine Sant-Exupery, Pequeno Príncipe)

E nas palavras de J.B. Xavier,

O vitorioso sorri quando outros choram, avança quando outros param, persiste quando outro outros retornam, cria onde outros copiam, transpira quando outros descansam. E, se chora, será de alegria, se arrefece a caminhada será para admirar a paisagem que transformou, se retorna será para auxiliar os que não lhe acompanham o passo, se copia será para ratificar, com o devido crédito,  o que de bom se fez antes dele, e, se descansa, será para se preparar a retomada do caminho em direção ao sonho ainda não realizado.  Luiz Otávio esculpiu com primor, em pedra rara, o teu sonho ideal de puro artista!

Finalizando,

Luiz Otávio foi um construtor de sonhos, cujo encanto maior está pelo fato de que não quis só para si, mas sim, para que todos nós que hoje aqui estamos (e muitos outros que ainda virão) façam parte destes sonhos. Por isso, meus irmãos e irmãs, Luiz Otávio não morreu, continua vivo e firme no coração de cada um segurando o estandarte da Rosa!

De Luiz Otávio:

“Prossegue a cantar! Insiste!
Mesmo a sofrer e a chorar!
Pois, pior que um canto triste,
é uma vida sem cantar.”
______________________________________

Quanto poema extenso e mudo,
sem transmitir nada à gente,
e eu sei que te digo tudo
com quatro versos somente…

Fontes:
- Carolina Ramos. Jornal “A Tribuna”, de Santos em 1977.
- J B Xavier
- José Feldman



Carolina Ramos (Se ele não tivesse nascido...)

Poema do Centenário de Luiz Otávio (1916 - 2016 )

Se ele não tivesse nascido...

Nossos olhos não leriam estas palavras,
nem tu... nem eu seríamos o que somos,
se ele não tivesse nascido!...
A Trova, mera quadrinha... 
passaria por nós, despercebida, sem que nela sentíssemos
a magia que cativa e que aglutinaria
a imensa família, de Irmãos de sonhos e ideais... que somos!
Se ele não tivesse nascido... seríamos, por acaso, Trovadores?!
A desfrutar da Trova as glórias que nos dá,
vagaríamos (sem bússola) bagagem nas mãos,
pelos escaninhos deste Brasil, tão grande...
tão somente para ver nosso nome, entre outros nomes,
valorizado por gente que sente, que sonha e que canta como nós?!

Ah!...Se ele não tivesse nascido!
Nossas alegrias, por certo, seriam menores!...
Dias monótonos!... sonhos não sonoros... menos ricos ... e sem cor!
Nossas vidas, pobres de emoções... e tão menos felizes!
Fala, por nós, a voz deste poema: 
- Somos gratos! 

Gratos somos a ti, LUIZ OTÁVIO!
Sendo quem foste... e sendo o que ainda és... 
pudemos , também, ser o que hoje somos!
Um Templo abriste... E nos chamaste a entrar!
São tuas as saudades e os louvores,
daqueles que , feliz, tu abraçaste
e, na emoção do abraço, transformaste
em teus fiéis IRMÃOS... OS TROVADORES!

domingo, 17 de julho de 2016

Emiliano Perneta (Poemas Escolhidos)

IGUAÇU

Ó rio que nasceu onde nasci, ó rio
Calmo da minha infância, ora doce, ora má,
Belo estuário azul, espelhado e sombrio,
Quanto susto me deu, quanto prazer me dá!

Quantas vezes eu só, nestas manhãs de estio,
Ao vê-lo deslizar, pomposamente, lá,
Pálido não fiquei, tão majestoso vi-o,
Orgulho do Brasil, glória do Paraná!

Companheiro ideal! Durante toda a viagem,
Foi o espelho fiel a refletir a imagem,
Dos mantos e dos céus, discorrendo através

Da floresta, ora assim como um cão veadeiro,
A fugir, a fugir alegre e alvissareiro,
Ora deitado aqui quase a lamber-me os pés!
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O BRIGUE

Num porto quase estranho, o mar de um morto aspecto,
Esse brigue veleiro, e de formas bizarras,
Flutua há muito sobre as ondas, inquieto,
À espera, apenas, que lhe afrouxem as amarras...

Na aparência, a apatia amortece-lhe o esforço;
Se uma brisa, porém, ao passar, o embalsama
Ei-lo em sonho, a partir, e, então, empina o dorso,
Bamboleia-se, mais gentil do que uma dama...

Dentro a maruja acorda ao mínimo ruído,
Deita velas ao mar, à gávea sonda, o ouvido
Alerta, o coração batendo, o olhar aceso...

Mas a nau continua oscilando, oscilando...
Ó quando eu poderei, também, partir, ó quando?
Eu que não sou da Terra e que à Terra estou preso?
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SONETO DO HERÓI

Conheço que não sou o homem que se procura,
O herói moderno, o herói vibrante, o herói do dia,
Que num largo esplendor de brônzea envergadura,
Com desdenhoso olhar a crença repudia.

Pode ser que também não passe de uma pura,
E de uma inquieta, e de uma doida fantasia,
De quimera banal, e de grande loucura,
O vinho que me exalta, a fé que me inebria.

Sei que é belo exclamar que não existe nada;
Que a flor das ilusões, como rútila espada,
A dúvida voraz ceifou pela raiz...

Sei de tudo; porém, sob o céu que nos cobre,
Sinto, elevando as mãos, e humilde como um pobre,
Que no seio de Deus adormeço feliz!
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FOGO SAGRADO

Ao pôr do Sol — que é uma falua
De vela para o Pesadelo...
Calção de rendas amarelo,
Fino gibão, cabeça nua,

Ei-lo! Não sei que sete-estrelo
Cobre-o! Não sei que azul flutua!
Montado num ginete em pêlo
A par e passo com a lua!

Seguiu, ligeiro, ligeiro;
Passam cavalo e cavaleiro
Um rodamoinho de escarcéus!...

É como um ciclone violento!
Olhai!... Que vão o Sol e o Vento
Arrebatá-lo para os Céus!
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GRAÇAS TE RENDO...

Graças te rendo aqui, preciosa Senhora,
Que, num simples olhar de ternura, tiveste
O dom de me elevar, assim como o fizeste,
Entre os brasões do amor e as púrpuras d'aurora...

O dom de me fazer acreditar que veste
O humano coração, como acredito agora,
Não o lodo, porém, o linho; que se adora,
O linho que fulgura em pleno azul-celeste...

Sei que os votos que são trabalhados com arte
Hão de os deuses cumprir, ó luz maravilhosa:
— Sê, pois, bendita, sê bendita em toda parte!

Que onde fores pisar, que por onde tu fores:
A lama se transforme em pétalas de rosa,
As víboras em fruto, os espinhos em flores!
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AO CAIR DA TARDE

Agora nada mais. Tudo silêncio. Tudo,
Esses claros jardins com flores de giesta,
Esse parque real, esse palácio em festa,
Dormindo à sombra de um silêncio surdo e mudo...

Nem rosas, nem luar, nem damas... Não me iludo,
A mocidade aí vem, que ruge e que protesta,
Invasora brutal. E a nós que mais nos resta,
Senão ceder-lhe a espada e o manto de veludo?

Sim, que nos resta mais? Já não fulge e não arde
O sol! E no coril negro deste abandono,
Eu sinto o coração tremer como um covarde!

Para que mais viver, folhas tristes do outono?
Cerra-me os olhos, pois, Senhor. É muito tarde.
São horas de dormir o derradeiro sono.
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PAPÉIS VELHOS 
(a João Cândido Filho)

De novo as velhas páginas tu fitas,
Vagas, sem ritmo e luz, nem florescência,
Louváveis só por terem sido escritas
Na quadra sideral da adolescência.

E lês e a cada frase vã meditas,
Sentindo aquela doce e grata essência
Das lembranças de um século infinitas...
Que brinquedo foi pois esta existência?!

Nada contam-te os versos, no entretanto
Lendo-os, um choque súbito te prende
E te transporta para antigas eras...

Doiram-te sóis, e aos teus ouvidos canto
Longo vem do passado que recende
O olor ideal de velhas primaveras.
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DAMA

A noite em claro, o mundo inóspito, e dessa arte
Urdem contra a Beleza as coisas mais abjetas...
Reina o Pesar, mas como um Rei, por toda parte;
E ordena Herodes que degolem os poetas...

Cavaleiros por terra e plumas inquietas;
Esqueletos, que importa? a rir... Hei de vibrar-te
Aos quatro ventos, e com formas obsoletas,
Ó gládio nu! meu esotérico estandarte!

Delírio! assim no ar este sinal eu traço...
Escarótico pois? É bem! Vibrião do Ganges?
Combaterei, se for mister, num circo d'aço...

Combaterei, embora eu saiba que me perdes,
Com versos d'oiro, que reluzam como alfanges,
Dama! com teu orgulho! ó dama de olhos verdes!
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VENCIDOS

Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?

Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland?... E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?

Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço...
Hão de os grandes rolar dos palácios infetos!
E glória à fome dos vermes concupiscentes!

Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!
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GATA

Da brancura da pele e no gesto macio,
A carícia tu tens e a moleza de gata:
O teu andar sutil é doce como a pata
Desse animal pisando um tapete sombrio...

Tens uma morbidez lânguida de sonata.
Teu sorriso é polido, é fino e é muito frio...
Se as tuas mãos acaso eu beijo e acaricio,
Sinto uma sensação esquisita, que mata.

Quando eu tomo esse teu cabelo ondeado e louro,
E o cheiro, e palpo o teu corpo branco e felino,
Como te torces, pois, minha serpente de ouro!

O teu corpo se enrola em meu corpo amoroso,
E o teu beijo me aquece e vibra como um hino,
Animal de voz rouca e gesto silencioso!
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DONZELAS

Donzelas que passais com esse gesto ameno,
E a doce palidez enfim duma cecém,
E em vão esse ar é grave, e esse aspecto é sereno,
Não me olheis, não me olheis, que não vos quero bem.

Sulamitas gracis e de rosto moreno,
E claras como luz, e cheias de desdém,
Tendes perfume, sei, mas não tendes veneno,
Sois muito lindas, sois, não vos quero porém...

Lírios do campo com figura de mulher,
A minha decadência é um fruto caprichoso
Desta época sem luz que não sabe o que quer.

Não sabe nada; mas, ó candidez ideal,
Eu não posso querer senão o Monstruoso,
E o bem Maravilhoso, e o bem Fenomenal!
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SOLIDÃO

Oh! para que sair do fundo deste sonho,
Que o destino me deu, e que a Vida me fez,
Se eu quando, a meu pesar, casualmente, ponho
Fora os pés, a tremer, volvo, ansiado, outra vez.

O meu lugar não é no meio de vocês,
Homens rudes e maus, de semblante risonho,
Não é no meio de tamanha insipidez,
Dum egoísmo atroz, dum orgulho medonho!

O meu lugar é aqui, no seio desta ruína,
Destes escombros, que reluzem como lanças,
E destes torreões, que a febre inda ilumina!

Sim, é insulado, aqui, no cimo, bem o sei!
Entre os abutres e entre as Desesperanças,
E dentro deste horror sombrio, como um Rei!
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ENTRE ESSA IRRADIAÇÃO 
(ao Emílio de Meneses)

Entre essa irradiação enorme, que palpita,
É possível que um dia, eu, pálido, a encontrasse,
Como a sonora luz de Vênus Afrodita,
Em meio do caminho, os dois, e face a face...

E que alucinação e que febre esquisita,
Que cegueira de amor e que ilusão falace,
Quando esse girassol, para a luz infinita,
Cá de dentro de mim, então, desabrochasse!

Seriam negros ou doirados os cabelos?
Junto daquela flor, tremeria de zelos?
Não tombaria morto aos pés desse prazer?

Os olhos de que cor? Não sei. Porém suponho
Que seriam assim tão grandes como um sonho...
Mas já passei a vida, e não a pude ver!

Folclore Japonês (Tamamo-no-Mae)

Tamamo-no-Mae era uma cortesã a serviços do Imperador Japonês Konoe. Ela era a mulher mais bonita e a mais inteligente no Japão. O corpo dela misteriosamente sempre cheirou bem e sua roupa nunca se sujou ou se enrugou. Tamamo-no-Mae não era apenas bonita, mas também era extremamente inteligente, tendo incrível conhecimento em todos os assuntos. Embora parecesse ter somente vinte anos, não havia nenhuma pergunta que ela não poderia responder. Ela respondeu todas as perguntas feitas a ela sobre música, religião ou astronomia. Por causa de sua beleza e inteligência, todos na Corte Imperial a adoravam, e o Imperador Konoe caiu profundamente de amor por ela.

Depois de um tempo, com Konoe dando atenção e carinho para a Tamamo-no-Mae, o Imperador misteriosamente adoeceu. Buscou respostas com muitos padres e filósofos, mas não teve sucesso com nenhum deles. Finalmente, um astrólogo, Abe no Yasuchika, disse ao Imperador que Tamamo-no-Mae era a causa da sua doença. O astrólogo explicou que aquela linda moça era na verdade uma raposa de nove caudas má (Kitsune), que estava tentando tomar o seu lugar no trono. Após o ocorrido, Tamamo-no-Mae desapareceu da corte. O Imperador requisitou Kazusa-no-suke e Miura-no-suke, os guerreiros mais poderosos na época, para caçar e matar a raposa. Depois de ter iludido os caçadores por um tempo, a raposa apareceu dentro de um sonho do Miura-no-suke. Mais uma vez sob a forma da linda Tamamo-no-Mae, a raposa profetizou que ele a mataria no dia seguinte, e implorou para poupar sua vida. Miura-no-suke recusou.

Cedo no dia seguinte, os caçadores encontraram a raposa na Planíce de Nasu, Miura-no-suke atirou e matou a criatura mágica com uma flechada. O corpo da raposa se transformou em Sessho-seki, ou Pedra Mortífera, que mata qualquer um que tiver contato com ela. O espírito da Tamamo-no-Mae se transformou em Hoji e assombrou a pedra. Aquela pedra na prefeitura japonesa de Nasu foi assombrada por Hoji, até que um padre budista chamado Genno, ter parado para descansar perto da pedra e foi ameaçado por Hoji. Genno executou alguns rituais espirituais, e implorou ao espírito considerar sua salvação espiritual, até que finalmente Hoji teve piedade e jurou nunca mais assombrar a pedra outra vez.

sábado, 16 de julho de 2016

Virgínia Woolf (Retrato de uma Londrina)

Ninguém pode se considerar expert sobre Londres se não conhecer um verdadeiro cockney; se não dobrar numa rua lateral, longe das lojas e dos teatros, e bater em uma porta particular numa rua de casas particulares.

Casas particulares em Londres têm tendência a serem muito parecidas. A porta se abre para um vestíbulo escuro, ergue-se uma escada estreita. Do patamar superior abre-se uma dupla sala de estar e nessa dupla sala de estar vê-se dois sofás, um de cada lado de um fogo crepitante, seis poltronas e três compridas janelas dando para a rua. Sempre é matéria de considerável conjectura o que acontece na segunda metade da sala dos fundos debruçando-se para os jardins de outras casas. Mas é com a sala de estar da frente que estamos preocupados, pois era ali que mrs. Crowe sentava-se sempre numa poltrona junto ao fogo, era ali que sua existência transcorria, era ali que ela servia o chá.

Que tenha nascido no campo, embora estranho, parece ser um fato, que ela às vezes deixasse a cidade, naquelas semanas de verão em que Londres não é Londres, também é verdade. Mas para onde ia ou o que fazia quando saía de Londres, quando sua poltrona estava vazia, sua lareira apagada e a mesa desfeita, ninguém sabia ou podia imaginar. Pois conceber mrs. Crowe com seu vestido preto, seu véu e seu chapéu caminhando num campo de nabos ou subindo um monte de pasto está além da mais desvairada imaginação.

Ali, junto à lareira no inverno ou à janela no verão, sentara-se ela por 60 anos — mas não sozinha. Havia sempre alguém na poltrona oposta, fazendo uma visita. E antes que o primeiro visitante estivesse sentado por dez minutos, a porta sempre se abria e a criada Maria, de olhos e dentes proeminentes, que por 60 anos abrira a porta, abria-a mais uma vez e anunciava um segundo visitante, e a seguir um terceiro, e logo depois um quarto.

Nunca se soube de um tête-à-tête com mrs. Crowe. Ela não gostava de tête-à-têtes. Era uma peculiaridade que compartilhava com muitas anfitriãs, a de nunca ser especialmente íntima de alguém. Por exemplo, havia sempre um homem idoso no canto junto ao armário, e que parecia tanto fazer parte daquela admirável mobília do século XVIII quanto seus pegadores de bronze. Mas mrs. Crowe sempre se dirigia a ele como mr. Graham, nunca John, nunca William, embora, às vezes, o chamasse de “caro mr. Graham” como para sublinhar que já o conhecia havia 60 anos.

A verdade é que não desejava intimidade, desejava conversa. A intimidade é um dos caminhos para o silêncio, e mrs. Crowe abominava o silêncio. Era preciso haver conversa, e que esta fosse geral e que abarcasse tudo. Não devia ser profunda demais nem inteligente demais, pois se progredisse muito nessas direções alguém certamente se sentiria de fora, e ficaria sentado ali, balançando a xícara de chá, sem dizer nada.

Portanto, a sala de estar de mrs. Crowe tinha pouco em comum com os celebrados salões dos memorialistas. Gente inteligente ia lá com freqüência — juízes, médicos, membros do parlamento, escritores, músicos, viajantes, jogadores de pólo, atores e completos anônimos —, mas se alguém dissesse uma coisa brilhante isto era sentido quase como uma gafe, um acidente que se ignorava, como um acesso de espirros ou alguma catástrofe com um bolinho. A conversa de que mrs. Crowe gostava e que a inspirava era uma versão glorificada do mexerico da cidade. A cidade era Londres, e o mexerico era sobre a vida de Londres. Mas o grande dom de mrs. Crowe consistia em tornar a grande metrópole tão pequena quanto uma aldeia, com uma igreja, um solar e 25 chalés. Mrs. Crowe tinha informação de primeira mão sobre cada peça, cada exposição de pintura, cada julgamento, cada caso de divórcio. Ela sabia quem estava casando, quem estava morrendo, quem estava na cidade e quem estava fora. Ela mencionava o fato de que acabara de ver o carro de lady Umphleby passar, e arriscava o palpite de que ia visitar a filha cujo bebê nascera na noite anterior, exatamente como uma mulher da aldeia fala sobre a esposa do juiz de paz dirigindo até a estação para receber mr. John, que estaria voltando da cidade.

E enquanto mrs. Crowe fazia essas observações pelos últimos 50 anos ou algo assim, adquiria um surpreendente arquivo sobre a vida de outras pessoas. Quando mr. Smedley, por exemplo, disse que sua filha estava noiva de Arthur Beecham, mrs. Crowe observou imediatamente que nesse caso ela seria uma prima em terceiro grau de mrs. Pirebrace, e num certo sentido sobrinha de mrs. Burns, pelo primeiro casamento com mr. Minchin de Blackwater Grange. Mas mrs. Crowe não era nem um pouco esnobe. Era apenas uma cultivadora de relações, e sua surpreendente habilidade nesse campo servia para dar um caráter familiar e uma personalidade doméstica às suas colheitas, pois muitas pessoas se espantariam de serem primos em vigésimo grau, se soubessem disso.

Portanto, ser admitido na casa de mrs. Crowe significava tornar-se membro de um clube, e o pagamento exigido era a contribuição com um número de tópicos de mexerico por ano. O primeiro pensamento de muita gente quando a casa incendiava ou os canos rebentavam ou a criada fugia com o mordomo deve ter sido: “Vou correr até mrs. Crowe e lhe contar isso.” Mas nisso também as distinções precisavam ser observadas. Certas pessoas tinham o direito de aparecer na hora do almoço, outras, em maior número, podiam ir entre cinco e sete horas. A classe que tinha o privilégio de jantar com mrs. Crowe era pequena. Talvez somente mr. Graham e mrs. Burke realmente jantassem com ela, pois mrs. Crowe não era rica. Seu vestido preto estava um tantinho gasto, seu broche de diamante era sempre o mesmo broche de diamante. Sua refeição favorita era chá, porque a mesa do chá pode ser suprida economicamente, e há uma elasticidade no chá que combinava com o temperamento gregário de mrs. Crowe. Mas fosse almoço ou chá, a refeição mostrava um caráter distinto, exatamente como um vestido ou a joia que usava combinavam com ela à perfeição, traziam em si uma moda própria. Haveria um bolo especial, um pudim especial, algo peculiar à casa e tanto parte dela quanto Maria, a velha criada, ou mr. Graham, o velho amigo, ou o velho chintz da poltrona, ou o velho carpete no assoalho.

É verdade que mrs. Crowe deve ter saído algumas vezes, convidada para almoços e chás de outras pessoas. Mas em sociedade ela parecia furtiva, fragmentária e incompleta, como se tivesse meramente passado para uma espiada no casamento ou na reunião noturna ou no funeral, a fim de recolher as migalhas de notícias de que precisava para completar seu próprio estoque. Por isso, era raramente induzida a sentar-se, estava sempre voando. Parecia deslocada entre as mesas e cadeiras dos outros, precisava ter seus próprios chintzes, seu próprio armário e seu próprio mr. Graham junto a ele a fim de ser completamente ela própria. À medida que os anos foram passando, as pequenas incursões no mundo exterior praticamente cessaram. 

Mrs. Crowe construiu seu ninho de modo tão compacto e completo que o mundo exterior não tinha uma pena ou um graveto a lhe acrescentar. Além disso, seus próprios camaradas lhe eram tão fiéis que podia confiar neles para transmitir qualquer noticiazinha que ela devesse acrescentar à sua coleção. Era desnecessário que abandonasse a própria poltrona junto ao fogo no inverno, ou junto à janela no verão. E com a passagem dos anos seu conhecimento não se tornou mais profundo — a profundidade não era a linha de nossa anfitriã — e sim mais redondo e completo. Deste modo, se uma nova peça fazia um grande sucesso, mrs. Crowe conseguia no dia seguinte não só registrar o fato com uma pitada de mexerico divertido dos bastidores, como também podia remeter-se a outras estreias, nos anos 1880, 1890, e descrever o que Ellen Terry usara, o que Duse tinha feito, o que o querido mr. Henry James comentara — nada muito notável talvez, mas enquanto falava, era como se todas as páginas da vida de Londres nos últimos 50 anos fossem levemente folheadas para sua diversão. Havia muitas, e suas ilustrações eram vivas e brilhantes, e de pessoas famosas, mas mrs. Crowe de modo nenhum vivia no passado, de modo nenhum o exaltava acima do presente.

Na verdade, era sempre a última página, o momento presente que mais importava. O delicioso de Londres era que sempre dava ao indivíduo algo novo para observar, algo fresco sobre o que falar. Era preciso apenas manter os olhos abertos e sentar em sua própria poltrona das cinco às sete horas todos os dias da semana. Enquanto mrs. Crowe sentava-se com os convidados em torno de si, dava de tempos em tempos uma rápida olhadela de pássaro por sobre o ombro para a janela, como se tivesse meio olho na rua, meio ouvido para os carros e ônibus e os gritos dos jornaleiros lá fora. Ora, algo novo podia estar acontecendo naquele mesmo instante. Não se podia passar tempo demais no passado: não se devia dar uma atenção total ao presente.

Nada era mais característico e talvez um pouco desconcertante do que a ansiedade com a qual mrs. Crowe erguia os olhos e interrompia a frase no meio quando a porta sempre se abria e Maria, que se tornara muito corpulenta e um pouco surda, anunciava uma nova visita. Quem estaria prestes a entrar? O que teria a acrescenta à conversa? Mas sua habilidade em extrair fosse o que fosse que poderiam oferecer e sua destreza em atirar a notícia no cotidiano, eram tais que nenhum dano ocorria, e fazia parte de seu peculiar triunfo que a porta jamais se abrisse com demasiada frequência, o círculo nunca ultrapassava sua possibilidade de controle.

Assim, para conhecer Londres não apenas como um espetáculo deslumbrante, um mercado, uma corte, uma colmeia de indústria, mas como um lugar onde pessoas se encontram, conversam, riem, casam-se e morrem, pintam, escrevem e atuam, mandam e legislam, era essencial conhecer mrs. Crowe. Era em sua sala de estar que os inúmeros fragmentos da vasta metrópole pareciam juntar-se num todo animado, compreensível, divertido e agradável. Viajantes ausentes por anos, homens esgotados e ressecados pelo sol, recém-chegados da Índia ou da África, de remotas viagens e aventuras entre selvagens e tigres, iam direto para a casinha na rua quieta para serem conduzidos novamente ao coração da civilização numa única pernada. Mas nem a própria Londres podia manter mrs. Crowe viva para sempre. E é fato que um dia ela já não estava sentada na poltrona junto ao fogo quando o relógio bateu cinco horas. Maria não abriu a porta, mr. Graham separara-se do armário. Mrs. Crowe está morta, e Londres, embora Londres ainda exista, jamais será de novo a mesma cidade.