quinta-feira, 23 de maio de 2019

Carolina Ramos (A Xará)


O toque do interfone interrompeu-lho as lides domésticas. Atendeu.

— Dona Rita?

— Pois, não...

— Sua vizinha, do sétimo andar, está subindo para cumprimentá-la.

Eram duas da tarde. Rita mediu num só olhar a confusão dos móveis e utensílios, empilhados pela mudança, efetuada na véspera.

— Visita, agora?!

Largou o pano de pó, trocou os chinelos, jogou o avental sobre a mesa e ajeitou, como pode, os cabelos. Já a campainha soava. Recebeu a visitante com um sorriso amável. O sorriso da que chegava, fez-se mais largo ainda, portador dos anunciados cumprimentos.

— Bom dia, vizinha. Vim dar-lhe as boas vindas. Sou Maria Rita, aí do sétimo.

— Coincidência! Eu também me chamo Maria Rita. Entre, mas... por favor, não repare. Ainda está tudo bagunçado, de pernas para o ar... Também, chegamos ontem, não é?

— Ora, deixe pra lá... se quiser ajuda, disponha.

— Muito obrigada. Aos pouquinhos, tudo irá para o devido lugar. Questão de tempo. O pior é que, sem empregada, tudo fica mais difícil e... mais difícil ainda é achar uma!

O "papo" doméstico, descompromissado, estendeu-se com elasticidade, dissociada do relógio, como se as duas mulheres não tivessem nada para fazer, a não ser, matar o tempo.

Dois dias foram mais do que suficientes para que a nova moradora percebesse que a xará do sétimo andar, realmente nada tinha para fazer que a prendesse em casa, o que era alarmante!

A frequência com que a vizinha lhe batia à porta, a alugar-lhe a atenções por tempo indeterminado, mais do que impacientá-la, começava a gerar preocupações. Tão logo chegadas as catorze horas, o conhecido toque de campainha impunha-lhe a presença incômoda.

Maria Rita entricheirou-se, defensiva. Assim como em certos estados do norte, em que a regularidade das manifestações climáticas leva ao planejamento das atividades, programadas para antes ou depois da chuva, Maria Rita, instintivamente passou a separar as tarefas cronologicamente, para antes e depois da visita vespertina. Tentativa ingênua de acomodação, que em hipótese alguma solucionou o problema.

Verdade se diga, a situação tornava-se cada vez mais incomodativa. Desgastada e levada a um atropelo de ação perfeitamente dispensável, que não justificava o desperdício das tardes esbanjadas, custava a Maria Rita ver escoar-se o tempo em papos furados e conversa fútil.

Pontual e descontraída, a xará chegava para ficar. Tinha já cadeira cativa. Colocava os óculos na ponta do nariz e puxava do tricô. Trabalho interminável, porque finda uma peça, outra vinha a caminho. Rita sentia-se invadida, confusa e com remorsos, até.

Seis meses passados, e a situação inalterada. Sem privacidade, a moça beirava o poço do desespero! Marido e filho sofriam por ricochete. Sem definição, Rita fazia tudo para ausentar-se de casa na hora aprazada, na esperança de quebrar o ritmo e a disposição compulsória da visitante. Inútil!

Cansou-se de vagar sem rumo, cansou-se de olhar vitrinas sempre iguais, cansou-se de visitar igrejas. E os santos, quem sabe, cansaram-se dela e da insistência dos seus pedidos.

Tudo absolutamente em vão! A xará continuou voltando, com assiduidade exemplar e implacável!

A pressão era tanta, que Maria Rita acabou doente. Deprimida. Fechou-se no quarto. Levou para lá a TV portátil. Mergulhou nas novelas.

Fuga? Desequilíbrio? Desespero? — Tudo!

E foi quando a xará, solícita, prontificando-se a servir de enfermeira, adentrou, triunfante, a cidadela onde se aquartelara a enferma! A gota d’água!

— Então... doentinha? Não há de ser nada. Vou cuidar de você. Agora chegarei uma hora mais cedo. Sem pressa. Não tenho mesmo nada que me prenda em casa...

A paciente capitulou. Desceu definitivamente ao fundo do poço, levando a família consigo!

— Mudem-se! Mudem-se o mais rápido possível! — ordem do psiquiatra. Sem réplica.

Mudaram-se. E para bem longe! O apartamento vendido em tempo recorde. Pechincha!

Ninguém do prédio recebeu o novo endereço A mudança foi feita praticamente em caráter sigiloso, "antes da chuva", ou melhor, pela manhã, bem cedo, antes da famigerada visita.

Mudança radical! A neurose acabou como por encanto! Aliás, nem tanto assim, que, por longo tempo, o som de uma campainha sugeria sempre a inquietante pergunta: — Será ela?!

Pudesse, e Maria Rita teria trocado também de nome. Que, perdoado o trocadilho, até hoje, o nome Rita irrita por demais a Rita!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Silmar Bohrer (Lampejos Poéticos) XIII


Arthur de Azevedo (Conto em Versos: Banhos de Mar)


Manuel Antônio de Carvalho Santos,
Negociante dos mais acreditados,
Tinha, em sessenta e tantos,
Uma casa de secos e molhados.

Na Rua do Trapiche. Toda a gente
– Gente alta e gente baixa –
O respeitava. Merecidamente:
A sua firma era dinheiro em caixa.
 
Rubicundo, roliço,
Era já outoniço,
Pois há muito passara dos quarenta
E caminhava já para os cinquenta.
 
O bom Manuel Antônio
(Que assim era chamado),
Quando do amor o deus (Deus ou demônio,
Porque como um demônio os homens tenta,
Trazendo-os num cortado)

Fê-lo gostar deveras
De uma menina que contava apenas
Dezoito primaveras,
E na candura de anjo
Causava inveja às próprias açucenas.

Tinha a menina um namorado, é certo;
Porém o pai, um madeireiro esperto,
Que no outro viu muito melhor arranjo,
Tratou de convencê-la
De que, aceitando a mão que lhe estendia
Manuel Antônio, a moça trocaria
De um vaga-lume a luz por uma estrela

Ela era boa, compassiva, terna,
E havia feito ao moço o juramento
De que a sua afeição seria eterna;
Porém dobrou-se à lógica paterna
Como uma planta se dobrara ao vento.

Sabia que seria
Tempo perdido protestar; sabia
Que, na opinião do pai, o casamento
Era um negócio e nada mais. Amava;
Sentia-se abrasada em chama viva;
Mas… tinha-se na conta de uma escrava,
Esperando, passiva,
Que um marido qualquer lhe fosse imposto,
Contra o seu coração, contra o seu gosto.

Calou-se. Que argumento
Podia a planta contrapor ao vento?
No dia em que a notícia
Do casamento se espalhou na praça,
A Praia Grande inteira achou-lhe graça
E comentou-a com feroz malícia,
E na porta da Alfândega,
E no leilão do Basto
Outro caso não houve era uma pândega!

Que às línguas fornecesse melhor pasto
Durante uma semana, ou uma quinzena,
Pois em terra pequena
Nenhum assunto é facilmente gasto,
E raramente um escândalo se pilha.
Quando um dizia: – A noiva do pateta
Podia muito bem ser sua filha,
Logo outro exagerava: – Ou sua neta!

O moço desdenhado,
Que na tesouraria era empregado,
E metido a poeta,
Durante muito tempo andou de preto,
Co’a barba por fazer, muito abatido;
Mas, se a barba não fez, fez um soneto,
Em que chorava o seu amor perdido.

Do barbeiro esquecido
Só foi à loja, e vestiu roupa clara,
Depois que a virgem que ele tanto amara
Saiu da igreja ao braço do marido.

Pois, meus senhores, o Manuel Antônio
Jamais se arrependeu do matrimônio;
Mas, passados três anos,
Sentiu que alguma coisa lhe faltava:

Não se realizava
O melhor dos seus planos.
Sim, faltava-lhe um filho, uma criança,
Na qual pudesse reviver contente,
E este sonho insistente,
E essa firme esperança
Fugiam lentamente.

À proporção que os dias e os trabalhos
Seus cabelos tornavam mais grisalhos.
Recorreu à Ciência:
Foi consultar um médico famoso,
De muita experiência,
E este, num tom bondoso,
Lhe disse: – A Medicina
Forçar não pode a natureza humana.

Se o contrário imagina,
Digo-lhe que se engana.
Manuel Antônio, logo entristecido,
Pôs os olhos no chão; mas, decorrido
Um ligeiro intervalo,
O médico aduziu, para animá-lo:

– Todavia, Verrier, se não me engano,
Diz que os banhos salgados
Dão belos resultados…
Experimente o oceano! –

No mesmo dia o bom Manuel Antônio,
Á vista de juízo tão idôneo, Tinha
casa alugada
Lá na Ponta d’Areia,
Praia de banhos muito frequentada,
Que está do porto à entrada
E o porto aformoseia.

Nessa praia, onde um forte
Do séc’lo dezessete
Tem tido vária sorte
E medo a ninguém mete;

Nessa praia, afamada
Pela revolta, logo sufocada
De um Manuel Joaquim Gomes,
Nome olvidado, como tantos nomes;
Nessa praia que… (Vide o dicionário
Do Doutor César Marques) nessa praia,
Passou três meses o quinquagenário,
Com a esposa e uma aia.

Não sei se coincidência
Ou propósito foi: o namorado
Que não tivera um dia a preferência,
Maldade que tamanhos
Ais lhe arrancou do coração magoado,
Também se achava a banhos

Lá na Ponta d’Areia…
Creia, leitor, ou, se quiser, não creia:
Manuel Antônio nunca o viu; bem cedo,
Sem receio, sem medo
De deixar a senhora ali sozinha,
Para a cidade vinha
Num escaler que havia contratado,
E voltava à tardinha.

Tempos depois – marido afortunado!
Viu que a senhora estava de esperanças…
Ela teve, de fato,
Duas belas crianças,
E o bondoso doutor, estupefato,
Um ótimo presente,
Que o pagou larga e principescamente!
Viva o banho de mar! ditoso banho!

Dizia, ardendo em júbilo, o marido.
– Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho!
Doutor, meu bom doutor, agradecido!
Pouco tempo durou tanta ventura;
Fulminado por uma apoplexia,
Baixou Manuel Antônio à sepultura.

O desdenhado moço um belo dia
A viúva esposou, que lhe trazia
Amor, contos de réis e formosura.

E no leilão do Basto
Diziam todos os desocupados
Que nunca houve padrasto
Mais carinhoso para os enteados.

Carlos Drummond de Andrade (A Datilógrafa)


A Associação dos Antigos Alunos do Professor Penaforte é modelo do gênero. Os associados pagam pontualmente as mensalidades, reúnem-se cordialmente em almoço no último sábado do mês, e agora resolveram editar um boletim: publicação modesta, trinta e duas páginas, que divulgue êxitos profissionais dos colegas, movimento da AAPP, essas coisas.

Pequeno aumento nas contribuições não afeta os Antigos Alunos, todos bem de vida ou a caminho de. O menos bem é talvez dr. Ariosto: ainda não pôde abrir mão do empreguinho burocrático, ou não soube transformá-lo em doce cargo de muita remuneração e zero obrigação. Grande praça, dr. Ariosto: sempre disposto a ajudar, a fazer força, de modo que o lugar de redator-secretário do boletim lhe cabe indiscutivelmente, como lhe coube o de tesoureiro da AAPP, sem falar em todas as demais funções da diretoria, nos casos de impedimento temporário, isto é, permanente, de colegas ocupadíssimos, além de ilustríssimos.

Redator-secretário pressupõe existência de outros redatores, inclusive redator-chefe… mas deixa, Ariosto escreve para mim este artigo, pois no sítio lá em Pires do Rio o fim de semana é danado de barulhento. E assim por diante, dr. Ariosto dá conta de tudo, escreve, reescreve o que os outros alinhavaram mal mal. Só que os originais precisam ser uniformizados. Datilógrafa esmerada, rápida, como encontrá-la? D. Jerusa, colega de repartição, precisa de uns bicos: só o cabeleireiro leva metade do ordenado. Há tempos pedira a dr. Ariosto que, se soubesse de algum servicinho de máquina em embaixada, não deixasse de avisá-la: esses boletins mimeografados, sabe como é? Pois ali estava o boletim,
não de embaixada, mas de uma associação de gente distinta, que paga corretamente. D. Jerusa lamentou-se: fora atacada por esse monstro moderno, alergia. Não pode nem ver papel, quanto mais lidar com ele.

O bom dr. Ariosto resigna-se a ser datilógrafo de si mesmo e da AAPP, em sigilo. Como tudo que faz tem o selo do capricho, a AAPP felicita-o por ter arranjado uma datilógrafa perfeita. O presidente pergunta-lhe se, além de perfeita, é bonita. Ariosto sorri, quer omitir a informação, o outro insiste, ele admite que não é feia.

— Pois traga a moça aqui, para a cumprimentarmos pelo serviço.

— Não convém. É muito tímida.

Toda vez que chegam os originais, batidos impecavelmente, repete-se o coro de louvores.

— E nós que ainda não nos lembramos de pagar-lhe. Quanto deve ser?

— Não se preocupem — responde dr. Ariosto. — Ela faz isso de camaradagem. Não precisa de dinheiro.

— Deveras? Não é justo. Temos de remunerar o trabalho da moça. Qual o nome dela, o endereço?

Explicou que a moça fazia o serviço por amizade a ele, e recusava terminantemente gratificação, sob pena de não botar mais o dedo no boletim; além do mais, era admiradora do saudoso professor Penaforte. A essa altura, dr. Ariosto verificou, estupefato, sua própria capacidade de mentir, ele que é a verdade em pessoa. Amizade, hem? Acabaram imaginando que a datilógrafa era namorada dele. E concluíram que ela merecia um presente, com os agradecimentos da AAPP.

— Agradecimentos que devem constar na ata — ponderou o presidente. — Essa jovem é uma pérola.

Dr. Ariosto lutou como leão para impedir a homenagem, mas, perturbado, acabou dando o nome de d. Jerusa. Saiu em disparada para avisá-la, pedir-lhe mil desculpas. Quando aparecesse o mensageiro, com um embrulho de presente e um ofício…

— Não posso aceitar — disse d. Jerusa, inflexível. — Devolvo.

— Não faça isso!

— Então mando botar na sua mesa.

Foi uma áfrica obter que aceitasse a linha completa de produtos de beleza. No ofício, além do mais, o presidente convidava-a para um chá na sede, onde receberia cumprimentos.

— Pensando bem, dr. Ariosto, eu vou. Não devo desapontar o presidente. Parece tão simpático!

Bom, dr. Ariosto não tinha nada com d. Jerusa, mas não é que o picou um vago ciúme do presidente?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Marcos Satoru Kawanami (Poemas Avulsos)


ARTE METAFÍSICA

Estranha arte é esta de escrever...
Sem pincel, sem cinzel a obra cresce
E toma forma, e nem forma carece
Para que a outrem venha a entreter!

Um papel sujo basta ao seu mister,
Um papel que no lixo alguém esquece...
Na folha rota que o desdém merece,
É nela que o poema vai nascer.

Poesia, prima-irmã da Matemática
Que no papel também faz teorema,
Acha ela sempre musa mais simpática.

Seguem Música e Dança o mesmo esquema,
Brotando da sublime e etérea prática
Qual do nada também brota um poema.

CARTA DO MALANDRO ESCRUPULOSO

Minha querida Daisy, custa-me dizer...
Para teu bem-estar, por tua dignidade,
ver-me-as nunca mais. E não sintas saudade
deste vadio que te tanto fingiu querer.

Eu bem sei..., alma pura, jamais vês maldade;
mas esta virtude há de desaparecer
com a ilusão que só inspirou-te o padecer
por partilhar de minha vil intimidade.

Esquece do Brasil, do Rio, do meu franzino
e fingido sorriso de ingênuo menino.
É inevitável: nova ilusão vais achar.

Porém se, por ventura no teu fog londrino,
lembrança vier, lembra deste alexandrino:
"Eu te desprezo para não te ver chorar".

O BURACO

Na existência do homem, o buraco é tudo:
De um buraco ele vem, e para outro ele vai;
E outro buraco, ainda, bastante o distrai
Furtando-lhe a razão num louco anelo agudo.

O buraco será sempre coisa enigmática,
Esfinge alcandorada para a confraria
Dos homens indefesos perante a magia
Magnética, hipnótica, orificiática.

O buraco é ornado por pomposa flora
A qual mais seu mistério vela, encobre, oculta.
Buraco, és flor, não do Lácio, mas inculta!

E tanto o peito másculo, voraz, devoras
Que se o levas ao val sombrio da sepultura,
Ser fiel ao buraco eterno o homem jura.

O BURACO (2)

O buraco tem um quê de absoluto:
Não é palpável, mas claro é que existe;
Seu não-ser o faz ser, e assim persiste.
Sina humana, buraco, és cabal luto.

A terra cava de naco em naco
O menino que brinca angelical
E, ingênuo, conclui filosofal:
Jamais pode existir meio buraco!

Oráculo o buraco é do mistério,
Do insondável, da coisa indefinida:
Um buraco nos deu o dom da vida!

E nos espera lá no cemitério
à espreita, na tocaia escondida,
O Buraco, ironia sem medida.

RÉPLICA A CAMÕES

Alma minha gentil, qual hei deixado,
quiçá mesmo em favor da Humanidade
que hora ganha a lusa celebridade
das armas e barões assinalados;

se cá pr'onde  subi contrariada
memória da outra vida se consente
nunca me esquecerei do ódio ardente
às rimas pelas quais fui eu trocada.

E se vires que pode merecer-te
algu'a migalha de ira — que sobrou —
cuida que obrando estou por socorrer-te

rogando ao que meus anos encurtou
que tão cedo Amor venha a abater-te
quão cedo em meu soçobro soçobrou.

SONETO DE NASALIDADE

De tudo ao meu nariz serei atento;
e tanto e pouco e no jamais e antes,
que mesmo em face de dois elefantes
m'nha tromba cause mais alumbramento.

Por ele hei de viver sempre asmático
de assoar minha alma, e escarrar sua escória;
enamorado e não menos pneumático...
da sublime função respiratória.

E assim, quando mais tarde me procure
quiçá o vexame, angústia de quem vive,
quiçá a rinite, conforme Deus mande;

possa eu me dizer do nariz (que tive):
que não seja imoral, inda que grande,
mas que seja aquilino, e não pendure.

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Marcos Satoru Kawanami nasceu na cidade de São Paulo, em 1975, e passou quase toda a infância e adolescência na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, onde estudou no Colégio Cenecista Capitão Lemos Cunha.

Aos 18 anos, ingressou no curso de Astronomia da UFRJ; no segundo período, foi cursar Engenharia de Minas e permaneceu por um ano em Ouro Preto, de onde voltou para prosseguir na UFRJ até o 6º período de Astronomia. Então, trancou a matrícula. Simultaneamente, trabalhou na Fundação Oswaldo Cruz. Em 2002, concluiu o curso de Letras da UNIFEV, em Votuporanga; e, em 2003, efetivou-se como professor  nas disciplinas de Português e Inglês.

Vinicius de Moraes (H2O)


Sete horas da manhã. Campainha na porta.

- Dez minutos de água, pessoal!

É a voz do seu Abel, o porteiro do meu edifício.

Água quer dizer banho. Há dois dias este corpinho só vê fricções de água-de-colônia. A ablução é um tanto ou quanto matinal demais, mas não há remédio: o homem é um escravo do quarto elemento, de que é ele próprio o composto químico: H-O-N-C. Os dois primeiros em combinação, dão água: H20. É ela!

A correria é infernal, enche-se desde o tanque de lavar roupa até os copos da casa. A lavação da louça suja é feita a toda, como para ganhar um campeonato. Ouvem-se profusas descargas de latrinas, torneiras escorrem ruidosamente, enchendo recipientes dos quais a banheira é o mais capaz. A barba é feita em dois minutos, havendo eu, muito de indústria, deixado pincel e aparelho adrede preparados. Depois vem o banho, às carreiras. Mas a verdade é que o tempo útil voa impressentido. Depois de bem ensaboado, o chuveiro começa a minguar assustadoramente, acabando por estar com um sinistro gorgolejo.

O nome feio anda pela casa, atravessa paredes, vai encontrar eco em outros apartamentos, desdobra-se até longínquos bairros, toma a cidade inteira. De repente todo mundo põe-se a berra-lo em uníssono. Ele é a expressão viva da realidade carioca. Aliás, um grande general de Napoleão já o usara em circunstâncias talvez não tão dramáticas, mas com vigor. Um homem ensaboado não se pode dizer que valha por dois, porque é o ser mais infeliz e ridículo da criação. Tem de se haver com o sistema da cuia. Seu corpo esfria, ele fica com um ar de pintainho molhado. É absolutamente lamentável.

Ontem à noite, o café foi feito com água mineral. Ficou com um gosto meio velhaco, mas não há de ser nada. É de esperar, contudo, que o recurso não se tenha de estender ao próprio banho, porque com a mineral a Cr$ 180, e sendo necessários uns cem litros para encher uma banheira, sai cada banho a 18 contos - o que torna a prática proibitiva para a classe média, ficando acessível apenas a uns poucos homens ricos e bem nutridos, que aliás devem ficar umas gracinhas dentro de um banho de água mineral, agitando os braços gordos e soltando milhões de borbulhas....

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

Trova 352 - Dorothy Jansson Moretti


segunda-feira, 20 de maio de 2019

Trova 351 - Odenir Follador


Carolina Ramos (O Amigo Discreto)


Celibatário por opção, Alfredo admirava e exaltava, a mais não poder, os amigos Lígia e Laércio, pela fidelidade sincera que deixavam transparecer no relacionamento conjugal.

Ele, Alfredo, optara pelo celibato. Nada de traumas ou pressões anteriores. Questão de foro íntimo. Melhor, só, do que ter de enfrentar a possibilidade de trair, ou de ser traído. Os tempos modernos, ou melhor dizendo, modernosos, de costumes desabridos e tendências liberais, ofereciam exemplos às dúzias. Se um dia viesse a casar, seria para valer. Nada de casa e descasa. Nada de filial por debaixo do pano. O "até que a morte nos separe", era o lema que tinha em mente. Na dúvida, preferia permanecer solteiro. Solteirão!

Lígia e Laércio eram caso ímpar. Par indestrutível! Quatro filhos. Quatro sólidas pilastras sustentando as bases seguras do edifício familiar. Construção perfeita! Sem deslizes, nem rachaduras.

Chovia naquela tarde em que, Alfredo, dolorosamente surpreendido, tremeu nas bases ao ver passar o amigo Laércio, aconchegando sob o mesmo guarda-chuva, os encantos loiríssimos daquela cujos ombros enlaçava carinhosamente. Uma loira espetacular!

Alfredo sentiu o estômago engulhado. Não podia ser... Laércio, logo Laércio!

Chocado, seguiu o par a distância. Não pretendia provocar o flagrante, vexatório, profundamente constrangedor, para qualquer das partes. Enxugou a testa coberta de suor frio. Compreendeu que nunca mais poderia encarar o amigo infiel, sem recriminá-lo interiormente. Sentia-se também traído. E quanto a Lígia, então?! Como enfrentar seu olhar cândido e meigo de esposa perfeita, vergonhosamente ludibriada pelo marido?!

Marido! Lá ia o descarado, sem o menor escrúpulo, a exibir a companheira, como quem exibe um troféu recentemente conquistado! Cachorro!

A raiva inflou as veias de Alfredo quando viu o casal sumir no carro de Laércio, estacionado adiante. Raiva pelo erro de julgamento. Laércio não era o que julgara ser. Não merecia sua amizade. Não o desmascarara, para poupar Lígia, que crescia no seu conceito.

Nessa mesma tarde, ao chegar em casa, abraçada pelo marido, Lígia sacudiu as roupas molhadas, olhando-se no espelho. Era bom demais sentir-se jovem, outra vez! Nova em folha! Que milagres faziam a dieta balanceada, o narizinho moldado pelo bisturi de um mestre e os reflexos dourados cobrindo a antiga cabeleira castanha. Era uma nova mulher. Uma loira espetacular!

Alguns anos depois, Lígia e Laércio questionavam, ainda, o inexplicável afastamento do amigo.

— E o Alfredo, hein? Que coisa estranha. Sumiu mesmo!

Laércio encerrou definitivamente a questão;

— Na certa, já chegou a esperada transferência. Foi para Curitiba e nem sequer se despediu! Cachorro! Em nossos dias, a gente não pode confiar nem no melhor amigo!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XII


LÁGRIMA

Orvalho do sofrer - dentro do peito nasce
e nos olhos em pranto sem querer floresce;
aumenta a pouco e pouco, e cada vez mais cresce...
- e rola finalmente em gotas pela face...

sublime florescer da dor... se ela falasse
diria para o mundo a mais sentida prece,
no entanto, em seu silencio humilde é que enternece
pois guarda na mudez um triste desenlace...

Repentina, ela brota, assim como se fosse
( de um mar que em nosso peito as ondas estrugisse)
uma gota que o vento, aos nossos olhos, trouxe...

Nuns olhos de mulher, porém, ainda não disse:
- é a pérola de um mar completamente doce,
de um mar feito de amor... de sonho e de meiguice!

LEMBRANÇA

Bom tempo o que ficou - amei-te na alegria
de uma tarde azulada e linda de setembro,
- disso tudo, hoje, triste, eu muita vez me lembro
enquanto uma saudade o peito meu crucia...

Amei-te, como nunca outro alguém te amaria,
eras o meu sonhar de janeiro a dezembro...
Depois... Tu me deixaste, e ainda hoje se relembro,
amargo a mesma dor cruel daquele dia. . .

Agora, em solidão - sou um corpo sem alma -,
e indiferente a tudo vou chegando ao fim
como a tarde que cai bem suavemente em calma.

Já não sinto... não sofro... já nem vivo até.
- Se a vida ainda era vida ao ter-te junto a mim,
hoje, longe de ti, nem vida ao menos é!

LEVANTE!...

Apenas entre os lábios de uma aurora
sanguínea, o sol desponta num sorriso,
eu saio para o engenho, que diviso,
lá longe, no horizonte, estrada afora...

Os campos orvalhados - toda a flora
verdejante, é um espelho de improviso
dos céus, onde algum astro ainda indeciso
- não sabe se ficar ou se ir embora...

à beira dos caminhos, vez em quando,
passam lentos, os carros carregados,
que dois bois sonolentos vão puxando...

E a vida vai nascendo entre os currais...
- Os galos cacarejam nos cercados,
no espaço, ouve-se o canto dos pardais!...

LIRISMO...

Eu quero ser o poeta da ternura
o poeta dos carinhos, da meiguice,
das palavras de amor e de doçura
que ainda ninguém pensou... e ninguém disse...

O poeta dos "castelos" e dos beijos
quando vivemos longamente, a sós,
- que põe vultos de sonhos nos desejos
e que põe abajures na própria voz. . .

Eu quero ser o poeta que te enleia
e te encanta, e te embriaga, e te seduz,
- que no teu corpo branco como a areia
compõe versos de amor feitos de luz.

O poeta que em teus olhos, num momento
acende estranhos mundos e visões,
e que adivinha o teu deslumbramento
deslumbrado com as próprias emoções...

Eu quero ser o poeta dos anseios,    s
dessa minha alma, irrefletida e louca,
- e desvendando o encanto dos teus seios
murmurar versos para a tua boca!

Quero ser esse poeta que tu queres
e os meus versos, assim como um perfume,
hão de embriagar a alma das mulheres
para o teu sofrimento. . . e o teu ciúme. . .

Eu quero ser o poeta da ternura  
que espalha poemas e a sonhar caminha,
e que encontra afinal toda a ventura
nessa ventura de sentir-te minha!

O poeta que põe alma nos sentidos
e as belezas incógnitas desvenda,
- que murmura canções aos teus ouvidos
e fala sobre o amor num tom de lenda....      
      
O poeta a quem tua alma se prendeu,
esse que chamas louco e sonhador,      
para imortalizar teu nome e o meu
na imortalização do nosso amor!



Má que tu foste - me negaste aquela
última dança que eu pedi, no entanto
eu lá fiquei pelo salão a um canto
debruçado sozinho na janela...

E magoado, a te olhar, vi-te tão bela
nos braços de outro - que chorei, e o pranto
secava em minhas faces por encanto
como se fossem lágrimas de vela...

De que serve chorar - pensei - de nada
vale mostrar aquela que adoramos
a dor que temos na alma sepultada...

E me pus a dançar... Brinquei... Sorri...
E os dois sorrimos... nós dois brincamos...
Mas tu sofreste!... E eu - quanto sofri!...

MALDADE

Tu podes ser igual a todo o mundo
teres defeitos mais que toda a gente,
- que importa ? se este amor cego e profundo
teima em dizer que te acha diferente !

Para mim (eu que te amo como um louco)
os que falam de ti são línguas más,
- ah ! todo o amor que te dedico é pouco
e é sempre pouco o amor que tu me dás !

Sou a sombra que segue os teus desejos
e aos teus pés, numa oferta extraordinária
a minha alma vendeu-se por teus beijos...

Falam de ti... Escuto-os... Fico mudo...
Quanta maldade cruel, desnecessária
se eu já sei quem tu és... se eu sei de tudo !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Alberto Braga (A Sesta do Avô)


Há quatro dias, vejo todas as tardes, quando chego à janela, o meu vizinho a passear em frente da casa, amparado ao braço da netinha.

O avô é já muito velho, muito velho, com a face coberta de rugas, os olhos pequenos, as mãos encarquilhadas, as pernas trêmulas, e a dobrarem-se nos joelhos. E a neta, que se chama Izaura, e é linda como os amores, tem doze anos, os cabelos loiros, como fios de ouro, e os olhos muito azuis, como duas safiras.

Ele chama-se Macário; mas eu, quando lhe falo, dou à minha voz um tom marcial e digo-lhe alto ao ouvido:

- Como vai o nosso bravo capitão? Como passa o meu valente capitão?

E então, na vizinhança é mais conhecido pelo capitão "Feroz", que foi a alcunha que lhe ficou, por ter sido um militar valente e corajoso como poucos!

Quando os franceses vieram a Portugal... - Ai! - disse-me ele um dia, referindo-me as façanhas da guerra - quem me caçara naquele tempo! Eu tinha então dezoito anos, umas pernas rijas, o olho fino!... Olhe, só de uma vez me falhou a pontaria. Eu lhe conto. No convento de Santa Clara, de Thomar, estava recolhida uma menina, de quem eu gostava muito e com a qual depois casei. Um oficial francês, passando-lhe debaixo da grade, disse-lhe um galanteio, e piscou-lhe o olho direito. Ora eu, que estava ao longe a observar tudo, disse comigo: espera, que já te arranjo. E meti a espingarda à cara, fiz pontaria para o olho direito do francês, e...

-- E?

-- E, truz! Meti-lhe a bala no olho esquerdo! Errei dessa vez!

E ainda lhe fulguravam os olhos e o rosto se lhe iluminava, quando contava destas coisas.

Depois prosseguiu:

- Ao final, chegou-me a vez de ser vencido! Eu, que nunca tremi na guerra, a primeira vez que falei à minha santa, que Deus tenha, dei em tremer como varas verdes! Mas aquilo sim! Era formosa duma vez! O senhor vê a minha filha! É a cara da mãe.

O capitão não se enganava. A filha era realmente formosa; mas duma formosura, que é menos dos contornos do rosto, do que da graça interior da alma.

Havia um ano que era viúva de um industrial trabalhador, honesto e inteligente. Ficara a viver na companhia do pai e com dois filhos: - a Izaura, e o mais pequenino, o Abel, que tinha pouco mais de um ano e uma cabecinha loira de querubim.

Que santa vida a daquela família obscura!

A viúva repartia pelos três todo o generoso afeto do seu coração; e, até, como o pai era tão velhinho, quase que já carecia dos cuidados de uma criança. Que os bons velhos, coitadinhos, são fáceis de contentar! Basta-lhes uma réstia de sol, uns carinhos de filha e umas histórias da neta!

Quando perguntei ao Macário, porque passeava depois do jantar, respondeu-me:

--O sono é bom para a noite. Quando durmo depois de jantar, tenho sonhos maus.

E, beijando a cabeça de Izaura, acrescentou:

- Quero antes passear com a minha neta, que me conta histórias muito lindas.

E continuaram os dois, o velho pelo braço de Izaura, arrastando vagarosamente os pés nas lages do passeio.
*       *       *       *       *

Depois do jantar, o velho arrastava-se até à poltrona, que tinha ao canto da janela; e, bem refastelado, com os pés estendidos, as mãos cruzadas sobre o ventre e a cabeça encostada no espaldar, dormia patriarcalmente a boa sonata da sesta.

De uma vez, era em julho, e, às duas horas da tarde, fazia um calor insuportável. Até parece que a natureza também dormia a sesta! Lá fora, no quinteiro, as folhas das arvores pendiam desfalecidas. Ouvia-se o murmúrio monótono da bica d'água a cair, como uma lágrima, sobre uma pia de pedra, debaixo de uma latada. As portas das janelas estavam entreabertas para deixar entrar na sala um raio de sol, que se estendia aos pés do velhinho, como uma esteira de luz.

No outro canto da sala, a filha do capitão, sentada numa cadeirinha de pau, pospontava uma camisa de criança, mas tão pequenina, que parecia uma camisa de boneca! Ouviam-se até uns pequenos estalidos secos da agulha, atravessando a goma do morim (pano branco e fino de algodão) novo e em folha. O Abel!... Era um regalo vê-lo sentado no chão, em camisa, com as pernas roliças á mostra, um ventre redondinho de abade feliz, e os pezinhos cor de rosa!

Aos pés do avô, na réstia do sol, tremia a sombra dumas folhas do plátano do jardim. A criança engatinhou para lá. Como uma pequenina fera, atirando-se de golpe sobre a presa, o Abel lançou-se rapidamente sobre a sombra tremula das folhas - mas, que ludibrio! - ficou triste, espantado, com os olhos muito abertos, a contemplar a palma da mão vazia!

Ao lado estavam os grandes pés do avô, metidos nos dois grandes chinelos de tapete. Oh! eram duas colinas! E as pernas? As pernas pareciam dois enormes castelos roqueiros.

No espírito belicoso da criança surgiu a ideia terrível de os assaltar. Fincou as mãozinhas nos chinelos do avô, levantou-se valentemente nos pés, e upa! upa! arriba!

Nessa ocasião o velho sonhava:

Tinha remoçado cinquenta anos! Os franceses invadiam Portugal! Quando ele estava na tenda de campanha, a dormir no dia seguinte ao de uma batalha, viu entrar inesperadamente o exército de Bonaparte. As paredes de lona da tenda iam recuando, recuando, para dar entrada às hostes imensas do inimigo. Os esquadrões insofridos da cavalaria corriam sobre ele. Em volta da tenda levantou-se rapidamente - como nas mágicas do teatro! - uma bateria, com as bocas dos canhões apontadas para o leito. Os piquetes de infantaria corriam a marche-marche, de baionetas caladas, para o surpreenderem no sono. Ao fundo, no viso de um outeiro, Bonaparte, o terrível Bonaparte, com as suas botas de escudeiro e o seu chapéu de bicos posto de través, como o chapéu de um estudante de Salamanca, assestava sobre ele o óculo de alcance, sorrindo
alegremente da vitória!

O capitão Macário via tudo aquilo, ouvia o estrépito dos cavalos, o tropel da infantaria, as gargalhadas de Bonaparte, e sentia-se preso ao leito, impotente, inerme, ansiado, sem poder gritar!... Façam ideia!

De repente, todo aquele exército enorme se transformou num gigante, que lhe prendeu brutalmente as pernas com dois grilhões de ferro!

O capitão esforçou-se ainda por se levantar; mas conseguiu, apenas, depois de muito custo, soltar este brado aflitivo, com uma voz convulsa:

- Às armas!

E despertou, ouvindo as gargalhadas de... Bonaparte!

O velho abriu desmesuradamente os olhos, volveu-os espantado em torno de si; e, quando um instante depois, se sentiu completamente acordado, deu com o netinho, que lhe puxava pelas pernas, para lhe subir ao colo!

A criancinha estava com os olhos levantados para o avô, a sorrir, muito alegre, porque julgou que tinha sido para ela, como brincadeira, aquele grito sufocado - "Às armas"!

Fonte:
Alberto Braga. Contos d'Aldeia. Porto/Portugal: Cia. Portugueza Ed.,  1916.

domingo, 19 de maio de 2019

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 2


As canções dos pescadores
que escuto de volta ao cais...
São ladainhas de dores
dos que não voltam jamais!

Enquanto a tarde serena,
sepulta um sol tão bonito...
O sol tristonho, me acena
da solidão do infinito!

Escrava do teu assédio,
a minha alma com ternura,
faz dele, um santo remédio,
para um mal que não tem cura!

Há na eclosão de uma flor,
e no olhar de uma criança,
lindos caprichos do amor
orvalhados de esperança!

Já sentiste a dor insana,
do canto de um passarinho,
que canta a maldade humana
sobre as cinzas do seu ninho?...

Lembrar momentos risonhos
dos tempos da mocidade,
é torturar velhos sonhos
no por do sol da saudade!

Meu pai... Ao te ver agora,
curvado e contando os passos...
Dói-me ao lembrar, quando outrora,
andava tanto em teus braços!

Meus versos são quais crianças,
dóceis, inocentes, belas...
Que vão pintando esperanças
e emoldurando aquarelas!

No entardecer da cidade,
antes do sol se esconder...
Há mais cinzas de saudade
nas cinzas do entardecer!

O orvalho que não reclama,
é o sentimento profundo,
do pranto que Deus derrama
ante as maldades do mundo!

O tempo, com seus deslizes,
com seus conceitos fatais...
Por pouco, nos fez felizes,
mas quase tarde demais!

Põe na vida mais ternura...
Sê como a luz de candeia:
Quanto a noite mais escura,
mais ela brilha e clareia!

Quando o sol dobra os joelhos,
de rubro a tarde se banha,
para escutar seus conselhos
sobre os braços da montanha!

Quanto mais ouço conversas,
mais eu vejo esforços vãos,
em mãos, incultas, perversas,
escravizando outras mãos!

Saudade - é faca de ponta,
que fere qualquer pessoa...
Toda tarde, dobra a conta
no coração que magoa!

Se acaso a vida te afeta,
não guardes dela, rancor!
Pois, coração de poeta,
é a caixa postal do amor!

Se a tua cruz pesa tanto,
do peso, não faças conta;
que até o terço mais santo,
carrega uma cruz na ponta!

Se a vida é luz e esperança,
riso, alegria, acalanto...
Por que será que a criança
ao vir à luz, chora tanto?!...

Seguindo os teus passos certos,
não temo o peso da cruz!...
Quero em teus braços abertos,
crucificar-me de luz!

Sem teu amor eu não vivo,
sem teus abraços, tampouco.
Sou velho escravo e cativo
desse amor que me fez louco!

Sepultem-se as desavenças!
Se houver paz no coração,
vão-se todas as descrenças,
todas as mágoas se vão!

Se um sonho bom, não te alcança,
fujas da vida vazia,
plantando pés de esperança
na esquina de cada dia!

Teu adeus, triste miragem!
Aos teus sinais, me anteponho:
Porque buscar noutra imagem,
a ilusão de um novo sonho?

Tu tens dois gestos dos sábios,
no teu modo de pensar:
Tens o silêncio em teus lábios
e a humildade em teu olhar!

Fonte:
Livro gentilmente enviado pelo autor:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar vol. 2. 2.ed. Caicó/RN: Edição do Autor, 2018.

Carlos Drummond de Andrade (Caso de escolha)


O padrinho foi ao colégio, na Muda, e tirou Guilherme para passear. Olhos de inveja do irmão, também interno, mas sem direito a sair, porque seu comportamento era do tipo “deixa muito a desejar”, na linguagem do padre reitor. Desejar o quê — ele não sabia. Sabia que o irmão ia gozar a vida lá fora, ar, ruas, cinemas, tudo aquilo que vale a pena, enquanto ele, Gustavo, continuaria mergulhado no mar-morto do pátio, dos corredores, do nhe-nhe-nhem cotidiano.

Guilherme tinha planos para a emergência, e todos se resumiam em tirar o máximo possível da liberalidade do padrinho.

— O senhor me dá um presente de aniversário?

— Seu aniversário é daqui a oito meses.

— É, mas…

— Bem, eu dou.

O padrinho propôs-lhe um blusão alinhado, mas ele entendia que roupa é obrigação de pai e mãe — não vale. Livro também não. Nas férias aceitaria a coleção de science fiction, mas em pleno ano letivo, para descanso de tanta labuta no campo da ciência e das letras, o que lhe convinha mesmo era um brinquedo bem legal.

— Brinquedo? Mas você pode brincar com essas coisas no colégio?

— Posso.

Talvez não pudesse, mas isso eram outros quinhentos. Foram à loja de brinquedos. O problema era escolher entre o trem elétrico, o foguete cósmico, a caixa de aquarela, o equipamento de Bat Masterson, o cérebro eletrônico e outras infinitas tentações.

— Vamos, escolhe — dizia o padrinho, disposto a tudo, menos a esperar.

Ele comparava, meditava, decidia, arrependia-se. E como era impossível levar todos os brinquedos que o atraíam, pois cada um tinha seu inconveniente, que era não ter as qualidades dos demais, repeliu todos:

— Quero aquela gaitinha. Aquela verde, ali.

O padrinho fez-lhe a vontade, sem compreender. Uma bobagem de oitenta cruzeiros!

No colégio, Gustavo queria saber. E sabendo, escarneceu:

— Você é mesmo uma besta. Tanta coisa bacana para escolher, e vem com essa gaitinha mixa.

Guilherme quis provar que não era mixa coisa nenhuma, tinha um engaste de pedrinhas faiscantes, som espetacular. O irmão voltou-lhe as costas, com desprezo:

— Palhaço!

Ah, se fosse com ele… E Gustavo passou a comportar-se melhor, na esperança de também ir à cidade.

Um dia o padrinho dele apareceu, saíram. Aplicou o golpe do aniversário. O padrinho, igual a todos os padrinhos do mundo, pensou em oferecer-lhe um blusão alinhado. Recusou, e foram parar na loja de brinquedos. Gustavo olhou superiormente para o monte de coisas que derrotara Guilherme. Sabia escolher, e preferiu logo a metralhadora japonesa. Mas pensou que se cansaria depressa do seu pipoco; trocou-a por um marciano com bateria; os marcianos passam de moda; quem sabe se esse laboratório de química? Não, chega a química do programa. Foi escolhendo, refugando, substituindo. O padrinho consultava o relógio: “Escolhe, menino!”. Era preciso escolher para sempre. E nada lhe agradava para sempre, nada valia verdadeiramente a pena.

Com angústia lembrou-se do irmão, procurou aflito uma coisa no milheiro de coisas e, apontando-a, murmurou:

— Quero aquela gaitinha.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Pedro Nava (Poemas Escolhidos)


ALCAZAR

Para Rachel de Queiroz
Rosa de neve,
estrela expandida
no fim da noite!
Estrela perdida
que tremes no alto
das chapas de vidro
do céu cristalino!
Surges discreta
como os ladrões...

A luz que enlouquece
vem das espiras
que riscam no ar
as cores agudas
do teu espectro!

Tua luz se insinua
nos olhos dos doidos.

— És tu que te infiltras
nas lágrimas turvas
que empastam a cara
dos bêbados tristes.

— És tu que lampejas
no mar que se fecha
ao baque cadente
do corpo silente
dos suicidas.

Como és única e clara
quando cintilas
na franja escura
que o dia dilui,
— no límpido instante
em que te exorbitas
e logo te esvais:
Brilhas tão pouco
no fim da noite
— ciclo irisado,
rosa expandida!
Brilhas tão pouco
que mal consigo...
captar teu lume
num breve segundo
de lucidez,
que presto deslumbra
e também desmaia
como luz perdida
no fim da noite.

VENTANIA

Pro Mário

O vento veio maluco lá do alto do Bonfim
e veio chorando da tristura do cemitério.

Zuniu na praça do mercado
assoviou as mulatas avenida do comércio
e mexeu na saia delas.
Arrancou folha das árvores
poeira sungou do chão
depois virou
                 soprou
                           correu
                                      danou
e entrou feito uma carga na avenida Afonso Pena,

O obelisco cortou ele pelo meio
mas ele foi avoando
e os fios da C.E.V.U. como cordas de viola
vibraram dum som longo
que cobriu Belo Horizonte feito um lamento.

O vento passou desmandado no Cruzeiro
saiu pro campo dobrou a mata
mas de repente
sua disparada para na parede Serra do Curral
e o bicho stopa mas sapeca no morro um sopapo
que estrala que nem jenipapo
que mão raivosa
chispasse num muro curo..

Co-nhe-ceu papudo?

O DEFUNTO

Quando morto estiver meu corpo,
Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
Nem os ramalhetes distintos,
Os superfinos candelabros
E as discretas decorações.

Quero a morte com mau-gosto!

Deem-me coroas de pano.
Deem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
Que a vejam bem os amigos.
Que não a esqueçam os amigos.
Que ela ponha nos seus espíritos
A incerteza, o pavor, o pasmo.
E a cada um leve bem nítida
A ideia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos.
Não se esqueçam destas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
Em que sexos demoraram
Seus sabidos quirodáctilos?

Foram nelas esboçados
Todos os gestos malditos:
Até os furtos fracassados
E interrompidos assassinatos.

— Meus amigos! olhem as mãos
Que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam! Elas fugiram
Da suprema purificação
Dos possíveis suicídios.

— Meus amigos, olhem as mãos!
As minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo,
E até mesmo do meu corpo
As partes excomungadas,
As sujas partes sem perdão.

— Meus amigos, olhem as partes...
Fujam das partes,
Das punitivas, malditas partes ...

E, eu quero a morte nua e crua,
Terrífica e habitual,
Com o seu velório habitual.

— Ah! o seu velório habitual!

Não me envolvam em lençol:
A franciscana humildade
Bem sabeis que não se casa
Com meu amor da Carne,
Com meu apego ao Mundo.

E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
Calça listrada, plastrom...
E os mais altos colarinhos.

Deem-me um terno de Ministro
Ou roupa nova de noivo ...
E assim Solene e sinistro,
Quero ser um tal defunto,
Um morto tão acabado,
Tão aflitivo e pungente,
Que sua lembrança envenene
O que resta aos amigos
De vida sem minha vida.

— Meus, amigos, lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
Deste pobre terrível morto
Que vai se deitar para sempre
Calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão

Os penetras escorraçados,
As prostitutas recusadas,
Os amantes despedidos,
Como os que saem enxotados
E tornariam sem brio
A qualquer gesto de chamada.

Meus amigos, tenham pena,
Senão do morto, ao menos
Dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
Sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos,
E olhai os vossos também.

Fonte:
Jornal de Poesia

Chico Anysio (Frustração)


— Não posso, Míriam. Hoje é impossível. Liga amanhã.

Regina Célia é o seu nome. Está de vestido azul-claro e com os nervos em pandarecos. Toma um copo de água com açúcar, à falta de um tranquilizante alopático. Acredita ter me­lhorado. Precisa dos nervos, hoje, mais do que nunca.

O verão incendeia o subúrbio de Regina Célia. A rua des­calça onde mora avermelha-se pela poeira que o vento joga. Mastiga o almoço sem vontade ou prazer. Belisca, apenas, o que põe no prato.

— Come, menina!

— Tou sem fome, mãe.

— Que sem fome. Come!

Dá mais duas garfadas e repudia o almoço, afastando o prato da sua frente. Nem aceita sobremesa.

— Mais me sobra — diz o pai, puxando pra seu lado a goiabada com queijo de Regina Célia.

Chega a colega. Igualmente de azul, igualmente Regina.

— Vamos?

— É cedo — a colega adverte.

— Lugar de esperar a missa é na igreja.

A colega concorda. Despede-se dos pais com um beijo sem carinho, automático.

— Veja lá a hora que vai chegar.

— Oh, mãe, até parece...

— Antes das onze em casa.

— Tá certo — concorda, aborrecida.

Não gosta de ser tratada como criança na frente das co­legas. Afinal, já tem 17 anos.

Saem de braços dados, sorrindo, felizes, as duas Reginas.

Olavo as espera no ponto do ônibus. Três pontos à frente sobe Reinaldo. Cada um com sua Regina. Viajam em pé até a Praça da Bandeira, onde o ônibus se esvazia da gente que vai para o Maracanã.

— Tá nervosa?

— Hum, hum.

— Bobagem.

Mas está. Não consegue se controlar. Regina Segunda morde e é mordida, no banco de trás.

— Que horas são?

— Quatro horas. É cedo à beça.

— Lugar de esperar a missa é na igreja.

Olavo concorda. Têm as mãos dadas quando o ônibus engole o Aterro.

— Agora estou mais calma.

— Respira fundo três vezes.

Ela respira cinco. É a mesma coisa. Mas diz-se mais calma. De noite estará segura de si, forte, tranquila, como precisa.

Saltam defronte ao cinema. Olavo espia os cartazes de um filme de bangue-bangue, enquanto esperam que o sinal feche para poderem atravessar a rua. Regina Segunda despreza o claro da tarde, preferindo uma atitude de anoitecer, junto com Reinaldo, cabelo liso e penteado para trás.

Há muita gente em volta para que Regina Segunda, agora, continue comportando-se como no ônibus, como em frente ao cinema. Controla-se e controla Reinaldo, impulsivo, faminto.

— Calma. Aqui, não.

— Que que tem?

Reinaldo tem fome, não quer esperar. Regina Célia transpira debaixo do braço, deixando nascer uma mancha antiestética no vestido azul-claro.

— Tá suando às pampas — comenta Olavo.

— Um pouquinho.

O homem ordena que o sigam. Esta ordem não é dirigida a Olavo, Reinaldo, Regina Segunda.

— Tchau, bem.

— Tchau.

Regina Célia desaparece pela porta de vidro. Os três vão ao bar.

— Três cachorros e três laranjadas.

Comem e bebem o que será jantar.

Oito horas.

— Tá na hora.

— Vamos.

Os três se acomodam o melhor que conseguem. Estão, agora, tão nervosos quanto Regina Célia. Agora, sim, entendem o que ela deve estar sentindo.

— Dá um beijinho.

Reinaldo pede, Regina Segunda concede. Olavo repreende aquele comportamento. Ainda mais agora, num momento tão importante. Os dois se controlam. Cada um num canto da poltrona, evitando, principalmente, que as pernas se toquem.

— Trono das cantoras...

Prendem a respiração. O homem de chapéu engraçado faz graça com Regina Célia, tentando acalmá-la.

— O que é que você vai cantar, minha filha?

— "Triste Madrugada".

Na plateia há três respirações presas. O conjunto faz a introdução e ela entra fora do tempo. Escuta-se uma buzina.

— Salve, salve, salve...

O animador muda de assunto, ignorando Regina Célia, que sai chorando do palco.

Na casa da rua descalça, mais do que Regina Célia, mais do que Olavo e do que o casal que se beija, os pais, aborrecidos, desligam a televisão, repudiando o que consideram uma injustiça.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

sábado, 18 de maio de 2019

Aurineide Alencar (1º Colar de Trovas)


Organização: Aurineide Alencar - MS

Tema: *Mulher*

No Colar de Trovas, o trovador seguinte inicia a trova com o último verso da trova do trovador anterior (em negrito o verso que se repete na trova subsequente). O colar fecha com o último trovador encerrando a trova no quarto verso, com o primeiro verso da trova do primeiro trovador.
 
01
O conceito é de um poeta,
aceite-o, pois, quem quiser:
"Felicidade completa
não pode haver, sem mulher"!
(Carlos Guimarães - RJ+)

02

Não pode haver sem mulher
filho, amor, felicidade.
Sempre dizer, faz mister,
completa a minha metade.
(Francisco Ferreira - MG)


03
Completa a minha metade,
esse presente de Deus,
a mulher, pura bondade,
fez só para os filhos seus.
(Antônio Cabral Filho - RJ)


04
Fez só para os filhos seus,
formando belo casal.
Ela inspira os versos meus
com o odor de um roseiral.
(Oliveira Caruso - RJ)

05
Com odor de um roseiral,
que distava bem além,
homem chora em seu beiral,
porque uma mulher não tem!
(Antônio de Pádua Elias de Souza - MG)

06

Porque uma mulher não tem
defeito que a desmereça.
E o prazer quando ama alguém
sobe dos pés à cabeça.
(Antônio Francisco Pereira - MG)

07
Sobe dos pés à cabeça

aqui tem duplo sentido,
até que o vulcão aqueça
E exploda em doce gemido.
(Gilberto Cardoso dos Santos - RN)

08

Exploda em doce gemido
todo o amor de uma mulher,
que ela tenha garantido
o carinho que quiser.
(Aurineide Alencar - MS)

09
O carinho que quiser

mas dado sob medida,
pois o que a mulher mais quer
é se sentir protegida.
(Gilberto Cardoso dos Santos - RN)

10
É se sentir protegida

no seio do seu amante,
pois a mulher só tem vida
quando amar é o bastante.
(Antônio Cabral Filho - RJ)

11
Quando amar é o bastante,

em noites de cheia lua,
nas confidências de amante,
envoltos na pele nua.
(Antônio de Pádua Elias de Souza - MG)

12
Envoltos na pele nua

sentiram a gostosura,
emanada da cheia lua
e da mente bem impura.
(Prof. Roque - RS)


13
E da mente bem impura,

surge uma trova bendita,
com muito amor e candura,
pra mulher meiga e bonita.
(Luiz Claudio - RN)            

14    
Pra mulher meiga e bonita,
meus cumprimentos de irmã.  
Tal jeito possibilita 
a nobreza da cristã.
(Lola Prata - SP)

15
A nobreza da cristã

doce, feliz, encantada,
fazendo o papel de irmã
até o fim da sua jornada.
(Prof. Roque - RS)

16
Até o fim da sua jornada

a mulher sempre estará,
de luz e amor bem armada
e entre nós triunfará!...
(Luiz Cláudio - RN)

17
E entre nós triunfará

com todo seu esplendor,
não importa aonde vá,
a mulher, fonte do amor.  
(Antônio Francisco Pereira - MG)

18
A mulher, fonte de amor,

fecundadora da vida,
tem seu fio condutor
implantado na guarida.
(Francisco das Chagas Farias - RN)

19
Implantado na guarida

ela é sempre fiel,
ela é minha vida
é dela também o céu.
(Madalena Cordeiro - ES)

20
É dela também o céu,

assim como a terra e o mar.
Homem, tire o seu chapéu
sempre que a dama passar.
(Oliveira Caruso - RJ)

21
Sempre que a dama passar

ela ouvirá um fiu fiu,
é alguém a cortejar
uma dama do Brasil.
(Madalena Cordeiro  - ES)

22
Uma dama do Brasil

agindo como profeta,
planta sonho, juvenil,
o conceito é de um poeta.
(Aurineide Alencar - MS)

Fonte:
Antonio Cabral Filho. Trovadores do Brasil

Luiz Poeta (Azuis)


Elas estavam nos lados opostos da rua. Uma chamava-se Ruth; a outra, Carolina. Precisavam de um nome, entretanto a espontânea maneira como se miravam à distância de uns vinte metros dava-lhes uma especial identidade.

Não havia semáforos e os carros eram mecanicamente vorazes, mas as duas ignoravam suas velocidades; fitavam-se alheias aos flashes de cada veículo a oitenta quilômetros horários sobre a sedutora e lisa excitação do asfalto.

Os sorrisos tornaram-se reciprocamente simultâneos. O de oitenta e cinco anos nunca fora tão inocente; o de três, tão ávido. Ambos, cada qual com sua tema peculiaridade, eram uma agradável e afetuosa conversa sem palavras,

Ruth sorria para um nebuloso tempo do seu passado; Carolina, para um futuro longínquo, ambas magnetizadas pelo inusitado brilho de dois olhares profundamente azuis... azuladamente felizes.

Num átimo, depois que dois últimos carros cruzaram-se oportunamente, não titubearam: atravessaram logo a rua. Uma, vagarosamente apoiada na expressiva nudez de uma bengala de madeira; a outra, aos pulinhos, solta sob o vento realçando os movimentos do vestidinho rosa.

Encontraram-se quase no meio da estrada, sob os implacáveis raios de sol do mês de dezembro... afinal, precisavam de uma data para celebrar aquele momento pleno de embevecimento e excitação.

Não se conheciam, porém não havia necessidade de apresentação; os sorrisos cumprimentavam-se desde a primeira troca de olhares.

Pararam uma frente a outra, numa serenidade contemplativa de cujos azuis emanavam eternidades.

A menininha alongou a frágil mãozinha, puxando carinhosamente a idosa para o lado de onde viera. Era um retorno marcado por cuidadosa precaução, numa silenciosa e lírica perenidade de passos calculados.

Findo o trajeto, num quase derradeiro sorriso de felicidade, retribuído por outro de agradecimento. Carolina simulou retomar.

A velhinha comprimiu sua mãozinha com suavidade, como que pedindo mudamente que aguardasse. A seguir, abriu uma antiga e rota bolsa que levava consigo, retirou dela uma frágil bonequinha de pano c entregou-a para a menina.

O êxtase durou o tempo do embevecimento que eternizaria aquele sublime instante.

A inefável fisionomia de Carolina congregava todos os risos num único sorriso imediatamente correspondido.

Em reverência àquele lírico momento marcado pela leveza de gestos, os carros foram parando... um... a um... para que a menina de três anos avançasse levando, nos seus momentos mais azuis, a realização de um sonho tão grandioso e necessário como a sua aparentemente menor e mais expressiva atitude.

Carolina voava como um passarinho e nem o calor do asfalto incomodava a maciez dos seus pezinhos descalços. Na mão, a bonequinha de pano parecia dizer adeus à úmida lágrima de Ruth, que deslizava afetuosa sobre o melhor dos seus silêncios e o mais sublime dos seus sorrisos... azuis.

(Texto premiado pela União Brasileira de Escritores)

Fonte:
Livro gentilmente entregue pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) XI


INCERTEZA

Desde a manhã tristonha em que partiste
que não posso pensar senão em ti,
tenho a louca impressão que te perdi
que nada mais entre nós dois existe...

Ao te ver a sorrir, como sorriste
no instante da partida, compreendi,
- que talvez, nunca mais voltes aqui...
- que hei de viver eternamente triste...

Por que tu me deixaste a duvidar?
Preferia mil vezes a certeza,
Já que um dia a certeza há de chegar...

Nem sabes a amargura que me invade,
- a vida que hoje levo, é uma tristeza,
um misto de tristeza e de saudades!

INCOERÊNCIA?

Achas-me indiferente... e até crês que há desdém
quando falo de amor em palavras singelas...
- pensas que as juras todas que já ouviste, aquelas
juras, a outras mulheres vou fazer também...

Dizes que não te quero... E eu te pergunto: - a quem
devo tudo o que fiz, as poesias mais belas?
- outras dirão talvez que as fiz pensando nelas,
mas todas te pertencem mais do que a ninguém!

Não vês que o que te cerca é a mentira da vida...
- nem sabes descobrir essa paixão imensa
que o meu orgulho torna egoísta e dolorida...

Não vês que o meu viver é falso, - e se resume
em te amar como um louco em minha indiferença,
e fingir que amo as outras para teu ciúme !

INCONSTÂNCIA

É o meu destino: - hei de seguir assim
como um novo amor por sol, em cada dia...
- o que há pouco era tudo o que queria
já agora não é nada para mim...

Só vive, o que ainda é sonho e fantasia!
O que conquisto encontra logo um fim...
O amor que nasce cheio de alegria
hoje - morre amanhã cheio de esplim...

Inconstante e volúvel, meus desejos
- tem a alma das bolhas de sabão
e a duração efêmera dos beijos...

O amor - é a vida de um perfume no ar,
o encanto de um segundo de ilusão...
- a beleza da espuma sobre o mar!...

INCONSTANTE...

I

Ela partiu... Deixou-me... E em despedida
uma carta ficou em seu lugar,
pois não teve coragem na partida
de cruzar, seu olhar com o meu olhar...

Partiu... Não compreendeu meu sentimento,
desprezou meu amor... minha afeição...
Quis apagá-la, então, do pensamento,
mas foi tudo desejo... tudo vão...

Se ela voltasse, um dia, ainda pensei,
por castigo, jamais, a perdoaria...
e um dia, ela voltou... E nesse dia
eu abri os meus braços, e a perdoei...

II
 
Esqueci minha dor e os meus receios,
reconstruí de novo os meus castelos,
- senti meus olhos novamente cheios
com os meus sonhos mais puros e mais belos...

Cumulei-a de amor e de carinho,
realizei seus mais íntimos desejos,
e as ânsias que guardei, quando sozinho
libertei-as felizes nos meus beijos...

III

Hoje - vivo sozinho novamente...
Ela partiu... Nem disse que ia embora...
Não deixou uma linha, uma somente,
nem uma só, como fizera outrora...

E amanhã, se voltar - ingenuamente
virá pedir perdão do que me fez,
- e hei de esquecer de tudo, novamente,
- e os braços, hei de abrir, mais uma vez!...

INÉDITO...
Relendo o último verso que compus
pouso entre as mãos maquinalmente o rosto,
e o olhar deixo vagar para o sol posto
onde o céu é um borrão de sombra e luz...

Um sossego interior, em mim, produz,
esta tarde fugindo ao mês de agosto...
- nas vitrines do espaço, onde era exposto
o sol, surge uma estrela que transluz...

Alguém põe-se às centenas a acendê-las,
e cada uma que a luz tinha escondido
brilha, e ao brilhar, enche-se o céu de estrelas...

E fitando-as, dispersas, no infinito,
sei, que apesar de nunca ter lido,
nos céus há um poema há muito tempo escrito...

INSATISFEITO

Quem ler os versos meus onde há certa tristeza
e certo desencanto suave e contrafeito,
poderá num momento pensar, com certeza,
que trago inutilmente um coração no peito!...

E que vivo afinal inquieto e insatisfeito
de paixão em paixão... de surpresa em surpresa,
- como um rio a mudar o curso do seu leito
sem saber aonde o arrasta a própria correnteza!

E acertará talvez, - pois falta essa mulher
que consiga escrever seu nome em minha vida
sem deixar no passado outro nome qualquer...

Falta-me um grande amor... Falta-me tudo em suma!
E sinto a alma vazia, estranha e incompreendida
por ter amado tantas sem amar nenhuma!

INUTILIDADE

Tenho vontade, as vezes, de sair da vida,
bato asas sofregamente
até que cansado jogo-me em mim mesmo
e desperto na queda da inutilidade...

Invejo o destino livre da fumaça,
tenho pena de mim,
tenho pena dos homens,
vendo aquele besouro a procurar espaço
e a bater na vidraça...

INUTILMENTE

Há de ser desta vez... Dir-lhe-ei contente
todo este amor que no meu Ser se abriga,
e tomando-lhe as mãos bem docemente
relembrarei a nossa infância antiga...

E a dúvida que guardo e que a alma sente
hei de acabar dizendo:- "minha amiga,
quero, ouvi-la afinal sinceramente
sem recear ferir com que me diga..."

Penso assim... E no entanto, quantas vezes
tenho-a encontrando, e inutilmente os meses
e os anos vão passando entre nós dois...

Basta vê-la e em minha alma acovardada,
- já não sei nada, nem me lembro nada
e deixo tudo pra dizer depois !

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Alcântara Machado (O Patriota Washington)


O sol ilumina o Brasil na manhã escandalosa e o Doutor Washington Coelho Penteado no rosto varonil. Há trinta e oito anos Deodoro da Fonseca fundou a República sem querer. O doutor pensa bem no acontecimento e grita no ouvido do chofer:

- Toca pra Mogi das Cruzes!

Minutos antes arrancara da folhinha do EMPÓRIO UCRANIANO a folha do dia 14. Cercado pelos filhos escrevera a lápis azul na do dia 15: Viva o Brasil! E obrigara o Juquinha a tirar o gorro marinheiro porque ainda não sabia fazer continência.

Muitíssimo bem. Agora segue de Chevrolet aberto para Mogi das Cruzes. Algum dia no mundo ia se viu uma manhã tão linda assim?

Êta Brasil.

Êta.

Na lapela uma bandeirinha nacional. Conservada ali desde a entrada do Brasil na grande conflagração. Ou bem que somos ou bem que não somos. O doutor é de fato: brasileiro graças a Deus. Onde desejava nascer? No Brasil está claro.

Ao lado dele a mulher é assim assim. Os filhos sabem de cor o hino nacional. Só que ainda não pegaram bem a música. Em todo o caso cantam às vezes durante a sobremesa para o doutor ouvir. A bandeira se balançando na sacada do Teatro Nacional lembra ao doutor os admiráveis versos do poeta dos Escravos.

- Sim senhor! É bem a brisa de que fala Castro Alves.

- Que brisa, Nenê?

- Nada. Você não entende.

Ele entende. E goza a brisa que beija e balança.

- O Capitão Melo me afirmou que não há parque europeu que se compare com este do Anhangabaú.

- Exagero...

- Já vem você com a sua eterna mania de avacalhar o que é nosso! Pois fique sabendo...

Fique sabendo, Dona Balbina. Fique a senhora sabendo que o que é nosso é nosso. E vale muito. E vale mais que tudo. Vá escutando. Vá escutando em silêncio. E convença-se de uma vez para não dizer mais bobagens.

- Veja o movimento. E hoje é feriado, hein! Não se esqueça! Paris que é Paris não tem movimento igual. Nem parecido.

- Você nunca foi a Paris...

Isso também é demais. O melhor é não responder. Homem: o melhor é estourar.

- Meu Deus do céu! Não fui mas sei! Toda a gente sabe! Os próprios franceses confessam! Mas você já sabe: é a única pessoa no mundo que não reconhece nada, não sabe nada!

Guiados pelo fura-bolos do doutor todos os olhares se fixam na catedral em começo.

- Vai ser a maior do mundo! E gótica, compreenderam? Catedral gótica!

Na cabeça.

Gostosura de descer a toda a Ladeira do Carmo e cair no plano do Parque D. Pedro II.

- Seu professor, Juquinha, não lhe ensinou que D. Pedro era amicíssimo, do peito mesmo, de Victor Hugo, gênio francês?

Juquinha nem se dá ao trabalho de responder.

- Pois se não ensinou fez muito mal. Amizades como essa honram o pais.

O chofer não deixa escapar um só buraco e Dona Balbina põe a mão no coração. Washington Coelho Penteado toma conta do cláxon (buzina).

- São um incentivo para as crianças. Quando maiores procurarão cultivá-las também.

O vento desvia as palavras do doutor, dos ouvidos da família. O Chevrolet não respeita bonde nem nada. Pomba só levanta o voo quando o automóvel parece que já está em cima dela.

- Este Brás! Este Brás! Não lhes digo nada!

Dez fósforos para acender um cigarro.

Dona Balbina olha a paineira. Mesma coisa que não olhasse. Juquinha vê um negócio verde. Washington Júnior um negócio alto. O doutor mais uma prova da pujança primeira-do-mundo da natureza pátria.

Interjeição de admiração. Depois:

- Reparem só na quantidade de automóveis. Dez desde São Miguel! E nenhum carro de boi!

60 por hora.

O Chevrolet perde-se na poeira. Dona Balbina se queixa. Juquinha coça os olhos.

- Pó quer dizer progresso!

Palavras assim são ditas para a gente saborear baixinho, repetindo muitas vezes. Pó quer dizer progresso. Logo surge uma variante: Pó, meus senhores, quer dizer tão simplesmente progresso. Na antiga Grécia... Mas uma dúvida preocupa o espírito do doutor: a frase é dele mesmo ou ele leu num discurso, num artigo, numa plataforma política? Talvez fosse do Rui até. Querem ver que é do bichão mesmo? Engano. Do Rui não é. Do Epitácio, do Epitácio também não. Não é nem do Rui nem do Epitácio então é dele mesmo. É dele.

Washington Júnior com o dedo no cláxon está torcendo para que apareça uma curva.

Velocidade.

- O Brasil é um gigante que se levanta. Dentro em breve...

Era uma vez um pneumático.

- Aquele telhado vermelho que vocês estão vendo é o Leprosário de Santo Ângelo.

É preciso ser bacharel e ter alguns anos de júri para descrever assim tão bem os horrores da morfeia também cognominada mal de Hansen, esse flagelo da humanidade desde os mais remotos tempos.

 Dona Balbina se impressiona por qualquer coisa. Mas agora tem sua razão.

 Altamente patriótica e benemérita a campanha de Belisário Pena. A ação dos governos paulistas igualmente. Amanhã não haverá mais leprosos no Brasil. Por enquanto ainda há mas isso de ter morfeia não é privilégio brasileiro. Não pensem não. O mundo inteiro tem. A Argentina então nem se fala. Morfético até debaixo d`água. E não cuida seriamente do problema não. Está se desleixando.

 É. Está. Daqui a pouco não há mais brasileiro morfético. Só argentino. Povo muito antipático. Invejoso, meu Deus. Não se meta que se arrepende. Em dois tempos... Bom. Bom. Bom. Silêncio que a espionagem é brava.

 As casas brancas de Mogi das Cruzes.

- Qual é o número mesmo daquele automóvel que está parado ali?

- P. 925.

- Veja você! P. 925!

Uma volta no largo da igreja. Parada na confeitaria para as crianças se refrescarem com Mocinha. Olhadela disfarçada em quatro pernas de anjo. Saudação vibrante ao progresso local.

Chevrolet de novo.

- Toca pra São Paulo!

Primeira. Solavanco. Segunda. Arranco. Terceira. Aquela macieza.

- Não! Pare!

- Pra quê, Nenê?

- Uma coisa. Onde será o telégrafo?

Onde será? Que tem, tem.

- O patrício pode me informar onde fica o telégrafo?

Muito fácil. Seguir pela mesma rua. Tomar a primeira travessa à direita. Passar o largo. Passar o sobradão vermelho. Virar na primeira rua à direita.

- Primeira á direita?

Primeira à direita. Depois da terceira é o prédio onde tem um pau de bandeira.

- Pau, não senhor. Bandeira desfraldada porque hoje é 15 de Novembro. Muito agradecido.

Faz a família descer também. Puxa da caneta-tinteiro, floreiozinho no ar, começa: Ex. Sr. Dr. Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Palácio do Catete. Vale a pena pôr a rua também? Não. O homem tem que ser conhecido por força. Bem. Rio de Janeiro. Desta adiantada cidade tendo vindo Capital Estado uma hora dezessete minutos magnífica rodovia enviamos data tão grata corações patrióticos efusivos quão respeitosos cumprimentos erguendo viva República V. Ex.a. Que tal?

 Ótimo, não? Só isso de República V. Ex.a é que está meio ambíguo. Parece que a República é de S. Ex.a. Não está certo. A República é de todos. Assim exige sua essência democrática. Assim sim fica perfeito: República e V. Ex.a Bravo. Dr. Washington Coelho Penteado, senhora e filhos.

- Quinze e novecentos.

- E eu que ainda queria pôr uma citação!

Não precisa. Como está está muito bonito.

- É bondade sua. Uma coisinha ligeira, feita às pressas...

Enquanto o telegrafista declama os dizeres mais uma vez Washington Coelho Penteado passa os quinze mil e novecentos réis.

Em plena rodovia de repente o doutor murcha. Emudece. Dona Balbina que estava dorme-não-dorme despertou com o silêncio. O doutor quieto. Mau sinal. Procurando adivinhar arrisca:

- Que é que deu em você? O preço do telegrama?

O gesto deixa bem claro que isso de dinheiro não tem a mínima importância.

Dona Balbina pensa um pouquinho (o doutor quieto) e arrisca de novo:

- Medo que o chefe saiba que você usa o automóvel de serviço todos os domingos? Domingos e dias feriados?

O gesto manda o chefe bugiar no inferno.

O Chevrolet corre atrás dos marcos quilométricos.

Só ao entrar em casa o doutor se decide a falar.

- Esqueci-me de pôr o endereço para a resposta!...

- I-DI-O-TA!

Olhem só o gozo das crianças.

Fonte:
Alcântara Machado. Laranja-da-China.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 2


CASULO DE VIDRO

Ofusca-me a visão
Esses encontros com o espelho
A dualidade entre o passado
E o  presente, repleto de ausências,
Dos traços envoltos em brumas
O doloroso mergulho:
Quebrar o espelho
Sem fragmentar a essência
Sentir na pele, a lâmina que corta
E recorta - cura -
Desfalecer de dor
No silenciar da alma,
Na solidão do "casulo de vidro"
Buscando respostas
Na sequência de pétalas eternas-
“Flor da Vida”-
Aroma de bálsamo –
Aquietando meu coração.

GÉLIDOS CAMINHOS

Apaixona-se o tempo
Ao olhar os veios do mármore
Gélidos caminhos...

Apaixona-se o vento
Ao desenhar círculos no lago,
Movendo a breve bolha de sabão-

Apaixonam-se os ramos
De camomila à caneca de ágata
Ao sentirem a água desaguando,

Contidos no tempo, no vento
E no aroma de camomila
Momentos de amor –
Sincronicidade,

Poemas ao alcance
Das pontas dos dedos...

HÁ UM ENCANTO NA MELANCOLIA

E a chuva continua...
Do vidro do carro
Observo a
A paisagem líquida
Que em tons de verde e cinza
Passa depressa...
Há um encanto na melancolia,
Dividindo o cristal da taça
Fazendo-me companhia
Nesta tua ausência,
E, na lembrança dos teus beijos
Com gosto e aroma do chá de morangos
Despedindo-se aos poucos,
Há um encanto na melancolia
Que dilacera a alma,
Repleta de uma saudade,
Das tuas poesias,
E mensagens de amor
Que, ainda navegam  em imagens
De sonhos...
Há um encanto na melancolia
Qual uma tela com pontilhismo,
Pincelando em  meu coração
Um amor tão intenso e impossível,
Repleto de inquietos e alegres
Pontinhos de cores,
Ah, a melancolia encanta-se
Com esse lento passar das horas,
Em que a imobilidade dos sinos de vento
E a ponta quebrada do lápis
Adiam um ponto final

OUTONO EM TAÇA

Do ombro de vidro desliza
Sem pressa, uma gota de vinho
E  chega  envolvente e arrepia
O rótulo com cachos de uva,
Sob, o olhar sedutor da taça vazia-
À espera do aroma encorpado,
Suavemente, adocicado...

Entre a verde garrafa
E transparência do cristal
O silêncio e recato
Da folha de plátano.

PRELÚDIO DO ANOITECER

Esmaece o fim de tarde
Quase, posso tocar
As nuvens, em degrade
Ah, esse silêncio encantado
Do outono em gotas
À beira do lago beijando as folhas,
Sussurrando às flores
Um poema de amor,
Enquanto  embala
A despedida do dia
Na cadeira de balanço
E nesse amenizar da respiração
Da saudade tão intensa,
Mas calada - disfarçada - lágrima
Deixo as lembranças
De cada detalhe
Do teu corpo junto ao meu
Mesclarem-se, unificando-nos
Nesse terno e apaixonante
Prelúdio do anoitecer...

TUDO DÁ SAUDADE...

De madrugada,
Deixei as dobras
Da camisa de seda,
Feito
Pequenas ondas acariciarem
Meus seios, colo e braços...
Hoje de madrugada,
Entreguei-me às lembranças
Da maciez dos teus lábios
Doce invasão - permitida -
Do gosto delicioso e único
Dos teus beijos –
Deixei que as notas mescladas
Dos nossos perfumes me envolvessem,
Intensamente...
Hoje de manhãzinha,
Deixei as gotas de orvalho
Umedecerem meu corpo,
Banharem minh'alma
E senti  a presença do teu vento,
Do toque Sutil – incandescente
Das tuas mãos, desvendando
Com as pontas dos dedos
Caminhos em mim -
Tudo dá saudade...

VIDA EM VERDES VERSOS

Na imobilidade dos seus gestos
O Olhar intenso, atento.
Em total cumplicidade com a folha
Torna-se parte delas
Num mágico entrelaçar de vidas:
Louva-a- deus e folha
Ele, na solidão e expectativa de seus breves dias,
Uma vida plena...
Ela, a folha observa e o admira.
O mágico dos disfarces
Imita as cores à sua volta,
E, assim inspira poemas:
Vida em verdes versos...

Fonte:
Recanto das Letras
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