sexta-feira, 21 de junho de 2019

Antonio de Trueba (1819 – 1889)


Antonio de Trueba y de la Quintana (conhecido também como «Antón el de los Cantares») nasceu na comarca Las Encartaciones, em Montellano, município de Galdames, província de Vizcaya, Espanha, a 24 de dezembro de 1819. Filho de camponeses muito obres, sua vocação literária começou com os romances cegos (literatura de cordel) que seu pai lhe trouxe quando veio visitar uma feira. Ele teve que sair da escola em breve para trabalhar na terra e nas minas de Las Encartaciones, sua terra natal. Quando tinha quinze anos de idade (1834), foi a Madri para a primeira Guerra Carlista; Ele foi usado na loja de ferragens de um tio e usou do tempo para dormir para autodidatismo e leitura de autores românticos espanhóis.

Em 1845, ele obteve uma posição burocrática na Câmara Municipal de Madrid e com isso ele obtém mais tempo livre para se dedicar à literatura. Em 1851, ele publicou seu primeiro título, El libro de los cantares, versos com um tema variado que já lhe deu algum renome. Ao mesmo tempo, ele colabora com poemas, artigos e histórias em La Correspondencia de España, El Museo Universal, Correo de la Moda e La Ilustración Española y Americana.

Deu atenção à literatura infantil, colaborando nas publicações infantis da época e elaborou inclusive um livro de canções natalinas, ¡Tin tin tin!. Na continuação vieram Cuentos populares (1853), Cuentos de color de rosa (1859) com uma segunda edição a cargo da rainha Isabel II, Las hijas del Cid (1859) y Cuentos campesinos (1860), entre outras muitas obras.

Em 1862 foi proclamado pelas Juntas Generales de Vizcaya, cronista e arquivista do Señorío de Vizcaya e se mudou para Bilbao para desempenhar essas funções, apesar de reconhecer sua precária formação histórica. Alí se ocupou de recopilar informação para escrever «una modesta historia general de Vizcaya» que os distúrbios políticos posteriores lhe impediram concluir. Deste período são Capítulos de um livro, sentidos e pensados viajando pelas Provincias Vascongadas (1864), Defensa de un muerto atacado (los Fueros) por el Exmo. Sr. D. Manuel Sánchez Silva (1865), La paloma y los halcones (novela histórica sobre as guerras de bandos, 1865), Cuentos de varios colores (1866), El libro al las montañas (1867), Resumen descriptivo e histórico del M. N. y M. L. Señorío de Vizcaya (1872) etc.

Após o espaço da terceira guerra carlista, durante a qual teve de marchar a Madrid (1873) acusado de uma suposta simpatia ao carlismo, voltou a Bilbao onde foi reabilitado e nomeado padre de la província (1876) e desenvolveu uma grande atividade: fundou a seção literária do diário El Noticiero Bilbaíno, que mais tarde dirigiria, e publicou bom número de obras sobre didática, genealogia, literatura, historia e lendas (o pior de sua produção).

Em Madrid publicou Mari Santa, quadros de um lugar e seus contornos, Narraciones populares, Cuentos de hogar, El redentor moderno. 

Morreu em Bilbao a 10 de março de 1889. 

Com os fundos recolhidos entre os vascos da América e de Vizcaya se lhe custeou um monumento realizado por Mariano Benlliure, que foi inaugurado em 1895 nos Jardins de Albia de Bilbao. Seguiram publicando-se algumas obras póstumas. A maior parte de seus escritos se recolheu em Obras, Madrid, A. Romero. 1905-1914, 10 vols.

A produção de Trueba é ampla e abarca desde a lírica Libro de Cantares (1852), até a novela histórica Paloma y halcones (1865) e a novela de costumes El gabán y la chaqueta (1872), mas se destacou sobretudo na narrativa curta quando reflete a vida rural de Castilla y País Vasco da época, cenários habituais de suas histórias. Destacam lendas como La azotaina, tradição do século XVI, ou La novia de piedra em que a crueldade de Marichu causa a morte de seu amado. Se estima que sua melhor coleção de narrações é Cuentos populares (1853).

Em sua obra reflete tradições e costumes campesinos que, como consequência do impacto da crescente Revolução Industrial, estavam desaparecendo de uma Espanha até então fundamentalmente agrária e rural. Assim mesmo, reivindicou a cosmovisão e os valores associados a esta forma de vida patriarcal que começava a declinar, de uma forma candorosa e idealizada. Para a Enciclopedia Auñamendi, "sofre de falta de garra e excessiva simplicidade enquanto aos personagens; o voo rasante desmonta suas novelas, que resultam falidas. Inclusive seus contos (seu gênero ótimo), ainda que bem escritos e aparentemente recolhidos em sua terra, só tem que ver com ela em detalhes acessórios como peregrinações, paisagens, topografia, anedotas, etc.".​ Para isso elo foi inspirado na literatura coletiva popular, que considerava dotada de uns valores estéticos superiores fundados na autoridade do povo para determinar o que é arte e o que não. Por tudo isto costuma-se agrupar com autores como Francisco Navarro Villoslada (1818-1895), José Selgas (1822-1882), Vicente Barrantes, José María de Pereda, Fernán Caballero, etc.
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Nota:
Os títulos dos textos do autor, cidades e entidades foram mantidas como no original espanhol.
Tradução do espanhol para o português por José Feldman.

Fonte:

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Cecy Barbosa Campos (Versos Perplexos) 1


ABRIGO

Sem trilhas a seguir
busco, cambaleante,
um porto seguro
onde possa me abrigar.
Caminhos desconexos
confundem minhas escolhas
e me deixam perdida
no meio da estrada.
Persistente,
recomeço
e insisto na tentativa
de encontrar minha morada.

AFLIÇÃO

Deparo-me com a página em branco
à minha frente,
pedindo para ser utilizada
e receber a escrita.
Entretanto, as palavras
presas à minha mente
perdem-se num emaranhado
de caminhos confusos
e não conseguem
adquirir vida.

DORES

Uma dor que fica lá dentro
da qual não se pode falar
mas que finca, com agudeza,
incurável,
sem desvio nem esperança.
Sem revelar o motivo
e a vida vai me levando
e a dor comigo persiste,
por dentro me lacerando.

MENTIRAS

Mentindo
descaradamente,
segue o Homem,
segue o Mundo
sem distinguir a verdade
de tão assumidamente,
viver na mentira,
cotidianamente.

MIGRAÇÕES
Fugindo à morte
seguem homens, mulheres e crianças.
Velhos trôpegos também insistem
em continuar vivendo.
Prosseguem todos em indistinta caminhada.
Para onde vão
carregados de passado
e desejosos de futuro?
Pergunta sem resposta.
As fronteiras se fecham
e rejeitados pelo mundo
não encontram morada.
Com fome e frio
continuam na busca,
em solidão conjunta.

PROCURA

A noite se alonga
formando círculos viciosos
de enigmas.
Meus olhos buscam
deslindar fios
que se avolumam.
No seu emaranhado
a minha visão
se esvai.

TRAVESSIAS

Transformei-me em barco
e atravessei oceanos
perdendo os rastros
das maldades humanas.
Encerrei-me em versos
e habitei passarinhos
que cantaram em mim
momentos crepusculares.

Fonte:
Livro enviado pela poetisa.
Cecy Barbosa Campos. Versos Perplexos. Juiz de Fora: Editar, 2019.

Vinicius de Moraes (Schmidt: Na sua morte)


Ele era poeta como quem se afoga. Nas suas noites, sempre a poesia subitamente a vazar de encanamentos mal soldados em suas pernas e seus braços, e a invadir-lhe a casa, perseguindo-o da sala para o quarto, do quarto para o banheiro, do banheiro para o escritório, onde, exausto, ele acabava por se trancar. E seu corpo outrora vasto, já agora reduzido pelas dolências, subia boiando com o nível das águas até o emparedamento total e a asfixia, como nos antigos suplícios por afogamento em recinto fechado. E ele morria em seu noturno aquário, esmagado pelo teto do infinito, náufrago de si mesmo - um poeta como quem se afoga.

Eu tinha 19 anos quando, em 1933, pela mão de Otávio de Faria, fui pedir-lhe para distribuir meu primeiro livro de versos. Encontrei-o na porta de sua livraria, na antiga rua Sachet, e seu volume físico oprimiu o menino magro que eu era. Olhou-me com intensidade e disse:

- Mas é uma criança...

Aquilo me deu raiva. Deu-me, sim, porque eu me achava um gênio e meus amigos mais próximos também não faziam por menos. Para Otávio, que orientava meus primeiros passos literários, eu era - embora sem nenhuma influência direta, pois mal me iniciara na leitura dos poetas modernos - o continuador de Schmidt, o jovem acólito de sua missa poética. Aquela missão secundária feria-me os brios porque me parecia que eu partira de mim mesmo, de minhas próprias fontes, e não devia nada a ninguém. Mas, depois de lê-lo, eu me pusera a admirá-lo também e nas nossas intermináveis viagens andorinhas amávamos despetalar seus poemas e atirar versos soltos às estrelas...

Tudo é inexistente, disseram os príncipes deitados na areia...

E vinha o grande pálio aberto e se estendia sobre o céu sem manchas. Destroços, ruínas, podridões ameaçavam desabar... Eram palavras proféticas, a revelar a catástrofe em gestação, a enunciar poeticamente os dados da aventura existencialista do pós-guerra: uma "vidência", uma premonição realmente extraordinárias...

Nós éramos todos "de direita". Torcíamos pela vitória do fascismo e líamos Nietzsche como quem vai morrer. "Escreve com o teu sangue, e verás que teu sangue é espírito!" Ah, como amávamos essa palavra sangue... Ah, que conteúdo tinha para nós essa palavra espírito...

Depois eu cresci e vi que não era nada disso. Vi que nem eu era gênio, nem queria destruir coisa alguma. Queria era namorar, conversar com os amigos, tomar sol na praia, empilhar fichas de chope e escrever palavras simples.

E fui me afastando...

Mas, vira e mexe, encontrava Schmidt. Em São Paulo, num cais em Montevidéu, em Montmartre, na rua Cupertino Durão. Então ele me pegava, dava-me o braço e me dizia:

- Vem comigo. Estou precisando muito conversar com você...

E eu ia. Uma vez foi para poder atribuir-me a culpa da ingestão de meia lata de goiabada que comeu em casa, pobrezinho, alucinado que estava por uma dieta de fome a que o submetia a sua Musa, que o queria esbelto e elegante.

Foi também em sua casa que conheci Jayme Ovalle, o grande, o eterno amigo.

No fundo, devo-lhe muito. Aliás, por falar em dívida, fiquei lhe devendo cinco contos, emprestados há muitos, muitos anos.

Eu lhe digo o que farei, meu caro Schmidt. Hoje à noite, quando sair para fazer meu show, pegarei uma nota de Cr$ 5.000, bem amassada numa bolinha, e a jogarei para cima, com toda a força que tiver. Se você ainda estiver levitando por aí e conseguir pegá-la, muito bem. Se não, tudo o que desejo é que caia perto de alguém mais pobre do que eu.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor.

Alcântara Machado (A Insigne Cornélia)


O sol batia nas janelas. Ela abriu as janelas. O sol entrou.

— Nove horas já, Orozimbo! Quer o café?

— Que mania! Todos os dias você me pergunta. Quero, sim senhora!

Não disse palavra. Endireitou a oleogravura de Teresa do Menino Jesus (sempre torta) e seguiu para a cozinha. O café já estava pronto. Foi só encher a xícara, pegar o açúcar, pegar o pão, pegar a lata de manteiga, pôr tudo na bandeja. Mas antes deu uma espiada no quarto do Zizinho. Deu um suspiro. Fechou a porta à chave. Foi levar o café.

— E a Folha?

— Acho que ainda não veio.

— Veio, sim senhora! Vá buscar. Você está farta de saber...

Para que ouvir o resto? Estava farta de saber. Trouxe a Folha. Voltou para a cozinha.

— Aurora! Ó Aurora!

Pensou: essa pretinha me deixa louca.

— Onde é que você se meteu, Aurora?

Pensou: só essa pretinha?

Começou a varrer a sala de jantar. E a resolver o caso da Finoca. O médico quer tentar de novo as injeções. Mas da outra vez deram tão mal resultado. Será que não prestavam? Farmácia de italiano não merece confiança. Massagem é melhor: se não faz bem mal não faz. Só se doer muito. Então não. Chega da coitadinha sofrer.

— A senhora me chamou?

Tantas ordens. Esperar a passagem do verdureiro. Comprar alface. Não: alface dá tifo. Escolher uma abobrinha italiana, tomates e um molho de cheiro. Lavar a cozinha. Passar o pano molhado na copa. Matar um frango. Fazer o caldo da Finoca. Não se esquecer de ir ali no Seu Medeiros e encomendar uma carroça de lenha. Mas bem cheia e para hoje mesmo sem falta.

A indignação de Orozimbo com os suspensórios caídos subiu ao auge:

— Porcaria de casa! Não tem um pingo de água nas torneiras!

— Na cozinha tem.

Encheu o balde. Levou no banheiro.

— Por que não mandou a Aurora trazer?

— Não tem importância.

Pisando de mansinho entrou no quarto da Finoca. Ajeitou a colcha. Pôs a mão na testa da menina. Levantou a boneca do tapete. Sentou-a na cadeira.

Endireitou o tapete com o pé. Apesar de tudo saiu feliz do quarto da Finoca.

— Então?

— Sem febre.

— Não era sem tempo. O Zizinho já se levantou?

Deu de varrer desesperadamente. Orozimbo olhava sentado com os cotovelos fincados nas pernas e as mãos aparando o rosto. Os chinelos de Cornélia eram de pano azul e tinham uma flor bordada na ponta. Vermelha com umas coisas amarelas em volta. Antes desses que chinelos ela usava mesmo? Não havia meio de se lembrar. De pano não eram: faziam nheque-nheque. De couro amarelo? Seriam?

— Como eram aqueles chinelos que você tinha antes, hem, Cornélia?

— Por que você quer saber?

— Por nada. Uma ideia. Diga.

— Não me lembro.

Está bem. Levantou-se. Espreguiçou-se. Deu dois passos.

— Onde é que vai?

— Ver se o Zizinho está acordado.

Cornélia opôs-se. Deixasse o menino dormir, que diabo. Só entrava no serviço às onze horas. Tinha tempo. Depois a Aurora estava lavando a cozinha. Molhar os pés logo de manhã cedo faz mal. Quanto mais ele que vivia resfriado. Não fosse não.

— Vou sim. Tem de me fazer um serviço antes de sair.

Cornélia ficou apoiada na vassoura rezando baixinho. Prontinha para chorar. E ouvia as sacudidelas no trinco. E os berros do marido. Depois o silêncio sossegou-a. Recomeçou a varrer com mais fúria ainda.

Orozimbo entrou judiando do bigode. Deu um jeito no cós das calças e arrancou a vassoura das mãos da mulher.

— Que é isso, Orozimbo? Que é que há?

— Há que o Zizinho não dormiu hoje em casa e há que a senhora sabia e não me disse nada!

— Não sabia.

— Sabia! Conheço você!

— Não sabia. Depois ele está no quarto.

— A chave não está na fechadura!

— Então já saiu.

— E fechou a porta! Para quê, faça o favor de me dizer, para quê?

Então Cornélia puxou a cadeira e atirou-se nela chorando. Orozimbo andava, parava, tocava piano na mesa, andava, parava. Começava uma frase, não concluía, assoprava a ponta do nariz, começava outra, também não concluía. Parou diante da mulher.

— Não chore. Não adianta nada.

Depois disse:

— Grande cachorrinho!

E foi pôr o paletó.

Cornélia enxugou os olhos com as mãos. Enxugou as mãos na toalha da mesa. Ficou um momento com o olhar parado na Ceia de Cristo da parede. Muito cautelosamente caminhou até o quarto do Zizinho. Tirou a chave do bolso do avental. Abriu a porta. Começou a desfazer a cama depressa. Mas quando se virou deu com o Zizinho.

— Ah seu... Onde é que você andou até agora?

— Quem? Eu?

— Quem mais?

— Eu? Eu fui a Santos com uns amigos...

— Você está mentindo, Zezinho.

— Eu, mamãe? Não estou, mamãe. Juro. Vá jurar para seu pai.

Zizinho tirou o chapéu. Sentou-se na cama. Esfregava as mãos. Maria olhava para ele sacudindo a cabeça.

— Por que que a senhora mesma não explica para papai, hem? Faça esse favorzinho para seu filho, mamãe.

Disse que não e deixou o filho no quarto bocejando.

Orozimbo quando soube da chegada do Zizinho quis logo ir arrancar as orelhas do borrinha. Mas ameaça ir — resolve ir depois, resolve ir mesmo — precisa ficar por causa das lágrimas da mulher, precisa dar uma lição no pestinha — a raiva vai diminuindo: não foi. Seja tudo pelo amor de Deus. Depois se o menino virasse vagabundo de uma vez, apanhasse uma doença, fosse parar na cadeia, ele não tinha culpa nenhuma. A culpa era todinha de Cornélia. Ele, o pai, não queria responsabilidades.

— Você não almoça?

— Vou almoçar com o Castro. Eu lhe disse ontem.

— Tem razão.

— Mas não se acabe dessa maneira!

— Não. Até logo.

— Até logo.

Zizinho jurou que outra vez que tivesse de ir para Santos com os amigos avisava os pais nem que fosse à meia-noite. E Cornélia estalou uns ovos para ele. Estavam ali na mesa satisfeitos porque tudo se acomodou bem.

— A senhora não come?

— Não. Estou meio enjoada.

Finoca de vez em quando levantava um gemido choramingado no quarto e ela corria logo. Não era nada graças a Deus. Coisas da moléstia.

Antes de sair Zizinho fez outra promessa de cigarro aceso: assim que chegasse na Companhia iria pedir perdão ao pai. Daria esse contentamento ao pai.

Tudo se acomodou tão bem. Cornélia ajudada pela Aurora pôs a Finoca na cadeirinha de rodas.

— Mamãe leva o benzinho dela no sol.

Costurar com aquela luz nos olhos.

— Mamãe, leia uma história pra mim.

Livro mais bobo.

— É melhor você brincar com a boneca.

— Não, mamãe. Eu quero que você leia.

A formiguinha pôs o vestido mais novo que tinha e foi fiar na porta da casa. Fiar criança brasileira não sabe o que é: a formiguinha toda chibante foi costurar na porta da casa dela. O gato passou e perguntou pra formiguinha: Você quer casar comigo, formiguinha? A formiguinha disse: Como é que você faz de noite?

— Miau-miau-miau!

— Viu? Você já sabe todas as histórias.

— Mas leia, mamãe, leia.

A costura por acabar. Tanta coisa para fazer. Um enjoo impossível no estômago. A formiguinha preparou as iguarias ou as iguarias?

Aurora ficou toda assanhada quando viu quem era.

— Ó Dona Isaura! Como vai a senhora, Dona Isaura?

— Bem. Você está gorda e bonita, Aurora.

— São seus olhos, Dona Isaura! Muito obrigada!

O vestido vermelho foi furando a casa até o terraço do fundo. Não quis sentar-se Era um minuto só. Mexia-se. Virava de uma banda. De outra.

— Eu vim lhe pedir um grande favor, Cornélia.

Aurora encostada no batente da cozinha escutava enlevada.

— Vá fazer seu serviço, rapariga!

Não foi sem primeiro ganhar um sorriso e guardar bem na cabeça o feitio do vestido. Atrás principalmente.

— Você não imagina como estou nervosa!

— Mamãe como vai?

Vai bem. Mas não é mamãe não. É a Isaurinha. Você não pode imaginar como a Isaurinha está impertinente, Cornélia. É um horror! Quase me acaba com a vida! Hoje de manhã não quis tomar o remédio. E agora às duas horas tem que tomar justamente aquele que ela mais detesta. Só em pensar, meu Deus!.

Até Finoca sorria com a boneca no colo. Isaura abriu a bolsa e passou uma revista demorada no rosto e no chapéu levantando e abaixando o espelhinho.

— Titia está muito bonitinha.

Virou-se de repente, fechou a bolsa e fez uma carícia na cabeça da menina.

— Que anjo! Olhe aqui, Cornélia. Eu queria que você por isso me fizesse a caridade (olhe que é caridade) de dar daqui a pouco um pulo lá em casa. Isaurinha com você perto toma o remédio e fica sossegada. Tem uma verdadeira loucura por você, não compreendo!

Cornélia que estava implicando com a toalha de banho ali no terraço levantou-se, pegou a toalha, dobrou, chamou a Aurora, mandou levar a toalha no banheiro. Aurora foi recuando até a sala de jantar.

E você, Isaura, onde se atira?

— Eu? Ah! Eu vou, imagine você, eu tenho cabeleireiro justamente às duas horas. Mas você me faz o favor de ir ver a Isaurinha, não faz?

— E a Finoca?

Isaura deu logo a solução:

— Você leva na cadeira mesmo. Põe no automóvel.

— Que automóvel?

Pensou em oferecer o dinheiro. Mas desistiu (podia ofender, Cornélia é tão esquisita) e disse:

— No meu! Ele me leva na cidade, depois vem buscar vocês.

— Está bem.

Deixaram a menina no terraço e foram para o quarto de Cornélia. Isaura estava entusiasmada com a companhia de revistas do Apolo. Cornélia não podia imaginar. Que esperança. Nem Cornélia nem ninguém. Só indo ver mesmo. Era uma maravilha. Na última peça principalmente tinha um quadro que nem em cinema podiam fazer igual. Toda a gente reconheceu. Chamado No Reino da Quimera. Quando a cortina se abria aparecia um quarto iluminado de roxo (uma beleza) com uma mulher quase nua deitada num sofá e fumando num cachimbo comprido. Bem comprido e fino. Era um tango: Fumando espero. Há? Que lindo, hem? Depois entrava um homem elegantíssimo com a cara do Adolfo Menjou. Mas a cara igualzinha. Uma coisa fantástica. Outro tango (bem arrastado): Se acabaron los otarios.

Cornélia passou a mão na testa, caiu na cadeira diante do toucador.

— Que é que você tem?

— Nada.

Um ameaço de tontura.

— Você não almoçou?

— Não. Nem cheiro da comida eu suporto...

Isaura olhou bem para a irmã. Teve pena da irmã.

— Será possível, Cornélia?

Levantou a testa da mão. Deixou cair a testa na mão.

Então Isaura não se conteve e começou a dar conselhos em voz baixa. Não fosse mais boba. Havia um meio. E mais isto. E mais aquilo. Não tinha perigo não. Fulana fazia. Sicrana também. Ela Isaura (nunca fez, não é?) mas se precisasse faria também, por que não? Ninguém reparava. Pois está claro. Religião. Que é que tem religião com isso? Estarem ali se sacrificando? Não.

Mas Cornélia ergueu o olhar para a irmã, fez um esforço de atenção:

— Não é o choro da Finoca?

Não era. Parecia que sim. Era sim. Não era. Era no vizinho.

— E então?

— Isso é bom para as mulheres de hoje, Isaura. Eu sou das antigas...

Insensivelmente a gente abaixa os olhos.

Está bem. Desculpe. Não se fala mais nisso. Até loguinho, Cornélia. Eu mando o automóvel já. Até loguinho. E muito obrigada, sabe:

A irmã já estava longe quando ela respondeu devagarzinho:

— Ora... de nada...

Fonte:
Iba Mendes.

Nicanor Parra (Poesias Dispersas)


A MONTANHA RUSSA

Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do bobo solene.
Até que cheguei eu
E me instalei com minha montanha russa.

Subam, se quiserem.
Claro que não me responsabilizo se descerem
Botando sangue pela boca e pelo nariz.

A SORTE

A sorte não ama a quem a ama.
Esta pequena folha de louro
Chegou com anos de atraso.
Quando eu a queria
Para me tornar querido
De uma dama de lábios violeta
Me foi negada várias vezes
E agora me dão quando estou velho.
Agora que não me serve para nada.

Agora que não me serve para nada.
Lançam-me a folha ao rosto
Quase
         como
                 uma
                       pazada
                                 de
                                     terra…

ATENÇÃO

Aos jovens apaixonados
Que cortejam belas donzelas
Nos jardins dos mosteiros
Faço saber com toda a franqueza
Que no amor
                   por mais casto
Ou inocente que pareça no começo
costumam surgir complicações.

Concorda-se plenamente
Que o amor é mais doce que o mel.

Mas é bom advertir
Que no jardim há luzes e sombras
Além de sorrisos
No jardim há desgostos e lágrimas
No jardim não há só verdade
Mas também um pouco de mentira.

CRONOS

Em Santiago do Chile
Os
    dias
          são
               interminavelmente
                                           longos:
Várias eternidades num só dia.

Nos deslocamos em lombo de mula
Como os vendedores de cochayuyo: *
A gente boceja. E volta a bocejar.

No entanto as semanas são curtas
Os meses passam a todo vapor
Eosanosparecequevoaram.
_____________________
* Cochayuyo, é uma alga marinha comestível.

O HOMEM IMAGINÁRIO

O homem imaginário
vive numa mansão imaginária
rodeada de árvores imaginárias
à margem de um rio imaginário

Dos muros que são imaginários
pendem antigos quadros imaginários
irreparáveis rachaduras imaginárias
que representam feitos imaginários
ocorridos em mundos imaginários
em lugares e tempos imaginários

Todas as tardes tardes imaginárias
sobe as escadas imaginárias
e se debruça na varanda imaginária
olhando a paisagem imaginária
que consiste num vale imaginário
circundado de colinas imaginárias

Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entoando canções imaginárias
à morte do sol imaginário

E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que o brindou com amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar
o coração do homem imaginário

PAI NOSSO

Pai nosso que estás no céu
Cheio de todo tipo de problemas
Com o cenho franzido
Como se fosses um homem vulgar e comum
Não penses em nós.

Compreendemos que sofres
Porque não podes consertar as coisas.
Sabemos que o Demônio não te deixa tranquilo
Desconstruindo o que constróis.

Ele se ri de ti
Mas nós choramos contigo:
Não te preocupes com suas risadas diabólicas.

Pai nosso que estás onde estás
Rodeado de anjos desleais
Sinceramente: não sofras mais por nós
Tens de perceber
Que os deuses não são infalíveis
E que nós perdoamos tudo.

Fonte:
Nicanor Parra. Parranda Larga - Antología Poética. Santiago/Chile: Alfaguara, 2010. (tradução: Carlos Machado)

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Lúcia Constantino (Poemas Avulsos) 1


A JANELA

Vem de outras eras as fontes do espírito.
Os jasmins renascem nos canteiros,
a chuva já deu badaladas no telhado.
E quem sou? Me pergunto na noite morna.
Talvez uma ave noturna lenta demais
para atravessar as planícies.
Toda imensidão termina no ocaso.
E para além do sol... onde estão os meus olhos amados?
Sempre atravesso essas sombras ao anoitecer,
diante do quartel de estrelas que me policia.
E a janela é um avental que me convida
a continuar servindo.

AQUELAS MÃOS SERENAS

A minha alma ainda tem tranças de menina
que minha mãe fazia quando eu era pequena.
Quanta saudade na minha vida peregrina
deixou em mim aquelas mãos serenas.

Daqueles olhos, no verde dos campos tenho a cor.
E aquele perfume divinal, quando penso em Deus.
Ainda busco aquele rosto que era o próprio amor
no sol, na lua, nas estrelas, no azul do céu.

À noite, na varanda, quando sopra o vento,
renovando, uma a uma, as folhas dos meus sentimentos 
pra que eu sempre me renasça para ser melhor

ainda sinto a ternura daquelas mãos serenas
trançando os meus versos sobre a minha pena
pra que o amor sempre anule a metáfora da dor.

ARARUNA
à cidade de Araruna, norte do Paraná

Abro as mãos em prece ao luar:
asas de uma saudade transportada
às noites em que fui princesa a caminhar
por uma terra roxa e encantada.

Meus vaga-lumes brilhando no cristal,
meus tombos em tua areia de marfim
ainda me soam como noites de Natal
um paraíso que retenho em mim.

Do teu corpo ainda guardo as lembranças
dos meus sorrisos e silêncios de criança
a tecer sonhos à luz de tuas brumas.

E anuncia a voz dos cafezais
que há passos leves adentrando teus quintais
- é minha saudade, ó Araruna!

BUSCADOR

A tua presença fala em mim
apesar da distância,
apesar da dor.
E alçada à uma sabedoria eterna,
eu vou buscar respostas
a esta minha fome de infinito.
E caminhante de um universo
exclusivamente meu,
vou à procura da face do meu deus
retificando o labirinto.

CONFIANÇA 

O sol ainda não saiu.
Meus olhos ainda estão turvos.
Mas já pressinto tua presença:
- cheiro de rosas no escuro.

"DI PROFUNDIS"

Deixe-me cruzar esta fonte,
que é a fronte do teu espírito,
onde as águas sobem montes
e lavam os meus abismos.

Deixe-me estar assim, contigo,
cansada, na noite que chega.
E ser em ti aconchegada
como em um ninho de estrelas.

Estrelas que enlaçam meus sonhos,
assim como os braços de Deus,
onde, na noite escura da vida,
minha dor adormeceu.

Fonte:
A Poetisa

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Justiceiro)


Mercadinho é imagem de confusão organizada. Todos comprando tudo ao mesmo tempo em corredores estreitos, carrinhos e pirâmides de coisas se comprimindo, apalpamento, cheiração e análise visual de gêneros pelas madamas, e, a dominar o vozerio, o metralhar contínuo das registradoras. Um olho visível, múltiplo e implacável, controla os menores movimentos da freguesia, devassa o mistério de bolsas e bolsos, quem sabe se até o pensamento. Parece o caos; contudo nada escapa à fiscalização. Aquela velhinha estrangeira, por exemplo, foi desmascarada.

— A senhora não pagou a dúzia de ovos quebrados.

— Paguei.

Antes que o leitor suponha ter a velhinha quebrado uma dúzia de ovos, explico que eles estão à venda assim mesmo, trincados. Por isso são mais baratos, e muita gente os prefere; casca é embalagem. A senhora ia pagar a dúzia de ovos perfeitos, comprada depois; mas e os quebrados, que ela comprara antes?

A velhinha se zanga e xinga em ótimo português-carioca o rapaz da caixa. O qual lhe responde boas, no mesmo idioma, frisando que gringo nenhum viria lá de sua terra da peste para dar prejuízo no Brasil, que ele estava ali para defender nosso torrão contra piratas da estranja. A mulher, fula de indignação, foi perdendo a voz. Caixeiros acorreram, tomando posição em defesa da pátria ultrajada na pessoa do colega; entre eles, alguns portugueses. A freguesia fez bolo. O mercadinho parou.

Eis que irrompe o tarzã de calção de banho ainda rorejante e berra para o caixa:

— Para com isso, que eu não conheço essa dona mas vê-se pela cara que é distinta.

— Distinta? Roubou cem cruzeiros* à casa e insultou a gente feito uma danada.

— Roubou coisa nenhuma, e o que ela disse de você eu não ouvi mas subscrevo. O que você é, é um calhorda e quer fazer média com o patrão à custa de uma pobre mulher.

O outro ia revidar à altura, mas o tarzã não era de cinema, era de verdade, o que aliás não escapou à percepção de nenhum dos presentes. De modo que enquanto uns socorriam a velhinha, que desmaiava, outros passavam a apoiá-la moralmente, querendo arrebentar aquela joça. O partido nacionalista acoelhou-se. Foram tratando de cerrar as portas, para evitar a repetição do saque de Caxias. Quem estava lá dentro que morresse de calor; enquanto não viessem a radiopatrulha e a ambulância, a questão dos ovos ficava em suspenso.

— Ah, é? — disse o vingador. — Pois eu pago os cem cruzeiros pelos ovos mas você tem de engolir a nota.

Tirou-a do bolso do calção, fez uma bolinha, puxou para baixo, com dedos de ferro, o queixo do caixa, e meteu-lhe o dinheiro na boca.

Assistência deslumbrada, em silêncio admiracional. Não é todos os dias que se vê engolir dinheiro. O caixa começou a mastigar, branco, nauseado, engasgado.

Uma voz veio do setor de ovos:

— Ela não roubou mesmo não! Olha o dinheiro embaixo do pacote!

Outras vozes se altearam: — Engole mais os outros cem! — Os ovos também! — Salafra — Isso! — Aquilo!

A onda era tamanha que o tarzã, instrumento da justiça divina, teve de restabelecer o equilíbrio.

— Espera aí. Este aqui já pagou. Agora vocês é que vão engolir tudo, se maltratarem este rapaz.
___________________________
* Esta historinha foi escrita antes de 1967, quando mil cruzeiros passaram a valer um.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Silmar Bohrer (Caderno de Versos) Lampejos Poéticos


1
assim como tenho tido a ter 
posso vir a ver tudo a perder 

2
Por que será 
as coisas simples 
parecem 
as mais verdadeiras? 

O mais intrincado 
é povoado 
de estereótipos, 
fantasias, 
enigmas, 
dúvidas, 
indagações. 

Será? 

3
Amanheceram uns versos 
ali na barra do dia, 
seriam alguns dispersos 
disfarçados de poesia ? 

4
muitas vezes 
temos que ser 
mais 
menos 

5
Singeleza ! 
Quando estou 
junto dos verdes 
encorpo, 
incorporo 
realeza. 
Estou em casa, 
me visto de 
natureza. 

6
Haverá uma gostosura 
melhor do que escrever, 
usar do verso, essa doçura 
que açucara o bem 
viver? 

7
conhecimento 
fomento 
fermento 
fecundidade 

8
Uma resposta perseguida 
de que ainda não dispomos, 
para onde vai o sopro de vida 
depois que já não somos ? 

9
simplifique a vida 
fique no nível 
dela 

10
Belas tardes sabatinas 
ali na barranca do rio, 
pesco o versinho arredio 
com rimas-iscas-surdinas.

11
É um leito sempre ardente 
este leito de nós dois, 
seguirá assim fremente 
com nossa ausência depois? 

12
Muitas vezes não sei 
se estou certo, 
mas certamente 
certo estou 
em querer saber 
se mesmo estou. 

Fonte:
O Poeta

Luís de Câmara Cascudo (A Princesa de Bambuluá)


Havia na estrada que ligava duas cidades importantes uma grande pedra com uma gruta espaçosa, onde costumavam os viajantes pernoitar quando surpreendidos pela noite naquele deserto. Era muito frequentada a paragem mas começou a aparecer uma visagem e os viajantes preferiam fazer uma curva a ter de passar pela pedra da margem do caminho.

Contavam que os homens eram acordados por uma voz celestial dizendo:

– Quem quer desencantar a princesa de Bambuluá? – Viam apenas o rosto de uma moça bonita como um anjo. Só o rosto. E era esse rosto que pedia socorro.

Muitos homens corajosos aceitaram o encargo mas desistiram das provas e fugiram espavoridos e molhados de sangue. O lugar foi ficando abandonado cada vez mais. Raramente passava uma criatura humana e assim mesmo bem depressa, olho no pé, olho no mato.

Numa tarde apareceu por ali um rapaz amarelo, franzino, muito cansado e faminto e se sentou na laje sem saber o que fazer de sua vida. Surgiu o rosto da moça encantada e perguntou se ele era capaz de desencantar a princesa de Bambuluá.

– Sou – disse o amarelo –; sou homem para enfrentar o perigo, mas quero comer, beber e descansar primeiro...

– Entre para a gruta – disse o rosto.

O amarelo, que se chamava João, entrou e encontrou uma mesa cheia de comida variada e gostosa, uma boa rede armada e um banho morno preparado. João tomou o banho, mudou a roupa, comeu e deitou-se na rede. O rosto reapareceu dizendo:

– Hoje à meia-noite vai até aquela árvore que fica no alto da serra e deita-te no chão. Haja o que houver, não te levantes, não grites, não te defendas e apenas poderás rolar até aqui onde ficarás a salvamento.

João cumpriu à risca. Perto da meia-noite foi até a árvore que ficava bem longe da gruta e deitou-se. Logo depois viu três vultos mascarados, cobertos com umas capas escuras, conversando.

– Há tempos que não tropeço com gente deitada aqui – dizia um. Outro comentava:

– Deve ter sido à custa de pau que ficamos livres. – Um deles bateu com o pé em João e gritou:

– Aqui está um embrulho! Vamos empurrá-lo! Chega o pau nele!

As pancadas, pontapés, choveram sobre João que suportou calado e, apenas dando um jeito no corpo, começou a rolar, a rolar por cima de pedras, espinhos, galhos secos, debaixo da saraivada de golpes, dos três embuçados. Rolou, rolou, rolou, até que encostou na gruta. Imediatamente as figuras sumiram-se e João pôde sossegar, todo roxo de pancadas. A princesa de Bambuluá apareceu, já desencantada numa terça parte do corpo. Mandou preparar todo conforto para o amarelo que passou o resto da noite e o dia seguinte tomando coragem para a segunda prova.

Na noite escolhida os três encapuzados surraram brutalmente o pobre rapaz que não deu a menor demonstração de estar sentindo maus-tratos. Rolou, rolou, rolou até a gruta e os três carrascos desapareceram.

João ficou recebendo curativos nas feridas e alimentando-se convenientemente até recobrar suas forças. Finalmente, na terceira noite, as provas foram cruéis. Os três fantasmas, furiosos pela insistência do candidato, moeram-no de pancadas e sacudiram-no dentro de um barreiro cheio de cacos de vidro e espinhos. João ficou picotado como um paliteiro. Ao romper da madrugada os três algozes fugiram como sombras. A princesa de Bambuluá estava desencantada inteiramente, dos pés à cabeça, bonita como os amores. Tratou de João e pôde curá-lo em quinze dias.

Viajaram então para a cidade vizinha e ali chegando a princesa hospedou-se na casa de uma velha professora, rica e sábia, que a recebeu como ela merecia. A princesa disse a João:

– Vou embarcar amanhã para o reinado de Bambuluá e voltarei uma vez por ano para ver você. É preciso que o meu noivo estude a língua dos pássaros e tudo quanto seja necessário para um homem importante. No fim de cinco anos creio que já estará você preparado para acompanhar-me ao reinado do meu Pai e casar comigo. Não se esqueça de mim e lembre-se que minha visita anual durará apenas algumas horas. Estude muito.

No outro dia a princesa tomou o navio e foi embora para Bambuluá deixando João na casa da professora velha que tinha duas filhas lindas. Começou o rapaz a estudar tudo, especialmente a língua dos pássaros, fazendo progressos todos os dias. A velha ensinava com afinco e como ia gostando do moço pensou que seria melhor casá-lo com uma de suas filhas do que educá-lo para a princesa de Bambuluá que bem podia escolher outro noivo com facilidade.

Quando chegou o dia da princesa fazer a primeira visita, a professora preparou uma festa mas ofereceu a João um copo de vinho misturado com dormideira. O rapaz bebeu e caiu como morto, dormindo profundamente. A princesa de Bambuluá chegou, abraçou todos e não conseguiu falar com o noivo porque este dormia a sono solto. Pela tarde a princesa voltou para o navio e seguiu viagem.

João acordou e ficou muito triste com o sucedido mas continuou estudando cada vez mais. No outro ano, no dia em que a princesa voltaria a visitá-lo, a professora tornou a fazê-lo dormir com o vinho misturado com dormideira. A princesa olhou muito o noivo mas não pôde despertá-lo. Assim se passaram os cinco anos. A princesa de Bambuluá estava certa de que João não a queria, não estudara coisa alguma, vivendo nas festas. Tudo isso era dito pela professora velha. Na data da princesa vir, João, desconfiado, ficou de sobreaviso mas a princesa não veio. A professora disse que a princesa de Bambuluá era uma ingrata e que João devia casar-se com uma de suas filhas, moças prendadas e bonitas. João recusou, arrumou o que possuía e partiu.

Caminhou pela praia do mar muitos dias. Numa tarde deparou uma casa solitária e bateu palmas, chamando o dono. Depois de muito bater, ouviu uma voz macia, muito baixa, mandando que ele entrasse. João penetrou até a cozinha e viu um velhinho encarquilhado junto do fogo. Parecia ter mais de cem anos. Tratou João muito bem e o moço contou sua história. O velhinho disse:

– Eu sou o Príncipe dos Pássaros. Pode ser que algum dos meus soldados saiba onde fica o reinado de Bambuluá. Vou chamá-los...

Agarrou um tamborzinho e começou a bater, a bater, a bater. O céu ficou escuro de pássaros, de todos os tipos, cores e figuras que desciam para a casa, entrando pelas portas e janelas e cercando o velho com todo respeito. Assim que viam o rapaz, partiam de bico aberto contra ele, julgando-o inimigo do Príncipe. O velhinho sossegava-os com um gesto. A todos o Príncipe dos Pássaros perguntou o caminho para o reinado de Bambuluá. Ninguém sabia.

– Durma hoje aqui e vá amanhã perguntar ao meu Pai, o Rei dos Pássaros, onde fica o reinado de Bambuluá.

João agradeceu muito ao velhinho e seguiu jornada na manhã seguinte. Andou três dias e três noites. Avistou uma casinha na encosta de um morro. Subiu, bateu palmas e encontrou um velho, tão velho, que estava encolhido, encorujado, junto do fogo. Quase não falava. Recebeu-o muito bem, deu-lhe que comer e ouviu a história. Depois falou:

– Vou ver se os meus soldados sabem alguma cousa... – Pôs na boca um apito de prata e apitou, apitou, apitou. Emas, nambus, jacus, tamatiões, todos os pássaros grandes, que correm mais do que voam, compareceram, precipitando-se contra João porque pensavam que ele quisesse ofender ao Rei dos Pássaros. O velho-velhinho aquietava-os com a mão. Perguntou a todos e nenhum soube onde ficava o reinado de Bambuluá.

– Durma hoje aqui e amanhã procure meu Pai, o Imperador dos Pássaros. Esse deve saber...

João agradeceu muito, dormiu e continuou sua peregrinação na manhã seguinte. Andou, andou, andou. No quarto dia de viagem viu uma casinha no alto de uma serra, lá em cima, muito alvinha. Subiu com dificuldade e bateu palmas um tempo sem fim. Finalmente entrou e deparou um velho, velho, velho, tão velho que vivia dentro de uma cabaça, enrolado em pasta de algodão e suspenso em cima do fogo. Recebeu João muito bem, deu-lhe que comer e beber, mostrou uma rede armada, ouviu sua história e prometeu auxiliá-lo. Tirou da cabaça uma gaita de perna de ema e soprou um som fininho, fininho, por alguns minutos.

Assim que ele acabou, ouviu-se um barulho de asas e o céu ficou preto, preto, preto, de urubus, aos milhares e milhares, cobrindo tudo. Rodearam a casa e foram entrando e saudando o velho como a um Imperador. Queriam matar a João mas o Imperador fazia um gesto e os urubus obedeciam. Nenhum conhecia o caminho para o reinado de Bambuluá. O Imperador mandou-os embora e virou-se para um urubu velho que estava dormindo num canto, tão velho que não tinha mais penas e sim os canhões. O urubu ouviu a pergunta e respondeu, estirando as asas enormes:

– Saiba o meu imperial senhor que o reinado de Bambuluá era os meus pastos. Fui muito lá. Fica depois do Inferno. Passa-se por cima, na quentura do fogo do Diabo. Logo na descida está uma campina que olhos maus não podem ver, cheia de palácios bonitos, com muita gente agradável. É aí o reinado de Bambuluá.

O Imperador dos Pássaros disse a João que fosse comprar um boi de cinco eras, matasse, cortasse carne, tripas, bofe, coração, fígado, rins, quebrasse os ossos e trouxesse tudo para o urubu velho comer. Dentro de três dias estaria pronto para a viagem.

João comprou o boi de cinco eras, fez tudo quanto lhe ordenaram e colocou o montão de comida na frente do urubu velho que começou a comer sem parar, dia e noite. Ia comendo, comendo, e os canhões se abriam em penas e o urubu ia ficando empenado novamente. Dois dias depois já estava pronto e deu uns voos, experimentando as asas e as forças.

O Imperador dos Pássaros explicou a João que montasse o urubu, segurando dois cotos de penas como se fossem fueiros, e cruzasse os pés por debaixo da asa. Fechasse os olhos, só abrindo quando o urubu parasse. Havia de sentir um vento muito quente e o urubu faria muitas voltas. Era na ocasião em que passariam por cima das bocas do Inferno. João seguiu tudo direitinho e o urubu voou alto, alto, alto, empinando acima das nuvens. Depois de horas, desceu como um raio e começou a fazer curvas, como que recuando e o rapaz sentia um calor tão forte que lhe dava a impressão de estar pisando em brasas assopradas.

Bruscamente o urubu voou mais alto e desceu rápido pisando em terra. João abriu os olhos e viu que estava numa campina verde, com água corrente e perto de muitas casas bonitas. No cimo de um morro estava um palácio que era uma babilônia de grande.

O urubu despediu-se e voou. O rapaz veio andando, andando, até que alcançou as primeiras casas. Na janela de uma dessas estava uma velha muito simpática que lhe perguntou quem era e o que estava fazendo no reinado de Bambuluá. João escondeu umas partes e contou outras, e a velha mandou-o entrar e acomodar-se com sua pequena bagagem.

O rapaz estava com fome mas a velha nada tinha que lhe oferecer. Era uma antiga criada do palácio do Rei. Este lhe dera aquela casinha, roupa e mandava todos os dias abundante tabuleiro de comida vinda da cozinha real. Pediu que João tivesse paciência e esperasse pelo meio-dia, hora em que o almoço havia de chegar.

Para distrair-se, João abriu a bruaca, tirou um violino e substituiu as cordas comuns por umas cordas encantadas que a princesa lhe havia dado. Música tocada nessas cordas fazia toda a gente dançar. João afinou o instrumento e começou a tocar uma música tão sacudida, tão feiticeira, tão requebrada, que a velha se peneirou toda e saiu dançando pelo meio da sala. Os homens que iam passando na rua paravam para ouvir e entravam forte no bailado, balançando o corpo e sapateando como uns danados. Tanta gente passasse e ouvisse como entrava para a casa e ficava perdida no meio da dança. Ao meio-dia chegou a empregada do palácio e do meio da rua se vinha desmanchando no compasso, equilibrando o tabuleiro. Arriou-o na mesa e pulou como uma maluca.

No palácio notaram a demora da criada e mandaram outra buscá-la. Esta o que fez foi aderir ao baile com todas as forças do corpo. Mandaram uma segunda, terceira, quarta e quinta e todas se misturaram com os dançarinos, saracoteando. Finalmente a rainha, com algumas damas, veio pessoalmente verificar em que tanta criada estava entretida. Nem andou meio caminho e já ficou bulindo com os pés e, rainha e damas, largaram-se no folguedo como umas desesperadas. O Rei, vendo que o palácio estava deserto e a fome o apertava sem que o almoço aparecesse, saiu com os fidalgos à procura daquele mistério. Não escapou. Voou para o brinquedo como gato aos bofes. Dançaram, dançaram, dançaram. Até que o João parou o violino e todo mundo ficou mais morto do que vivo. O Rei então disse:

– Amanhã ofereço uma festa no palácio porque depois de amanhã vai casar minha filha. Você será o tocador. Não deixe de ir senão mando cortar-lhe a cabeça.

Dispersaram todos. A princesa não deixara seu aposento e quando as criadas contaram a história do baile, ficou surpreendida e desconfiou que fosse o músico, o seu antigo noivo, que a desencantara e a quem dera as cordas mágicas e fizera educar. Enviou uma criada de confiança e, quando se convenceu de que era mesmo João, mandou-o chamar e tudo combinou para a festa próxima.

O noivo oficial andava todo orgulhoso, bebendo ares, sem enxergar ninguém, porque ia casar com a filha do Rei.

No dia da festa, quando o salão real ficou que não cabia uma cabeça de alfinete, a princesa saiu, bonita como uma estrela do céu, e disse, em alto e bom som:

– Rei meu Pai, Rainha minha mãe, meus senhores e senhoras! Se eu perdesse a chave da minha mala e mandasse comprar outra para abrir, e antes de servir-me da nova encontrasse a velha, que deveria fazer?

Todos responderam:

– Use a velha, Princesa, não se deixam amores velhos pelos novos...

– Pois – concluiu a princesa –, aqui está meu noivo antigo, que sofreu por mim os maus-tratos, desencantando-me e estudando para ser digno do posto, vindo até aqui só para ver-me.

E entrando, saiu trazendo João pela mão, todo bem-vestido, com joia no dedo que parecia mesmo um príncipe.

Todos os convidados bateram palmas e o Rei e a Rainha abençoaram o casamento que se realizou no outro dia, com tanta festa que não teve fim.

Eu estava lá e vi tudo e trouxe um boião de doce mas na ladeira do Escorrega escorreguei, caí e quebrou-se tudo...
_______________________________________________________
Nota do Autor
Essa Princesa de Bambuluá faria as delícias de um pesquisador. Reúne elementos de vários contos europeus, numa sequência de episódios populares, que denuncia a dispersão dos temas e natural criação, pela convergência. O narrador, analfabeto, negro, contou-a muitas vezes, sem colaboração inconsciente. Banal é o processo para a princesa desencantar. O emprego do vinho soporífero, a dormideira, o endormillon dos contos franceses, pertencerá a outro fio. Os três encontros com o Príncipe, o Rei e o Imperador dos Pássaros radica-os ao ciclo dos Príncipes Encantados, nos quais a esposa procura o marido por intermédio das aves benfazejas. Há mesmo um detalhe interessante: o velho urubu que exige alimentação copiosa para poder transportar o rapaz até o reinado de Bambuluá. Ocorre, sendo águias e não os brasileiros urubus, no Les Chateu Suspendu Dans Les Airs, de Paul Sébillot (Contes Des Provinces de France, p. 21, Paris, 1920), nos contos espanhóis, Marisoles, nº 124, p. 249, El Castillo de Las Sietes Naranjas, nº 125, p. 252, etc. O violino que obriga toda a gente a dançar (La Gaita Que Hacia a Todos Bailar, nº 153, p. 323, da coleção Aurélio M. Espinosa) é irmão do conto d’O Beija-Florzinho (Silva Campos, nº XXXI) que obrigou todos a um samba sem fim, interrompido pelo manguá do dono da casa que desfez o baile à força de pau. A comparação da chave de ouro perdida é clássica. A viagem conduzida pela águia é comum nas histórias tradicionais. Alfredo Apell, Contos Populares Russos, comentando João Cachorro e o Camponês Branco, O Bicho Norka e Os Três Reinos, XIX, XX e XXI de uma coleção, estuda esse pormenor, existente nesses contos, através das narrativas francesas, gregas, alemãs, italianas, portuguesas, norueguesas, sírias, lituanas, calmucas, etc.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. 1ª edição digital. São Paulo, 2014.

Odenir Follador (Poemas Escolhidos)



A MÃE LEITORA

A mãe que têm o hábito de ler
ensina a valorizar os bons livros;
seus filhos crescem cheio de saber,
valorizados e bem mais ativos.

A criança percebe que a leitura
ensina-os e dá muito valor;
pois quem tem muitos livros: tem fartura
e aprende-se fácil, com mais sabor.

As mães que não têm hábito de ler,
devem mudar o seu comportamento
na importância como proceder.

A leitura não deve ter somente,
a importância de só um momento!
Deve ser, lançada como semente.

A MAGIA DO AMOR

Amor, um sentimento tão profundo...
Transbordante de extensa paz sublime;
arrebata a alma e aquece num segundo
uma intensa paixão, que pulsa e exprime

anseios plenos, puros de emoção
que seduz todo ser apaixonado. 
Só quem sente queimar seu coração
pode explicar o seu significado:

amor, canto d’alma, brilho que aquece
emoção, nostalgia e sentimento...
Um tênue regozijo que enternece,

tanto amor, que revela inspiração
num mágico sorrir de encantamento,
ao doce ressoar de um coração!

AOS MESTRES COM CARINHO

Paremos para pensar
na luta do professor,
que os alunos quer passar,
nas matérias com louvor!

Em qualquer educandário
luta com dedicação...
Tem amor nesse cenário
com garra e com devoção!

Eles são bem dedicados,
repassam o seu saber
com teores aplicados!

E quem hoje está formado
resta então agradecer...
Oh! Mestre... Muito obrigado!

CASTELO DE SONHOS

Eu construí um castelo de sonhos
íntegro de paz, de amor e alegria.
No salão todos dançavam risonhos,
ostentando garbosa alegoria.

E seguiam da música o compasso
à procura de novas atrações,
exangues mas sem demonstrar cansaço,
cativos e entregues às emoções.

Se pudesse traduzir esse enlevo,
e, mostrar todo o meu contentamento
que agora nestes versos eu descrevo...

Um castelo de sonhos e paixões,
de amor, regozijo e de encantamento
transbordante, em todos os corações!

VOLÚPIA DA PAIXÃO

Amar é sentirmos o coração
pulsar em nosso âmago, intensamente...
Inflar-se na volúpia da paixão
queimando toda alma, impetuosamente!

Um amor platônico que buscamos
encontrar, em nossa almejada amada;
e, sob as estrelas nos entregarmos
lascivos, à bruma da madrugada...

Cáustica chama do amor a sentirmos
no lampejo de uma nova alvorada!
E, num fiel anseio prosseguirmos...

Em desejos frementes, sensuais...
Entregarmos-nos à relva orvalhada
ao brilho das estrelas magistrais!

Fonte:
O Poeta