domingo, 13 de outubro de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Banco Barroco)


— Quer comprar o meu banco? Ele não está à venda.

Falava com superioridade de banqueiro que se sabe forte na praça, capaz de resistir à pressão de grupos econômicos poderosos. Tornou-se arrogante:

— Não vendo ele de jeito nenhum. Já recusei muitas propostas. Por que havia de vender? Gosto dele, não vai mudar de proprietário enquanto eu for vivo.

— Perdão, eu não queria comprar.

— Queria então o quê?

— Queria permissão para ver. Estou estudando mobiliário barroco, e soube que o senhor tem em casa uma peça valiosa.

— Valiosa? Pra mim ele não pode ser avaliado em cruzeiros. Nem em dólar, que aliás hoje não é mais lá essas coisas. O senhor quer ver apenas?

— Ver e, com sua licença, fotografar.

— Ah, fotografar pra quê? Pra botar no jornal?

— Não trabalho em jornal.

— Então, trabalha pro governo, já vi tudo. Vem ver o meu banco, tira retrato, faz relatório, depois, pimba: o governo desapropria o meu banco por essa tal de utilidade pública. Muito bonito.

— O senhor está completamente enganado. Não sou funcionário público, sou estudante e trabalho no escritório da Light. Olhe aqui as minhas carteiras.

— Carteiras? Carteira não prova nada.

— Bem, se não acredita…

— Prefiro acreditar na sua cara, que me parece de gente de bem. Pode entrar.

A salinha era pobre, só o banco impunha sua classe, misturado a trastes sem estilo.

— Século XVII, no duro. Joia.

— Eu sei, eu conheço o que é meu.

— O senhor permite que eu tome as medidas?

— Pra que tirar medida? Não chega tirar retrato?

— Para documentar bem a peça. Vou fazer um sucesso danado lá na Escola, com o trabalho sobre este banco.

A desconfiança voltou a acinzentar os olhos do dono:

— Sei não. Este seu interesse pelo meu banco…

— O senhor está pensando que eu vim a mando de algum antiquário? Dou minha palavra de honra que faço uma pesquisa escolar.

— Bom, pode tirar as medidas.

O rapaz aproximou-se, alisou o couro lavrado, com carinho. Banco de igreja nordestina, jacarandá venerando, oito pés retorcidos, duas traves torneadas, como é que um tesouro desses foi parar naquela casinha vulgar de Madureira?

— Vou dar ao senhor cópias das fotos.

— Não carece, moço. Prefiro olhar pro meu banco do que olhar pro retrato dele.

— O senhor… posso saber como essa coisa linda veio ter às suas mãos?

— Olha só a curiosidade dele. Eu não falei? Agora tem fiscalização de móveis na casa da gente?

— Não precisa responder, é claro. Está se vendo que isto é um bem de família, o senhor herdou de seu pai.

— E meu pai de meu avô. Meu avô do pai dele, ou da mãe, sei lá. Negócio muito do antigório.

— Mas este banco não é do tempo do seu bisavô. É muito mais antigo.

— Como é que eu posso saber quem foi a primeira pessoa da minha família que possuiu este banco? Não sou adivinhão.

— Bem, ele saiu duma igreja.

— Isso eu sei.

— Não estou duvidando de sua família, claro. Absolutamente. Mas seus pais não lhe contaram nada, nada, não lhe falaram de uma tradição da família em torno deste banco?

Ficou pensativo, coçando a testa.

— Parece que tinha um padre…

— Lógico que tinha um padre.

— Vou confiar no senhor. Negócio perdido na fumaceira do tempo, né? a gente pode contar.

— Isso.

— Uma dona da nossa família era casada com ele. Naquela base, entende? O padre morreu, a comadre guardou o banco de lembrança. O senhor vê que este banco é sagrado. Não vendo ele pra Onassis nenhum. Ninguém tem o direito de sentar nele. Nem eu. Sou pobre mas sustento a honra do passado. Agora que já sabe tudo, o senhor aceita uma xicra de café coado na hora?

Fonte: 
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

José Feldman (Adeus, Minha Irmã!)


POEMA: ADEUS, MINHA IRMÃ
(Para a Mel - 3/5/2003 - 8/10//2019

Adeus, ó minha irmã querida
deixas meu coração em pranto.
foste pura doçura em vida,
a luz, a alegria e o canto.

Teus latidos se calaram...
a noite ficou muito fria
as estrelas se apagaram,
não há mais a tua alegria.

Foste a bússola a me guiar
com teu jeitinho carinhoso
a ternura sempre a encantar
em teu modo de olhar dengoso.

Foste um ser iluminado
que a luz na terra se apagou,
um coração abençoado
que com lágrimas, nos deixou.
_____________________________

NOTA:

Por hora não haverão postagens, pois é tempo de dor e pranto. Breve retornarei.

Conto com vossa compreensão
José Feldman

domingo, 6 de outubro de 2019

Maurício Cavalheiro (O Segredo de Boas Histórias)


No intervalo vespertino, deixo o escritório para combater a fome na padaria da praça. Peço pão na chapa e pingado. Junto à mesa, na calçada, observo o movimento.

As 15 horas, precisamente, ele aparece com o livro à axila. Caminha lento, apoiado na bengala, até se acomodar no banco ao lado do coreto. Ajeita o chapéu, apruma os óculos, pigarreia. Dizem que no início tagarelava para os pombos. Mas estes preferiam bicar resíduos de alimentos no chão a ter que ouvi-lo.

Por um bom tempo foi considerado destrambelhado. Por isso os pais criavam medo nos filhos, para não se aproximassem do velho "doido". Mas como toda invencionice tem prazo de validade e criança é um bicho impertinente, o enredo se desfez. Há muitos anos, o filho rebelde do prefeito resolveu importunar o 'Velho doido". Tentou de todas as maneiras. Fez isso, fez aquilo, e mais um pouco. Não adiantou: acabou pacificado pelas histórias do nonagenário. Desde então, o degredo perdeu forças e o velho ganhou popularidade.

Ainda menino, inúmeras vezes ouvi histórias contadas por ele. Histórias que não se repetem. Naquele livro mágico nasciam - e nascem - reinos, galáxias, monstros, florestas e muito mais. Naquele livro há passados e futuros inimagináveis. Confesso que, de vez em quando, deixo o café para ouvi-lo, como neste instante.

Atravesso a rua e me aproximo da plateia; crianças e adultos sentados na grama. Ele me reconhece. Cumprimento-o com um aceno. Ele dá uma piscadela e encosta o indicador no nariz me pedindo para manter o segredo. Meneio a cabeça assentindo.

Depois de pigarrear mais uma vez, abre o livro e começa a contar, elaborando gestos e expressões faciais para cada momento da história. Sua voz, embora rouca e um pouco enfraquecida, tempera com sabedoria cada palavra. Crianças e adultos, literalmente, viajam nas histórias.

Ao fim da oratória, recebe aplausos e outras manifestações de carinho. E vai embora.

Dentro de mim, o menino continua maravilhado. Dentro de mim, reina o segredo inviolável: ele é analfabeto e conta histórias guardadas no coração,

Fonte:
Maria Eliana Palma (org.). Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Fernando Vasconcelos (Tertúlia da Saudade)


Ante a montanha serena,
é que o homem vê, com certeza,
como a criatura é pequena;
como é grande a natureza.

Ao criar toda grandeza,
em seu divino mister,
querendo amor e beleza,
Deus se esmerou na mulher.

A trova é coisa sucinta,
toda glória ao inventor...
só com pouquinho de tinta,
eu posso falar de amor.

Corre o homem a toda brida.
buscando mil emoções...
é cavalo de corrida,
no prado das Ilusões.

Deus deu ao Norte a salina,
para o cabra ter, quiçá,
no rigor de sua sina,
bem pertinho no jabá.

Esta saudade é um jeitinho
de estarmos juntos, nós dois;
de reviver teu carinho,
já tantos anos depois.

Faça este bom sonho arder,
no fundo do coração...
quando o querer é poder,
desejo se faz ação.

Palavras são universos,
aqui mesmo está a prova,
ao prender em quatro versos
o infinito de uma trova.

Pelo espírito picante,
as salinas, com esmero,
em colóquio incessante,
vão dando aos mares tempero.

Preso nas encruzilhadas,
bem depois de tantas fugas,
rolam lágrimas cansadas.
por velhas trilhas de rugas.

Quem do verso tem a lida,
a trova trazendo a lume.
porta a lâmina da vida
e usa bem certo o seu gume.

Quem já viu só tem certeza
e guarda no coração...
não há uma maior beleza
que um olhar de gratidão.

Quis a vida minha sina
fosse loucura qualquer,
por estes olhos menina;
por este corpo mulher.

Sinta forte, queira fundo,
nada move mais a gente,
nas estradas deste mundo,
que puro desejo ardente.

Solidão, estado d'alma
que não tem definição...
quando temos toda calma
a gerar agitação.

Solidão, este vazio,
vil chuva de pranto, em vão,
com gosto seco de estio,
sem definir a estação.

Um clima que, então, existe.
lembre-se disso, ó irmão...
estar só não é tão triste.
quanto sentir solidão.

Um rico conhecimento
é certo e trago comigo:
para quem não vive atento,
o desejo é um perigo.

Vendo tão calma a montanha,
não traz suspeita a visão,
de que, em sua rude entranha,
pode dormir um vulcão.

Vento que ondula copadas,
nesta sina de viajor
leve, nas tantas jornadas,
as nossas trovas de amor.

Fonte:
Fernando Vasconcelos. Estou nascendo para a trova. Ponta Grossa/PR: Gráfica Planeta, 1994.

sábado, 5 de outubro de 2019

Carolina Ramos (O Leitor…)


Quando alguma ideia pula da mente para o papel, ou, melhor dizendo... Quando algumas frases aparecem na tela do computador, clicadas por dedos não tão ágeis; às vezes quando as ideias fluem, os primeiros leitores serão sempre os olhos do autor, críticos ávidos, prontos para descobrir o que pode ser dito de melhor maneira, o que pode ser cortado como supérfluo, ou tão somente o que pode ser amenizado com um pouco mais de bom senso. E como são exigentes esses dois leitores, que analisam com rigor aquilo que a mente deixou passar sem cuidados maiores, sem análise ou filtro, mantendo ainda a pureza de um retrato sem retoques, nada do que foi dito, sem alcançar ainda forma definitiva!

Só depois desse encontro definitivo com o autor o texto viabilizado terá passagem liberada para chegar a outros olhos, talvez até mais benevolentes do que os primeiros! As páginas, os livros e os versos levam dentro de si a alma de quem os escreveu. Toda obra, em geral, tem o efeito de catarse, nem sempre buscada, mas incontida sempre. Isto porque a sinceridade de quem escreve é sempre difícil de ser controlada, e, ainda mais, de ser disfarçada.

O leitor tem em mãos uma obra qualquer. Poderá folheá-la com certo interesse. Como poderá relegá-la, após esse folheio. Poderá ainda deixar-se prender, quase que inconscientemente, por aquele fio invisível que conduz a narrativa até o ponto final - marco inconfundível de vitória do autor!

A sintonia que une a mente de quem escreve à mente interessada de quem lê é o objetivo principal daquele que nasce fadado a fragmentar-se, a cada dia, em letras e sinais gráficos que espelham o que pensa, expõem o que deseja, na entrega de sua alma inteira a seres que sequer conhece, mas cuja existência o ajudam a manter viva aquela chama criativa que lhe garante a sobrevivência do impulso indispensável à ação de escrever.

E é justamente aí que a importância do leitor mais cresce. Quem escreve quer ser lido. E, portanto, quem lê é complemento indispensável ao estímulo e à perpetuidade da difícil arte da escrita. O leitor é testemunho público de que aquele escritor por ele prestigiado faz jus ao título que carrega, podendo até depois de morto ser considerado imortal, uma vez que suas páginas palpitam ainda em mãos de quem as encontrou numa estante, em formato de livro.

E esse alguém, ao ler aquele livro com carinho, salva o autor da triste penumbra do esquecimento, cruel e contumaz apagadora de nomes e memórias, a cada dia que passa.

Fonte:
Livreto dos vencedores: VII Concurso Literário “Cidade de Maringá”; II Concurso Literário “Maria Mariá”. Maringá/PR: Nova Criação, 2016.

Luiz Damo (Trovas do Sul) IV


A brisa da madrugada
no silêncio rega a vida,
a relva toda orvalhada
brilha rejuvenescida.

Amor, sentimento raro,
hoje, tão pouco vivido,
para viver pede amparo
sem perder o seu sentido.

As cortinas do universo
pelo tempo são rasgadas,
nelas o bom e o perverso
têm visões diferenciadas.

As estrelas cintilantes
nos chamam mais atenção,
não só por serem brilhantes
mas pela grande atração.

Comodismo não fomenta
as bases do crescimento,
só com dinamismo enfrenta
quem se focar no fomento.

Devo sempre agradecer
a Deus pelo que hoje sou,
mas também reconhecer,
nobre lar que me adotou.

Do avestruz ao beija-flor
respeitemos cada qual,
não matemos por furor
só por ser irracional.

Entre as linhas do presente
sinto o tempo se esvair,
seu sinal mais evidente
é nossa força exaurir.

Jornadas, noites adentro,
lapidam nosso amanhã,
tendo à fé o sublime centro
e o trabalho por divã.

Livro, o que tens pra contar?
Lições provindas do autor?
Quando este não mais falar
fales por ele ao leitor...

Mesmo sem ser importante
faço parte desta estrada,
cada vez mais integrante
de uma longa caminhada.

Na rua, pobre menino,
clamando, pedia esmola,
mal sabia, o seu destino,
era estar em uma escola.

Nas florestas vemos tantos
passarinhos a encantar,
seus suaves, lindos cantos,
nos fazem também cantar.

O dinheiro compra tudo,
menos a temida morte,
não se atreva alguém, contudo,
investir naquela sorte.

O homem chora por amores
também chora de saudade,
chora quando sente dores
ou só de felicidade.

Olho para o firmamento
em noite toda estrelada,
me enche de contentamento
vendo estrelas e mais nada.

O incêndio quando começa
com tendências a crescer,
tão pouco resta que impeça
de a tragédia acontecer.

O zero quando ficar
à esquerda do numeral,
seu valor pode mudar
só se for um decimal.

Quando tudo está perfeito
nos resta ratificar,
se tiver algum defeito
melhor é retificar.

"Quem não vive pra servir
não serve para viver".
Isso nos faz refletir
sobre o nosso proceder.

Quem temer o sofrimento
pode sofrer duplamente,
a dor chega num momento
vai sumindo lentamente.

São perplexos os motivos
que deturpam tantas mentes,
deixam rostos aflitivos
com sintomas de doentes.

Se desejas alcançar
grande sol na vida tua,
lembra que deves passar
pelas estrelas e a lua.

Talvez com pouco dinheiro
compro o que me satisfaz,
mas não compro por inteiro
minha tão sonhada paz.

Tantas lutas acontecem
sem nenhuma munição.
Aranhas que teias tecem
só vencem pela traição.

Todo o percurso seguido
nesta longa caminhada,
nunca nos tenha servido
de tropeço pela estrada.

Use a sensibilidade
pra tornar a vida plena,
melhorando a sociedade
vai mudar o ecossistema.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Monteiro Lobato (O Plágio)


— Você sai, Nenesto, com um tempo destes?

— Não há outro.

— Dia de São Bartolomeu, inda mais?...

— Importa-me lá o santo.

— Está bem. Depois não se arrependa...

Isto dizia dona Eucaris ao “queixo-duro” do seu marido Ernesto d’Olivais, ao vê-lo tomar o chapéu do cabide para sair.

Fora, remoinhava o vento, anunciando tempestade próxima.

Por castigo, nem bem caminhara o teimoso duzentos passos e desaba o aguaceiro. Tão repentino que mal teve tempo de barafustar por um sebo adentro, no instante preciso em que o belchior cerrava a última folha da porta. Mesmo assim resfriou-se e foi com três espirros que retribuiu à saudação do homem.

— Atchim!...

— Viva!

— Atchim!…

— Viva!

— Atchim… Brr! Pra burro! Espirro pra burro. C’est le diable.

(Século trinta! Se por acaso um exemplar deste livro chegar ao conhecimento dos teus fariscadores de antigualhas, não se assombrem eles com a expressão curralina do meu Ernesto. Nem quebrem a cabeça a interpretá-la com ajuda da filologia comparada, da veterinária e mais ciências conexas. Cá fica a chave do enigma. A expressão “pra burro” viveu correntio pelas imediações da Grande Guerra, com significação de abundante, excessivo ou estupendo. Nascida nalguma cocheira, alargou-se às ruas e passou destas aos
salões. Penetrou até na retórica amorosa. Romeus houve que, pintando a formosura das respectivas Julietas, substituíram o arcaico linda como os amores por este soberbo jato de impressionismo cavalar: É linda pra burro! Não obstante, as Julietas casavam com eles e eram felizes. Lá se entendiam.)

O belchior era francês, e Ernesto taramelava na língua adotiva do senhor Jacques d’Avray o necessário para embrulhar língua com um belchior francês. Sabia diferençar femme sage de sage femme, distinguia chair de viande e alambicava a primor os uu gauleses. Além disso tinha ciência de vários idiotismos, usando amiúde o qu’est-ce que c’est que ça?; sabia de cor a história do Didon dit-on, além de uma dúzia de prosopopeias de alto calibre, forrageadas nos Miseráveis de Victor Hugo — o que já é bagagem glóssica de peso para um carrapato orçamentário com seis anos de sucção.

Tais conhecimentos, mensalmente postos em jogo, bastavam para espezinhar a paciência do livreiro, a quem Ernesto, em todo dia 2 de cada mês, tomava alugado um bacamarte de Escrich, matador das horas vazias da repartição.

Naquela tarde, porém, Ernesto não queria livros, sim um teto, razão pela qual falhou o usual encetamento da seca. (Esse ritual começava assim: Qu’est-ce que vous avez de nouveau, monsieur?)

Fora, em rogougos sibilantes, o vento pulverizava a chuva.

Tinha de esperar.

Ernesto esperou. Esperou a remexer as estantes, a folhear revistas, a ler a meia-voz os títulos dourados. De longe em longe tomava dum volume e perguntava ao francês acurvado na escrituração de um livro de capa preta:

— Combien, monsieur?...

E a resposta do homem repicava invariavelmente:

— C’est très salé, c’est très salé, c’est très salé — estribilho trauteado em surdina até que novo livro lhe empolgasse a atenção. Empolgou-lha, logo depois, uma brochura esborcinada: A maravilha, de Ernesto Souza.

— Olé! Um xará! Combien, monsieur?

O livreiro, sem maior atenção, rosnou qualquer coisa, enquanto Ernesto, absorto no manuseio do livro, ia murmurando maquinalmente o très salé... Leu-lhe o período inicial e o final, vezo antigo adquirido no colégio, onde colecionava num caderninho a primeira e a última frase de quanto livro lhe transitava pela carteira. A maravilha era um desses romances esquecidos, que trazem o nome do autor à frente duma comitiva de identificações, à laia de passaporte à posteridade, muito em moda no tempo do onça:

alfredo maria jacuacanga
(Natural do Recife)
3º- anista da Escola de Medicina da Bahia
ou
doutor cornélio rodrigues fontoura
Ex-lente disto, ex-diretor daquilo, ex-membro do Pedagogium, ex-deputado
provincial, ex-cavaleiro da Cruz Preta etc. etc.

Romances descabelados, onde há lágrimas grandes como punhos, punhais vingativos e virtudes premiadíssimas de par com vícios arquicastigados pela intervenção final e apoteótica do Dedo de Deus — livros que a traça rendilhou nos poucos exemplares escapos à função, sobre todas bendita, de capear bombas de foguetes.

O período final rezava assim: “E um rubro fio de sangue correu do níveo seio da donzela apunhalada como uma víbora de coral num mármore pagão”.

Ernesto, né de Oliveira mas d’Olivais por contingências estéticas, enrubesceu de apolíneo prazer. E assoou-se, demonstração muito sua de entusiasmo chegado a ponto de arrepio.

— Sim, senhor! Está aqui uma frase soberba! “Como víbora de coral...”.

Magnífico! E este “mármore pagão”...

Foi ter com o monsieur e leu-lha “com alma”; mas o tipo, absorvido numa edição, miou apenas o oui, oui, sem sequer erguer a cabeça.

Ernesto não comprou o livro (não era 2 do mês), mas escondeu-o num desvão para que até o dia aquisitivo ninguém lhe pusesse a vista em cima.

Entrementes a chuva amainara.

Ernesto entreabriu a porta para a rua murmurejante e resolveu abalar.

— Monsieur, au revoir!

— Oui, oui — miou pela última vez o belchior.

Na rua endireitou para casa, ruminado que, sim, senhor, era ter fogo sagrado! Uma frase daquelas fazia um nome. O xará tinha talento. Bem dizia Victor Hugo nos Miseráveis que o gênio... é o gênio.

E foi pelo caminho a redizê-la com cariciosa unção, a remirá-la de todos os lados, sob todas as luzes. Degustou-a em surdina inúmeras vezes; pela forma, revendo o jeito com que a fixaram no papel os caracteres tipográficos; pelas correções associadas, evocando vagos helenismos clássicos que o padre mestre Jordão lhe embutira no cérebro a palmatoadas — Frineia, o cão de Alcebíades, as Termópilas, o barril de Diógenes.

Por fim, à noite, já a preciosa frase se lhe incrustara nos miolos, no lugar onde costumavam encruar as ideias fixas. Chegou a repeti-la à dona Eucaris. Mas dona Eucaris, uma criatura sovada, toda virtudes conjugais e preocupações caseiras, interrompeu-o prosaicamente:

— E você trouxe, Ernesto, o pavio de lampião que encomendei?

Ernesto d’Olivais arrepanhou a cara num assomo de dó ante a chinfrinice mental da companheira. Dó, despeito e meia cólera, coisa rara em seu imo de amanuense gomoso e manso.

— Que pavio? Que me importa o pavio? Quem fala aqui de pavio? Ora, não me aborreça com histórias de pavio!

E voltando-se para o canto (que a cena se passava na cama) embezerrou.

O sono dessa noite não foi bom conselheiro, e no dia seguinte Ernesto andou pela repartição mais meditativo que do costume, com olhos parados — olhos de cobra morta que olham sem ver.

É que uma ideia...

Não era bem uma ideia ainda, mas células vagas, destroços vogantes de ideias mortas, lampejos de ideias futuras, coisas tão afins que ao cabo de três dias se englobavam numa ideia-mãe de imperiosa vitalidade.

— Escrever um conto, uma simples “variedade”, em linguagem bem caprichada, com floreados bem bonitos, arabescos de alto estilo... Duas ou três personagens — não gostava de muita gente. — Um conde, uma condessa pálida, a cidade de Três Estrelinhas, o ano de 18... Como enredo, uma paixão violenta da condessa de X pelo pintor Gontran —, gostava muito deste nome. A cena, já se sabe, passava-se na França, que nunca achara jeito em personagens nacionais, vivendo em nosso meio, ao nosso lado. Perdiam o encanto. A narrativa vinha crescendo até engastar-se naquele final... oh, sim!... naquele final, porque, em suma, o conto só viveria para justificar a exibição daquela joia de “celinio lavor”. E logo abaixo o seu nome por extenso: Ernesto da Cunha Olivais.

Esse remate furtado ao xará d’A maravilha insinuou-se aos poucos na consciência de Ernesto como coisa muito sua, propriedade artística indiscutível.

A maravilha, ora! Um miserável caco de livro cuja existência ninguém conhecia...

Plágio? Como plágio? Por que plágio? É tão comum duas criaturas terem a mesma ideia... Coincidência apenas... E, além disso, quem daria pela coisa?

Ernesto era literato.

“Fazer literatura” é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui beletra. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre feminina, sem pés e raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. A gramática sofre umas tantas marradas, os tipógrafos lá ganham sua vida, as beldades se saboreiam na cândi-adjetivação e o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de dinheiro é uma simples maçada, e faz jus a qualquer academia de letras, existente ou por existir, de Sapopemba a Icó.

Ernesto não fugira à regra. Em moço, enquanto vivia às sopas do pai à espera de que lhe caísse do céu amanuensado, fundara A Violeta, órgão literário e recreativo, com charadas, sonetos, variedades e mais mimos de Apolo e Minerva. Redigiu depois certa folha “crítica, científica e literária” com dois tt, O Combatente, que morreu aos sete meses, combatendo a gramática até no derradeiro transe. Compôs nesse intervalo, e publicou, um livro de sonetos, cuja impressão deu com o pai na miséria.

Incompreendido pelo público, que não percebia o advento de um novo gênio, Ernesto amargou como peroba da miúda, deixou crescer grenha e barba, esgrouviou-se, virou-se e disse cobras cascavéis do país, do público, da crítica, de José Veríssimo e da “cambada” da Academia de Letras. Citava amiúde Schopenhauer e Kropotkin, mostrando tendências para saltar dum pessimismo inofensivo ao perigoso niilismo russo. Foi quando o pai, farto das atitudes teatrais do filho, meteu-o numa roda de guatambu e pô-lo fora de casa com um valente pontapé:

— Vá ganhar a vida, seu anarquista de borra!

Ernesto, jururu, achegou-se a um tio influente na política e afinal cavou o empreguinho. No empreguinho amou, casou e tomou a seu cargo a seção “Conselhos Úteis” d’O Batalhador. Estava nisso quando ventou, choveu, entrou no sebo, pilhou A maravilha e patinhou como Hamlet no pego da indecisão, até que... Ernesto, em tiras de papel de Governo, lançou em belo cursivo um lindo começo bem arredondado:

“Era por uma dessas noites de abril, em que o céu recamado de estrelas lembra um manto negro com mil buraquinhos...”

Na roda de orçamentívoros que domingueiramente bebericavam o chá com torradas de dona Eucaris, todos afinados pela cravelha do Ernesto — vítimas imbeles da incompreensão —, o conto estampado n’O Lírio causou agradável surpresa. O João Damasceno foi o primeiro a dar-lhe um abraço num vai e vem de café.

— Olha, li o teu “Never more” n’O Lírio. Esplêndido! O final, então, divino! Tens miolo, meu caro! Pagas o chope?

Nesse dia Ernesto contou à esposa toda a vida do João, terminando cismático:

— É um caráter, Eucaris, um nobilíssimo caráter...

O capitão Prelidiano, chefe da sua seção, foi comedido e pausado como convinha à eminência do seu tamanco:

— Li o seu trabalho, senhor Ernesto, e gostei; termina com brilhantismo; continue, continue...

E o Claro Vieira? Fora brutal, esse.

— Que ótimo fecho arranjaste para o teu conto! O resto está pulha, mas o final é un morceau de roi!

O que nessa noite dona Eucaris ouviu relativo ao caráter baixo, infame e vil do Claro...

Ernesto entrou-se de receios. Pareceu-lhe que o Claro estava no segredo do “encontro de ideias”. Como medida de precaução deu busca aos sebos em cata de quanto exemplar d’A maravilha empoava por lá. Encontrou meia dúzia, adquiriu-os e queimou-os, com grande assombro de dona Eucaris, que duvidou da integridade dos miolos maritais ao vê-lo transfeito em Torquemada de inocentes brochuras carunchosas.

Mas nem assim sossegou.

— Quem me assegura não existirem outras, espalhadas aí pelas bibliotecas públicas? Se ao menos houvesse eu variado a forma, conservado apenas a ideia...

Fora audacioso, não havia dúvida. Fora tolo, pois não.

— Sou uma besta, bem mo dizia o pai...

Ernesto arrependeu-se do plagiato — sim, porque, afinal de contas, vamos e venhamos, era um plágio aquilo! Sua consciência proclamava-o de cabeça erguida, reagindo contra as chicanas peitadas em provar o contrário. E Ernesto arrependia-se, sobretudo por causa do “Dizem...” d’O Cromo. Constava ser Claro o enredeiro daquelas maldades — e Claro era impiedoso na mofina. Sabia revestir as palavras dum jossá urente de urtiga.

Fizera mal, sim, porque, afinal de contas, um plágio... é sempre um plágio.

Quando no domingo seguinte recebeu O Cromo, tremeu ao correr os olhos pelo “Dizem...”. Mas não vinha nada e respirou. No “Recebemos e Agradecemos” havia boa referência ao conto, muito elogiosa para o remate.

Também A Dalila desse dia trouxe algo: “O conto do senhor F. é um desses etc. etc. O final é uma dessas frases que chispam beleza helênica etc.”.

— O final, sempre o final! Estão todos apostados em fazerem-me perder a paciência. Ora pistolas!

Ernesto deblaterou contra os jornalistas, contra os amigos, contra os dez exemplares d’O Lírio em seu poder — dez arautos do seu crime. E queimou-os. Na repartição, a um novo elogio do Damasceno Ernesto rompeu desabridamente.

— Ora vá ser besta na casa da sogra!

Damasceno abriu a boca.

Nas palavras mais inocentes o pobre autor via alusões irônicas, diretas, claras, brutais. Num simples “bom dia” enxergava risinhos de mofa. O próprio capitão Prelidiano, honestíssima cavalgadura incapaz de ironias, afigurava-se-lhe o chefe da tropa.

Conspiravam contra ele, não havia dúvida.

Ernesto pôs-se em guarda. Fugiu dos amigos. Deu cabo do mate domingueiro. Não podia sequer ouvir falar em literatura, o assunto dileto de tantos anos. Emagreceu.

Dona Eucaris, meditabunda, matutava:

— Serão lombrigas?

E deu-lhe quenopódio às ocultas.

— Afinal...

Afinal? É o diabo ser a vida tão pouco romântica como é! Os casos mais interessantes descambam a meio para o mais reles prosaísmo. Este do Ernesto d’Olivais, por exemplo. Merecia fim trágico, duelo ou quebramento de cara. Quando nada, uma remoçãozinha a pedido. Mas seria mentir. Nem toda gente encontra, como Ernesto, remates de estrondo à mão.

É o caso deste caso.

Ernesto adoeceu, mas sarou. O quenopódio revelou-se um porrete para o seu mal. Depois, com o decorrer do tempo, esqueceu o plágio. Os amigos esqueceram o “Never more”. O Lírio morreu como morrem Lírios, Dalilas e Cromos: calote na tipografia. Ernesto engordou. Já é major. Tem seis filhos. Continua a fazer literatura — clandestinamente, embora. E, se encontrar a talho de foice um novo final de estrondo, plagiará de novo. Moralidade há nas fábulas. Na vida, muito pouca — ou nenhuma...

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Daniel Maurício (Poemas Avulsos) IV


A lua minguante
Se energiza distante
Deitada no céu.
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Pra ela
Que era acostumada a plantar sonhos,
Cultivar meus carinhos
Foi algo bem fácil.
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Te visito todos os dias
Mesmo tendo que percorrer um longo caminho.
Que pena que pensas que sou um sonho,
E não percebes
Que sou eu que te acordo sorrindo.
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Enquanto a chuva caía
Muito me doía
Ao ver teus rastros
Se apagando na areia.
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Ao som da sineta
Desviei meu pensamento
Da dura linha do tempo.
Eu todo templo
Varrido de emoções,
No silêncio,
Sem relutar
Deixei vibrar o peito.
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No fundo dos meus olhos
Escondi aquele amor
Que com o tempo descorou.
Resgatando a identidade
Reforço o sorriso com a maquiagem
Encontrando-se comigo
Novamente eu estou.
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O amor dela era tão quente
Que até minh'alma se despia.
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A tua chegada é tão sublime
Que pouco me importa
As razões da partida
Com a mesma saudade de ontem
Te espero ansioso, minha querida!
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No banco vazio
Meus olhos enxergam saudades.
_____________________

Quando te entreguei meu coração
Era pra que tu morasses dentro
E não pra que levasses no adeus
Me deixando um vazio imenso.
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Pra te guardar
Como uma memória perfumada
Eu fechava os olhos
Mas abria o coração.
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Pra nos separar
Criaram um abismo entre nós
Só não sabiam eles
Que sendo almas gêmeas
Nosso amor era algo maior.
_____________________

E ela amava flores.
Por isso,
Todos os dias,
Eu me plantava em seu jardim.
_____________________

Pra tudo há um tempo.
Logo,
A vida é um eterno esperar.
Por ti,
Meus olhos ardem vigilantes
Chamas de velas vacilantes
Mas que não se apagam
Ao vento passar.
_____________________

Meu amor por ti
Era algo escancarado
Querendo ser achado
Deixei cair marcas no chão
Mas tu as desprezastes
Pois simplesmente achastes
Que eram apenas
Pequenas migalhas de pão.
_____________________

Embrulhadinha pra presente
Minha poesia diariamente
Ofereço ao teu coração
São gotinhas de homeopatia
Para alegrar teu dia
Ou despertar alguma emoção.
_____________________
Homenagem aos 196 anos de Jaguariaíva/PR

Minha Terra tem cachoeiras
Abundância de água há
Mas meus olhos se banham em lágrimas
De saudades que tenho de lá.
O cerrado se veste de flores
E os pássaros dão cor ao céu, ao voar.
Meu amor por ti é tão grande
Que só ao amor de mãe
Pode-se comparar.
Teus filhos repetem de longe:
Salve, salve, terra querida!
Jaguariaíva, Paraná.

Fonte:
Facebook da AVIPAF

Lima Barreto (A Gratidão do Assírio)


- Meu caro Senhor Assírio, eu lhe tinha a perguntar se de fato está satisfeito com a vida.

Nós nos havíamos introduzido no elegante porão do Municipal e falávamos ao restaurante chique com água na boca. Este não tardou em responder:

- Sei, doutor. Rui Barbosa não tem igual.

- Mas por que você não vota nele?

- Não voto porque não o conheço intimamente, de perto, como já disse ao senhor. Antigamente...

- Você não pensava assim - não é?

- É verdade; mas, de uns tempos a esta parte, dei em pensar.

- Faz mal. O partido...

- Não falo mal do partido. Estou sempre com ele, mas não posso por meu próprio gosto dar sobre mim tanta força a um homem, de que eu não conheço o gênio muito bem.

- Mas, se é assim, você terá pouco que escolher a não ser, nós colegas e nós amigos de você.

- Entre esses eu não escolho, porque não vejo nenhum que tenha as luzes suficientes; mas tenho outros conhecidos, entre os quais posso procurar a pessoa para me governar, guiar e aconselhar.

- Quem é?

- É o doutor.

- Eu?

- Sim, é o senhor.

- Mas, eu mesmo? Ora...

- É a única pessoa de hoje que vejo nas condições e que conheço. O senhor é do partido, e votando no senhor, não vou contra ele.

- De forma que você...

- Voto no senhor, para presidente da república.

- É voto perdido...

- Não tem nada; mas voto de acordo com o que penso. Parece que sigo o que está no manifesto assinado pelo senhor e outros. "Guiados pela nossa consciência e obedecendo o dever de todo republicano de consultá-la"...

- Chega Felício.

- Não é isso?

- É mas você deve concordar que um eleitor arregimentado tem de obedecer ao chefe.

- Sei, mas isto é quando se trata de um deputado ou senador, mas para presidente, que tem todos os trunfos na mão, a coisa é outra. É o que penso. Demais...

- Você está com teorias estranhas, subversivas...

- Estou, meu caro senhor; estou, imagine que não há dia em que não me veja abarbado com um banquete.

- É assim?

- Pois não, meu digno senhor. Um poeta publica um livro e logo encomendam-me um banquete com todos os "ff" e "rr"; os jornais publicam a lista dos convidados, ao dia seguinte, e o meu nome se espalha por este país todo. Se acontece alguém escrever uma crônica feliz, zás, banquete, retrato e nome nos jornais. Se, por acaso...

- Notamos, - interrompi eu, que nas suas festanças não há mulheres.

- Já observei isto aos diletantes de banquetes e, até, lhes ofereci organizar um quadro de convidadas.

- Que eles disseram?

- Penso que eles não querem rivalidades femininas. Já as têm em bom número masculinas.

- E as flores?

- Com isso não me preocupo, porque, às vezes, elas me servem para meia dúzia de banquetes. Os rapazes não reparam nisso.

- E as iguarias?

- Oh! Isso? Também não vale nada. Basta uns nomes arrevesados, para que os nossos Lúculos comam gato por lebre. Mas a minha maior gratidão é...

- Por quem?

- Pela Secretaria do Exterior. Um cidadão é promovido de segundo secretário a primeiro, banquete; um outro passa de amanuense a segundo secretário, banquete... Herança do Rio Branco!... Outro dia, como o Serapião passasse de servente a contínuo, logo lhe ofereceram um banquete.

- Os serventes?

- Não; todos os empregados. Que gente boa, meu caro senhor.

Deixamos o Senhor Assírio cheio de uma terna beatitude agradecida por tão bela gente que se banqueteia.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Luiz Poeta (Urutu)


A Maria-Fumaça partiu sonolentamente, arrastando-se, soltando fungados abafados até sumir na primeira curva quilômetro adentro, margeada pelo verde da Mata Atlântica.

De uma das janelas de madeira, a mãozinha pálida de Angélica era um lenço miúdo e frágil acenando a esmo. Depois, o silêncio, o ermo se instalando gradativo... no coração.

Um pio de juriti, mugido longe de vaca desgarrada, tiro de bala de caça no meio da mata, latido de cão lebreiro e o talo de bambu pingando água mineral nas pedras da lagoinha.

A bota esmagou folhas secas no primeiro passo, até que o caboclo sumiu no mato denso. 

O sol perfurava os cipós entrelaçados e alumiava de manso, acordando os insetos rasteiros de uma inércia de sombras geladas.

Ele andava sem pressa. No ombro, a espingarda, o embornal nas costas suadas, o facão e o punhal atados à coxa. Pensava em Angélica... cantando cantiga de roça, o riso fácil e brejeiro por trás daquele silêncio tão bonito... esfregando roupa no riacho, cintura apertada no vestido de chita, cabelo vazando loirinho do lenço encarnado...

Eram estalos de folhas sob suas botas.

Preás, lagartos e serpentes rasteiras mexiam no capim–navalha, mas o pé pisava fundo e rasteiro no sabugo de manga jogado a esmo pelos macacos.

Angélica na cabeça.

O rosto avermelhado nas bochechas e o narizinho de porcelana, as argolas vermelhas nas orelhas combinando com o lenço, descalça, o vento soprando livre e gelado, descobrindo as pernas delas… branquinhas...

Sonambulando o dia, ele seguia no sem-destino dos fatos, a mão arrancando as folhas de goiabeira, os olhos sobre o tiziu pretinho saltando no arame farpado.

Então, o apito longe, mexendo com o abandono.

Nunca mais Angélica tirando o esmalte, lixando a unha, ouvindo estação da cidade no radinho…

- Frita esse bagrinho, Anja ! Fresquinho ! Peguei na curva do rio, embaixo da sombra do pé-de-jaca.

Ela ia largando o bordado - sempre rindo Angélica - às vezes meio maluca correndo atrás de mim, mas boa na cozinha e sensual no amor.

Também... quem mandou provar da caninha da fazenda? Eta cachacinha sem-vergonha, sô!

Ela não gostava mesmo era do bafo do álcool, dissera várias vezes a ele, fazendo dengo. Mas ele queria amor, afagos, carinhos, quis deitar com ela sujo de rua, suado, seboso...

– Ocê nunca me bateu... era Angélica... a mão alisando a face vermelha de espanto e medo.

E Anja fugiu. Dormiu no mato; ele, no tapete de palha... vomitado.

Dia seguinte, ela voltou, picada por muriçoca, riscada de murubu, inchada de bofetada. O homem se desculpou, pediu, implorou, chorou... ela não disse nada, apenas arrumou as roupinhas delicadas em uma mala rota… profundissimamente silenciosa, os olhos mirando o nada.

Meio-dia. Inexorável, o trem gemendo no trilho - menos que no peito dele, respirando arrependimento e mudos monossílabos sem perspectiva de palavras... Angélica embora.

Aí... a urutu !

Aquele chocalho ele conhecia. Urutu das grandes, prima da cascavel, mexendo nas folhas secas da jabuticabeira.

O caboclo estacou mirando o réptil. Belo espécime… seduzindo, hipnotizando, deslizando na terra preta, sonolentamente... a língua dividida no meio, a cabeça levantada a meio metro e recuando... como um elástico prestes a arrebentar-se… apavorante...

Outro apito. Talvez outro trem. Por uns segundos, ele esqueceu-se da víbora, demarcando o território num último aviso.

Num átimo, pensava em Angélica mexendo no violão, tocando guarânia… esfregando o lençol, cozinhando galinha-d'angola com batata inglesa, sempre cantando, assobiando cantiga de roda...

Angélica nunca mais, amor nunca mais… vida... nunca mais.

E a urutu ameaçava, esperando apenas um movimento para o golpe fatal, o voo repentino inevitável, as presas de três centímetros aparecendo palidamente molhadas pelo veneno pingando gotas mortais na boca amarela, escamosa... os olhos hipnoticamente diabólicos percorrendo a anatomia da presa, aguardando um pequeno movimento...

Também, Que importava agora uma picada? Sem Angélica, nada mais interessava. Seria morte certa, gradativa, de tédio, solidão, tristeza... abandono.

Todavia, a vida respirava em volta. O vento no capim, os zumbidos dos insetos nas flores perfumando o ar, a água escorrendo do olho-d'água.

A mão foi descendo cínica, milimetricamente rumo à faca na coxa, a cobra movendo-se magnética, expectante, perigosamente muda… o chocalho parara.

Os dátilos atingiram o cabo da arma, esta foi sendo levantada quase que imperceptivelmente, como um ponteiro de horas, a urutu preparando-se para o impulso fatídico, sinuosamente bela...

A faca foi finalmente segura, agora era ser mais rápido que o relâmpago - era como matar uma mosca com um tapa, num milésimo de segundo.

E Angélica? Onde Angélica? ...olhando a ravina? Vendo a pequenina choupana no vale, deserta, calada, triste... sozinha?

Um estalo de mato perto.

A serpente mexeu-se perigosamente.

Num canto do olho, o animal, no outro, o ruído; as pupilas movimentando-se tímidas e preocupadas com o inusitado rumor.

Mas não tardou a repentina imagem saindo de dentro da lágrima; era ela, vivinha, o mesmo vestido rodado, a mala apertada contra o peito, presa por aqueles bracinhos de porcelana, os cabelos dourando a tarde, soltos no vento frio da capoeira...

Anja! Angélica!

E a cobra?

Foi uma fração.

A lâmina riscou o ar simultânea ao bote. Cabeça prum lado, corpo pro outro, o punhal cravado no tronco da jabuticabeira, urutu dividida no rio de sangue riscando o caminho, o veneno escorrendo gosmento das mandíbulas abertas.

O jagunço sentou-se num toco de galho de jatobá, a respiração afundando no peito, os olhos apunhalando - como pétala - a pálida mulher estática mas firme - mulher do mato não desmaia à toa.

Ela olhava a serpente entre admirada e apavorada, serenando aos poucos, a pele amorenando com suavidade sob a sombra das árvores.

- Por que voltou?

Ela mudou de conversa.

- Quase que ela lhe pica.

- Era picar e matar.

- Ocê num viu?

- Como ia ver? ...só via teu corpo, tua mão sumindo na curva... acenando adeus.

- Mas eu voltei.

Ele não acreditava no que ouvia.

- Voltou?

- Voltei.

- Pra ficar?

- Pra ficar,

Ele estava perplexo.

- Mas eu te bati, eu… bebi e..

- Não vai bater mais.

Pausa.

...e nem beber mais.

O jagunço levantou-se aos prantos, os olhos embotados de uma ternura indizível.

- Eu te juro, nunca mais vou beber, nunca mais vou brigar contigo, nunca mais vou te bater... nunca mais.

- Ocê jura?

- Por essa luz que me alumia. Quero ser picado por cem urutus se um dia te puser a mão outra vez.

- Então, vão bora.

- E a urutu?

- Traz o couro, vai dar um bom cinto.

Ele limpou a lâmina do punhal na folha de bananeira, após cortar o couro do réptil.

Abraçou a mulher e seguiu com ela rumando pela trilhazinha que dava até a cabana.

- Por que voltou ?

- A ponte quebrou.

Não falaram mais nada. Não carecia.

A noite desceu serenamente escurecendo a casa. Na janela do quarto de casal, apenas luzinha de lampião... bem fraca.

[Texto Premiado pela Academia Niteroiense de Letras]

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.