quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 132


Jessé Nascimento (Uma Noite)


Quando a madrugada espreguiçou-se, despertada pelos primeiros clarões do dia, ele ainda caminhava sem destino, ao encontro do nada. Há horas vagueava sem conseguir entender porque e para que. Seus pensamentos emaranhados, aturdidos, afugentados, não o deixavam situar-se. Sentia-se terrivelmente só. Só e vazio. Já não sabia quantas vezes sentara-se no meio-fio e levantara-se para continuar aquela estranha caminhada.

Procurava, no entanto, lembrar-se de como tudo começou. Haveria uma razão. Mas, qual? Por que a sua mente teimava em não ajudá-lo?

Apalpou a cabeça ainda dolorida, penteou com os dedos os cabelos em desalinho, tentou recompor-se. E maquinalmente, febrilmente,  continuou tentando decifrar a charada que uma pseudo-amnésia lhe apresentava. Um encontro que não se deu? Uma fuga do não-sei-o-quê? Uma briga? E depois a bebida...

Por que, Senhor, ali estava a velar a sonolenta noite, a acompanhar as silenciosas horas da fria madrugada? Já estava, por certo, cansado de encontrar as mesmas esquinas, saudar os mesmos postes. Seus olhos dormitavam alternadamente, exaustos por um longo dia. Finalmente entregou os pontos. Deixou-se vencer pelo sono, pela fadiga.
                                  ...

De um sobressalto ergueu-se assustado pelo som das buzinas e com as bruscas freadas dos ônibus que já cuspiam seus passageiros aqui e ali. O sol já se fazia alto. Soberano e altaneiro.

O seu ontem deixou de existir. Estava refeito - refeito? - para um novo dia...

Fonte:
Recanto das Letras, 22/05/2015.

Antonio Cabral Filho (9. Colar de Trovas) Tema: Educação


01
A educação  almejada
ganha espaço  e  ressonância,
se a semente for plantada
*no Jardim da nossa infância.*
Abílio  Kac (RJ)


02
No jardim da nossa infância
louvável foi a educação,
com muito amor e constância
*eu guardo  no coração!...*
Luiz Cláudio (RN)

03

Eu guardo no coração
um sentimento profundo.
Pois na minha educação,
*tenho toda paz do mundo.*
Neiva Fernandes (RJ)

04
Tenho toda paz do mundo
enquanto potencial,
o bem se torna fecundo
*no campo educacional.*
Gilberto Cardoso (SC)

 05
No campo educacional
serei eterno aprendiz,
esse ato fenomenal
*um anjo sempre me diz!...*
Luiz Cláudio (RN)

06
Um anjo sempre me diz ,
que devemos sempre amar.
Então  para ser feliz,
*o amor vou compartilhar!*
Gleyde Costa Campos (RJ)

07
O amor vou compartilhar
com a minha felicidade.
Para sempre vou te amar
*e ser feliz de verdade.*
Neiva Fernandes  (RJ)

08
Vou ser feliz de verdade,
agradeço a professora,
que ensinou-me a liberdade,        
*pela luz libertadora.*
Antônio Cabral Filho (RJ)

09
Pela luz libertadora
eu conjuguei o verbo amar,
minha eterna professora
*me incentivava estudar!....*
Luiz Cláudio (RN)

10
Me incentivava a estudar
para que eu pudesse um dia,
aprender e me formar
*naquilo que eu mais queria.*
Adriano Bezerra (RN)

11
Naquilo que eu mais queria
estava entrar na sala,
onde eu sempre poderia
*captar uma culta fala.*
Prof. Roque (RS)

12
Captar uma culta  fala,
provinda de muito humor,
sempre regozija e embala,
*o aprimorar com valor.*
Agostinho Rodrigues (RJ)

13
O aprimorar com valor
faz parte da educação,
ensinar com mais calor
*com muita dedicação.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

14
Com muita dedicação
nos fazemos ensinar.
Feitos com coração
*todos irão desfrutar.*
Madalena Cordeiro (ES)
15
Todos irão desfrutar
de um Brasil mais consciente
do respeito a se mostrar,
*com educação latente.*
Oliveira Caruso (RJ)

16
Com educação latente
do adulto e da criança,
o país vai para a frente
*e se renova a esperança.*
Antonio Francisco Pereira (MG)

17
E se renova a esperança
que dias melhores  virão;
nos deixando  para  sempre,
*uma bonita lição.*
Neiva Fernandes (RJ)

18
Uma bonita lição

de  educação cidadã;
justiça e humanização,
*à mulher concidadã.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

19
A mulher concidadã

que leva o país avante,
sua luta não é vã
*a educação é constante.*
Aurineide Alencar (RJ)

20
A educação  é  constante

onde existe sentimento;
com alegria incessante
*surgida do pensamento.*
Neiva Fernandes (RJ)

21
 Surgida do pensamento

de uma mestra abençoada,
nosso aperfeiçoamento:
a educação almejada.
Antonio Cabral Filho (RJ)
TROVAS DO FECHAMENTO

A
*Surgida do pensamento*

e por Deus abençoada,
todo meu contentamento
*a educação almejada!*
Neiva Fernandes (RJ)
B
*Surgida do pensamento*
uma ideia desejada;
todos tenham cem por cento,
*a educação almejada.*
Maria Zilnete de M. Gomes (RJ)

C
*Surgida do pensamento,*
de uma mestra abençoada,
nosso aperfeiçoamento:
*a educação almejada*.
Antônio Cabral Filho (RJ)
D
*Surgida do pensamento,*
ideia realizada.
Vou dar graças no momento,
*a educação almejada !*
Gleyde Costa (RJ)

Fonte:
Trovadores do Brasil

Vinicius de Moraes (O Camelô do Amor)


Parai tudo o que estais fazendo, homens de gravata e sem gravata, funcionários burocráticos e deambulantes, mercadores e fregueses, professores e alunos, íncubos e súcubos - e escutai o que eu vos tenho a dizer.

Chegai-vos a mim e vinde ver toda a beleza que estou vendendo a preço de banana! Homens da Cifra e da Sigla, de Toga e de Borla-e-Capelo, de Fardão e de Sobrepeliz: esquecei por um momento vossas conjunturas e aproximai-vos de olhar sincero e coração na mão.

É favor suspender por alguns minutos a partida. Senhor Juiz Armando Marques! Conserva-te assim, o pé no ar, meu bom Pelé, qual fantástico dançarino. Feras da Seleção: atenção! Alerta, aviadores do Brasil! Capitães de mar: estamos no ar!

A postos, emissoras em cadeia! Câmaras de cinema e televisão: ação! Estações de rádio e radioamadores: ligai os receptores! Atenção, Intelsat quatro... três... dois... um... Aqui fala o poeta, o jogral, o menestrel, o grande Camelô do Amor!

O Amor tonifica o cabelo das mulheres, torna-os vivos e dá-lhes um brilho natural. Mise en plis? Só de Amor! nada melhor que divinos cafunés para as moléstias do couro cabeludo!

Olhos opacos? Amores fracos! Olhos sem brilho? Amor-colírio! Olhos sem cor? Amor! O Amor branqueia a córnea, acende a íris, dilata as pupilas cansadas. E ainda dá as mais belas olheiras naturais. Dois beijos, dois minutos: dois olhos claros de veludo!

O Amor limpa de rugas a fronte das mulheres, elimina os pés-de-galinha e acrescenta lindas covinhas ao sorriso. Tende sempre em mente: o Amor coroa as mulheres de pesados diademas invisíveis. Amai, coroas! A mulher que ama reinventa o Paraíso. A mulher que é amada move-se majestosamente!

O Amor pitanguiza o nariz das mulheres, torna-os frementes, com delicados tiques, particularmente nas asas. Narizes gordurosos, com propensão a cravos e espinhas? Muitas, muitas festinhas contra o nariz amado!

O Amor horizontal é melhor e não faz mal. Bocas rosadas, frescas, palpitantes? Beijos de amor constantes! As bocas mais beijadas são mais bem lubrificadas. Só isso dá à sua boca o máximo!

Qual Nardem, qual Rubinstuff ! - morte às pomadas! Pomadas, cremes, só de Amor, amadas! Pele jovem e macia? Amai, se possível, todo dia: e ante o esplendor de vossa pele há de ruborizar-se a madrugada.

Juventude noite e dia? - Carne sem banha! Ela tem mais freguesia? - Sempre se banha! Aliás, uma coroa - Que coisa boa! Bem que ela tem seu lugar. E... sabor de loucura!
O Amor estimula extraordinariamente a higiene bucal, pois como todos sabem, a água-e-sal é o composto químico da saliva, que consequentemente se ativa, impedindo a halitose e tornando a carícia palatal!

Se é de Amor, é bom! Não sabe aquela que não põe desodorante? Perdeu o marido e hoje não pega nem amante ... Sim, cuide o subextrato de suas asas, anjo meu, mas nada de exagero ... Uma axila sem cheiro pode levar um homem ao desespero. E não bobeie, não dê bola, não se iluda: um homem ama uma axila cabeluda! Siga o exemplo da mulher italiana: não usa lâmina e é mulher superbacana. Ponha um tigre debaixo do braço!

E basta de pastas, ó tu que levas o leite contigo - bom até a última gota! Se amares, o sangue circulará melhor em tuas glândulas mamares, e consequentemente terás seios sinceros, autodidatas, substantivos! Algo mais que o Amor lhe dá...

Casamento serve bem ao grande e ao pequeno. Serve bem à beça! Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que viaja ao lado seu. Pois, no entretanto, eu lhe digo: quase ela fica a perigo... Salvou-a um justo himeneu. Alivia, acalma e reanima! Todo homem que chega em casa deve levar beijos mil: da mãe e da menininha. E como é bom ter seu amor junto ao corpo... É a pausa que refresca... Quem a casar se mete, repete!

Um mínimo de cirurgias plásticas, dietas patetas e essas ginásticas fantásticas... Vivei e amai ao Sol! Para aquele que ama, vossos senões são poesia. Nada mais lindo que as feiurinhas da mulher amada!

Por isso, eu grito aqui: regulador? - besteira! A saúde da mulher está em ser boa companheira. Não há pílula para a percanta que se preza. Seja mulher! conserve o seu sorriso! valha o quanto pesa! Use o auge da bossa e namore o quanto possa: na praça, na praia, no prado - no banco que está ao seu lado!

Eu sempre digo, e faço figa do que diga seu melhor, muito melhor que óleo de fígado. Porque, além de excitar o metabolismo basal, para o vago-simpático é o tônico ideal!

Eis seu mal: não amar. Daí, decerto, a causa dessas suas tonteiras, dessas náuseas... Ame king-size! E se lembre sempre o espetáculo começa quando a senhora chega! Quem não é o maior tem que ser o melhor! Por isso, espere um pouco, por favor... E repita comigo, assim... A-m-o-r!

Fonte:
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31/12/1969

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 131

Atenção: Aos assinantes que recebem as postagens em seu e-mail
Desconsidere o Varal de Trovas n. 131 de ontem, onde haviam erros em minha trova, observado pela irmã Carolina Ramos e considerem o varal abaixo, com a trova do Mestre Assis substituindo a minha, mas dentro do mesmo tema. 

Sinclair Pozza Casemiro (O Homem da Enxada)


Este causo é verdadeiro e eu mesma presenciei. Bem, não é que tenha presenciado a história no momento do acontecido, da aparição. Mas eu estava lá, ouvi no outro dia os depoimentos ainda calorosos e sôfregos da Dora, da Santine. E participei daquela magia, daquele friozinho assustador e gostoso que dá na gente pelas histórias de assombrações. Foi na terceira peregrinação da COMCAM no Caminho de Peabiru, na fazenda São Jorge, da casa da Penha. Penha é uma senhora maravilhosa, bondosa, generosa, dadivosa, alegrosa, osa...osa...osa. Ela é esposa (ôsa) do administrador da Fazenda, trabalha no postinho de saúde da fazenda, atende a todos com carinho, dedicação e, além disso tudo, é mãe acolhedora e amiga. Bem, não sei como sobra espaço, mas ela é tudo isso e muito mais. Mentira, sei sim: energia é como sentimento, quanto mais você dá, você divide, mais tem, mais se multiplica.

Pois muito bem: a gente foi se alojar, no segundo dia de peregrinação, na fazenda São Jorge, tudo organizado janta, banho, pouso e café da manhã por dona Penha. Os quitutes, os causos, o clima da fazenda, de amizade, etc, etc, a meditação do Amani e tal, tudo isso, nem precisa descrever. É só imaginar o melhor. Na hora de dormir, tinha a igreja, a escola e as casas. Era só cada um escolher o seu cantinho pra relaxar e sonhar.

Teve um timinho que escolheu, de pronto, a igreja. Claro, mais protegidos, seguros. E tinha uma novidade nessa peregrinação: o casal Santine e Déferson, que estavam de lua-de-mel, haviam se casado naquela semana. E gente boa tava ali: ele e ela prestativos, dedicados, amorosos. Também quiseram ficar na igreja. A igreja era, de fato, um encanto: pequenininha, limpinha, organizadinha, bem arrumada. Penha tinha mesmo pensado em tudo para receber bem os peregrinos.

Depois da janta, das visitas, dos causos, das orações, das fotos, da contemplação ao luar, etc, etc, o recolhimento. E, depois do recolhimento, o sono pesado, afinal, foram 16 km mais ou menos de caminhada e pra quem estava de apoio, um dia de tensão e preocupação que, graças a Deus, tinha terminado maravilhosamente bem. Pra completar, bem que faltava mesmo algum "inusitado". E ele aconteceu.

Depois do primeiro sono, longo e pesado, um e outro precisava ir no matinho. Tudo bem. Rotina. Mas, o casalzinho foi junto. E ele a protegendo sempre, é claro. Quando eles já estavam quase de volta, ele se apavora:

– Santine, olha lá...

– Olha o quê, morzinho? Onde?

– Ali, um homem com uma enxada... de branco... carpindo...

– Onde? Meu Deus! Onde, homem?

– Ali...

E apontava, os dois olhando para o mesmo ponto, ele vendo tudo e ela, nada.

– Morzinho, cê tá sonhando... num tem nada ali.

– Tem sim... Ele tá carpindo, de branco... Olha!

Mas ela não viu, mesmo. Olhou para o marido, ele estava atônito, incontrolado. Olhou para o homem da enxada, de branco e não viu nada. E ele desistiu de mostrar, ela não via mesmo. Começaram a voltar, devagarinho, de fato, alcançaram a porta da igrejinha, entraram. Quase não conseguiam contar o que aconteceu, não o que viram, pois quem viu foi só o marido.

Quem estava na igrejinha ficou em pânico. A Dora, que estava estourando de vontade, catou o cobertor e o colchão que estavam no chão, abaixo do altar, logo na frente, mas buscou ainda um lugar mais santo, mais protegido: debaixo, bem debaixo da mesa do altar. Mesmo estourando, nem quis saber de ir lá fora. Não sei como se arranjou, ela não conta. Só diz que encobriu cabeça, corpo, tudo que pôde, rezou, rezou até de manhã cedo...

De manhã cedo, outra história, São Jorge do céu!

Quando eles contaram pro povo da equipe de apoio, a Eloah, que cuidava do pouso dos peregrinos, falou:

– Não te falei, Sirlene? Eu escutei, de madrugada, uma chinela arrastando lá fora... e chegou até a porta da casa e bateu, deu uns toques... Não te falei? Não era ninguém!

Nessas alturas, mais gente havia ouvido as chinelas se arrastando e os toques à porta, de madrugada... Dona Penha chamou num canto alguns desses narradores:

– Gente, vou pedir um favor... Não espalhem. Esse homem da enxada vem assustando muita gente por aqui, mesmo. Ele chega, de branco, arrasta chinela, dá umas carpidinhas... e sai. Não espalhem que vocês também viram, senão as pessoas daqui ficam mais aterrorizadas ainda. Uns dizem que foi matado... Outros dizem que é alma penada, que matou muita gente... A gente não sabe dizer o que é. Nem reza adianta. Por favor, não espalhem.

Pois é... agora, quem quiser acreditar...

Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do Coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri). Campo Mourão/PR: Singrafm 2005.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) XII


A BEM AMADA

Procurava-te, ó bem amada, em todos os lugares!
Mas a hora ainda não me era chegada...
Procurava-te no mar, nos céus e nas estradas...
Em sonho, sempre tu me aparecias,
Com um belo sorriso, e um corpo divinal!
Talvez quisesse fazer-me o bem...
Mas acabavas fazendo–me o mal

Isto porque, ao acordar-me...
Pesando que fosse verdade...
Eu te procurava, e te procurava com uma ânsia louca...
Para acariciar teu corpo e beijar-te a boca

Ficava novamente triste...
E recomeçava a dura caminhada!
Foi então que no facebook...
Eu consegui te encontrar, ó minha amada.
__________________________

ESTE AMOR QUE REJEITAS

Sinto por ti um amor que clama!
E vive a implorar-te a todo instante...
Que cures a minha alma enferma,
Que por lhe faltar esse amor...
Vive cheia de dor e desencanto.

Ah! Como seria a minha vida?
Se minh’alma recebesse esse carinho...
Pois ficaria curada e viveria feliz,
Como um casal de passarinhos.

Esperarei com paciência!
Quem sabe um dia tu reconheceras...
Que depois de tantos desencantos,
E esse amor que rejeitas e aceitaras.
E então será o bálsamo...
Para eu não sofrer mais!
__________________________

NUNCA ESMOREÇA


Quando tu me perguntas!
Se te amo ou se te quero.
Sabes que sempre te amei...
E se te mentisse isto seria um sacrilégio.

Pós quando se ama...
Mostra-se amor e bondade,
E não existem mentiras e sim a sinceridade.

Meu amor tu és aquela que me faz renascer...
Nas minhas tristezas e mágoa.
Me dás forças pra viver,
Pra vencer os obstáculos e nunca esmorecer.

Portanto minha querida e meu amor divinal!
Sonhos dos meus sonhos,
Acredite sempre em mim que nunca terás rival.
__________________________
 
QUANDO O AMOR ACABA

Quando o amor estiver definhando,
E a tristeza no peito morar,
Não se iluda com falsas
Promessas,
São quimeras e só vão complicar.

E se o beijo já não existe, e se desviam o olhar!
Se o dialogo já findou,
E se não tem mais nada para conversar
É porque o amor já não há.

Quando o amor acaba,
O coração diz não,
Isto porque já não existe na alma.
Afeto, ternura, meiguice e compreensão.
__________________________

RENASCER O AMOR

Porque fizestes renascer o amor,
Num peito já tão amargurado.
De tanto sofrer de amor,
Meu coração está magoado.
Por uma existência de lutas e fracassos,
De tanto amar estou virando trapo,
Sempre sem nunca ter sido compreendido.

A minha vida já não tem mais sentido,
Porque tu eras a minha única esperança,
Fingiste amar-me,
E eu, como criança,
Agradecido com belo presente,
Pus-me a sonhar feliz sorridente.

Mas como o sonho não é realidade,
Agora, sinto que foi tudo ilusão,
Por que brincar com um pobre coração?
Se tu sabias que irias fazê-lo sofrer.
Tu te divertes, com meu padecer,
Alegrarás-te com sofrimento meu?
Se for assim até ficarei feliz,
Por saber que agindo assim, tu tens felicidade,
E em troca do meu amor, tu me devolves maldade.
__________________________
 
SEM EXAGERO

Há muitos anos...
Acreditei no amor,
Pensei que o mesmo.
Era só felicidade,
Sem mentira e sem saudade.

Como me iludi por assim pensar...
Fui traído e humilhado,
Por no amor acreditar.

O amor se apresenta,
Sem mágoa e desilusão.
E penetra sutilmente,
No inexperiente coração.

Pois aconteceu!
Com o meu coração coitado...
O amor entrou de mansinho,
Depois viu o resultado.
Acabei de bar em bar,
Para matar esta saudade.

Caros jovens vou falar...
Sem exagero.
Cuidado com o tal do amor,
Ele vem como quem, não quer nada.
Todo brilhante e faceiro,
Depois de ele penetrar...
No coração muitas vezes.
De lágrimas faz molhar,
Seu travesseiro.
__________________________
 
SEM OSTENTAÇÃO

Quando fomos viver juntos,
A vida não era bela.
Tínhamos cadeira sem fundo,
E sem alças as panelas.

Apesar desses problemas,
Não podíamos reclamar.
Pois as cadeiras sem fundos...
e as panelas sem alças,
As únicas que tínhamos para usar.

E ainda pra culminar fiquei desempregado.
Mesmo assim não reclamamos,
Porque nosso lar era abençoado.

E depois com sacrifício...
E fé em nosso Deus verdadeiro,
Começamos a trabalhar.
Ambos lutando feitos guerreiros...
Mas hoje apesar de tudo.
Temos casa, temos carros,
Nunca nos faltou o pão.
Mas temos o equilíbrio,
Nada de ostentação.
__________________________
 
SÓ EU SEI O QUE É AMAR

Ainda que os amigos digam...
Que não devo perdoá-la.
Não ligo para o que dizem,
Pois o que eu sinto, a eles não os abala.

Só eu sei o que é amor,
Apesar de ser esquecido.
E sentir aquela dor,
De ser marido traído!

Sofro tanto por este amor,
Que me deixa amargurado.
Triste e desiludido...
Que atua como tiro,
No meu peito já ferido.

Mas o que fazer se assim eu sou!
Se ela voltar...
Dar-lhe-ei carinho e muito amor.
É mais uma chance,
Que a vida nós dá...
De sermos felizes
Se eu a perdoar
__________________________
Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Monteiro Lobato (Fábulas) A Formiga Boa – A Formiga Má


I – A formiga boa

Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé de um formigueiro. Só parava quando cansada; e seu divertimento então era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas*.

Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.

A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.

Manquitolando, com uma asa a arrastar, lá se dirigiu para o formigueiro. Bateu

– tique, tique, tique...

Aparece uma formiga friorenta, embrulhada num xalinho de paina*.

– Que quer? – perguntou, examinando a triste mendiga suja de lama e a tossir.

– Venho em busca de agasalho. O mau tempo não cessa e eu...

A formiga olhou-a de alto a baixo.

– E que fez durante o bom tempo, que não construiu sua casa?

A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse:

– Eu cantava, bem sabe...

– Ah!... – exclamou a formiga recordando-se. – Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?

– Isso mesmo, era eu...

– Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.

A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.

II – A formiga má

Já houve, entretanto, uma formiga má que não soube compreender a cigarra e com dureza a repeliu de sua porta.

Foi isso na Europa, em pleno inverno, quando a neve recobria o mundo com o seu cruel manto de gelo.

A cigarra, como de costume, havia cantado sem parar o estio inteiro, e o inverno veio encontrá-la desprovida de tudo, sem casa onde se abrigar, nem folhinhas que comesse.

Desesperada, bateu à porta da formiga e implorou – emprestado, notem! – uns miseráveis restos de comida. Pagaria com juros altos aquela comida de empréstimo, logo que o tempo o permitisse.

Mas a formiga era uma usurária* sem entranhas. Além disso, invejosa. Como não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.

– Que fazia você durante o bom tempo?

– Eu... eu cantava!

– Cantava? Pois dance agora, vagabunda! – e fechou-lhe a porta no nariz.

Resultado: a cigarra ali morreu enrijecida pelo frio; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto mais triste.

É que faltava na música do mundo o som estridente daquela cigarra morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usurária morresse, quem daria pela falta dela?

Os artistas – poetas, pintores, músicos são as cigarras da humanidade.
__________________________

– Esta fábula está errada! – gritou Narizinho. – Vovó nos leu aquele livro do Maeterlinck sobre a vida das formigas – e lá a gente vê que as formigas são os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve.

Dona Benta explicou que as fábulas não eram lições de História Natural, mas de Moral.

– E tanto é assim – disse ela – que nas fábulas os animais falam e na realidade eles não falam.

– Isso não! – protestou Emília. – Não há animalzinho, bicho, formiga ou pulga que não fale. Nós é que não entendemos as linguinhas deles.

Dona Benta aceitou a objeção e disse:

– Sim, mas nas fábulas os animais falam a nossa língua e na realidade só falam as linguinhas deles. Está satisfeita?

– Agora, sim! – disse Emília muito orgulhosa com o triunfo. – Conte outra.

___________________________________
Glossário
Tulha - é um local onde se guardam os cereais, alimentos.
Paina é uma fibra natural semelhante ao algodão, oriunda dos frutos da paineira. É usado como enchimento para colchões e travesseiros.
Usurária - Agiota; aquela que empresta dinheiro com usura, com juros muito altos.

 Fonte:
 Monteiro Lobato. Fábulas.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Isabel Furini (Os Olhos do Céu)



(Conto infanto-juvenil)

Era o vigésimo ano do Governo Correto. O Imperador de Jade Amarelo se regozijava em seu trono de ouro. Em um dia como tantos, das areias do deserto de Gobi, chegou um viajante com as vestes gastas, deteve-se ante o muro dos espíritos e contemplou os dezesseis dragões imperiais. Depois avançou entre as impecáveis colunas lisas e poligonais e solicitou que o levassem até a presença do Magnífico Imperador.

O ilustre Filho do Céu permitiu ao viajante se deleitar com sua presença, porque era orgulhoso e estava satisfeito com sua fama de misericordioso. O estranho ancião foi encaminhado para a ampla sala. Realizou as respeitosas reverências indicadas no ritual chinês, percorreu com o olhar os dezoito trípodes e por último observou o Dono das Cinco Regiões dizendo:

– Viajei pelo Reino do Norte, pelo Reino do Leste, pelo Reino do Sul, pelo Reino do Oeste e pelo Reino Médio. Todos te pertencem, oh, Grande Imperador. Mas após essa longa viagem, encaminhei-me ao zênite e por direito próprio converti-me em rei de mim mesmo. Então, aprendi a observar a flor que se abre ao sol e o voo dos pássaros. Aprendi a não desejar, a não planejar, a não me projetar ao exterior, a permanecer em mim mesmo e me converti no Imperador do Infinito.

O excelentíssimo Governador do Império Celeste mexeu-se intranquilo em seu trono sem poder ocultar seu desgosto. Compreendeu, nesse instante, que o velho possuía um império mais vasto que o seu. Sua mente se movimentou aceleradamente, como as lavas de um vulcão, como uma violenta tormenta de areia.

O Filho do Céu, o Imperador dos Cinco Elementos, pensou na sua fama. “O que será de mim quando os homens conhecerem o poder deste velho... Ainda que não seja o dono de um Império Infinito, sua atitude é comprometedora, e se suas ideias se espalharem, não mais me temerão”, pensou. O que fazer? Por fim, a mão fina e aristocrática fez um leve sinal. A Guarda Imperial se mobilizou e o ancião foi feito prisioneiro e executado naquele mesmo dia. Enquanto os soldados o arrastavam, deu um último olhar de compaixão ao poderoso Governador e aprofundou-se no seu silêncio interior.

Morreu sem sequer dar um grito, e somente uma mancha de sangue foi a testemunha de uma vida que se afastava.

À noite, depois de passear pelo jardim e contemplar a lua crescente refletida no lago, o Senhor do Império Médio se dedicou ao descanso. De repente, observou uma torrente de sangue que se deslizava por baixo da porta. O ilustríssimo Governador da China levantou-se rapidamente, como um raio tremendo em seu coração. Antes que pudesse gritar, da mancha de sangue elevou-se uma névoa que formou uma estrutura diferenciada e na qual o Imperador pode reconhecer... o velho viajante.

O velho sorriu com tristeza e disse:

– Honorável Senhor, não foste justo.

– Não, venerável ancião, eu não fui justo – respondeu com humildade. Seus joelhos tremiam, as mãos suavam e um nó parecia aninhar na sua garganta – mas quero que saibas que até então sempre fui justo.

– Ninguém te desafiou?

– Jamais – respondeu o Imperador com voz firme, recuperando-se do choque que lhe produzira a presença inesperada do velho.

– Meu governo se chama o Governo Correto. Admito que fui injusto por ter ordenado tua morte, mas amanhã irei ao Templo Ancestral e pedirei a meus antepassados a purificação por esse ato de impiedade.

– Ilustríssimo Imperador, cada um deve assumir suas próprias faltas e purificar-se a si próprio. Além do mais, senhor, nunca foste realmente justo. Todas tuas ações estão contaminadas.

– O que queres dizer?

– As tuas ações somente são boas em aparência.

– O que queres dizer, ancião?

– Tuas boas ações somente são boas em aparência.

– Como é possível? – perguntou atordoado.

– Oh, Filho do Céu! Tua intenção sempre foi egoísta. Com tuas ações procuras obter a fama do governante justo, mas nunca tiveste como objetivo o benefício de teu povo. Só estavas interessado em tua própria pessoa. Tu és superficial, egocêntrico e orgulhoso. Não és realmente bom. Com teus atos de aparente bondade buscavas beneficiar só a ti. Por isso ordenaste a minha morte. Teu coração não pode suportar a existência de alguém que seja livre, de alguém mais poderoso do que tu.

– Não compreendo, venerável ancião – disse mexendo a cabeça, com o olhar confuso – não consigo entender nem tuas palavras, nem tua presença.

– Talvez não queiras compreender, nobre Senhor. Eu era o encarregado de te revelar os mistérios do céu e de te dar o néctar da instrução. Não permitiste que eu cumprisse com meu dever... Agora não poderás cumprir corretamente o teu dever.

Uma nova luz espalhou-se pelo aposento real.

– Agora compreendo meu erro – confessou o Imperador – como poderei corrigir minha falta?

– Não será fácil, Senhor do Império Médio; não será fácil, Governador das Cinco Cores; não será fácil, Amo dos Cinco Animais Sagrados.

– Que devo fazer, Venerável Mestre? – perguntou num murmúrio. Ao pronunciar essas palavras, a voz do Imperador Celeste tremeu. Seus olhos negros se encheram de tristeza.

– Deves esquecer a tua fama, a tua condição, a tua glória. Deves ser tu mesmo. Cumprir teu dever, que é servir ao povo.

Ao dizer isso, a imagem do viajante começou a desvanecer-se, e o Imperador esqueceu sua glória, sua condição de aristocrata e gritou desesperado:

– Senhor, Mestre, preciso te ver.

– Aprenda a me ver em cada coisa. Eu estou em Tudo. Olhe minha forma verdadeira.

O Imperador das Cinco Regiões permaneceu atônito, contemplando a imagem do ser que havia reverenciado desde sua juventude. Diante dele estava Yu-Huang-Chang-Ti, o Supremo Imperador Augusto de Jade, o Senhor do Céu.

O sol avançava entre as nuvens quando o Imperador de Jade Amarelo acordou. Fez reunir na sala dourada todos os sábios conselheiros de seu reino e, ao narrar a causa de sua aflição, o mais velho lhe disse:

– Filho do Céu, vives dramaticamente centralizado na tua própria pessoa. Nosso venerado Yu-Huang-Chang-Ti, o Senhor do Céu, quer que te esqueças de ti mesmo e então ganharás o Império da Eternidade.

O Imperador de Jade Amarelo sorriu feliz e abriu suas portas interiores ao altruísmo. Então iniciou o Ano Primeiro do Governo Perfeito.

Fonte:
Literatura de Isabel Furini

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 1


LÍRICA Nº 03
  
Para onde foste
depois que saíste dos meus braços,
se já conhecias todos os caminhos?...

Vais te perder à toa,
agora que eu já tinha te achado...

LÍRICA Nº 04
   
Consolo triste
este o de repetir inutilmente
que restará a lembrança
de que vivemos a eternidade
em algum tempo...

Consolo triste.
Chego a pensar que seria preferível
continuar a viver o efêmero
eternamente...

LÍRICA Nº 05
   
As vezes me surpreendo
a olhar minhas mãos vazias
como taças sem finalidade
depois que a festa acabou...
Que outras mãos tremulas e bêbadas,
deslumbradas de beleza e de prazer,
te tomarão, num brinde?

LÍRICA Nº 06
   
Falo em volta,
para iludir minha tristeza...
Como se enganam as crianças,
distraindo-as
à hora da morte sair...

LÍRICA Nº 07


Bem sei eu estou pagando caro,
em sofrimento,
a alegria que colhi.

Mas valeu.

Felizes os que ainda tem
a lembrança do sol
quando chega a invernia.

E porque o conheceram,
e o sabem além das nuvens,
ainda sonham e esperam 
por um novo dia.

LÍRICA Nº 08

Antes
nos adivinhávamos.

E de súbito,
não nos vimos mais.

LÍRICA Nº 10

Sigo carregando este amor
dentro de mim...

Chorar por ele, quem há de ?

Tenho a impressão
de que hei de levá-lo assim
até onde eu for,
embalsamado em minha saudade...

- ...Amor
de eternidade.

LÍRICA Nº 12
   
Chorar, seria fraqueza,
apesar de não poder evitar
que os olhos se turvem.
Morrer, talvez fosse a solução.

Mas, e quando voltares?

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Aluísio de Azevedo (Rendas e Fitas)


I

- Olá! exclamei eu, vendo saltar do bonde de Botafogo o meu querido Ernesto Branco. Bons ares te tragam! Como vais tu? Mas que diabo de cara tens agora? Estás zangado?

- Ora! Não me fales! Não estou zangado; estou aborrecido. Aborrecido com esta vida infernal do Rio de Janeiro; aborrecido com este calor selvagem, este calor inimigo da civilização e do trabalho; e aborrecido principalmente com as nossas patrícias, esses monstros de olhos sedutores e sorrisos virginais!

- Ó diabo! a coisa agora é mais grave... Dar-se-á o caso de que o meu espirituoso amigo levasse tábua de alguma moça com quem estivesse para casar?...

- Hein?! Casar?! Eu?! Com quem?!

- Oh! com qualquer moça do teu gosto...

- Por quê ! Que mal fiz eu, para me condenarem assim, sem apelação nem agravo!... Casar! Casar com uma dessas criaturinhas que neste instante acabam de encher-me de indignação e de vergonha? Casar com uma dessas moças ignorantezinhas, pretensiosas e malcriadas? Oh, nunca! Nunca! Nunca! Antes ser cão de cego; antes ser ministro do Sr. Floriano; antes ser leitor do Fígaro!

- Mas, que te fizeram, Santo Deus! para te ver neste estado de cólera contra o sexo mimoso?... para te ver assim terrível e feroz contra essas belas flores com alma, que são o encanto da nossa vida, o perfume do nosso lar, a segurança da nossa felicidade?...

- Que me fizeram? perguntas tu! Oh! dir-se-ia que nunca viajaste em um bonde em que vão patrícias nossas! Dir-se-ia que nunca cedeste o lugar a uma senhora, para vê-la aceitar a tua fineza, sem voltar sequer o rosto, quanto mais dizer "Muito obrigada!"

- Acanhamento!...

- Qual acanhamento! São acanhadas para cumprir com tão insignificante preceito de boa educação, mas não lhes falta desembaraço para protestar com uma careta, e às vezes até com um muxoxo, quando lhes chega a vez de se incomodarem para te dar passagem!

E o modo afrontoso e impertinente com que elas observam e esmerilham, medindo da cabeça aos pés, as pessoas que entram no bonde, será também acanhamento ...

- Curiosidade de mulher...

- De mulher mal-educada! E' muito feio que uma moça, pressuposta inocente e virginal, ou mesmo uma senhora já casada ou viúva, não possam ver entrar uma cocote no bonde, sem se voltarem de nariz torcido, sem a medirem com desprezo e azedume, arriscando-se a ouvirem uma merecida resposta! E não é preciso que seja uma de chapéu tapageur e vestido de cor criard a pessoa que entre no bonde, para ser analisada deste modo; basta ser uma estrangeira, uma estrangeira que não se vista pelo detestável gosto com que se vestem as nossas damas; quer dizer que não venha coberta de seda e veludo por um dia de sol ardente e não traga em cima de si todas as cores do céu e do inferno!

- Tu exageras!

- Não exagero tal! Agora mesmo acabo de presenciar revoltado uma dessas cenas. Estava uma família ocupando o banco em frente do meu: uma velha, uma senhora de meia idade, e duas moças de quinze a vinte anos; todas as quatro tudo que há de mais tipo brasileiro e de mais ridículo.

O grupo formava uma orgia de cores, de flores e de fitas; uma loucura de sedas, de lãs, de veludo, e de algodão.

Entra um casal americano do norte. O homem de calça e paletó de brim, chapéu de palha com toalha em volta, e guarda-sol de pano claro, a mulher com um singelo vestido de linho cor de palha, enfeitado de rendas da mesma cor, e na cabeça um abajur de linho branco, preso despretensiosamente ao pescoço por duas pontas largas de cadarço.

Pois, meu amigo, não imaginas o rebuliço que se produziu naquela família com a chegada deste casal, que aliás, nada mais fez do que entrar, assentar-se e pôr-se a conversar em voz baixa, natural e discretamente.

Oito olhos arregalados cravaram-se imediatamente sobre a americana com tal insistência que a nobre senhora começou a examinar-se, e perguntou depois ao seu cavalheiro se ela tinha em si alguma coisa que chamasse a atenção.

"Deus te livre!" disse a velha, com arrelia, dando um estalo de língua e torcendo enojada a cabeça, como para não continuar a ver um espetáculo indecoroso.

"Iche! desdenhou por sua vez a quarentona. Esta gente não tem vergonha de sair assim à rua?... Parecem mascarados, Deus me perdoe!"

E as duas moças começaram, de lenço contra a boca, a emitir consecutivas gaitadas de riso, e a remexerem-se no banco, e a cochicharem tão impertinentemente, que os americanos voltavam a cabeça de vez em quando, patenteando na fisionomia o mais completo ar de intriga e de assombro.

Não ouvi o que eles disseram lá entre si; vi, apenas, o desdenhoso movimento dos seus lábios e senti venetas de estrangular aquela família brasileira, tão tola, tão ridícula, tão chinfrim!

E ainda me vens falar em casamento! Mas a ideia que me dá ânimo para continuar a viver; a única razão por que não me atiro ao mar; o meu único momento de felicidade, é quando me lembro de que aqui no Rio de Janeiro, onde todos são mais ou menos casados, eu me conservo solteiro como no dia em que nasci! E, juro-te que não é da febre-amarela, que tenho medo, nem das bexigas, nem do beribéri, nem da legalidade do Sr. Floriano, nem da queixada do Sr. Aristides, é daquilo que ali vem. - Olha!

E Ernesto apontou para um grupo de três mocinhas que se aproximavam de nós, muito risonhas, acompanhadas pela mamãe; e deitou a fugir como um louco em direção contrária, a gritar.

- Livra! Livra!

E foi-se.

II

Não, Ernesto, vem cá. Senta-te aqui; conversemos tranquilamente. Não comeces a gesticular como um louco e a dardejar paradoxos a torto e a direito! Ouve-me quieto e responde com bons modos, se não me queres ver tomar o chapéu e desaparecer pela porta da rua.

- Vamos lá!

- Foste ontem injusto e severo demais com as nossas patrícias. Concordo que nem todas as brasileiras mereçam a minha defesa; sei que há por aí muita mocinha impertinente e muita senhora insuportável, mas ninguém pode negar que a brasileira em geral é meiga, virtuosa e asseada,

- Não foi disso que tratei!

- Ouve. Tu conheces bem o tipo da inglesa, com a sua barriga de tábua, com o seu cabelinho louro grudado à cabeça e enrolado pobremente sobre a nuca; com a sua cintura de lâmina, muito estreita vista de lado, muito larga vista de frente; com os seus pés espalmados e longos, como uma canoa de pescador emborcada sobre a praia; conheces a famosa Miss, tão celebrada pelo lápis de Gavarni; essa misteriosa criatura de olhos celestiais, que em viagem se parece com um guarda-chuva inglês, metido cuidadosamente dentro da capa, e que em casa, no interior, lembra um vaporoso e fino caramelo encimado por uma trouxa de fios de ovos. Conheces a mulher inglesa?.

- Se conheço! Theóphile Gautier, o meridional romântico, o beduíno francês, que viveu para adorar as mulheres, e que amava e cultivava os gatos, por não poder fazer o mesmo com a pantera (que, depois da mulher, é o bicho mais feroz de criação), Theóphile Gautier dizia e repetia que as inglesas são as mulheres mais formosas do mundo!

- É exato. O que não impede que os outros franceses, ao vê-las atravessar o boulevard, tenham, sempre para ela as pilhérias mais terríveis e os ditos mais ridículos. Mas, passemos adiante: conheces igualmente a espanhola?

- Oh! Pergunta-me antes se conheço Byron! Não conhecer o tipo da espanhola!... Dançante seguidilha de amor que se transforma em mulher! Oh! se conheço! Mantilha, leque, castanholas e touros! Sou louco por ela! Vamos adiante!

- Pois, meu amigo, fica sabendo que as espanholas têm coisas detestáveis nos seus costumes. Â mesa, por exemplo: não há espanhola, por mais bem educada, que não leve a faca à boca, como se fosse um saltimbanco engolidor de espadas; e todas elas lambem os dedos; tiram com a língua o que fica de comida entre os dentes, e...

- É falso! É mentira! Não prossigas, ó caluniador! que te estrangulo aqui mesmo!

- E a italiana?...

- Oh! oh! O velho amor cavalheiresco! Beijos e punhaladas. Lábios grossos e quentes; punhais frios e penetrantes. Um conde assassinado ao luar, debaixo de uma ponte; a condessa veneziana fugindo com um tenor de olhos ardentes!...

Conheço! conheço! mas tudo isso cheira-me um pouco a macarrão e realejo!

- Quando não cheira pior... porque, meu caro, debaixo de todo aquele romanesco lírico e daqueles transportes de paixão, com punhal, cabelos soltos e dentes cerrados, mal sabes o que vai! A italiana em geral é boa para ser vista de longe. Só tem efeitos cenográficos. Não te aproximes muito dela, se queres conservar a bela impressão artística que recebeste!

- E da francesa? que me dizes tu da encantadora francesa?...

- Digo-te que é a mais vulgar de todas as mulheres... a que menos tem a linha original...

- Socorro! Socorro! Este homem acaba de enlouquecer!

- Não! Não enlouqueci! Não confundas a francesa com a parisiense. Fala-me desta, e eu te direi que a parisiense é a mulher mais feia e mais sedutora entre todas as filhas de Eva; eu te direi que só ela tem o segredo do amor que ri, e canta, e brinca; o segredo da amabilidade que satiriza e confunde como um piparote na ponta do nariz. Não é uma mulher, é uma bonita fantasia feita de cançonetas, aljôfares de champagne e rendas valencianas!

- Seduzem-no mais o espírito do que os sentidos. E' a primeira mulher do mundo.

- Não! A primeira mulher do mundo, meu querido Ernesto, é a brasileira.

- E por que não a portuguesa?

- Porque a portuguesa aos trinta anos, idade da grande afeição da beleza feminil, em geral começa a barbear e a criar umas singulares bochechinhas ao lado do queixo, que lhe tiram todo o encanto e lhe dão ares de abadessa.

- E a brasileira então? A brasileira aos trinta anos está coberta de sardas; já se não aperta; já se não penteia; anda em casa com o roupão desabotoado sobre o ventre; arrasta os chinelos, e, às vezes, fuma até cachimbo!

- Não é verdade! Ou tens consciência de que estás mentindo ou não sei que diabo de brasileiras conheces tu! Repito: a brasileira é a primeira mulher do mundo. Sela se reúne tudo o que as outras possuem de melhor; ela tem a graça e o donaire da espanhola; tem o calor e o arrebatamento da italiana; tem o coquetismo da francesa, tem o asseio e a virtude das inglesas e o talento doméstico da alemã.

- Só lhe faltam, para ser completa, as barbas à portuguesa!

- Mas tem uma coisa ideal, que nenhuma outra possui como ela, e é a meiguice, o carinho profundamente sincero, a dedicação sem limites pela pessoa amada. Só a brasileira, só ela no mundo, tem o segredo de dar cafunés e de fazer certos quitutes e certos doces que nos arrebatam! Só ela...

Mas Ernesto não me deixou prosseguir, ergueu-se indignado e exclamou, enterrando o chapéu na cabeça:

- Ora, vai-te para o diabo! Estás apaixonado por alguma pasteleira! E eu a dar ouvidos a este comilão!

E foi-se.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 130


Arthur de Azevedo (Por não se Entenderem)


    O Zeca Borges, pequeno lavrador do Bananal, tinha um irmão cônsul na Alemanha, e, quando soube que esse irmão chegara ao Rio de Janeiro, com licença, ficou satisfeitíssimo, e ansioso por abraçá-lo, tanto mais tendo recebido imediata comunicação de sua residência, na Rua do Catete.

    O Zeca meteu-se no trem, e na manhã seguinte estava no Hotel dos Estados, onde se demorou apenas o tempo necessário para tomar banho, mudar de roupa, fazer a barba e almoçar.

    Depois do almoço, lá se foi ele a pé, Rua da Lapa acima, em busca do irmão saudoso.

    Na casa indicada estava à janela uma senhora loura e bonita.

    - Querem ver, pensou ele, que o Chico se casou na Alemanha com a filha do tal arquiteto, de quem tanto me falava nas suas cartas? Não foi outra coisa! o patife não me mandou dizer nada!...

    O Zeca Borges tirou o chapéu à senhora, que lhe correspondeu com um sorriso amabilíssimo.

    - Naturalmente conhece-me de retrato, pensou ele - e entrou.

    Ela esperava-o de braços abertos no tope da escada, e deu-lhe muitos abraços e muitos beijos.

    O paulista não estranhou a natureza de tão excessivas manifestações, que aliás nada tinham de fraternais; apenas achou, de si para si, que na Alemanha o sentimento da família estava mais desenvolvido que no Brasil.

    - O Chico? - perguntou ele - não está?

    Ela teve um olhar estúpido.

    - A Senhora não é a mulher do Chico, meu mano?

    Ela respondeu, com muita dificuldade, que não falava português.

    - É justo, cunhada, é muito justo, mas como também eu não falo alemão, não haverá meio de nos entendermos! Que pena o Chico não estar em casa! Olhe, o melhor é voltar logo!

    E deu um passo para a porta; mas a mulher passou-lhe um braço em volta ao pescoço, e levou-o até à porta da alcova, que abriu com um gracioso pontapé, mostrando-lhe a cama.

    Tudo isso pareceu muito esquisito ao Zeca Borges, mas como este era um rapaz inteligente, o que o leitor sem dúvida já percebeu, disse consigo que ela supunha, e com razão, que ele precisasse descansar porque vinha de viagem e passara, talvez, a noite em claro.

    E mais se convenceu de que tal era a intenção da cunhada, quando esta lhe desatou o laço da gravata e desabotoou-lhe o paletó e o colete.

    - Não! Isto agora é demais! Eu mesmo dispo-me! Pode ir! Pode ir!...

    Ela saiu muito risonha, sempre depois de lhe dar mais um beijo e de lhe recomendar, por gestos, que a esperasse (o irmão, ao que ele supunha) e o nosso Zeca, mal se apanhou sozinho, entendeu que o melhor que tinha a fazer era despir-se, deitar-se e dormir.

    Mas não havia três minutos que estava deitado, refletindo sobre o extraordinário desenvolvimento do sentimento da família na sociedade alemã, quando a mulher voltou e se dirigiu saltitante para ele, tendo vestida apenas uma camisola de seda escandalosamente diáfana.

    Calcule-se o espanto do paulista, que deu um pulo como se visse o demônio e foi agachar-se a um canto da sala, gritando:

    - Não se aproxime, cunhada, não se aproxime!...

    Ela convenceu-se então de que tinha em casa um doido e começou a gritar.

    Acudiram outras mulheres, que felizmente falavam português, e tudo se esclareceu. O Zeca Borges tomara um algarismo por outro, entrara numa casa de mulheres julgando entrar em casa do irmão.

    Houve grande risota entre o mulherio, e o próprio Zeca foi obrigado a rir da sua ingenuidade, oferecendo uma nota de cinquenta mil-réis à húngara, que não era alemã, e ainda menos sua cunhada.

    Meia hora depois abraçavam-se os dois irmãos. O cônsul estava ainda solteiro.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Olivaldo Júnior (Sonetilhos e Versos Afins)


SOLITÁRIA FLOR
(Ceciliana)


No jardim sem fim,
entre sonho e dor,
vive a flor em mim:
solitária flor.

No jardim - sem mar -,
entre pesca e amor,
vive alguém sem par:
solitária flor.

Pois, por ser assim,
tão sozinha e triste,
lembra até Cecília,

a Meireles, sim:
flor que só existe
para seu jardim.

SONETILHO DE NATAL Nº 01

Olho as ruas de noitinha,
penso em tudo que passou,
tanta luta que era minha
e, num vento, ao céu voou...

Olho as ruas em dezembro,
penso em todos que não têm
o Natal do qual me lembro,
com os presentes, paz e bem...

Olho as praças, minha mãe,
e me deixo ao meu destino,
panetone com champanhe!...

Sonho, enxergo enfim meu pai,
todo aflito, um pai menino,
que, em seu rosto, a chuva cai...

SONETILHO DE NATAL Nº 02
(O Natal daquela avó)


Na cadeira já vazia,
paira um novo conhecido,
cuja vã fisionomia
lembra bem a do marido...

Na poltrona sem ninguém,
sobem netos e bisnetos,
quando o sino, o de Belém,
reverbera sobre os tetos...

O Natal daquela avó
sai da "toca" com setembro,
dia a dia, mesmo só...

Logo vem - cocoricó! -
num trenó, já em dezembro,
o Natal daquela avó!...

SONETILHO PARA OS MÚSICOS
(22 de novembro: Dia do Músico)

Porque a música tem cheiro,
tem sabor e tem textura,
vejo e escuto o povo inteiro
dar-se à música: ternura.

- Porque a música tem jeito
de contar o que é que eu sinto,
sinto a música em meu peito
ser verdade enquanto eu minto...

Porque a música tem lábios
que não beijam já faz tempo,
beijo a boca de "mil" sábios...

Porque é mero passatempo,
já não vivo mais sem rádio,
pois sou músico: contemplo.

AS MIL FLORES DOS TEUS OLHOS

Vou fingir que não te amo até você acreditar no meu amor
(Eu mesmo)


Manhã cedo, colho as flores,
as mil flores dos teus olhos,
e as desmancho pela estrada
dos que, cegos, são o amor.

Manhã cedo, colho as flores,
as mil flores dos teus olhos,
e as disponho frente à casa
dos que, nômades, são sós.

Manhã cedo, colho as flores
para o enterro desse amor,
que agoniza seus rancores...

Manhã cedo, colho as flores
para um dia em novos nós,
os mil nós, amor, teus olhos.

A FLOR QUE APANHAS
(19 de novembro: Dia Internacional do Homem)

Sem que existam mais pedradas,
nem piadas, nem maldade
contra um parça de mãos dadas
com outro cara, na Cidade...

Sem que existam mais muralhas
entre os homens e as mulheres,
nem "machões" e nem canalhas,
que mastigam bem-me-queres...

Sem que existam tantos "ismos"
para os homens que são deuses,
mas se encontram nos abismos...

Sem que existam mais campanhas
pra que os homens sejam "deuses",
honre, amigo, a flor que apanhas.

SER GENTIL É SER PRESENTE
(13 de novembro: Dia Mundial da Gentileza)

Ante um homem do futuro,
com seu ar de indiferente,
que declaro ao pé do muro:
- Ser gentil é ser presente.

Ser gentil é não ser duro
quando o próximo, silente,
se fechar, for tão escuro
quanto o caos adolescente.

- Ser gentil é ser humano,
ser Carlitos com o garoto,
que resiste ao desengano!...

- Ser gentil é ser o "hermano"
de quem traz o olhar tão roto,
mas, presente, tem um plano.

MINHA LÍNGUA EM SUA VIDA
05 de novembro: Dia Nacional da Língua Portuguesa
 
Para o "Anjo de Lisboa"

Minha língua em sua vida
não importa nem um pouco,
mas eu driblo a despedida,
marco um gol e acabo rouco...

Uno as línguas que há no mundo
numa língua condoreira,
que, ao morrer no mar profundo,
funda a língua brasileira...

Feito um santo do pau oco,
canto versos para um "anjo"
que me deixa quase louco...

Anjo luso, de asas rubras,
traga paz a este marmanjo
e esta língua redescubras!

NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA
05 de novembro: Dia Nacional da Língua Portuguesa

Deixe que lhe beije os lábios,
que não apenas os sábios
devem render-se à grandeza
de uma língua portuguesa...

Que essa língua portuguesa
faz minguar toda a tristeza
na crescente de um abraço,
maré cheia ante o cansaço...

Pois, nos braços dessa língua,
deixo as línguas do Brasil
e de toda e qualquer terra

que se rendam a essa língua,
lusa, louca, em pleno ardil,
que Camões, eterno, encerra.

À ESPERA DO CUPIDO
(Para o Dia dos Namorados)

Meu Cupido bonachão,
na "Quadrilha" de Drummond,
faz partir meu coração,
para eu ver o que é que é bom.

Na quadrilha da paixão,
perco o passo, baixo o tom,
sem saber que a solidão
não tem gosto de bombom...

Junho a junho, à luz da lua,
namorados sabem bem
o que é ter alguém "na sua"...

Namorado de ninguém,
inda espero, ao frio, na rua,
do Cupido, meu alguém...

Fonte:
Versos enviados pelo poeta.

sábado, 30 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 129


Carolina Ramos (Ronoel)


(Conto inspirado na frase de uma garotinha: "Tenho três pais!")

Roberto olhou-se no espelho, sorriu satisfeito. O travesseiro enrolado na cintura, as barbas brancas e o trajo vermelho, faziam-no a imagem perfeita do Papai Noel que todos os anos enfeita o Natal de crianças de qualquer idade.

Beirava já os cinquenta anos e a cegonha não lhe batia à porta, apesar dos esforços conjugados, dele e da esposa, para atraí-la. Confirmada a desesperança, tomara a decisão de fazer felizes as crianças que não sonhavam mais com a visita do Bom Velhinho, cada vez que os sininhos do Natal tilintavam e a cidade luzia, transformada por completo, adornada de estrelas e brilhos especiais.

E assim acontecia há vários anos. Roberto, mal anunciado o Natal, escolhia uma noite próxima, e, travestido de Papai Noel, saco nas costas, e com os braços cheios de presentes, semeava felicidade em doses diminutas, mas sempre muito bem recebidas. Fazia o que podia! Voltava de braços leves e coração mais leve, ainda!

Foi numa dessas noites, que os dois se encontraram. O destino talvez tenha engendrado a trama, ao desviá-lo do costumeiro caminho. Roberto notou o pequeno vulto encolhido à soleira de uma porta qualquer. Soube-o acordado, pelo brilho dos olhos e pela inquietação do cãozinho de duas cores, sentinela, ao seu lado.

— O que você faz aqui? — indagou surpreso.

— Eu vou dormir... durmo sempre aqui.

— Você não tem casa? Não tem mãe.,. não tem pai?!

— Eu tinha dois pais. O Pai do Céu, que mora muito longe... e o outro pai que sumiu de casa e foi morar no Carandiru. Nunca mais ele me visitou e minha mãe não deixava que eu fosse visitar ele. Depois, ele morreu... e minha mãe logo morreu, também... aí, eu fiquei na rua...

O ''Bom Velhinho" interrompeu o diálogo, sem disfarçar a lágrima que deixou rolar. Após alguns minutos de silêncio, indagou com voz emocionada: — Você quer ir morar comigo, na minha casa?

— O menino indagou com voz sumida: — Quem é você?!

— A resposta não poderia ser outra: — Eu sou Papai Noel! Você não me conhece?!

Os olhos do garoto cresceram: — O meu terceiro pai?!

— Como?!

–  É que minha mãe, quando meu pai morreu, me contou que, além do Pai do Céu e do meu pai que morava no Carandiru, eu tinha um outro pai, que se chamava Noel… mas esse pai nunca apareceu por lá… nunca veio me ver! Então, é você? Você é o meu Papai Noel?!

— Sim, filho… eu sou o seu Papai Noel! E como é que você se chama?

— Eu sou Juninho, filho do Toninho Boa Vida. Eu gosto do nome do meu pai, mas minha mãe não queria que eu usasse esse nome, por isso, só me chamava de Juninho.

Roberto entendeu o drama que envolvia a origem daquele menino. Drama que não seria menor do que aquele que lhe reservaria o futuro, caso não encontrasse alguém que o amparasse. Depois de alguns instantes de silêncio, Roberto, decidido, estendeu a mão ao garoto, que não desgrudava dele, os olhos interessados.

— Muito bem, Juninho. Vamos fazer um acordo. De agora em diante, você vai ter que mudar de nome. Seu nome vai ser Ronoel: — Ro de Roberto e noel de Noel? Está bem?

Um largo sorriso, onde faltavam dois incisivos, sendo que um deles já vinha a caminho, iluminou a face do menino:

— Quer dizer que... agora vou ter quatro pais?!

– Ei! Para com isso, garoto! Eu e Papai Noel somos a mesma pessoa — seu pai... um só pai!

O garoto, ainda intrigado, não insistiu. Era pegar, ou largar!

Agarrou a chance, com unhas e dentes!

Foi assim que Roberto driblou a cegonha, e ganhou, enfim, o filho que tanto esperara!

Juninho Boa Vida, ganhou, de presente, o seu terceiro pai, virando Ronoel J. da Silva. O Jota, não queria dizer nada, mas fora mantido para lembrar o nome Juninho, tão do agrado do menino e seu único
anterior patrimônio.

A felicidade, que espiava de longe, ao ver tanta alegria, arrumou a trouxa e, complementando o ansiado presente de Natal, veio morar, definitivamente sob aquele teto que, finalmente, abrigava uma família completa: — pai, mãe, e filho... e na qual não faltava, sequer, aquele cãozinho de duas cores!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) V


A alegria enquanto vige
rege a nossa caminhada,
leva, traz e à luz dirige,
cada passo nessa estrada.

A cada instante um passinho
e hei de passar para o além,
tal um simples passarinho
todos passarão também.

A escassez será sentida
com maior intensidade,
quando nos faltar à vida:
parte da felicidade.

Água pura, imaculada,
deslizando sobre o rio,
se em represa, acumulada,
segue a rota num desvio.

As duras penas impostas
aos autores dos delitos,
podem servir de respostas
aos insanos e malditos.

Cada flor com seu matiz
e seu perfume também,
torna um momento feliz
ao ser dada para alguém.

Caminhando pela vida
encontramos pouca cor,
mesmo não sendo florida
por si só se torna flor.

Deus não depende da gente
para o seu papel cumprir,
nós dele, constantemente,
dependemos pra existir.

É no entardecer dos passos
que a desilusão floresce,
velho sonho em descompassos
na noite desaparece.

Entre a multidão que grita
por socorro contra o mal,
a força que tanto agita
pode ser sentimental,

Estreitar os nossos laços
na mais profunda amizade,
é dever, em cujos braços,
fica a paz, fraternidade.

Gesto simples e bonito
com forças medicinais,
é combater o mosquito,
porque dengue: nunca mais!

Mesmo que digamos não,
desde o começo até o fim,
Deus, na grande mansidão,
nunca retira o seu sim.

Muitas oportunidades
que o mundo nos oferece,
pelas peculiaridades
raramente alguém esquece.

Muitos intentos na vida
nunca nos deixam vazios,
amar sempre sem medida
é o maior dos desafios.

Na pista da paz, estreita,
a vida tem preferência,
se o fim é vê-la perfeita
o restante é consequência.

No asfalto que serpenteia
vastos campos e montanhas,
o homem passa e delineia,
suas fúlgidas façanhas.

No que tange à segurança
não podemos esquecer,
jovem, adulto ou criança,
devem cumprir seu dever.

Nos campos da dignidade
brilhe sempre a luz divina
transformando a humanidade
numa nova lamparina.

Numa fração de segundo
posso esta vida deixar,
deixando também no mundo
lições para quem ficar.

O cinamomo descansa
na temporada do frio,
porém refaz a esperança,
na primavera com brio.

Olho à noite a imensidão
e vejo estrelas brilhantes,
a quebrar a escuridão
com seus raios cintilantes.

Para combater o mal
use o bem por armamento
e o bastardo que é anormal
mudará o comportamento.

Para o sul caminha, quem
quer algo que lhe conforte,
mas pode seguir também,
se preferir para o norte.

Pertinaz, ferrenha, inglória,
nunca seja a nossa luta,
mas um grito para a história,
viva voz pra quem escuta.

Plantas cobertas de folhas
nunca sós, lá no cerrado,
quem tiver muitas escolhas
quase sempre escolhe errado.

Por mais valente que for
nesta luta sem fronteira,
saiba suportar a dor
embora tê-la não queira.

Quando a Guerra dos Farrapos
pelo Duque veio a paz,
as intrigas com seus trapos
foram deixadas pra trás.

Quando o mundo se organiza
pode ser em mutirão,
lastimar ninguém precisa
pois tem logo a solução.

Que a luz da fé vigorosa
seja nossa vanguardeira,
nem verdade mentirosa,
nem mentira verdadeira.

Se a plantação for bem feita
na lavoura da esperança,
faz germinar a colheita
dando frutos de bonança.

Se a saudade já foi tanta
pela distância gerada,
deixe a fruta dessa planta
nos seus ramos pendurada.

Senhor, que à terra descestes,
muita paz vinde nos dar,
conforme nos prometestes
no céu dai-nos um lugar,

Se no mundo, porventura,
o amor nunca for plantado,
numa nefasta aventura
poderá ser transformado.

Se nós formos persistentes
frutos vamos coletar,
graças àquelas sementes
que ontem ousamos plantar.

Solidão e sofrimento
se confundem nos efeitos,
feridas de um ferimento
abertas só nos 'eleitos'.

Tantas cantigas suaves
nas florestas entoadas,
seus intérpretes, as aves,
são cantoras renomadas.

Toda vez que o ser humano
a ilicitude comete,
mesmo sendo por engano
seu futuro compromete.

Tristes troncos insepultos,
talvez natureza morta,
resultado dos insultos
que nem o tempo conforta.

Vida e morte são dois lados:
muitos tentam afirmar.
Podem nem estar errados,
só na fé pra confirmar.
******************
Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo trovador.

António Lobo Antunes (A Consequência dos Semáforos)


Odeio os semáforos. Em primeiro lugar porque estão sempre vermelhos quando tenho pressa e verdes quando não tenho nenhuma, sem falar do amarelo que provoca em mim uma indecisão horrível: travo ou acelero? travo ou acelero? travo ou acelero? acelero, depois travo, volto a acelerar e ao travar de novo já me entrou uma furgoneta (*) pela porta, já se juntou um monte de gente na esperança de sangue, já um tipo de chave-inglesa na mão saiu da furgoneta a chamar-me: “Seu camelo”. Já a companhia de seguros me propõe calorosamente que a troque por uma rival qualquer, já não tenho carro por uma semana, já me ponho na borda do passeio a fazer sinais de náufrago aos táxis, já pago um dinheirão por cada viagem e ainda por cima tenho de aturar o pirilampo mágico e a Nossa Senhora de alumínio do tablier (*), o esqueleto de plástico pendurado do retrovisor, o autocolante da menina de cabelos compridos e chapéu ao lado do aviso "Não fume que sou asmático", proximidade que me leva a supor que os problemas respiratórios se acentuaram devido a alguma perfídia secreta da menina que não consigo perceber qual seja.

A segunda e principal razão que me leva a odiar os semáforos é porque de cada vez que paro me surgem no vidro da janela criaturas inverossímeis: vendedores de jornais, vendedores de pensos (*) rápidos, as senhoras virtuosas com uma caixa de metal ao peito que nos colam autoritariamente sobre o coração o caranguejo do Cancro, os matulões (*) da Liga dos Cegos João de Deus nas vizinhanças de um alto falante sobre uma caminhoneta com um espadalhão (*) novo em folha em cima, o sujeito digno a quem roubaram a carteira e que precisa de dinheiro para o comboio do Porto, o tuberculoso com o seu atestado comprovativo, toda a casta de aleijões (microcefálicos, macrocefálicos, coxos, marrecos, estrábicos divergentes e convergentes, bócios, braços mirrados, mãos com seis dedos, mãos sem dedo nenhum, mongolóides, dirigentes de partidos políticos, etc.), sem contar o grupo de Bombeiros Voluntários que necessita de uma ambulância, os finalistas de Coimbra, de capa e batina, que decidiram fazer uma viagem de fim de curso à Birmânia e a rapaziada da heroína que não conseguiu roubar nenhum leitor de cassetes nesse dia.

Resultado: no primeiro semáforo já não tenho trocos. No segundo não tenho casaco. No terceiro não tenho sapatos. No quinto estou nu. No sexto dei o Volkswagen. No sétimo aguardo que a luz passe a encarnado para assaltar por meu turno, de mistura com uma multidão de bombeiros, de estudantes, de drogados e de microcefálicos o primeiro automóvel que aparece. Em média mudo cinco vezes de vestimenta e de carro até chegar ao meu destino, e quando chego, ao volante de um camião TIR (*), a dançar numas calças enormes, os meus amigos queixam-se de eu não ser pontual.
_____________________
Glossário:
Camião TIR – veículo motorizado de grandes dimensões usado para transporte internacional de cargas e mercadorias.
Espadalhão – grande e bom automóvel.
Furgoneta – van.
Matulões – indivíduos corpulentos de modos abrutalhados, rapagões, estróinas.
Pensos – absorventes higiênicos.
Tablier – Avental.

Fonte:
António Lobo Antunes. Livro de crônicas. Lisboa: Dom Quixote, 1998.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Isabel Furini (O Menino Trabalhador)


Fonte:
Literatura de Isabel Furini 

(http://isabelfurini.blogspot.com)

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Conversa)


A cozinheira abriu a porta da área de serviço. De cartão de identidade e talão de recibos em punho, o desconhecido ofereceu-lhe uma chance extraordinária:

— As empregadas domésticas não são sindicalizadas, não descontam para apês, não têm o menor amparo. Se adoecem, azar delas: o jeito é morrer à míngua. Mas com trezentos cruzeiros a senhora terá direito a hospital, operação, medicamentos e tudo mais. Hospital de propriedade exclusiva de domésticas, um estouro.

— Só trezentos cruzeiros?

— Bem, até o dia 30. Mês que vem em diante, custa dez mil cruzeiros. Aproveite enquanto o dólar está a mil e cem e assine este formulário de inscrição.

— Assinar o quê? Não sou escritora que nem meu patrão, que vive assinando livro na livraria. Eu mexo é com colher.

— Estou vendo que a senhora é desconfiada, no que faz muito bem. Hoje em dia nem na gente mesmo a gente deve confiar. Mas isto é diferente. Estão aqui as plantas, fotografias da maquete, nomes da diretoria, pessoal de responsabilidade.

— Hospital na planta, moço? É demagogia.

— Daqui a pouco vai existir em Coqueiros, sim senhora, e quero só ver o seu vexame quando passar por lá.

— Então me procura mais tarde, que agora estou muito ocupada lavando panela.

— Quando não tiver mais lugar de sócio fundador privilegiado, né? Está assim de candidato. A senhora se arrisca a ficar como sócia cooperadora não privilegiada, sem direito a acompanhante que não paga diária.

— Estou somando? Quem me acompanha é Deus, que nunca pagou diária.

— Quer dizer que é solteira.

— Com a graça de Deus.

— Me desculpe se estou avançando o sinal, mas não acho graça de Deus nenhuma nisso.

— Está desculpado. Acontece que não é da sua repartição.

— Eu sei. Falei porque desejo o seu bem-estar.

— ’brigada.

— Não tem de quê. Sendo doméstica e solteira, são duas razões pra se defender, assinando este papelzinho.

— Eu, hem? Então o senhor pensa que ilude assim uma mineira de Manhuaçu?

— Uai, a senhorita é mineira? Também sou de lá.

— De lá daonde?

— De Ubá.

— Ara, mineiro querendo tapear mineiro. Estou te estranhando, criatura.

— Credo: tapear, eu? E logo uma distinta patrícia da Mata. Até parece que foi a luz da minha finada mãe que me guiou até aqui.

— Pra eu te passar trezentos cruzeiros?

— Quem falou em trezentos cruzeiros? Ela ia lá fazer uma coisa dessas? Me guiou para meu bem, está na cara. No meio de mil empregadas do estado do Rio, do Espírito Santo, do Nordeste, por que é que eu vim procurar logo uma moça de Manhuaçu, terra da família de minha santa mãe, que está lá no alto? Me diga, se é capaz? Pra vender esse troço de cota de hospital que uma garota como você não precisa nem vai precisar nunca, e sei lá até se funciona ou se fica no vou-te contar? Não, ela não me fazia isso. Foi pra te conhecer e fazer nossa felicidade, bem. Mas como é mesmo o teu nome, anjo de Deus no Leblon?

Menos uma cozinheira.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.