segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Isabel Furini (Mini-Contos)


ARTE

Enlouqueceu depois de muitas exposições sem êxito. Seu trabalho não repercutia na mídia. Abandonou a casa. Começou a morar na rua. Continuou pintando compulsivamente. Era alto, elegante e belo. Meu irmão e eu o observamos enquanto comia. Não parecia um indigente. Tinha a postura de um príncipe. No Natal pintou barcos carregados de presentes nos muros de uma fábrica. Os adultos nem paravam para olhar, mas meu irmão, eu e outras crianças do bairro de operários, admirados, aplaudíamos o artista louco.
_________________________________________

JUSTIÇA

– Deus abrirá as portas do Céu para eles? – perguntavam-se os Anjos enquanto pesavam os corações de dois homens.

Para o ateu compassivo, de coração bondoso, Deus abriu as portas do Céu. Fechou-a para o fanático religioso, que, cheio de arrogância e sem compaixão,  julgava-se superior ao ateu e o condenava.

“Ele prosseguiu: Atendei ao que ouvis: com a medida com que medirdes, vos medirão a vós, e ainda se vos acrescentará”. Marcos, 4-24.
_________________________________________

O CACHORRO DE MINHA AMIGA

- Os cachorros merecem respeito - falou minha amiga. E  é verdade. Mas, e os humanos?

Há alguns anos Irene me convidou para almoçar. Entrei na casa e o cachorro - enorme -  começou a latir. Minha amiga me aconselhou sentar-me à mesa e não me mexer, porque o cachorro era perigoso. Eu nem consegui comer porque estava com muito medo. Depois soube que não fui a única. Rosa e Betty passaram pela mesma situação. Resultado: Ninguém aceita almoçar na casa da Irene. Se ela gosta de ter o cão solto pela casa enquanto almoça com as amigas,  então que troque esse enorme cachorro por um Chihuahua.
_________________________________________

O CIRCO

Estava na cozinha esquentando o café do dia anterior. Sua esposa o havia deixado. Abandonara-o meses antes, quando um circo passava pela cidade. Ela aprendeu a voar junto com o trapezista. Nada tão belo quanto um salto mortal! – comentou Vera. Ele a viu voar no trapézio junto com o trapezista. Mas quando Vera o abandonou, suspeitou do palhaço.

Martim viu quando o palhaço se aproximou de sua esposa e murmurou algo no seu ouvido. Ela sorriu. Abraçou-o. Uma semana depois, o circo foi embora e sua esposa também. Tudo culpa do palhaço! Esse palhaço de sorriso falso! Era isto: ela havia fugido com um palhaço! E agora os dois iam com o circo de cidade em cidade fazendo palhaçadas.

Um ano depois o circo voltou à cidade, e ele soube o segredo que Vera havia guardado durante muitos anos. Vera engravidara quando era adolescente e havia dado seu filho a um casal de palhaços que trabalhava em um circo.
_________________________________________

O VESTIDO

Rosana abriu a porta do guarda-roupa e observou o vestido azul. Ela o havia usado na festa do Natal da empresa, no final dos anos 70. Foi quando conheceu Daniel, o seu grande amor. Daniel casou com a secretária. Rosana guardou o vestido como testemunha de sua juventude. Nesse momento observando o vestido azul tamanho 40, percebeu que sua roupa nova era 48.

– Não posso usar esse vestido e não posso continuar vivendo no passado – murmurou.

Decidiu doar o vestido para a filha da diarista. E se sentiu livre - como se houvesse doado toda a sua amargura.
_________________________________________

SURPRESA

Viajar pelos Andes sozinha! Natal maravilhoso!
 
Desci do avião em Lima, peguei um táxi até o hotel. Deixei as malas e fui conhecer a cidade. De repente, um homem vestindo um sobretudo preto. Apressei o passo, ele também.  Atravessei a rua, ele também. Nervosa, fingi olhar vitrines. Despistei-o.

Continuei caminhando. Na esquina o vi encostado numa porta. Olhou-me, colocou as mãos nas bordas do sobretudo e o abriu abruptamente. Fechei os olhos. Gritei. Ele disse: – Senhora, vendo canetas, chaveiros, brincos, pulseiras... Abri os olhos, vi objetos pendurados na parte interna do sobretudo. Um vendedor! Respirei aliviada e comprei várias pulseiras.
_________________________________________

VIVER

Doroteia, sempre recatada, começou a mudar. Aos cinquenta e oito anos, idade em que outras mulheres abandonam a vaidade e deixam crescer a barriga, a Doroteia, pelo contrário, começou a comprar roupas mais modernas, coloridas, alguns decotes, bijuteria. Ficou muito vaidosa. Passava horas no shopping. Queria dançar. Decidiu viajar ao Havaí no Natal para dançar hula-hula. Suas amigas acharam sua atitude estranha, criticavam-na. Mas Doroteia não desistiu. Ela fez a sua viagem, voltou com um namorado dez anos mais jovem do que ela, de cabelo grisalho, homem muito charmoso.

As amigas deixaram de criticá-la e começaram a imitar o seu comportamento. Como bem dizem os americanos, nada tem tanto êxito quanto o êxito.

Fonte:
Blog de Isabel Furini

J. G. de Araújo Jorge (Líricas) 3


LÍRICA Nº 31

Depois que te encontrei,
não basta a palavra amor -
para dizer o que sinto.

Só pedindo o silêncio de Deus
para confessar-me.

LÍRICA Nº 32
   
Depois que te foste,
sou como um cais vazio.

Faltam bandeiras, faltam apitos, faltam amarras,
falta o navio.

LÍRICA Nº 33

Livres nos encontramos,
e algo acima de nós
nos fez um do outro
e nos escravizou...

Agora, livres novamente
somos dois pássaros
que já não sabem voar
fora da gaiola...

LÍRICA Nº 34
   
Nas lembranças deste amor,
no pensamento,
surges tantas vezes
como um luar se gastando inutilmente
sobre velhas ruínas...

LÍRICA Nº 35

Nesta dor funda e persistente,
apagada e sombria
como uma brasa,
resta apenas a lembrança
de que um dia nos consumimos
em altas chamas efêmeras...

LÍRICA Nº 37

Tenho a impressão
de que até no teu pensamento
voltas o rosto à minha passagem...

Será o medo de me reconheceres,
ou a desconfiança da tua coragem?

LÍRICA Nº 41
   
Depois que tudo acabou,
penso que foi melhor não ter te conhecido
antes...

Na verdade,
antes
eu tivesse te conhecido depois...

LÍRICA Nº 42
  
Sempre que te encontro, é para sempre.
Sempre que me afasto, é para nunca.

E já que nunca mais te encontro,
é para sempre.

LÍRICA Nº 44
   
Sim, fui poeta muitas vezes...

Me lembro daqueles momentos de silêncio
em que nos encontrávamos
para falar de amor...

LÍRICA Nº 45

Havia em mim uma fonte de ignorada ternura
que ansiosa descobriste...

Estranho que a tenhas abandonado
quando tão sedenta te mostravas...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Arthur de Azevedo (Octogenário)


Ainda não houve no Rio de Janeiro "república" de estudantes mais séria que a do Coutinho, na Rua do Resende. Na vizinhança diziam todos que os moradores daquela casa pareciam, não estudantes, mas altos funcionários e chefes de família. Era uma "república" modelo.

Como não devia ser assim, se o Coutinho, filho de um rico fazendeiro de Minas, estudioso, tranquilo e morigerado (regrado), reunira naquele sobrado quatro comprovincianos (que são da mesma província) seus, de um comportamento irrepreensível, e todos filhos de gente abastada, para que nada faltasse em casa, nem houvesse credores à porta?

Um deles particularmente, o Gaspar, era tão grave, que raramente sorria, poucas vezes conversava, e parecia ter o dobro da sua idade; entretanto, era o único dos moradores daquela casa que passava as noites fora...

Nunca ninguém viu entrar ali mulheres, o que não quer dizer que os cinco rapazes fossem santos.

O Coutinho, por exemplo, gostava de uma linda espanhola da Rua do Riachuelo; mas a pequena só admitia que ele a visitasse pela manhã, pois só pela manhã estava livre: do meio-dia em diante pertencia a um velho negociante, octogenário, que lhe tomava toda a tarde e toda a noite sem lhe tomar mais nada, segundo ela dizia e o Coutinho acreditava, porque os rapazes acreditam em tudo quanto as mulheres dizem.

Ora, um dia fez anos o Leandro, o mais alegre e o mais novo dos cinco, e ofereceu aos companheiros um almoço regado por diversas bebidas, que tinham tanto de finas como de capitosas.

Beberam todos, inclusive o austero Gaspar, mas não se excederam, embora ficassem mais expansivos que de costume. Tão expansivos que vieram amores à baila, e o Leandro entrou a contar a sua aventura mais recente.

- Saibam que tenho uma amante! - disse ele.

- Também eu! - acrescentou o Coutinho.

- É espanhola!

- Também a minha.

- Mora na Rua do Riachuelo.

- A minha também! Se disseres que o nome dela é Mercedes, aposto que somos rivais!

- É efetivamente Mercedes, que ela se chama!

- O número da casa?

- Trinta.

- É a mesma! A mesmíssima!

- Que mulher fingida!

- Que desavergonhada! Ela só consente que estejamos juntos antes do meio-dia, porque dessa hora em diante pertence a um octogenário!

- A mim só me recebe à tardinha, porque à noite o octogenário lá está!

- E esse octogenário é um unhas de fome...

- Um vinagre...

- Que não lhe dá tudo quanto ela precisa...

- Pelo que é obrigada a recorrer à minha bolsa...

- E à minha!...

- Que mulher!...

- Que desavergonhada!

No calor da inopinada revelação, cortada pelas gargalhadas sonoras de dois dos companheiros, não repararam os rapazes que o Gaspar chorava convulsivamente, escondendo o rosto entre as mãos.

Os quatro, que atribuíram esse pranto ao vinho (e até certo ponto não se enganavam), correram para ele:

- Então?... Que é isso, Gaspar?... Que é isso?...

O austero estudante ergueu a cabeça e berrou, enquanto as lágrimas lhe deslizavam pelo rosto abaixo:

- O octogenário sou eu!...

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 142


Carlos Drummond de Andrade (O Importuno)


— Que negócio é esse? Ninguém me atende?

A muito custo, atenderam; isto é, confessaram que não podiam atender, por causa do jogo com a Bulgária.

— Mas que é que eu tenho com o jogo com a Bulgária, façam-me o favor? E os senhores por acaso foram escalados para jogar?

O chefe da seção aproximou-se, apaziguador:

— Desculpe, cavalheiro. Queira voltar na quinta-feira, 14. Quinta-feira não haverá jogo, estaremos mais tranquilos.

— Mas prometeram que meu papel ficaria pronto hoje sem falta.

— Foi um lapso do funcionário que lhe prometeu tal coisa. Ele não se lembrou da Bulgária. O Brasil lutando com a Bulgária, o senhor quer que o nosso pessoal tenha cabeça fria para informar papéis?

— Perdão, o jogo vai ser logo mais, às quinze horas. É meio-dia, e já estão torcendo?

— Ah, meu caro senhor, não critique nossos bravos companheiros, que fizeram o sacrifício de vir à repartição trabalhar quando podiam ficar em casa ou na rua, participando da emoção do povo…

— Se vieram trabalhar, por que não trabalham?

— Porque não podem, ouviu? Porque não podem. O senhor está ficando impertinente. Aliás, disse logo de saída que não tinha nada com o jogo com a Bulgária! O Brasil em guerra — porque é uma verdadeira guerra, como acentuam os jornais — nos campos da Europa, e o senhor, indiferente, alienado, perguntando por um vago papel, uma coisinha individual, insignificante, em face dos interesses da pátria!

— Muito bem! Muito bem! — funcionários batiam palmas.

— Mas, perdão, eu… eu…

— Já sei que vai se desculpar. O momento não é para dissensões. O momento é de união nacional, cérebros e corações uníssonos. Vamos, cavalheiro, não perturbe a preparação espiritual dos meus colegas, que estão analisando a Seleção Búlgara e descobrindo meios de frustrar a marcação de Pelé. O senhor acha bem o 4-2-4 ou prefere o 4-3-3?

— Bem, eu… eu…

— Compreendo que não queira opinar. É muita responsabilidade. Eu aliás não forço opinião de ninguém. Esta algazarra que o senhor está vendo resulta da ampla liberdade de opinião com que se discute a formação do selecionado. Todos querem ajudar, por isso cada um tem sua ideia própria, que não se ajusta com a ideia do outro, mas o resultado é admirável. A unidade pela diversidade. Na hora da batalha, formamos a frente única.

— Está certo, mas será que, voltando na quinta-feira, eu encontro o meu papel pronto mesmo?

— Ah, o senhor é terrível, nem numa hora dessas esquece o seu papelzinho! Eu disse quinta-feira? Sim, certamente, pois é dia de folga no campeonato. Mas espere aí, com quatro jogos na quarta-feira, e o gasto de energia que isso determina, como é que eu posso garantir o seu papel para quinta-feira? Quer saber de uma coisa? Seja razoável, meu amigo, procure colaborar, procure ser bom brasileiro, volte em agosto, na segunda quinzena de agosto é melhor, depois de comemorarmos a conquista do Tri.

— E… se não conquistarmos?

— Não diga uma besteira dessas! Sai, azar! Vá-se embora, antes que eu perca a cabeça e…

Vozes indignadas:

— Fora! Fora!

O servente sobe na cadeira e comanda o coro:

— Bra-sil! Bra-sil! Bra-sil!

Está salva a honra da torcida, e o importuno retira-se precipitadamente.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Luiz Hélio Friedrich (Jardim de Trovas)


1
A chamada às urnas traz
sentimento passageiro
quem na vida é satanás
vira santo milagreiro.
2
A chuva que cai do céu
e não cai em demasia
é como se fosse um véu
protegendo a terra fria.
3
A chuva tranquila e lenta
Descia de gota em gota,
como se fosse água benta,
a benzer a terra rota.
4
A derrota pouco importa
neste mundo de maldade,
desistir é que é uma porta
à derrota de verdade.
5
A guerra é ironia forte
que tudo arrasa e destrói,
da vida conduz à morte
para criar um herói.
6
A honra é o melhor adorno
que um homem pode ostentar
e é fácil ver seu contorno
na origem pura de um lar.
7
A jangada foi pro mar
carregada de esperança
para quando ela voltar
venha cheia de abastança.
8
A lua no céu, em festa,
quando inspira o trovador,
nos engana, pois empresta,
do sol, a luz e o calor.
9
Alegres eram meus sonhos
tendo vinte anos de idade,
aos setenta são tristonhos
pois é triste a realidade.
10
Aliança de casamento,
cadeado da ilusão,
para uns é um tormento,
para outros é uma união.
11
Almas puras se consomem,
na incerta busca do bem,
pois encontram sempre o homem
tentando explorar alguém.
12
Amar é fazer de conta
que defeito é uma virtude;
minar o que a vida apronta,
sem desvendar este truque.
13
Ao criar a natureza,
Deus tirou do seu baú,
um assombro de beleza:
-"Cataratas do Iguaçú"!
14
A paixão é uma cachaça,
que envenena o coração;
mas, depois, o efeito passa,
sobram: dor, desilusão!
15
A rima dá ao poeta,
o seu poder mais loquaz,
de conseguir sua meta:
rimando, pregar a paz.
16
A saudade é flor colhida,
nas beiras dos meus caminhos,
se perfuma a minha vida,
também fere com espinhos.
17
A saudade é uma tristeza
que me alegra e me traz vida.
Sem ver-te, tenho certeza,
de ser amado, querida.
18
As leis de almas femininas
fogem, um pouco, à razão;
parecem que tem esquinas,
sem placas de direção.
19
A ser chamado trovista
prefiro ser trovador;
pois um é rima de artista
e o outro é rima de amor.
20
A seriema quando pia
dá sinal que vai chover,
se eu não te vir por um dia,
é sinal... que irei morrer…
21
À trova tenho um apreço
qual fora livro de bolso;
pequenino e de bom preço,
vale sempre o desembolso.
22
A verdade às vezes fere,
sem haver necessidade;
e a mentira nos confere
bem fugaz felicidade.
23
A vitória se conquista
também no trabalho ou lazer,
e então de guerras desista,
só lute, em paz… por prazer.
24
Brincava feliz menina
com a boneca na mão,
hoje, cresceu... triste sina...
brinca com meu coração.
25
Cai a chuva de mansinho
irrigando a plantação;
parece que, com carinho,
mitiga a sede do chão.
26
Camboriú, belo balneário,
águas verdes, maré mansa;
Até Deus vem do calvário,
chega aqui, e então descansa.
27
Cansado de tanta guerra
que mostra a televisão,
eu tenho a certeza que erra
quem diz ter o homem..."razão!”
28
Com muita felicidade
casou, o noivo, e de cara,
notou que a cara-metade
é uma metade bem cara.
29
Com o amor a gente aprende,
que há magia no viver,
quanto mais amor se rende,
mais amor, nos há de haver.
30
Com sete notas somente
tanta música se faz,
canção de um amor ardente,
hinos de guerra ou de paz.
31
Com singeleza e ternura,
o poeta escreve à mão
e no papel afigura,
o que dita o coração.
32
Curítibano adotivo,
vim aqui para estudar.
Apaixonado, aqui vivo;
fiz da cidade meu lar,
33
Curtos e precisos versos
com seu poder e valor
traduzem sonhos diversos
de saudade, ódio ou amor.
34
De Luiz Otávio há quem diga:
– Príncipe dos trovadores!
Digo, sem medo de briga:
– Príncipe?! É pouco, Senhores.
35
De lembranças em lembranças,
revivendo o meu fadário,
busco bem-aventuranças,
que amenizem meu calvário.
36
Dos amores que eu tive
só um merece menção,
é este que sobrevive,
a tantos anos de união.
37
É difícil ver que a guerra,
que um declara e outro é quem faz,
o mais triste lema encerra:
matar em nome da paz.
38
E, meu sogro, um sabichão,
apesar do pouco estudo;
da filha, pedi-lhe a mão...
... entregou-me, logo, tudo…

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Noberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.

Contos e Lendas do Mundo (Tribo Taulipang: A Onça e o Raio)


Lenda dos índios taulipangs, habitantes do extremo norte do Brasil:
Certa feita, a onça passeava pela mata quando encontrou o raio a fabricar um porrete. A onça não conhecia bem o raio, pois nunca tinha visto um em terra, muito menos a fabricar porretes, e por isso imaginou que se tratava de algum animal.

Então ela começou a pisar macio e, depois de dar a volta, sem ser vista, pulou sobre o raio.

O raio, porém, escapou com um pulo veloz, sem sofrer nada.

A onça, desapontada, indagou:

– Quem é você?

– Sou o raio, não vê?

– Você é muito forte, não é?

– Está enganada, não sou nada forte.

Ao escutar isso, a onça inflou o peito e engrossou a voz.

– Pois eu sou o animal mais forte destas matas! Quando estou furiosa, não sobra nada inteiro!

Então, para demonstrar a sua força, a onça trepou numa árvore enorme e começou a devastar tudo, quebrando um por um dos galhos. Depois, desceu para o solo e começou a escavá-lo, atirando para cima tufos de relva e de terra até estar tudo revirado, como se um tatu doido tivesse passado por ali.

– Muito bem, que achou disso? – disse a onça, arfante.

O raio escutou, mas não disse nada.

– Vamos, quero vê-lo fazer algo parecido! – desafiou a onça.

– Como poderia, se não tenho a sua força? – disse o raio, afinal.

Inflada ainda mais pela confissão do raio, a onça entregou-se a nova demonstração de força, revolvendo tudo outra vez até ter aberto uma clareira na parte da mata onde estavam.

Enquanto a onça sorria, esbaforida, o raio tomou o seu porrete e começou repentinamente a vibrá-lo no chão e por tudo ao redor, fazendo a onça quicar e rebolar pelo solo como um bicho de pano. Uma verdadeira tempestade, seguida de raios e ventania, tornou tudo ainda mais sério, a ponto de a onça achar que o mundo se acabaria. Quando a tempestade finalmente cessou, a onça mal encontrou forças para pôr-se novamente em pé e ir correndo esconder-se atrás de uma rocha.

Mas o raio gostara da brincadeira e arremessou uma fagulha que fez a volta na rocha, acertando com precisão o rabo da onça. A onça deu o pulo mais alto de toda a sua vida, chamuscou a cabeça no cocar do Sol e desceu à Terra outra vez, fugindo a toda a velocidade.

O raio continuou a vibrar o seu porrete e a arremessar coriscos e fagulhas com tanta intensidade para cima da pobre bichana que ela viu-se obrigada a procurar refúgio na toca de um tatu gigante.

Tudo em vão: o raio varejou a cova do tatu e acertou em cheio, outra vez, os fundilhos da onça. Não havia jeito: onde quer que a onça buscasse refúgio, ali a alcançava o braço longo do raio.

Ao mesmo tempo, começou a soprar um vento frio e a cair uma chuva gelada, e como a onça já estava quase sem pelo algum, devido às queimaduras, pouco faltou para ela congelar-se.

– Depois do fogo, o frio! – gania ela, batendo os dentes, toda enrodilhada no solo.

Somente ao ver a rival arriada e completamente vencida foi que o raio se deu por satisfeito.

– Muito bem, agora diga quem é o mais forte por aqui!

A onça tapou a cabeça para não ter de responder, enquanto o raio partia, a gargalhar.

E aqui está, segundo os taulipangs, a razão de as onças temerem tanto os temporais.
_______________________________________
Tribo Taulipang ou Taurepang – se localizam tanto na Venezuela quanto no Brasil, na região norte de Roraima, área que é fronteiriça com outras nações (Venezuela e Guiana). No Brasil, notadamente se encontram na Raposa Serra do Sol, entretanto seu território vai alem desse local, há aldeias que estão no interior da terra indígena São Marcos. São cercados por outras tribos tornando o contato quase que inevitável o que eventualmente resulta na união entre as tribos. As aldeias em questão são os Makuxi, Taurepangue e os Waxpiana que se interelacionam com frequencias diferentes, sendo os intercasamentos recorrentes entre os Waxpiana e os Makuxi e os mais raros entre os Taurepang e os Makuxi, devido a uma serie de fatores, sendo o preponderante a distribuição geografica que impossibilita uma maior interação/integração. De acordo com registros escritos do século XIX os Taurepangue eram reconhecidos pelo nome "Arekuna" ou "Jarecuna". (wikipedia)

Fonte:
Mitos e Lendas

sábado, 14 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 141


Rachel de Queiroz (Direito e Avesso)

    
Conheci uma moça que escondia como um crime certa feia cicatriz de queimadura que tinha no corpo. De pequena a mãe lhe ensinara a ocultar aquela marca de fogo  e nem sei que impulso de desabafo levou-a me falar nela; e creio que logo se arrependeu, pois me obrigou a jurar que jamais repetiria a alguém o seu segredo. Se agora o conto é porque a moça é morta e a sua cicatriz já estará em nada, levada com o resto pelas águas de março, que levam tudo.

Lembrou-me isso ao escutar outra moça, também vaidosa e bonita, que discorria perante várias pessoas a respeito de uma deformação congênita que ela, moça, tem no coração. Falava daquilo com mal disfarçado orgulho, como se ter coração defeituoso fosse uma distinção aristocrática que se ganha de nascença e não está ao alcance de qualquer um,

E aí saí pensando em como as pessoas são estranhas. Qualquer deformação, por mais mínima, sendo em parte visível do nosso corpo, a gente a combate, a disfarça, oculta como um vício feio. Este senhor, por exemplo, que nos explica, abundantemente, ser vítima de divertículos (excrescências em forma de apêndice que apareceram no seu duodeno), teria o mesmo gosto em gabar-se da anomalia se em lugar dos divertículos tivesse lobinhos pendurados no nariz? Nunca vi ninguém expor com orgulho a sua mão de seis dedos, a sua orelha malformada; mas a má formação interna é marca de originalidade, que se descreve aos outros com evidente orgulho.

Doença interna só se esconde por medo da morte — isto é, por medo de que, a notícia se espalhando, chegue a morte mais depressa, Não sendo por isso, quem tem um sopro no coração se gaba dele como de falar japonês.

Parece que o principal impedimento é o estético. Pois se todos gostam de se distinguir da multidão, nem que seja por uma anomalia, fazem ao mesmo tempo questão de que essa anomalia não seja visivelmente deformante. Ter o coração do lado direito é uma glória, mas um braço menor que o outro é uma tragédia. Alguém com os dois olhos límpidos pode gostar de impressionar uma roda de conversa, explicando que não enxerga coisíssima nenhuma por um daqueles límpidos olhos, e permitirá mesmo que os circunstantes curiosos lhe examinem o olho cego e constatem de perto que realmente não se nota diferença nenhuma com o olho são. Mas tivesse aquela pessoa o olho que não enxerga coalhado pela gota-serena, jamais se referiria ao defeito em público; e, caso o fizesse, por excentricidade de temperamento sarcástico ou masoquista, os circunstantes bem- educados se sentiriam na obrigação de desviar a vista e mudar de assunto.

Mulheres discutem com prazer seus casos ginecológicos; uma diz abertamente que já não tem um ovário, outra, que o médico lhe diagnosticou um útero infantil. Mas, se ela tivesse um pé infantil, ou seios senis, será que os declararia com a mesma complacência?

Antigamente havia as doenças secretas, que só se nomeavam em segredo ou sob pseudônimo. De um tísico, por exemplo, se dizia que estava “fraco do peito”; e talvez tal reserva nascesse do medo do contágio. que todo mundo tinha. Mas dos malucos também se dizia que “estavam nervosos’’ e do câncer ainda hoje se faz mistério — e nem câncer e nem doidice pegam.

Não somos todos mesmo muito estranhos? Gostamos de ser diferentes — contanto que a diferença não se veja. O bastante para chamar atenção, mas não tanto que pareça feio.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Vidal Idony Stockler (Saudade em Trovas)


1
A beleza da saudade
é rever só bons momentos,
recompõe felicidade
de tais acontecimentos.
2
A renascida saudade
de tempos já percorridos,
remonta a felicidade
de momentos tão queridos.
3
A saudade é comunhão
de dourados pensamentos,
por vezes chega à exaustão
mas volta em outros momentos.
4
A saudade é persistente
e pendurada ao passado,
por vezes fica tão quente
e queima do nosso lado.
5
A saudade é reflexão
de fatos lindos e bons,
é sinfonia e canção
com os melodiosos sons.
6
A saudade é sentimento
e também flor de jardim,
uma e outra têm momento
que toca a todos e a mim.
7
A saudade, ledo hino
de momento tão feliz,
muitas vezes imagino
ninguém rouba essa raiz.
8
A saudade, linda flor,
com essência tão gostosa,
reflete lindo esplendor,
tal qual beleza da rosa.
9
A saudade, quando aperta,
reconduz forte emoção,
bem por isso fique alerta
e cuide do coração.
10
A saudade realcança
alegres tempos vividos
dos folguedos de criança
e belos campos floridos...
11
A solidão é sem medida
e busca longe a saudade,
embora desprecavida
revela autenticidade.
12
Corre o vento sibilante
pelos espaços afora,
como a saudade integrante
vem e logo se vai embora...
13
Dos caminhos percorridos
há sempre meditação;
são retratos envolvidos
com saudade em profusão.
14
E não se explica a saudade,
muito menos o futuro,
- Primeira, realidade,
- mas, o outro, ponto no escuro!
15
E relembrando o passado
eu curto muita saudade
daquele mundo encantado
que era só felicidade!
16
Intermitente saudade,
num relâmpago ou clarão
recompõe felicidade,
mas depois… sai da visão.
17
Lembrança… generaliza,
saudade... faz seleção;
a primeira só baliza
mas esta, traz emoção.
18
No início a saudade traz
eflúvio de bom momento.
E depois... ela refaz
tristeza no pensamento.
19
Nos devaneios da vida
tantas coisas meditadas
de passagens tão queridas
e daquelas não alcançadas.
20
O tempo passa ligeiro
haja sol ou tempestade;
é o caminhar rotineiro,
atrás, só fica... saudade!
21
Rebuscando tempos idos
de passagens pela vida,
lembramos lances queridos
que a mente lhes deu guarida,
22
Relembro distantes dias,
com muita propriedade,
lindas festas e alegrias...
e isso... chama-se saudade!
23
São figuras da saudade:
a paz, amor, união,
alegrias e bondade
guardadas no coração.
24
São luzeiros em lembrança
as cantorias de roda
do meu tempo de criança
hoje já fora de moda.
25
Saudade de minha terra,
da mata toda florida,
da cachoeira lá da serra,
trinados e sons da lida.
26
Saudade, doce lembrança,
suave e carrega emoção.
Surge, foge, não se cansa
e belisca o coração.
27
Saudade é refloração
de jardim de tempos idos;
nos traz configuração
de coisas e entes queridos.
28
Saudade, fonte de amor,
traz à mente o que foi bom,
é sublimidade em flor
com harmonia do som.
29
Saudade, força infinita,
que se apodera de mim
em aparência bonita,
tal qual flores do jardim.
30
Saudade incorpora amor
de luzeiro bem guardado,
jardim de paz e de flor
integrante do passado,
31
Saudade, joia de amor
vibradora de emoção.
É vivência, também flor
mas acorda o coração.
32
Saudade, lindo momento,
que bem sensível medito;
são flores no pensamento,
depois, foge pro infinito.
33
Saudade no coração,
os olhos choram sentidos;
do peito aflora emoção
e d'alma fortes gemidos.
34
Saudade vem de repente,
pincelada de emoção;
reconduz a luz latente
guardada no coração.
35
Saudade versus lembranças
tem seus passos bem marcados;
não vislumbram esperanças,
pois remontam aos passados.
36
Saudade, vislumbramento
de passagens tão queridas
que se cruzam em momento
sagrado de nossas vidas.
37
Sentir saudade desperta
lances à meditação,
transfiguração aberta
que nos enche de emoção.
38
Verte lance de saudade
de passagem tão sentida
que gerou felicidade
na minha infância querida.

Fonte:
Vidal Idony Stockler. Trovas. Curitiba: Juruá, 2001.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 140


Isabel Furini (Noite de Insônia)

Fonte: Facebook da poetisa

Sinclair Pozza Casemiro (Rasga-Mortalha)


O assunto é destino. Na parada das andanças à procura do Caminho de Peabiru* na COMCAM*, nos rastros das histórias do povo e nas marcas escondidas na mata, nos rios, o trio descansava sob o tardio lusco-fusco que convidava a filosofar.

Dele ninguém escapa. Não, não existe destino, destino é pra quem não sabe aonde ir. Destino é tão certo, inútil tentar escapar. E por ai vai.

A sabedoria dos jovens, da urbanidade, recorria aos livros, autores, poetas, religiosos, pensadores os mais diversos. Mas, Seu Ferreira, lá da Comunidade Boa Esperança, sem letras escritas, mas cheio de palavras ouvidas e ditas, diante da discussão sem fim, mostrou que tinha a resposta e resolveu acabar com a prosa.

Empina a barriga, ajusta o jeans e a branca camisa, passadinha, ainda, avermelha e extravasa:

– Aqui tem umas curuja, daquelas que só pra vê. É, sim, Clariça. Assusta homi barbado. Mas, cumigo, não. Até rasga-mortalha enfrentei.

– Rasga -mortalha, Seu Ferreira? Que é isso?

– Uma curuja, Clariça, que trais a morte, agorera. Ali por vorta das seis, quando ela dá de vir, é só isperá... lá vem a tragédi nu passo.

– Nossa, Seu Ferreira. É sempre assim? Quer dizer que ela aparece e dá azar? Ou vem avisar o destino?

– Inté hoje num sei. Mais qui ela trais morte, é verdade. Eu tenhu cumigu que é mardade dela. Ela é feia, um zóio istralado, um jeito sério, seco di oiá. E um voo curto, direto pra quem ela qué azará. Toda casa tem uma história da rasga-mortalha. Ninguém qui morreu, num dexô di sê pressentidu pur ela. Ando di oio. Na minha casa num arrudeia, não, a marvada.

– Entào dá pra saber?

– Também num sei ozotro. Mas eu já dispistei uma delas uma noite.

– Conta, Seu Ferreira.

– Tava eu na varanda, a muié fazenu a janta, o sor se tinha indo, escuitei o voo da bicha. Zuum! Percurei a cartuchera, me aperparei. Ela, acho que apercebeu. Num feis baruio mais. Mais ela é ansim mermo, é farsa. Num dei moleza. Cuidei.

– E a mulher, Seu Ferreira?

– Nessas artura já tava inté grogui. Assustada. Chorava. Arribei a cartuchera, peguei a lanterna, já tinha ficadu iscuro. Anoiteceu rapidinho, uns deis minuto. Fiquei di oio. Num é qui a bicha tava incima do teiado, mermo, querendo posar? Avuava, avuava, mas num posava. Tava cum medo di mim. Óia, só! Medo do Ferrera! A coragi aumento. Mirei certinho na bicha e...pum! caiu no chão, sem tê posado. Interrei fundo a bicha, munto longe. Minha casa tava sarva.

– Entào o senhor mudou o destino, né. Seu Ferreira?

– Di fato é mermo. Nem rasga-mortalha mi assusta. Agora, esse tar destino, si oceis dexá...
__________________________
Notas:
COMCAM - Comunidade dos Municípios da Região de Campo Mourão.
Caminhos do Peabiru – (na língua tupi, "pe" – caminho; "abiru" - gramado amassado) são antigos caminhos utilizados pelos indígenas sul-americanos desde muito antes do descobrimento pelos europeus, ligando o litoral ao interior do continente. O principal destes caminhos, denominado Caminho do Peabiru, constituía-se em uma via que ligava os Andes ao Oceano Atlântico. Mais precisamente, Cuzco, no Peru (embora talvez se estendesse até o oceano Pacífico), ao litoral brasileiro na altura da Capitania de São Vicente (atual estado de São Paulo), estendendo-se por cerca de 3 000 quilômetros, atravessando os territórios dos atuais Peru, Bolívia, Paraguai e Brasil. Segundo os relatos históricos, o caminho passava pelas regiões das atuais cidades de Assunção, Foz do Iguaçu, Alto Piquiri, Ivaí, Tibagi, Botucatu, Sorocaba e São Paulo até chegar à região da atual cidade de São Vicente. Ainda havia outros ramos do caminho que terminavam nas regiões das atuais cidades de Cananéia e Florianópolis.

Em território brasileiro, um de seus traços ou ramais era a chamada Trilha dos Tupiniquins, no litoral de São Vicente, que passava por Cubatão e por São Paulo, em lugares posteriormente conhecidos como o Pátio do Colégio e rua Direita; cruzava o Vale do Anhangabaú; seguia pelo traçado que hoje é o das avenidas Consolação e Rebouças; e cruzava o rio Pinheiros. Outro ramal partia de Cananeia. Ramificações adicionais partiam do litoral dos atuais estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. (wikipedia)


Fonte:
Sinclair Pozza Casemiro. Causos do coração do Paraná (por entre as beiras do Ivaí e do Piquiri…). Campo Mourão: Sisgraf, 2005.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 7 - Exclusão Social


A exclusão social é a consequência de todas as atitudes mesquinhas que viemos denunciando. É a síntese da falta de cidadania. Entre os excluídos sociais encontram-se os moradores de rua, os que não têm voz para gritar pelo seu direito de cidadania. São as vítimas da sociedade competitiva, onde os valores foram invertidos. Em que a dignidade humana foi lançada ao fosso do esquecimento. Onde a riqueza do mundo é abocanhada pelas minorias dominantes, sob o olhar indiferente dos que ainda poderiam se rebelar, mas preferem ver as injustiças regulamentadas em vez de abolidas.

Nesta minha caminhada
não me horroriza a violência,
mas a boca que calada
alimenta-lhe a existência.
Ângela Togeiro - MG

Ei-los vestidos de trapos
pedindo roupa e comida:
não são gente, são farrapos
nas reticências da vida!
Dias Monteiro - SP

Nos becos da iniquidade,
os órfãos do ter e ser
são frutos que a sociedade
semeia... e não quer colher!...
João Freire Filho - RJ
 

Bem mais triste que o lamento
de um velho e rouquenho sino
é o de quem dorme ao relento
sobre o leito do destino.
Sebastião Soares - RN

Só se vê naquela esquina
pedintes, gente sofrida,
carregando a triste sina
dos excluídos da vida.
Hélio Pedro Souza - RN

Nas noites frias, um drama
que a miséria perpetua:
alguns chamarem de cama
o que outros chamam... de rua!
Sérgio Ferreira da Silva - SP

Se todos fossem honestos
ninguém veria na praça
mendigos comendo restos
do pão que a miséria amassa.
Clarindo Batista de Araújo - RN
Bandeiras ornam a rua,
foguetões sobem ao céu;
porém a dor continua
de quem sempre vive ao léu,
Rodrigues Neto - RN

Perdoem-me os meus amigos,
nada tenho a festejar,
pois são milhões de mendigos
e ninguém para ajudar!
Juril Carnascíali - PR

Quantos banquetes regados
a vinho, trufa e salmão...
quantos irmãos relegados
sem água, sem luz, sem pão!
Francisco José Pessoa - CE

Denunciando o abandono e a exclusão social alguns trovadores o fazem com imagens tão poéticas que minimizam essa terrível condição.

Dorme o menor na calçada
e a rua se estende ao léu,
feito uma rede amarrada
aos dois extremos do céu!
Antônio de Oliveira - SP

Meu barraco na favela,
onde vou vivendo ao léu,
na moldura da janela
não tem vidraça, tem céu.
José Antônio Jacob - MG
 

Dois moradores de rua,
casados com a desventura,
ao relento, olhavam a lua...
- Olhar de quase ternura...
Gonzaga da Silva - RN
 

Uma família sem teto,
repartia o mesmo pão...
Mas sobrava sempre afeto,
no final da divisão...!
Mara Melinni Garcia - RN

Um casebre na favela...
O espaço ganhou fulgor
quando alguém pôs na janela
um simples vaso de flor!
Vanda Fagundes Queiroz - PR

Muito se tem falado em inclusão social, mas pouco se tem feito de modo eficiente. A lei por si só não garante a inclusão, fica apenas nos discursos ditos "politicamente corretos". O trovador protesta.

O bruxulear de uma chama
de vela, gasta e mortiça,
lembra o excluído que clama
por respeito e por justiça!
Angélica Villela Santos - SP

Tenham todos terra e teto,
sem preconceito ou fronteira
e que haja amor, não decreto,
para a inclusão verdadeira!
Therezinha Dieguez Brisolla - SP

Trabalho, teto, respeito...
Justiça, saúde, escola…
Meu povo quer, por direito,
jamais receber esmola!
Maria Cristina Corrêa - SP

É urgentíssima a inclusão
dos deserdados da vida,
dai-lhe a terra e a certidão,
identidade e guarida.
Francisco Macedo - RN

Mas excluídos não são apenas os moradores de rua. Parcelas significativas da sociedade vivem o processo de exclusão social. Numa tentativa de minimizar o abismo entre os poderosos e os excluídos, a Constituição e as leis procuram explicitar alguns direitos que deveriam livre e naturalmente ser praticados. E cria-se outro abismo, agora entre a intenção da lei e a sua efetividade.

Neste mundo de defeito,
no perpassar destes anos,
vivemos sem ter direito
aos tais "direitos humanos"!
Aloísio Bezerra - CE

Quando a miséria se expressa
em mão tímida que implora,
qualquer pão se faz promessa
que enxuga um oíhar que chora…
Elen de Novais Félix - RJ

 
Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Pousada)


Chuva. Da janela, observava o tempo. As nuvens escureceram rápido, engolindo a montanha mais próxima. O vento varria o capinzal, sacudia as árvores, invadia o avarandado, arremessava gotículas prateadas na parede frontal do casarão.

Alheia às momentâneas intempéries, divagava. Deixava-se molhar pelos respingos. Era agradável perceber-se vulnerável. Cada gota escorrida era como  um dedo molhado acariciando-lhe a epiderme solitária de afetos.

O vento aumentou de Intensidade, a chuva agora era um chicote cristalino de infinitas pontas... Cerrou as básculas, acendeu a lamparina, dirigiu-se ao quarto na intenção de ressonhar a fantasia interrompida.

Reparou uma monótona e repetitiva goteira caindo do telhado. Pôs sob ela uma bacia, estendeu a mão buscando senti-la. Lá fora, a água descia morro abaixo em grossas torrentes, barrenta, impetuosa. Saltava o barranco e explodia na terra.

O barulho da chuva descendo nas calhas, o rumor do vento assobiando carências e medos, a goteira intermitente no recipiente improvisado, a cascatinha explodindo prata na solidão das pedras e os úmidos e avassaladores respingos deram-lhe um súbito prazer, fizeram-na, sôfrega,  comprimir os seios num louco suspiro de posses não possuídas.

Sonhava-o.

Caboclo... queimado pelo sol rural... olhos sedutoramente amendoados, felinos espreitando a presa, garras afiadas, quentes nas suas coxas na varanda, boca vulcânica, língua de chama no seu pescoço... réptil sem veneno acariciando-lhe os ouvidos trôpegos de murmúrios ardentemente dislálicos...

Sentiu todos os tremores num só arrepio.

Lanhou o travesseiro como se fora as costas dele, apertou-o entre os seios, ventre e perna, com volúpia, olhos cerrados, embevecida pela improvável possibilidade de tê-lo...

Bateram.

Pôs-se de pé num salto, as mãos ajeitando o vestido, cobrindo o peito seminu, mexendo nos grampos - um na boca mordida. Tentou recompor-se.

Abriu a porta do quarto quase refeita do êxtase solitário, dissimulando uma trôpega naturalidade, disfarçando a prazerosa tontura provocada por uma incontrolável carência afetiva.

- O que foi? - perguntou sonolenta.

- Alguém lá fora - respondeu a irmã mais velha - pede pousada até a chuva passar.

- Quem? - Não conheço, disse que veio de longe, a cavalo.

- Espera que eu vou ver.

Encaminhou-se à sala, entreabriu a janela, os cabelos soltos no ombro nu sob a camisola.

O moço aguardava. Abriu a minúscula portinhola de vidro, Olhou-o cautelosamente. Perscrutou-lhe o perfil com atenção... Tremeu dos pés à cabeça.

Impossível! ...mas aquele homem era o caboclo que sonhara naqueles instantes pregressos, filhos de uma nebulosamente passional eternidade.

Entreabriu, a custo, a porta de madeira maciça.

- Moça... galopei a noite inteira na chuva... estou com muito frio... será que a senhora poderia...

O homem não completou a última frase.

A jovem e sôfrega mulher não disse c nem poderia dizer nada... o ímpeto não deixaria.

Num átimo, apenas deixou-se mergulhar na sedução do abismo daquele peito molhado pela chuva que súbita e providencialmente aumentara.

Aquela noite chuvosa seria longa... maravilhosamente longa.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro entregue pelo escritor.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Varal de Trovas n. 139 (corrigido)


Monteiro Lobato (O Reformador do Mundo)


Américo Pisca-Pisca tinha o hábito de pôr defeito em todas as coisas. O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.

– Asneiras, Américo?

– Pois então?!... Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustendo frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule de uma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?

Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

– Mas o melhor – concluiu – é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha?

E Pisca-Pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!

De repente, no melhor da festa, plaf!, uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio no nariz.

Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão malfeito assim. E segue para casa refletindo:

– Que espiga!... Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-Pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.

E Pisca-Pisca continuou a piscar pela vida afora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Araceli Rodrigues Friedrich (Canteiro de Trovas)


Abraça, menino, o estudo;
procura, encontra o saber:
– Que ele te sirva de escudo
na luta do bem viver.

A brisa leve me traz
um laivo de teu perfume;
mas esse fato é capaz
de acirrar o meu ciúme.

A chuva lenta que cai,
da nuvem que se desfaz,
a terra encharcando vai
e a seara se refaz.

A felicidade é um triz
que passa, assim, de repente
mas eu para ser feliz
empreendo uma luta ingente.

A goteira impertinente,
ao cair do meu telhado,
incomoda muita gente,
por deixar tudo molhado.

Amizade não se mede
pela distância, pois não!
Na verdade ela só pede,
morar no meu coração.

Ao compor a minha trova
terno desejo me invade,
querer dar-te minha prova
de uma sincera amizade.

Ao contemplar as estrelas
no firmamento de anil
não as encontro mais belas
que as do céu do meu Brasil.

Ao perceber o desprezo
estampado em teu olhar
meu coração, que está preso,
quero do peito arrancar.

Ao ver como é imponente
aquela árvore esguia
esqueço a humilde semente
que lhe deu a vida um dia.

Aquela grácil menina
que tanta beleza encerra,
possui origem divina:
– Foi Deus quem a pôs na terra.

Aquele que ama, perdoa,
eis uma grande lição,
veja quão doce é que soa;
– Sim, eu te perdoo, irmão!"

A saudade é sentimento,
amargoso como fel;
mas há sempre um bom momento,
em que é doce qual um mel.

Assim como é conhecida:
- Ser da instrução a mais pura,
Curitiba nesta lida,
é a "Capital da Cultura".

Às vezes, pensando eu fico
e este pensar me consome...
Como é que em país tão rico
existe quem passe fome?

Às vezes tenho vontade,
de voar pelo infinito:
- É quando sinto saudade
do teu rostinho bonito.

Atento e não mais duvido,
maior orgulho não há,
que ver meu nome incluído,
na UBT do Paraná!

A vida tenho levado,
em fazer umas poesias
que, mesmo com pé quebrado,
dão-me muitas alegrias.

Cismando eu te vi tão lindo,
rezando junto ao altar,
que tive desejo infindo
de correr pra te abraçar.

Coisas que faço e refaço
e, às vezes, digo, também,
não são causa de embaraço
mas a defesa de alguém.

Com a grande pretensão
de ser poeta algum dia
vivo de lápis na mão
tentando fazer poesia.

Com entonação discreta
e com letrinhas, só três,
assim inventou o poeta,
maior nome em português.

Deputado diz "fazido"?
Não me assusto, não senhor;
ele não deve ter tido
um sábio e bom professor.

É bem feliz quem na terra,
vive nas lides da paz,
esquivando-se da guerra,
é de amor tudo o que faz.

É mais difícil na vida,
você subir que descer,
mas não esqueça, querida,
a glória está no ascender.

Em lindas trovas singelas,
eu procurei me inspirar:
- Lendo-as tão simples e belas,
não consegui versejar,

Em vez da palavra guerra
que tanta desgraça traz
devia existir na terra
somente a palavra PAZ!

Enquanto orares não digas
simples palavras ao léu,
pois elas são inimigas
no caminho para o céu.

Eu busco a felicidade
por este mundo sem fim,
mas vejam quanta maldade
– Ela só foge de mim.

Eu gosto de ler quadrinhas,
as que eu fiz e as que não fiz,
pois mesmo as que não são minhas,
também me fazem feliz!

Eu juro! Digo a verdade,
não estou sendo revel...
falando: -"Felicidade"
sinto um gostinho de mel.

Eu perdi a liberdade,
de te adorar, ó querida,
no momento em que a saudade
acorrentou-me na vida.

Eu quero beijar, querida,
seus lábios cor de carmim,
para que, sempre na vida,
você só lembre de mim.

Hoje me punge a saudade
dos dias em Porto União:
ali deixei amizade...
sonho… ternura... ilusão...

Hoje, no romper da aurora,
fui meu relógio acertar;
prevendo ter, ó Senhora,
mais tempo pra Te adorar.

Menina, faça um versinho,
escrito com muita graça,
tendo no enredo o carinho
que muito feliz me faça.

O dia é pleno de sol
à noite a lua ilumina
e quando surge o arrebol
já penso em ti, ó menina!

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Noberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.

Contos e Lendas do Mundo (Nação Tupinambá: A Vingança de Maire-Pochy)


Apesar da nobre ascendência de Monan, Maire-Pochy, por alguma desgraça do destino, nascera voltado à infelicidade. Além de servo do cacique, ele era feio e corcunda.

Maire-Pochy gostava de pescar, e certo dia trouxe do rio um belo peixe. Ao vê-lo, a filha do seu amo lambeu os lábios de apetite.

– Que beleza! Tudo faria para saboreá-lo!

Maire-Pochy correu logo a preparar, ele mesmo, o belo peixe no moquém (espécie de grelha). O peixe devia ser muito especial, pois tão logo a jovem o comeu, ficou grávida. O menino nasceu com uma rapidez inaudita, e logo o pai da jovem quis saber quem era o pai da criança.

Mas ninguém se apresentou, o que obrigou o cacique a ter uma conversa com o pajé.

– Os miseráveis estão calados, e ninguém quer assumir a paternidade! – disse o morubixaba. – Como hei de saber quem é o pai da criança?

O pajé, porém, que tinha receitas para todos os males, tinha uma também para este.

– É fácil descobrir – disse ele, com uma empáfia serena. – Reúna todos os homens da tribo e os faça desfilar diante da jovem portando seus arcos. Quando o verdadeiro pai se apresentar, a criança tocará o seu arco.

O cacique fez como o pajé dissera, e todos os homens saudáveis da tribo desfilaram diante da jovem com o bebê ao colo. Mais de cem índios, de todos os tamanhos, passaram à frente do bebê, mas ele não tocou o arco de nenhum deles.

Então, o terror cresceu na alma do cacique.

– Será Anhangá, o espírito mau, o pai da criança?

Mas, quando todos já estavam se dispersando, o pajé gritou:

– Esperem! Faltou Maire-Pochy, o corcunda!

Um coro de risos explodiu entre os índios.

– Está brincando? – exclamou o cacique ao pajé.

– Ele é um homem saudável, apesar da aparência – disse o pajé. – Que desfile também!

Então Maire-Pochy desfilou diante da índia e de seu bebê. Assim que ele passou diante dos dois, portando o seu arco, o garoto esticou o bracinho e fez vibrar a corda.

Um som parecido com o da harpa soou, fazendo calar a tribo inteira.

– Afronta e vergonha! – gritou o morubixaba, fuzilando a filha com os olhos.

No mesmo dia, o cacique ordenou que a tribo inteira partisse daquele lugar, abandonando a filha e o neto junto com Maire-Pochy.

– De hoje em diante, não tenho mais filha! – esbravejou o cacique, antes de partir.

Desde aquele dia, a taba florescente converteu-se numa taba-fantasma, habitada apenas pela mulher, a criança e Maire-Pochy. Mal sabia, porém, o cacique que, ao partir, levara consigo uma maldição, pois nas novas terras verdejantes onde a tribo se instalou não crescia mais um único talo de erva, a água havia secado e toda a criação perecera.

– Isto só pode ser uma maldição de Maire-Pochy! – disse o cacique.

Nas terras onde haviam permanecido o corcunda e a índia, tudo continuava às mil maravilhas: as plantações brotavam por si mesmas, a água corria fresca e estuante e os animais procriavam como coelhos.

Ao saber dos infortúnios do cacique, Maire-Pochy mandou dizer a ele que poderiam vir abastecer-se nas terras onde agora era o senhor.

– Maire-Pochy diz que não guarda mágoa alguma – disse o emissário ao cacique.

O morubixaba pensou um pouco e disse:

– É, não tem outro jeito, vamos ter de nos humilhar diante daquele miserável!

Então apresentaram-se diante do corcunda e da jovem.

– Abasteçam-se de tudo quanto quiserem – disse Maire-Pochy , com um ar piedoso.

Os esfomeados se lançaram à comida farta, espalhada por dúzias de moquéns. Ao experimentarem os pitéus, no entanto, sobreveio imediatamente a desgraça, pois tudo não passava de uma armadilha. Logo todos começaram a se converter em porcos, em grilos e em maracanãs (espécie de arara menor, de plumagem verde). O cacique se converteu num jacaré, enquanto sua esposa virou uma tartaruga.

Cumprida a vingança, Maire-Pochy fez como o seu antepassado Monan e subiu às nuvens, para nunca mais retornar à Terra.

Fonte:
Mitos e Lendas Sul Americanas

Projeto Apparere (Lançamento da Coletânea de Natal)


Apresentamos a Coletânea de Natal do Projeto Apparere. Esta é uma coletânea de Contos, Crônicas, Poemas, Roteiro falando sobre o Natal e suas diferentes facetas. Momentos bons ou talvez não tão bons vividos no dia de Natal, mas certamente um momento inesquecível.

Essa é nossa vigésima quarta Coletânea e nela o leitor encontrará os 52 melhores textos (na percepção dos julgadores) dentre 98 inscritos. O tema desta Coletânea foi sugerido por Renata Pereira Gonçalves e Luiz Loureiro; e escolhido dentre várias sugestões. Como nas coletâneas anteriores, a Capa desta obra desenhada por Adriano Vox é a capa escolhida pela maioria dos Autores que se inscreveram na coletânea, dentre 2 (duas) inscritas para participar da seleção. Continuamos com nossa política de termos em nossas Obras a participação democrática não só de Escritores, mas também de Designers e Leitores.

Autores selecionados para esta coletânea

Adnelson Borges de Campos
Adriana Ferreira da Silva
Airton Rodrigues
Antônio C. S. Santos
Antonio Stegues Batista
Aucenir Gouveia
Brenda Sales
Caio Fraga
Caliel Alves
Camila dos Santos Santana
Cárlisson Galdino
Carlos José Ferreira Lopes
Carlos Marcos Faustino
Danilo de Oliveira Pessôa
Divino Antonio
Edilma Maria da Silva
Elio Moreira
Fátima Alves
Garbo Nael
Gil Nascimento
Gilberto de Guedes Vaz
Ilma Pereira Nunes Moreira
Ivan de Oliveira Melo
Jairo Alves
Jorge de Palma
José Feldman
José Luiz Teixeira da Silva
Júlio César Freid'Sil
Juna Guimarães
Kelly Cristina Araujo
Kleyser Ribeiro
Laércio Vieira
Lenilson Silva
Léo Guimarães
Leomaria Mendes Sobrinho
Luiz Loureiro
Marcelo Oliveira
Marilia de Souza Abduani
Mauricio da Costa Carvalho Vidigal
Miguel Jorge da Silva Fortes
Mirelle Cristina da Silva
Neri França Fornari Bocchese
Roberto de Jesus Moretti
Roberto Minadeo
Rodrigo Mendes
Roger Ribeiro
Rosa Acassia Luizari
Sergio de Souza Merlo
Tainá Custódio
Tarique Layon Lima Vilhena
Thiago Sabino Leite
Valéria Guerra Reiter

Fonte:
http://www.apparere.com.br/venda-coletanea-natal.php

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Vinicius de Moraes (Broto alegre, "coroa" melancólica...)


Elas se atarefavam, mãe e filha, nos últimos preparativos para a festinha. Iam ser uns quarenta ao todo, entre meninas e meninos, como sempre esfaimados, e a mãe não poupara nas comidas e sobremesas para os que iam comemorar os 16 anos de sua queridinha. Esta, excitada com a movimentação, ordenava agora os discos por ordem de popularidade. O barril de chope acabara de chegar, e os homens instalavam a serpentina que deveria mantê-lo bem gelado. A filha lançou um último olhar à sala enfeitada de flores e depois correu a beijar a mãe, que, emocionada, fingiu não dar por isso, ocupando-se com a arrumação de um vaso.

- Você é um devaneio! - disse-lhe a menina. - A garota mais legal que eu conheço.

- Pois é... - suspirou a mãe, disfarçando. - Acho que não falta mais nada.

A filha coçou a cabeça, franzindo um pouco a testa.

- Você acha que esse negócio de chope vai dar certo? Não é meio... antiquado, meio devagar? Será que os caras não vão me gozar?

- Que é isso? Tenha personalidade! No meu tempo era o que se usava, para as festas maiores. Sai tão mais barato... Imagina dar uísque a essa gente toda... Era só o que faltava! E depois, custa mais a dar pileque.

- Bem, eu tenho uísque escondido para o Marquinhos e o Ronaldo, que são do peito. Os outros vão pensar que é guaraná.

A mãe parecia, de repente, perdida em recordações.


- Era sempre chope... A não ser, naturalmente, nos grandes dias, quando seu avô abria vinho e até champanha...

- Devia ser o auge do troço quadrado - comentou a filha distraidamente.

- Não tinha nada de quadrado, não senhora! A gente se divertia muito mais, em lugar de ficar se matando com essas danças malucas de vocês. Eu me lembro, por exemplo, quando fiz 18 anos. Tinha leitão assado, galinha ao molho pardo, frigideira de siri, empadas de camarão... você nem imagina! Sobremesas, acho que eram umas dez!

- E vocês dançaram?

- Se dançamos! Seu avô mandou contratar especialmente a orquestra de Nelsinho e seus Turunas. Era o que se chamava, então, uma jazz band. Tinha uma música que eu adorava... como é mesmo? Ah, já lembrei... Chamava-se "Carabu":

O minha Carabu
Dou-te o meu coração
La-ra-ra-ra-ra-rão
Tu, somente tu
Minha Carabu!

- A melodia é bacaninha, mas a letra parece uma bomba. Como é que você estava vestida?

- Ah... - e a mãe deu uma meia-volta de modelo para mostrar - eu tinha um vestido mauve rosé até aqui: bem curtinho. Foi a moda precursora do Courrèges. Sapatinhos meio-salto, mordorrés, meias com liga de elástico, e rococós.

- Rococós? Que troço é esse?

- Nada, sua boba. Eram duas rosinhas de cetim que se punha na frente das ligas, para ficar bonitinho se alguém por acaso visse, sabe… O cabelo era assim meio de taradinha, como andam usando de novo. Só que a gente fazia pega-rapaz, umas vírgulas de cabelo na testa e dos lados. E a boca era pintada em forma de coração. Ah, ia me esquecendo: punha-se sempre um sinal preto um pouquinho abaixo do olho, o grain de beauté. Eu usava um produto chamado Sardalina, para disfarçar um pouco as sardas, e a gente escovava bem os dentes com pasta Diamant vermelha, para ficar com as gengivas rosadas. Na mão só se levava uma pequena trousse: a minha era linda, de ouro, que mamãe tinha me dado. Um leque japonês também tinha seu lugar, mais para as senhoras. Nos olhos se usava Kohl, uma pasta preta: ficava lindo!

- Imagino... - disse a menina.

- É sim! Quando a orquestra ia embora, passava-se para o gramofone. E no final da noite faziam-se jogos de prenda. Esconde-esconde seu avô não deixava, por causados beliscões que os moços davam.

- Ninguém puxava um fumo?

- Se alguém fumava? Havia quem fumasse, mas escondido, para os pais não verem. Imagina se alguém ia ter coragem de fumar diante de seu avô...

- Você não entendeu... Eu perguntei se alguém fumava maconha, ô quadradona!

- Você está louca, menina! Você tem cada idéia! Isso são loucuras dessa mocidade de hoje. Mas em compensação eu tinha um namorado, logo antes de seu pai, que tocava ukelele!

- Tocava... o QUÊ?

- Ukelele, ora essa! Muito bonitinho. Vocês por acaso não tocam todas essas bobagens de iê-iê-iê e não sei mais quantas? Meu namorado tocava ukelele. E muito bem até!

A menina correu para dentro, as mãos tapando a boca de tanto rir.

- Essa não! Essa não!

Fonte:
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31/12/1969.

Argentina de Mello e Silva (O Bom Humor nas Trovas)


A criança encanta, enleva,
mas, com seu ar inocente
quando a gente crê que a leva
ela está levando a gente!

A mulher fala a verdade
(sem hesitação nem briga)
se lhe perguntam a idade,
não a sua… mas, da amiga!

A mulher tinha a mania
de achar coisas no abandono,
até que encontrou um dia
um apartamento sem dono.

À pintura antiga e eterna
hoje chamam de caduca.
Mas quem gosta da moderna
deve ser “lelé da cuca”.

“Aqui jaz na lousa fria
o José João da Espinhela”
(Foi ao encontro de Maria
e encontrou o marido dela).

Briga tanto o Zé Noronha
com a esposa – que o filhinho,
por vingança da cegonha
sai a cara do vizinho.

Casa a Maria do Céu…
e que grande trapalhada…
porque segurando o véu
segue toda a filharada!

Coleantes, envolventes,
há mulheres perigosas.
Mas, também, como as serpentes
nem todas são venenosas.

Com seu destino sofrido
nunca a mulher colabora:
chora por não ter marido
e quando tem… também chora!

Curitiba é uma risonha
cidade de muito brio,
porque o amigo da vergonha
é aqui chamado: Frio!

Diz a mulher ao marido
(velho, bem intencionado)
“daqui a meses, querido
vai nasceu teu enteado”.

Era Amélia. Ele quisera
ter mulher assim somente,
até saber que ela era
a Amélia de muita gente.

É triste lembrar (se é!)
e à nossa vaidade ataca:
que o homem foi chimpanzé
e a mulher já foi macaca…

Falam tanto mal de sogra,
muitas vezes sem razão;
pois no paraíso a cobra
não era sogra de Adão.

Hoje a moda, com jeitinho,
tapa apenas de relance.
Se despenca o tal trapinho?
“honi soit qui mal y pense”! *

Homem velho, ainda matreiro,
por qualquer mulher se engraça.
Mas é só cão perdigueiro:
corre atrás, não come a caça.

Mesmo que ele seja “um pão”
quando se torna marido,
ela tem indigestão:
como enjoa o pão dormido!

Moça moderna, a Clarisse,
com seu ar desinibido,
quanto mais cresce em burrice
mais encurta seu vestido.

“Não tem profundeza a trova”
disse alguém – profunda asneira!
Se há muita poesia nova
mais rasa do que peneira!

No enterro de seu Pessoa
há um aviso aos ignotos:
“ Favor não trazer coroa,
só ramos cheios de brotos”.

Nua, a Godiva, coitada!
Causou surpresa incomum;
ver hoje mulher pelada
não causa “suspense” algum.

O casamento é um remanso
início de um doce lar,
onde ele vai pra descanso
e ela pra trabalhar!

O homem pensa, sofisma,
cria problemas, dá murro.
O burro, calmo, nem cisma,
qual é, dos dois, o mais burro?

Paquerador o Andrada
na moto ele tanto ronda,
que até a Maria Quadrada
já está ficando redonda.

Qualquer dia Dona Lua
diz ao ianque que a aporrinha:
“ Fica, bicho, lá na tua
que eu também estou na minha”.

Quem tem mulher monumento
e vizinho por ali…
lembre o antigo testamento:
mate primeiro o Davi.

Se o julgamento ao alheio
se estampasse na fachada,
o mundo estaria cheio
de muita cara quebrada.

– Seu Delegado examine
o que da luta sobrou;
– Qual foi o móvel do crime?
– Isso o morto não falou.

Tanta pílula espalhada…
tanta gente sem-vergonha…
que uma lei foi promulgada
dando férias à cegonha.

Treze pontos, bem contados,
na esportiva, que alegria!
Mas, depois, mil afilhados,
quem deles me livraria?

Vai a Paris, por capricho,
e volta esnobando a dona:
“ Fui ao Louvre. Quanto bicho!
Mas não era “lisa a mona”.
_________________________
Nota:
* Honi soit qui mal y pense é uma expressão em francês que significa Envergonhe-se quem nisto vê malícia, muito usada em meios cultos. Também é o lema da Ordem da Jarreteira, comenda britânica criada pelo rei Eduardo III de Inglaterra, no tempo das Cruzadas. E um dos lemas do Reino Unido, estando estampado em sua bandeira.

Diz a lenda que, em 1347, durante um baile, a Condessa de Salisbury, amante do mesmo Eduardo III, perdeu a sua liga, azul. O Rei mais que depressa recolocou-a, sob o olhar e sorrisos (cúmplice) dos nobres. O Rei grita então (em francês, que era a língua oficial da corte inglesa) "Messieurs, honni soit qui mal y pense! Ceux qui rient en ce moment seront un jour très honorés d'en porter une semblable, car ce ruban sera mis en tel honneur que les railleurs eux-mêmes le rechercheront avec empressement." (Maldito seja quem pense mal disto! Os que riem nesta hora ficarão um dia honradíssimos por usar uma igual, porque esta liga será posta em tal destaque que mesmo os trocistas a procurarão com avidez).

No dia seguinte cria a ordem da Jarreteira, tendo como símbolo uma liga azul sobre fundo dourado, que ainda hoje é a mais prestigiosa ordem do Reino Unido, tendo somente 25 membros e cujo Grão Mestre é o monarca da Inglaterra. (wikipedia)

__________________________
Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

ALTO e IHGM (Noite do Café-com-Letras, 14 de dezembro)


A Academia de Letras de Teófilo Otoni e o Instituto Histórico e Geográfico do Mucuri têm a honra de convidar Vossa Senhoria e família para a sessão especial denominada Noite do Café-com-Letras, com a seguinte programação:

Lançamentos literários:

Somos todos mais de um: Reflexão e Poesia
Luciano José Schirmer de Oliveira

Diário de um menor abandonado
Salvador Araújo

Contestado: Embate fraticida entre Minas Gerais e Espírito Santo
Administração de Recursos Materiais e patrimoniais: um enfoque prático
Wallace Gomes Moraes

Herdeiros das origens: um estudo das relações entre arte erudita e arte popular
Rasgos na Alma: ode ao Vale do Rio Doce
Edileila Portes

Transcenda: superando seus limites
Marcélia Aguiar Ferreira

Revista Literária Café-com-Letras
Tema: Palavra, espelho de emoções

IHGM: 
Lançamento da Coleção Resgate da Memória: Livros Essenciais

Edição digital:
Notas Históricas do Município de Theophilo Ottoni
A Bandeira de João da Silva, o Mestre de Campo, o Todos os Santos e os selvagens do Mucuri
Reinaldo Ottoni Porto

100 anos de colonização alemã em Teófilo Otoni
Max Roth

A Circular aos eleitores mineiros
Theophilo Benedicto Ottoni

Recepção e posse de sócia correspondente do Instituto Histórico
Edileila Maria Leite Portes - Governador Valadares/MG

Entrega de Cestas Literárias
Instituições da área da educação e cultura do município e Região

Homenagens Especiais

Data: 14 de dezembro de 2019 (sábado)
Horário: 19:00 horas
Local: Plenário da Câmara Municipal

Aluísio de Azevedo (Casas de Cômodos)


Há no Rio de Janeiro, entre os que não trabalham e conseguem sem base pecuniária fazer pecúlio e até enriquece; um tipo digno de estudo - é o "dono de casa de cômodos"; mais curioso e mais completo no gênero que o "dono de casa de jogo"; pois este ao menos representa o capital da sua banca, suscetível de ir à glória, ao passo que o outro nenhum capital representa, nem arrisca, ficando, além de tudo, isento da pecha de mal procedido.

Quase sempre forasteiro, exercia dantes um ofício na pátria que deixou para vir tentar fortuna no Brasil; mas, percebendo que aqui a especulação velhaca produz muito mais do que o trabalho honesto, tratou logo de esconder as ferramentas do ofício e de fariscar os meios de, sem nada fazer, fazer dinheiro. Foi a um patrício seu, estabelecido no comércio, pediu e dele obteve uma carta de fiança, alugou um vasto casario de dois ou três andares, meteu-se lá dentro, pregou escritos em todas as janelas; e agora o verás!

Como na Capital Federal há mais quem habite do que onde habitar, começou logo a entrar-lhe pela casa, à procura de cômodos, uma interminável procissão de desamparados da sorte e de magros lutadores pela vida, que lhe foram enchendo surdamente, do primeiro ao último, os numerosos quartos. Mais houvesse, e não faltariam para os ocupar estudantes pobres, carteiros e praticantes do correio, repórteres de jornais efêmeros, moços de botequim, operários de todas as profissões, comparsas e figurantes de teatro, pianistas de contrato por noite, cantores de igreja, costureiras sem oficina, cigarreiros sem fábrica, barbeiros sem loja, tipógrafos, guarda-freios, limpa-trilhos, bandeiras de bondes, enfim toda essa pobre gente, rara quem se inventaram os postos mais ingratos na luta pela vida, os mais precários e os mais arriscados; essa gente que em tempo de paz morre de fome, e em tempo de guerra dá de comer com a própria carne às bocas de fogo das baterias inimigas.

Mas, por entre a aflita farandolagem dos ganhadores de pão para a boca, surge sempre na casa de cômodos um tipo que é o desespero do locador e o tormento dos locatários. Refiro-me ao poeta boêmio.

O poeta boêmio é para o alugador de cômodos o osso do seu ofício. Sem emprego, sem rendimentos de nenhuma espécie, sem mesada e sem mobília, carregado de sonhos, que são os filhos que lhe deu Quimera, sua amante, o poeta boêmio vive da desgraça e da glória de ser poeta, atravessando indiferentemente todos os andares da miséria, olhos fitos no ideal, aos encontrões com os miseráveis que sobem e com os miseráveis que descem as longas escadarias do negro e frio castelo. Seu pé quase descalço não respeita o que topa, nem escolhe o terreno que pisa, e vai mundo afora, kneippeando* pelos simétricos canteiros da burguesia indignada e pelos relvosos coradouros das lavadeiras em fúria.

Esse é o anjo mau da casa, o terror dos vizinhos, o mal querido de todos os locatários. Dorme enquanto os outros trabalham e durante a noite conversa com as estrelas, declamando em voz alta coisas de amor e de fantasia que, ali, só ele e elas compreendem.

Esse nunca paga.

Mas que importa o calote de um boêmio, cujo quarto era pouco maior que uma sepultura, se os outros inquilinos aí ficam para ir despejando, todos os meses, na funda algibeira do malandro, os trinta, os quarenta, os cinquenta e os cem mil réis; e se com esse dinheiro pode o alugador de cômodos pagar o aluguel do prédio, e comer, e beber, e gozar, pondo ainda de parte o seu pecúlio em que já se abotoa a futura riqueza e talvez a futura comenda?

E assim vai vivendo o esperto forasteiro à barba longa, perna alçada e barriga farta, enquanto os outros trabalham para ele.

Lá um belo dia de fim de mês, um dos estudantes da casa, tendo devorado a mesada, atira a canastra pela janela e foge em seguida, abandonando a estreita cama de ferro, a mesinha, e o lavatório; e, como os maus exemplos aproveitam sempre um segundo estudante, e um terceiro e um quarto seguem, como as famosas pombas de mestre Raimundo Correia, o voo do companheiro e cá vão ficando no pombal as meias cômodas, as estantes americanas e as cadeiras compradas no belchior*. E outros, e outros inquilinos, atrasados no pagamento do mês vencido, lá se vão a contragosto

Não já pela janela, mas pela porta da rua, com uma descompostura atrás, deixando nas gloriosas mãos do triunfador, como despojo de luta, os trecos que constituíam a sua mobília.

Então, o dono da casa de cômodos começa a anunciar "Quartos mobiliados" e começa a cobrar aos novos hóspedes o duplo do que cobrava aos primitivos. E, ao fim de algum tempo, aí está o nosso homem pondo de parte, a cada mês, o triplo do que dantes punha, porque já não aluga aposento sem mobília e sem roupa de cama.

São sempre os inquilinos quem guarnece de móveis as hospedarias desse gênero. Daí a ter o que se chama "Casa de pensão" só vai um passo, e a coisa faz-se quase sempre do seguinte modo: - Como o malandro nada mais tem a fazer durante todo o mês do que cobrar os aluguéis no dia primeiro, enche as horas de calor a ensinar habilidades ao seu cão ou ao seu papagaio, e nas horas frescas vai para a calçada da rua cavaquear com os vizinhos.

Entre estes há sempre uma quitandeira de quem o dono da casa de cômodos, começando por merecer a simpatia, acaba por conquistar a confiança e o amor. Juntam-se e, quando ela dá por si, está cozinhando e lavando para todos os hóspedes do eleito do seu coração, sem outros vencimentos além das carícias, que lhe dá o amado sócio.

Assim chega a empresa ao seu completo desenvolvimento, e o dono da casa de pensão começa a ganhar em grosso, acumulando forte, sem trabalhar nunca, nem empregar capital próprio, até que um dia, farto de aturar o Brasil, passa com luvas o estabelecimento e retira-se para a pátria, deixando, naturalmente também com luvas, a preciosa quitandeira ao seu substituto.

E, quando algum dos inquilinos fala mais alto no seu quarto, ou quando os estudantes e as costureiras dão para rir e cantar, acode o locador e ordena que se calem, gritando que não admite barulhos em "sua casa".

Sua casa! Ora, eis aí, ao meu ver, uma coisa singularíssima. O aluguel daquele prédio é pago pelos hóspedes, como é a mesa, o gás, a água e o serviço dos criados. Tudo que ali está dentro foi comprado pelos locatários e não pelo locador; ali só há um homem que não trabalha e que não paga o lugar que ocupa, nem a comida que consome, nem o serviço dos que o servem; e é, no entanto, esse homem justamente quem só tem ali o direito de dizer que está em sua casa e o único que grita e manda como verdadeiro dono.

Será legal, mas é injusto e é duro. Se ao menos o especulador tomasse a responsabilidade do que se passa dentro da "sua casa", vá, mas nem isso acontece, porque quando os inquilinos são vitimados pelos gatunos, ninguém lhes responde pelo objeto subtraído.

Entrássemos lá agora, neste instante, e espiássemos para dentro de cada quarto. Neste veríamos um pobre homem a fazer charutos; naquele uma mulher a coser camisas; mais adiante um artista a desenhar; outro a decorar um papel de comédia; outro a escrever; outro a consertar relógios; e aqui um estudante às voltas com uma caveira e um compêndio de medicina; e ali um fotógrafo a preparar clichês. E, se indagássemos o que fazem os hóspedes ausentes cujos quartos estão fechados e não garantidos por ninguém, saberíamos que todos eles andam a ganhar a vida, ao balcão, na rua, nas oficinas, nas secretarias, nas redações das folhas e nos escritórios de todos os gêneros.

Pois bem! Enquanto toda essa gente moureja, o que faz o locador? O locador, defronte do seu papagaio, estala os dedos com a mão no ar e, risonho, a babar-se feliz, diz-lhe pela milésima vez: "Papagaio real, para Portugal! Quem passa meu louro? É o rei que vai à caça!"

Todavia, certo é que dentre toda aquela gente, é ele o único que tem imputabilidade social em nosso meio.

Será justo? Não sei, mas. parece-me que o direito de ter casa de alugar cômodos ou casa de pensão devia ser conferido pelo governo, como um privilégio de recompensa, somente aos inválidos da pátria, que já não possam trabalhar, ou às viúvas dos militares, dos artistas e dos filósofos, que se tenham sacrificado em nossa honra e morrido na pobreza.

Que diabo! não vale a pena fazer propaganda de imigração para termos belos malandros que ensinem papagaios a falar!
__________________
Glossário
Belchior - brechó.
Kneippeando - palavra derivada do alemão, frequentando tavernas, bares, botequins.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Contos. Biblioteca Virtual.