quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 156


Raul Pompéia (Violeta)


I
Um dia, sumiu-se a pequena Eva.

O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.

Tempo perdido, esforço baldado.

Na pequena povoação de ***, em Minas, não houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da filha.

Depois que se espalhou a noticia do desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe perguntasse:

- Sabe da Vevinha?...

- Já ia perguntar isso mesmo...

E não se colhia uma informação que desse luz ao negócio.

Uma senhora velha, reumática, de olhos vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma coisa que... devia contar ao sobrinho.

Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida  de uma prostração miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas, que flutuavam à toa no ar.

O marceneiro não se apercebia disso.

O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz, e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto parecia desfazer-se em líquido.

Os cabelos escuros e desgrenhados grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre.

Estava abatido.

Desde as seis horas da manhã até depois do meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se, vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto de todas as pesquisas.

Quando a tia entrou, o marceneiro não o sentiu.

A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro.

- Então não me vês? disse. Não me vês, Eduardo!

Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com um olhar dolorido. A velha teve pena. As lágrimas chegaram às pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.

Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muxoxo, para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha; voa a avezinha e a ramaria toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era tudo.

Entretanto a dor de Eduardo era maior.

O marceneiro era um desses homens que se chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor. Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um requinte intolerável.

A velha voltara o rosto e fitava um sujeito a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro. Era o carpinteiro Matias, português de nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo. Media com o compasso uma tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio. Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma risada tossida, implicante.

A velha incomodou-se com isso. Carregou os sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:

- De que ri-se?...

Matias começou a serrar a tábua, sem deixar de rir.

A respeitável Juliana fuzilava-o com o olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras. Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.

Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado. Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida. Era como uma fita de céu claro no fundo de um quadro de tempestade.

Esteve alguns segundos absorto, os olhos cravados na tia. Na sua atitude, parecia apreender as notas de uma harmonia afastada. Mostrava reanimar-se. De súbito, exclamou:

- Como sabe, minha tia?...

- O meu moleque viu...

- Será possível?...

- ... Viu...

Ah! se isto é verdade!

- ... O moleque viu...

O carpinteiro Matias deixara o serrote encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dois parentes. Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar. Hesitou, porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:

- Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...

- Quem furtou?... Eh.... Sr. Matias... disse Juliana a modo de ironia.

- Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...

- Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a soltar a língua... O senhor mostra o bolso, mas não mostra a... bolsa...

O trocadilho impressionou ao carpinteiro. No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.

Juliana dirigiu o olhar para o sócio do sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico, faiscante, ardente, incomodativo.

- Como diabo, dizia de si para si, pôde esta coruja saber?...

E serrava, serrava, para não dar a conhecer o que lhe ia pelo espírito.

Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a palavra à tia:

- ... Mas, tia Juliana, disse, eles partiram há três dias...

- Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!... Olhe que o senhor!...

- Há três dias... repetia o Eduardo, meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamar-lhe a atenção..

- Como?... perguntou-lhe esta.

- Não sei como é possível... Eles não estão aqui há... uns três dias já...

- O moleque viu, já ....... reconheceu-os... Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O moleque os conhece muito... O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...

- Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da companhia do Rosas!.. Ah! ah!...

- Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me contenho... ameaçou Juliana...

- Tenha paciência, minha cara, há de concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginastas furtando uma criança, fraca, imprestável!...

Eduardo refletia, sem dar ouvidos à discussão dos outros.

- Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui... aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de idiota a fingir...

- Veja que a senhora vai se excedendo... observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos. O que está dizendo é um insulto.

- Insulto! Hipócrita, não admite-se que se possa desconfiar do senhor? Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...

- Então, cale a boca... Se o seu moleque...

- ... Mas ainda se há de saber de tudo... O Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...

- Parto! parto! gritou Eduardo, interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste instante!... Não me demoro nem uma hora!...

Matias fazia coro à parte com sua risada tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela por uma porta que dava para os fundos da loja. O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.

- São minhas! – murmurou. Estas não me escapam!... Aqueles idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...

E fez um gesto com o punho cerrado.

II

No dia seguinte perguntava-se pelo marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o Matias sozinho. Era uma coisa curiosa. Depois da filha, o pai...

O que teria sucedido?

Que uma criança desapareça de um dia para o outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o Matias!?...

Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às tontas com a cabeça pelas hipóteses. Houve alguém bastante ousado para afirmar que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra doente.

Três dias depois, soube-se a verdade. O marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia ainda bem ao certo. Falava-se que fora viajar para distrair-se.

- Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam as comadres, palestrando sobre o caso.

Juliana, que fizera correr o boato da moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem, contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.

Não se tratava de matar a serpente Piton, nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.

Eduardo, passada aquela espécie de loucura que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir a Vevinha. Tinha a certeza de que a filha fora roubada pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais útil, portanto, era entrar em campo ele próprio. Habilidade não lhe faltava, força de vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se havia de levar a cabo.

Convencionou pois com Juliana que deixaria a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade; para a liquidação das contas com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.

Isto se devia fazer em segredo, a fim de não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O Matias, o único sabedor desses planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.

- O Eduardo partiu...

Estava dito tudo. Só queria a curiosidade pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não preocupavam-na muito. Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem, aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.

Pouco e pouco se foi deixando de falar no acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regime) preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.

Qual o verdadeiro móvel, porém, da resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro? O móvel era este: o segredo absoluto tornara-se coisa inútil.

Juliana recebera uma carta, que damos em seguida, feitas pequenas modificações na forma:

"Querida Juliana."
"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.
Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse, fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo que me desespera o coração...
Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada, torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocam-lhe os pequeninos ossos. Querem transformá-la em artista de circo, a custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...
Oh! eu bem sei qual a vida dessas desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público. Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciam-nas e levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns tostões para os seus algozes.
Desespera-me o pensamento de que nunca mais a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...
A pele fina e rosada do seu corpozinho tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!
Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que só hoje consegui arranjar estas linhas para mandar-lhe; também só hoje tenho notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.
Cheguei a *** às primeiras horas da madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas do pobre cavalo que me trouxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como a um filho.
Acabo de entrar para a companhia do Rosas. Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do circo, ou, conforme diz-se na companhia Factor de circo. Não se ganha muito, porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele, esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha.”


Fonte:
Biblioteca Eletrônica. CD Rom Digerati.

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) 6


Ao contrário da mentira,
é reta a sinceridade;
aquela desperta a ira,
esta, a credibilidade.

Ao político a advertência
- muito bom lembrar de novo:
Que jamais perca a consciência
de que o Poder é do povo.

Aproveita a solidão
medita nos males teus!
Coloca-te em oração
e, assim, encontrarás Deus.

A razão pura do amor
que surge no coração,
cura sintomas de dor,
apaziguando a paixão.

A sabedoria diz,
até parece um revés:
"A inveja de um, que maldiz,
é como o elogio de dez".

Assim diz o pensador:
"O tempo passa veloz".
Mas, eu digo, meu senhor,
velozes passamos nós.

Assim se porta o covarde,
com ares de valentão,
ao percorrer toda parte,
com escopeta na mão.

A trova que, num repente.
surge livre no meu ser
diz o que minh’alma sente
naquele instante a viver.

A trova, toda alegria,
ao colorir sua rima,
propaga nova harmonia,
criando até obra-prima.

A vida é o luzir veloz,
encanto em fugaz momento,
apenas um sonho atroz
nas asas sutis do vento.

Canto sempre a natureza
e as rosas do meu caminho;
nestas flores há realeza,
apesar de muito espinho.

Com seus voos de condor,
recriando alma florida,
trova que fala de amor
é a melhor trova da vida.

Contemplo o rio da cidade
da minha terra natal...
e vejo calamidade
sobre agonia fatal...

Corre a tristeza salgada
numa cruel soledade,
e a desventura é calada
na lágrima da saudade.

Elevo meu pensamento
em delírio natural;
meu pátrio devotamento
é a minha terra natal.

Em sendo o "fiel da balança",
a Justiça é protetora;
dos povos - a segurança,
e dos maus - a vingadora.

Grande síntese é a trova:
concentra numa quadrinha
o muito que se comprova
até na mera entrelinha.

Há muita autobiografia
que está longe da verdade;
mostra farta fantasia,
cobrindo falsa deidade.

Meras conquistas terrenas,
inúteis preciosidades,
deixam nossas almas plenas
de tolices e vaidades.

Meu coração franciscano
vive feliz neste aprisco;
tenho a UBT por arcano,
co'a bênção de São Francisco.

Minha mãe deixou-me, sim,
mergulhado em soledade;
mas ressuscitou, enfim,
no coração da saudade.

Muitas vezes, a vaidade
lembra o manto colorido
que disfarça a nulidade
de um caráter iludido.

Na ideia de eternidade,
relógio não há, pois sim;
perante Eterna Verdade,
a hora ali é sem fim.

No íntimo mais profundo,
fingindo santa inocência,
quem mostra o porão imundo
da sua própria consciência?

No lume que a trova leva
rebrilha a literatura,
dissipando a inculta treva
que inda ocultava a cultura.

O rio, outrora galante,
tristonho, já sem beleza,
parece um velho arquejante,
expulso da natureza.

Quem é vazio de interior
não suporta a solidão;
quer convívio, quer amor,
mesmo que seja o de um cão.

Se tivesse inspiração,
escreveria um poema;
certamente, com razão,
amor seria o meu tema.

Um país equilibrado
ruma firme para o norte;
tem povo politizado
com salário digno e forte.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 155


André Kondo (O Hashi)


Ozaki aparava, com maestria, as varetas de bambu. Para ele, a suave textura dos hashis* tinha a missão de realçar o sabor dos alimentos, que os dois pequenos pedaços de bambu levariam aos lábios. Sendo o alimento sagrado, o objeto utilizado para conduzi-lo à boca também deveria ser. Assim pensava Ozaki. Porém, esse era um solitário pensamento,

— Por que continua com essa tarefa? Hoje em dia, os hashis podem ser produzidos aos milhares por minuto nas fábricas… Ninguém mais dá valor aos hashis artesanais — contestavam os vizinhos.

Como o bambu que se curva ao vento, Ozaki concordava. Porém, assim como o bambu, passada a ventania, voltava à antiga posição.

Na pequena oficina onde fabricava seus hashis, Ozaki trabalhava com afinco. Todavia, não produzia mais do que um par por semana. Uma quantidade ínfima, considerando-se que o bambu não era um material difícil de se trabalhar. Mesmo assim, Ozaki alisava os seus hashis como quem busca a textura da seda. Entalhava as ranhuras das pontas, para maior precisão no futuro manejo dos alimentos. Pintava os delicados detalhes das extremidades superiores. Soprava delicadamente para dar movimento às pequenas pétalas representadas, como se houvesse mesmo brisa em suas peças. Findo o trabalho artesanal, quando o sol amenizava, percorria as ruas asfaltadas em direção ao único lojista que ainda tentava comercializar a sua produção,

— Ainda não vendi sequer um hashi. Será que não está na hora de... — o comerciante tentou aprisionar as palavras, mas as libertou — abaixar o preço?

— Qual valor sugere? — perguntou Ozaki, desgostoso.

Houve época em que os hashis de mestre Ozaki eram valorizados como peças finas e caras. A poderosa família Murakami comprava quase toda a produção, presenteada aos visitantes como peças de grande valia. Os que desconheciam a maestria de Ozaki e o requinte dos Murakami podiam até se sentir ofendidos pelo presente tão simplório; pois na habitual troca de agrados, davam-lhes produtos laqueados de rara beleza, utensílios banhados a prata e até a ouro. Em troca, recebiam pedaços de bambu, em caixinhas de madeira sem verniz. Porém, se os honoráveis Murakami valorizavam tanto os hashis de Ozaki, algum valor oculto eles deviam possuir. O que ninguém enxergava era o que a família Murakami conseguia vislumbrar nos hashis de Ozaki: alma. De qualquer forma, outros tentavam imitá-la, comprando os hashis apenas para exibi-los como símbolo de status.

Todavia, a fortuna dos Murakami se esvaiu, quando a sociedade passou a não mais necessitar de seus requintados quimonos de seda, fabricados pela família, artesanalmente, há gerações. Os Murakami faliram e ninguém mais desejava pagar tão caro por meras varetas de bambu. Aparentemente, os valores mudam com os tempos...

— Perdoe-me, Ozaki-san. Discuto o preço porque, desde o fim dos Murakami, a procura pelos seus hashis vem diminuindo. Neste ano, não foi vendido sequer um único par.

Ozaki sabia o valor de cada par de hashi que produzia, pois havia dedicado o seu melhor para a confecção de cada um deles. Infelizmente, o valor dado pelo homem a qualquer coisa é medido em dinheiro.

— Nunca abaixarei o valor do meu trabalho!

— Ozaki-san, sempre conversamos sobre coisas passadas, da época em que minha loja era a maior de todas e esta rua a mais movimentada... Mas, agora, é preciso ver que as coisas mudaram. Poucos entram em minha loja, menos ainda compram alguma coisa... E, lamento, mas ninguém compra os seus hashis.

Ozaki ponderou, porém, mesmo envergado, voltou à sua posição:

— Quando um homem não valoriza o que faz, acaba não se valorizando. Quando um homem diminui o seu valor, acaba diminuindo o valor de sua vida. Quando a vida perde o valor, que sentido há em vivê-la?

Nesse instante, um garotinho maltrapilho entrou, timidamente, na loja. Ele tinha em mãos um par de moedas. Com os olhos acesos, percorria os objetos dispostos no balcão empoeirado. Parava diante de algo. Olhava para o preço, olhava para o seu par de moedas, fugia com os olhos para outro lugar. Repetiu a cena várias vezes, desanimando cada vez mais, até que seus olhos se apagaram.

— Posso ajudá-lo? — perguntou o comerciante.

— Não, obrigado — respondeu o menino, já saindo.

— Espere — interrompeu Ozaki. — O que deseja?

— Eu só queria dar um presente para o meu avô, mas... Carreguei algumas sacolas para as senhoras na feira e elas me deram estas duas moedas. É o primeiro dinheiro que ganhei na vida. Por isso, queria comprar um presente para o meu avô, que cuida tão bem de mim... Mas não sabia que as coisas eram tão caras…

— Quem sabe você não se interessa por este par de hashis?

O comerciante olhou para Ozaki com estranheza.

Os olhos do menino, ao verem os hashis, voltaram a brilhar.

— Quanto custa? — perguntou o menino, receoso.

— Duas moedas — respondeu Ozaki.

O menino abriu um sorriso, estendendo rapidamente as moedas.

— Qual é o nome de seu avô? — perguntou Ozaki, entregando os hashis.

— Murakami-san! — respondeu o menino, saindo correndo em seguida, animado com o tesouro em suas mãos.

O dono da loja comentou:

— Estou orgulhoso da sua atitude, Ozaki-san! Diminuiu o valor de seus hashis apenas para que o menino pudesse comprá-los!

— Não diminuí o valor de nada — contestou Ozaki. — Pelo contrário, o valor de meus hashis foi em muito elevado!

— Mas o preço de seus hashis era muito maior do que duas moedas...

— A atitude daquele menino é a coisa mais valiosa do mundo. Posso até afirmar que nem todos os hashis que fiz em minha vida valeriam tanto assim!

Ozaki sorriu, satisfeito por ter reconquistado o seu valor.
_____________________________________________
Conto vencedor do XV Concurso Literário JI/AEPTI – Jornal de Itatiba e AEPTI (SP)
_____________________________________
Nota:
* O hashi são as varetas utilizadas como talheres em parte dos países do Extremo Oriente, como a China, o Japão, o Vietnã e a Coreia. Os hashis são usualmente feitos de madeira, bambu, marfim ou metal, e modernamente de plástico. O par de hashis é tradicionalmente manuseado com a mão direita (embora atualmente seja aceitável manuseá-lo com a mão esquerda), entre o dedo polegar e os dedos anelar, médio e indicador, e serve para apanhar pedaços de comida ou empurrá-los diretamente da tigela para a boca.
    A palavra em mandarim é kuàizi, que significa "objetos de bambu para comer rapidamente". Sendo originários da China antiga foram no entanto profusamente utilizados em todo o leste asiático. Utensílios que se assemelham a pauzinhos foram encontrados no posto arqueológico de Megido em Israel, pertencendo aos citas, invasores de Canaã. Esta descoberta revela a possibilidade de existência de relacionamento comercial entre o Médio Oriente e o Extremo Oriente ou eventualmente o desenvolvimento dos mesmos utensílios em paralelo mas de modo autônomo. Os hashis também eram artigos comuns na civilização Uigur, das estepes da Mongólia durante os séculos VI ao VIII. (wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 1


A Lua, em casto receio,
quando se banha ao luar,
esconde seu alvo seio
dos olhos verdes do mar.

A mulher tem ao nascer
um doce-amargo destino:
amargo pelo sofrer
e doce por ser divino.

A natureza que espelha
nudez ao clarão do dia,
veste um manto e se ajoelha
à hora da Ave-Maria!

Cancioneiro do luar,
canta o céu! Ninguém desata
a lua que vês chorar
suas lágrimas de prata.

Com o vento o tempo levava
o Amor que, em vão, lhe pedia:
"Espera um pouco! Eu amava".
Sem tempo o tempo corria!

Crê na vida. Vê risonho
todo o amor que tens a dar.
Não é por morrer um sonho
que se deixa de sonhar.

Deus é a alegria do triste.
Deus é a riqueza do pobre.
Deus está sempre onde existe
um gesto sublime e nobre.

Do pensador, do profeta,
nasce o direito sagrado.
Mas, só na voz do poeta
o Amor é glorificado!

Envelhecer sem temores…
ingratidões esquecer...
amar crianças e flores,
a isso eu chamo: Viver!

Eu comparo a solidão
àquele triste abandono
do olhar mortiço de um cão
chorando a ausência do dono.

Meu coração eu prendi
num elo, juntinho ao teu.
E nunca mais consegui
saber, dos dois, qual o meu.

Não peço glórias incríveis,
em riquezas não me atenho.
Só peço a Deus: "não me prives
das poucas coisas que tenho".

Nenhuma glória te cabe,
a própria dor te invalida,
se teu coração não sabe
que o amor é tudo na vida.

No mundo cheio de engôdos,
numa revolta sem fim,
fugi de tudo — de todos,
não pude fugir de mim.

O amor e as ondas não têm
os seus destinos iguais.
Ondas que vão, logo vêm,
amor que vai — não vem mais.

O poeta acende a chama
nas cinzas de um chão tristonho.
Vê gemas na própria lama,
o garimpeiro do Sonho.
* * * * * *
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente".
(Fernando Pessoa)


O trovador, na verdade,
finge ver o que não viu;
e chega a sentir saudade
do amor que nunca sentiu!
* * * * * * * *
Perdoa àquele que erra,
mostra o caminho ao incréu.
Porque começa na terra
a escada que leva ao céu!

Procurei no mais profundo
mistério humano ou divino:
não encontrei nenhum mundo
que me explicasse o Destino!

Saudade — veneno lento
que se bebe a gotejar.
Não mata num só momento,
vai matando devagar…

Se não podes ser a rosa,
se teu viço não é eterno,
sê a camélia, tão bondosa,
que floresce até no inverno.

Ser poeta é olhar as flores,
na velhice ser criança.
Amar — já não tendo amores,
esperar — sem esperança.

Só Deus sabe em que consiste
o nosso amanhã. Contudo,
o mundo seria triste
se a gente soubesse tudo!

Toda a angústia do universo
em seu mistério profundo,
não vale a glória de um verso
de amor, no Livro do Mundo.

Trovador que à Lua canta,
canta sempre — é bom cantar.
Pois é cantando que encanta,
cancioneiro do luar!

Trovas celestes. Aquelas
que o sentimento nos traz.
As mais perfeitas, mais belas,
a gente sonha — não faz!

Uma criança chorando...
um riso na madrugada...
alguém que passa cantando,
— a vida é isso — mais nada!

Uma trova pequenina
também diz tudo o que quer.
É o sonho de uma menina
num coração de mulher.

Um olhar que nos agrada,
um sorriso diferente,
uma coisinha de nada
muda o destino da gente!

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Maurício Norberto Friedrich (1945 - 2020)


Médico e advogado, nasceu no dia 6 de outubro de 1945, em Porto União, Santa Catarina, sendo o quinto filho de Afonso Luiz Friedrich, empresário do ramo da ourivesaria e de Araceli Rodrigues Friedrich, professora normalista, trovadora e primeira vereadora de Santa Catarina. Casado com a médica pediatra Neide Terezinha Ceccon Friedrich e pai de Luiz Felipe Ceccon Friedrich.

Em 1972, graduou-se pela Faculdade de Medicina de Campos, RJ e dedicou-se à área de Cardiologia, exercendo, até seu falecimento, suas atividades como autônomo na clínica privada. Trabalhou no instituto de Previdência do Estado (IPE), onde exerceu a Cardiologia e chefiou por 5 anos, a Divisão Hospitalar, quando requereu a sua aposentadoria do Serviço Público. Atualmente era sócio remido da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Em 1977, entrou no Corpo Clinico do Hospital Erasto Gaertner (Hospital do Câncer), onde atuou na Unidade de Medicina intensiva, Medicina do Trabalho e chefiou o Serviço de Cardiologia.

Em 1987, graduou-se como Bacharel em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e, em 1989, ingressou na Ordem dos Advogados - Seção de Curitiba.

Em atividades extraprofissionais, trabalhou como chefe no Grupo Escoteiro Nossa Senhora Medianeira, tendo sido agraciado em 2002 com a medalha Gratidão - grau Bronze, por relevantes serviços prestado à União dos Escoteiros do Brasil.

Recebeu, em 2007, na Câmara Municipal de Curitiba, por indicação do Vereador Ângelo Batista, o Prêmio Mérito em Saúde, por 30 anos de relevantes serviços prestados à comunidade. Em 2019 foi nome de troféu no âmbito Nacional dos XX Jogos Florais de Curitiba, sendo homenageado pela Câmara Municipal de Curitiba em setembro com Moção Honrosa pelos trabalho desenvolvido em prol da Cultura Curitibana e Paranaense.

Nas artes, destacou-se como colecionador por sua grande e rica colação de ovos decorados, com exemplares de vários recantos do mundo e por obras de sua criação.

No campo da cultura, Mauricio foi atuante no Movimento Trovadoresco do Paraná, tendo presidido e secretariado a União Brasileira de Trovadores (UBT) - Seção de Curitiba, atualmente era Presidente do Conselho da UBT Estadual do Paraná foi também Secretário do Conselho da UBT Nacional. Além de Membro efetivo e segundo orador do Centro de Letras do Paraná, pertence a Academia Paranaense da Poesia, Academia de Cultura de Curitiba e Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Seção do Paraná.

Premiado em inúmeros concursos de trovas no Brasil e exterior, possui publicações em sites, boletins e revistas de trovas dos mais diversos rincões brasileiros. Participa de Coletâneas Literárias do Centro de Letras do Paraná, Academia Paranaense de Poesia, UBT-Curitiba, UBT-Nacional, UBT-Porto Alegre, das virtuais Revista Encanto das Trovas, Almanaque Paraná, Florilégio de Trovas e O Voo da Gralha Azul e da Antologia de Trovas – Humorísticas & Jurídicas, sobre Direito e a Justiça Companhia Editora de Pernambuco.

Maurício faleceu na tarde de 5 de janeiro de 2020. O Velório e o Sepultamento ocorrem hoje, 6 de janeiro no Cemitério Parque Iguaçu.

Nas palavras do Professor Garcia, de Caicó/RN:
Todo o movimento trovístico do Brasil está de luto; perdemos um grande exemplo de generosidade humana, de dignidade e de elevado respeito por todos nós. Em nome da Trova potiguar, reiteramos nossos sentimentos a toda essa família de grandes e bons amigos.

Fontes:
– Andréa Motta.
– Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.
– José Feldman.

Maurício Norberto Friedrich (Jardim de Trovas)


A alva bruma que enverdece
os campos das pradarias
me faz dizer velha prece,
no entardecer dos meus dias!

A lua no céu passeia
num chão coberto de estrela,
deixa o sol, que tanto anseia
louco de amor, para vê-la.

A nora desesperada,
ao ver a sogra na porta.
lendo a receita trocada,
pôs formicida na torta.

A trova que é dita ao vento
tal qual o vento é fugaz;
existe, por um momento...
...e o próprio vento a desfaz!

Amor, palavra tão doce
que nos enche de prazer;
é, às vezes, como se fosse
dor, a nos fazer sofrer!

Ansioso, meu coração,
vive, sempre, nesta espera:
de uma nova floração
da dourada primavera.

Ao chegar o meu outono,
sensato, hoje sou bombeiro:
quando jovem, perdi sono
por querer fazer braseiro!

Ao idoso, honra e venera,
a sua sabedoria;
na velhice, que te espera,
terás tu, a primazia...

Árido, feito um deserto,
meu coração sofredor
anseia, disto estou certo,
ser fértil com teu amor!

As folhas mortas que, ao vento,
bailam e caem ao chão,
me evocam, por um momento,
os ventos de uma paixão!

As flores todas são belas,
mesmo as que nascem em abrolhos,
mas, as mais lindas, dentre elas,
são as que vêm nossos olhos.

As marcas do teu batom
deixadas no meu cristal,
têm sabor e têm o tom
de um grande amor, no final...

Beijando, a brisa, meu rosto,
meiga, me faz relembrar,
com saudade e muito gosto,
o amor que pude lhe dar.

Bela musa, encantadora!
Igual eu nunca vi;
meiga e doce inspiradora;
foste tu que eu escolhi!

Bem-vindos, oh Trovadores,
aos nossos Jogos Florais.
A vós, grandes vencedores,
as láureas dos Pinhais.

Carrego, dentro do peito,
a cicatriz de uma dor
que jamais me dá o direito,
de reaver teu amor!

Como é bonito o Direito,
quando se julga uma ação
e, ao exercê-lo, perfeito,
sempre o que impera é a razão.

Como pode uma criança,
ser vítima de agressão,
se tem, cheio de esperança,
o inocente coração?

Como são belas as serras
do Estado do Paraná!
Que têm cobertas as terras
das cores do manacá!

Completa felicidade
é, por certo, uma utopia;
pois quem já sentiu saudade,
já sofreu melancolia.

Curitiba doce encanto
da terra dos pinheirais
é nela que vivo e canto
meu amor e meus ais.

Curitiba! Ó Curitiba!
Onde estão teus pinheirais,
que te davam tanta vida,
e, hoje, não os vejo mais?

Curitiba, Terra amada,
me albergaste o coração;
a minha alma apaixonada
tem por ti grande paixão!

Da cultura és um celeiro,
Curitiba dos Pinhais;
com teu Jeito hospitaleiro
hoje albergas os florais.

Das felizes madrugadas,
sozinho, curto a saudade...
– Que alegria, nas noitadas,
dos tempos da mocidade!

Das folhas, vendo o cair,
pressinto o chegar do inverno
e o coração, a invadir,
saudade... do lar paterno,

De areia, fiz um castelo,
nas dunas, em vastidão,
e o vento, sem ter rasteio,
soprou...pôs tudo no chão.

Decidido e corajoso,
à tua porta eu bati,
foi o susto mais gostoso
que eu já pude dar em ti.

Dentre as coisas que cultivo,
para evitar vida obscura,
o saber é o incentivo
que aumenta minha cultura.

Dentre tantas namoradas,
que já tive em minha vida
e de todas as jornadas,
foste tu a escolhida!

Desde o dia em que partiste,
triste está meu coração:
este pobre não resiste
a dor da separação.

Do pai seguiu a carreira,
com amor, dedicação:
Tinha a semente certeira
plantada em seu coração!

Do sol em raios envolta
vi-te passar tão ditosa,
com puros gestos, tão solta,
tendo a beleza da rosa.

Dos corações, sempre em festa,
o amor, divino expressar...
faz com que cada seresta
torne a janela um altar!

Dos teus carinhos, distante,
na insônia de cada noite,
fico a pensar, num instante,
esta distância é um açoite.

É tão atroz a distância
a nos separar, amor,
que só a saudade, em constância
ameniza a minha dor.

É tão linda esta menina!
Linda? Parece boneca...
Mas, se namora na esquina,
logo vira uma sapeca.

É uma escultura, bem-feita,
de uma costela qualquer:
criada por Deus, perfeita,
que lhe deu nome...: mulher!

É verdadeira a amizade,
quando nunca se destrói,
com tempo vira irmandade
e faz do amigo um herói!

Hoje sou um moribundo
nas cinzas do teu amor
e não vejo, neste mundo,
remédio para esta dor!

Insone, em noites frias
e em permanente vigília
de mamãe com as ave-marias
recomendava a família.

Irradiantes de alegria!
façamos trovas de amor,
para louvar, no seu dia,
o poeta Trovador!

Já inventaram um remédio,
de um certo tom azulado,
que tira moço do tédio
e deixa velho… assanhado!

Meu amor da mocidade
foi efêmera ilusão:
dele só resta a saudade,
nas cinzas de uma paixão.

Meu coração é um deserto
por falta do teu amor,
se me ofertares, por certo,
virará, um jardim de flor!

Minha herança não tem ouro,
um conselho é o meu legado:
– Meu filho, mais que um tesouro,
vale um homem muito honrado!

Minha paixão foi loucura
por amar-te tanto assim;
hoje estou nesta tortura:
- Por que tu foges de mim?

Regressaste!.... Que alegria!
E a saudade se desfez!
Hoje minha alma irradia
felicidade outra vez!

Restou tão grande a distância,
que nos separa no amor,
que já não dou importância,
se minha vida se for.

Saibam todos que o trabalho,
ao bom homem enobrece,
mas, quem não pega no malho,
seu espírito empobrece!

Salve, ó verão de mil cores,
ao despertar o manacá
que cobre, todas, de flores
as serras do Paraná!

São Francisco, nas veredas,
feito um pobre vagabundo,
despido de suas sedas,
encheu, de amor, este mundo!

Saudade é uma dor silente
que nos ataca e vem mansinha;
entra no coração da gente,
toma posse e ali se aninha!

Saudade, saudade e meia,
é o que sinto de você;
meu coração serpenteia,
- só você é que não vê!

Saudade! Triste amargor!
Dolorosa e tão pungente,
a nos causar tanta dor;
só a entende quem a sente!

Saudade... dor da lembrança
de alguém que distante está;
é o sentir de uma esperança
de que esse alguém voltará!

Se encontro, ao voltar pra casa,
as tuas mãos carinhosas,
o meu amor já se abrasa,
com teu perfume de rosas.

Segue, meu filho, na estrada,
os trilhos da retidão:
sê firme em cada pisada
que as honras te seguirão!

Sigo, na vida, o caminho
penoso, porém, correto,
que aprendi, desde meu ninho,
com meu pai severo e reto.

Sim, nas cores do arrebol,
Deus, o mais perfeito esteta,
sob a luz do pôr do sol,
dá inspiração ao poeta..

Singrando mares incertos,
marujo, audaz, varonil
achou montes, recobertos
com flores: Eis o Brasil.

Sinta o perfume das flores
nas serras do Paraná,
tem árvores de mil cores:
-primaveras ou manacá.

Teu charme, encanto e beleza
dão aos poetas um tema,
ó encantada Fortaleza,
linda Terra de Iracema!

Teu conselho, pai querido,
de retidão e de amor,
faz-me, hoje, já envelhecido,
mais entender seu valor!

Teve um infarto, na cama,
a noiva, que é tão frajola,
ao ver que, em vez do pijama,
o noivo pôs camisola!

Tico-Tico seresteiro
que vives, sempre, a cantar,
põe teu ninho em meu terreiro;
vem comigo avizinhar!

Vai, meu filho! Não tropeces
nas pedras do teu caminho:
a Deus, faze tuas preces
e não seguirás sozinho!

Vejo uma gota de orvalho
pairando sobre uma rosa:
de Deus, é mais um trabalho
para tomá-la formosa.

Vendo-a sentada no ninho
ditosa mamãe beija-flor,
vejo que há muito carinho
neste seu gesto de amor.

Vi beleza… colhi flores
nesta vida, em seus caminhos,
mas às vezes senti dores
causados por seus espinhos!

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 154


Cecy Barbosa Campos (Reminiscências)


A rua não tinha nenhum destes espigões que empanam o sol e, à noite, quando se olhava para o céu, de qualquer ponto, era possível ver as estrelas.

Estrelas brilhantes, tão mais brilhantes quanto mais fria fosse a noite do mês de junho, e este era um mês especial para seus moradores. A meninada, alvoroçada, já no dia primeiro, começava a se preparar para a festa. E como "o melhor da festa é esperar por ela", pode-se dizer que meninos e meninas aproveitavam vinte e quatro dias, sem parar, esperando chegar a noite de São João. Tinham até direito de dormir mais tarde, podendo sair depois do jantar para colar as bandeirinhas que iriam enfeitar o "arraiá".

Os barbantes eram estendidos de um lado a outro, calçada a calçada. Nem tantos carros havia em Juiz de Fora, e a Benjamin Constant, acabando onde é hoje a Tiradentes, era uma rua tranquila e silenciosa, sem ronco de motores a perturbar o alarido da criançada. Assim, sem perigo, todos se encontravam para fazer a colagem, escolhendo as cores cuidadosamente, discutindo com grande concentração e seriedade sobre a conveniência de se colocar uma bandeirinha azul perto da rosa ou vice-versa.

Os maiores providenciavam a capina, pois, no local em que a rua terminava, havia mato, bicho. Era comum encontrar-se, no quintal, um lagarto "quentando" ao sol. Gambás e, dizem, até raposas, costumavam assaltar galinheiros, beber os ovos e roubar frutas durante a noite.

Era necessário limpar e preparar o terreno, num trabalho pesado que ninguém sentia. Tarefas divididas, havia aqueles que iam arranjar o bambu para cercar a área, e os que iam armar barraquinhas onde o pé de moleque, a cocada e a canjica iam ser servidos com muito orgulho pelas donas de casa, quituteiras de mão cheia, que na ocasião demonstravam seus dotes, oferecendo a todos as suas obras-primas.

O local era sempre o mesmo: logo ao final da rua Benjamin Constant, embicava a entrada do arraial que se instalava no espaço entre as atuais ruas Tiradentes e Olegário Maciel. A festa da Benjamin ficou famosa, e os convites para o ingresso eram disputados. Todos se conheciam e todos participavam. Não havia idade nem reumatismo que resistisse à motivação da sanfona e do tablado que, cedido pela Prefeitura, suavizava as irregularidades do solo, permitindo que a caipirada dançasse a quadrilha com muita alegria à luz de uma fogueira cuidadosamente montada.

Passado o mês dos folguedos juninos, a gurizada arranjava pretextos para continuar a se reunir após o jantar. Era o pique-de-meio, no qual, os participantes ficavam a salvo na calçada, sem poder lá permanecer por muito tempo. Tinham que tentar, constantemente, mudar para o outro lado da rua, enfrentando a perseguição do pegador e correndo o risco de, se alcançados, serem expulsos da brincadeira.

À medida que os meninos e meninas iam crescendo, o interesse pelas correrias ia-se transferindo para o vôlei, também no meio da rua. Às vezes, um grande círculo se formava e um jogador, no centro, liderava a distribuição da bola. Outras vezes, em jogo livre, iam sendo feitas exclusões até que a dupla, mais hábil nas jogadas, ficava para a definição final de um vencedor. Em outras ocasiões, até uma rede era improvisada, atravessando a rua de um lado a outro e permitindo uma partida simulada.

Aquele congraçamento de crianças e jovens adolescentes reunia os filhos de conceituadas famílias da cidade. Eram vizinhos próximos os renomados médicos Dr. José Dirceu de Andrade, Dr. Justino Sarmento e Dr. José Mariano; o comércio local se fazia representar pelos senhores Luís Enéas Mescolin e Francisco Romanelli; pela classe bancária respondiam o Sr. José Caldas, o Sr. José Vale da Fonseca e o Sr. Octávio Duarte Corrêa Barbosa.

Havia ainda a simplicidade do "seu" Tonico — o fazendeiro Antônio Teixeira Reis, e a elegância do político, Dr. José Procópio, ex-prefeito da cidade. Outras personalidades marcantes também viviam nas redondezas, mas os citados permaneceram por longo tempo como moradores da rua Benjamin Constant.

Vários remanescentes e /ou descendentes destas famílias ainda lá estão, embora, muitas daquelas casas não existam mais, tendo cedido lugar a prédios altos e modernos.

As crianças de hoje não têm condições de brincar na rua e não conseguem imaginar o que foi o pique-de-meio, o jogo de bola ou a preparação de uma festa junina. Fechadas em suas casas ou apartamentos têm, como distração principal, os programas de televisão assistidos em volume máximo, pois o barulho do tráfego intenso dificulta a audição.

É a marca do asfalto, o preço do progresso. Ainda bem que elas não conheceram a rua Benjamin Constant de 40 anos atrás. A saudade fica para as pessoas que nela viveram naqueles tempos.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora

Antonio Cabral Filho (10. Colar de Trovas) Tema: Esperança


01
Haverá  sempre esperança
onde houver cheiro de flores,
inocência  de criança
*e sonho de trovadores!*
Neiva Fernandes
(RJ)

02
E sonho de trovadores,

servidos na caminhada,
em que só vão sonhadores,
*sedentos pela chegada.* 
Antonio Cabral Filho
(RJ)

03
Sedentos pela chegada

águas tranquilas buscando,
e ao longo da caminhada
*a muitos dessedentando*.
Gilberto Cardoso
(RN)

04
A muitos dessedentando

na busca, a sede matar;
pois o líquido dosando.
*tem saúde  salutar.*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

05
Tem saúde salutar,

só assim talvez alcança,
futuramente um lugar.
*Todos cheios de esperança.*
Adriano Bezerra
(RN)

06
Todos cheios de esperança,

úteis ao mundo seremos.
Com coração de criança,
*muita coisa mudaremos.*
Gilberto Cardoso
(RN)

07
Muita coisa mudaremos.

Só depende da atitude.
Exigirá que empenhemos,
*toda nossa juventude*.
Antonio Cabral Filho
(RJ)

08
Toda nossa juventude,

tem tempo de validade,
dependendo da atitude
*nos resta apenas saudade.*
Neiva Fernandes
(RJ)

09
Nos resta apenas saudade,

se esperança e salvação,
mais solidariedade,
*nos negarem uma mão.*
Antônio Cabral Filho
(RJ)

10
Nos negarem uma mão

é falta de consciência,
luz e amor no coração
*do ser que não tem decência!...*
Luiz Cláudio
(RN)

11
Do ser que não tem decência

devemos manter distância,
ente sem nenhuma  essência
*mostrando só petulância*.
Maria Zilnete
(RJ)

12
Mostrando só petulância,

jamais irá aprender.
O homem com sua arrogância,
*a esperança vai perder!*
Gleyde Costa
(RJ)

13
A esperança vai perder

somente quem  não tem fé,
é  preciso ver pra crer,
*quem for como São Tomé!*
Aurineide Alencar
(MS)

14
Quem for como São Tomé

terá sempre um bom Cristo,
para reforçar a fé
*que precisa pelo visto.*
Prof. Roque
(RS)

15
Que precisa pelo visto,

que seja sem confusão,
que o melhor seja previsto,
*na Santa Paz meu irmão.*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

16
Na Santa paz meu irmão

com  esperança em nosso lar
eu peço a Deus proteção
*para Ele nos ajudar.*
Neiva Fernandes
(RJ)

17
Para Ele nos ajudar,

medito com atenção.
Esperança no meu lar,
*almejo com devoção!*
Agostinho Rodrigues
(RJ)

18
Almejo com devoção

com  muita fé e esperança,
com sincero coração
*alegre feito criança.* 
Madalena Cordeiro
(ES)

19
Alegre feito criança,

levo amor no coração,
distribuindo esperança,
*a quem ama seu irmão*.
Antônio Cabral Filho
(RJ)

20
A quem ama seu irmão

o bem sempre lhe deseja,
guardando-o no coração
*com esperança que almeja!...*
Luiz Cláudio
(RN)

21
Com a esperança que almeja ,

O ser humano é feliz.
É muito grande a peleja ,
*o que o objetivo condiz !*
Gleyde Costa Campos
(RJ)

22
O que o objetivo condiz

o que temos na lembrança
quando o coração nos diz...
*Haverá  sempre  esperança.*
Neiva Fernandes
(RJ)


Fonte:
Trovadores do Brasil

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: Sgiathán Dearg e a filha do rei do Mundo Ocidental

Noinín, filha do rei do Mundo Ocidental, saiu, um dia, a passear e, enquanto caminhava, viu o pássaro Sgiathán Dearg e considerou que era o mais belo que jamais se lhe deparara.

— Seria feliz se pudesse estar com esta ave! — exclamou.

Sgiathán Dearg esvoaçou em torno dela durante uns momentos, aproximou-se mais e acabou por desaparecer no bosque.

A filha do rei saiu a passear no dia seguinte, o pássaro tornou a aparecer e ela pensou que era ainda mais belo e tentou apanhá-lo, mas não conseguiu. No terceiro dia, o pássaro esvoaçou ainda mais perto. — Gostava tanto de ter esta admirável ave! — exclamou ela.

Sgiathán Dearg aproximava-se cada vez mais. Por fim, logrou apanhá-lo, acariciou-o, beijou-o e levou-o para casa.

Em seguida, pediu que lhe levassem uma gaiola espaçosa, onde o introduziu e conservou no seu quarto, dando-lhe de comer todas as iguarias que ela própria consumia.

A noite, a criada entrou no aposento e, na gaiola, viu um homem em vez de um pássaro. Quando ela se retirou, Noinín voltou-se para Sgiathán Dearg, que lhe explicou:

— Estou sob a influência do feitiço da rainha de Gleann Dearg. Todas as manhãs sou um pássaro, mas à noite recupero a minha forma normal e converto-me em homem. Fico aqui empoleirado e constrangido, entregue ao meu sofrimento. Liberta-me da gaiola, ainda que por pouco tempo, até ao amanhecer.

Ela abriu a porta da gaiola e conversaram até ao romper da alvorada, quando o homem voltou a transformar-se em pássaro, mas não voltou para a gaiola, e a jovem não conseguiu apanhá-lo. Manteve-se no quarto e, quando abriram a porta, saiu disparado e ficou a esvoaçar em redor do castelo.

No quarto dia, Noinín foi passear, para ver se conseguia voltar a apanhá-lo. Estava ansiosa e não se sentia tão bem-disposta como em outras ocasiões. Seguiu atrás de Sgiathán Dearg, rapidamente, esforçando-se por capturá-lo. Assim continuaram durante grande parte do dia, até que chegaram a uma colina. Perto do topo, ela esforçou-se mais uma vez por apanhá-lo, mas, de repente, a encosta abriu-se e ele desapareceu através da abertura, que se tornou a fechar com prontidão. A filha do rei ficou assim abandonada num lugar que não conhecia, pelo que passou a noite na colina, com a esperança de que Sgiathán reaparecesse na manhã seguinte.

No entanto, amanheceu, e o pássaro continuava ausente. Noinín achava-se perante um grande problema e dominada por profunda angústia, consciente de que os pais e demais familiares deviam estar alarmados com a situação. Por fim, começou a afastar-se da colina e caminhou durante todo o dia, até que começou a anoitecer e avistou um belo castelo ao longe. Ao aproximar-se, deparou-se-lhe uma porta enorme ricamente ornamentada, alta e magnífica. Bateu e surgiu uma mulher, que inquiriu:

— Que pretendes, minha filha? Para onde te diriges?

— Venho pedir alojamento para esta noite.

— Tê-lo-ás, assim como jantar, pois deves estar faminta, depois de um longo percurso. És forasteira nesta região, onde passa muito pouca gente. Queres dizer-me como te chamas?

— Sou do Mundo Ocidental e o meu nome é Noinín.

— Que te trouxe para estes lados?

A jovem descreveu toda a história, sem omitir um único pormenor — como conhecera Sgiathán Dearg e o capturara, para depois o perder e perseguir pela segunda vez, vagueando sem rumo definido, até que avistara o castelo.

— Queres entrar para o meu serviço? perguntou, no final, a mulher.

– Sim.

Não se sabe que salário Noinín pediu, nem se chegou a receber algum, porém a mulher explicou-lhe:

— Trabalharás para mim durante um ano e um dia. Suponho que não sabes a quem pertence este castelo!

— De fato, não faço a menor ideia.

— Trata-se da casa do vento e eu sou a rainha do vento.

Quando tinham decorrido três quartas partes do ano, Noinín teve um filho, mas cumpriu todo o período combinado. A mulher nunca lhe encontrou qualquer defeito, nem falou mal dela. No entanto, no termo do prazo, decidiu:

— Não podes continuar aqui. Não quero uma criança a crescer em minha casa. Tens plena liberdade para ir para onde quiseres e trabalhar noutro lugar. — Fez uma pausa e acrescentou: — Ofereço-te este anel. Quando olhares através dele, não terás fome nem sede e verás tudo à tua volta, esteja perto ou distante, à vista ou oculto.

Noinín partiu com o filho e viajou até quase anoitecer. Nessa altura, olhou através do anel, descobriu um elegante castelo e dirigiu-se para lá. Do lado da frente, havia uma porta e um belo prado. Ela bateu e apareceu uma mulher de aspecto agradável.

— Que pretendes?

— Preciso de alojamento por uma noite. Venho de longe e estou muito cansada. Não avistei qualquer casa, além desta.

— Terás alojamento, porque é muito pouco frequente aparecer alguém. Entra. — Noinín seguiu-a, e ela perguntou: — Diz-me quem és.

— Noinín, do Mundo Ocidental. Procuro uma casa para servir.

— Durante quanto tempo?

— O que desejares, mas espero que me seja permitido conservar o meu filho junto de mim.

— Com certeza. Porque não?

— Ele não provoca problemas — assegurou a jovem. — Basta dar-lhe de comer. Não é travesso nem incomodativo.

— Ficarás ao meu serviço um ano e um dia — decidiu a mulher.

Noinín serviu na nova casa com boa vontade. O que a criança não crescia de dia, fazia-o ao longo da noite e, se não era de noite, crescia durante o dia, e ninguém pode imaginar o que aumentava.

— Sabes que casa é esta? — perguntou a mulher.

– Não.

— Não me parece bem que uma pessoa sirva sem saber onde. É a casa da lua e eu sou a rainha da Lua.

As relações entre ambas eram satisfatórias e Noinín uma serviçal excelente: conhecia todos os trabalhos e executava-os o melhor que sabia. Quando transcorreu um ano e um dia, a rainha declarou:

— O teu filho está a crescer muito depressa e tudo indica que será enorme. Não podemos permitir que uma pessoa assim viva mais tempo nesta casa.

— Então, tenho de partir — admitiu Noinín -, pois não posso continuar aqui sem ele.

— Antes de saíres, dar-te-ei um presente. — A mulher entrou num aposento do castelo e reapareceu com um gorro com desenhos e uma varinha. — Pode acontecer ires a um lugar e não saberes onde estás ou como sair de lá. Se tal acontecer, basta pores este gorro e dizer "Desejo encontrar-me neste ou naquele sítio, ou nesta ou naquela rua", para te veres lá imediatamente. Com a varinha, podes abrir caminho através de qualquer lugar ou restituir uma pessoa enfeitiçada à sua forma anterior.

Noinín aceitou o gorro e a varinha, abençoou a mulher e partiu. Durante todo o dia não viu senão páramos e lugares silvestres. Ao anoitecer, lembrou-se do anel que tinha consigo desde que estivera na casa do vento, olhou através dele e avistou um grande castelo, com um pátio nas traseiras e um prado em frente. Quando lá chegou, bateu à porta, que foi aberta por uma mulher formosa.

— Que pretendes ou esperas encontrar aqui?

— Alojamento para esta noite, se estiveres disposta a oferecer-me - respondeu a jovem.

— Dar-te-ei, porque é muito pouco frequente ver uma pessoa desconhecida nestes lados. Que idade tem o teu filho?

— Um ano, três meses e dois dias.

— Se é tão jovem, quando crescer será o maior herói do mundo. Queres entrar para o meu serviço?

– Sim.

— Agora, fala-me de ti. Conta-me tudo e com sinceridade.

Noinín narrou toda a história. No final, a mulher perguntou:

— Sabes que castelo é este?

– Não.

— A casa do Sol e eu sou a rainha do Sol.

A jovem executou perfeitamente o serviço até decorrer um ano e um dia. Não se pode descrever nem explicar como a criança crescia continuamente, nem quanto media.

— Não podemos ter um homem assim cá em casa — anunciou a rainha do Sol. — Deves preparar-te para partir, mas podes ficar mais um dia comigo. Passaste muitas dificuldades e ainda conhecerás mais do que possas imaginar, mas talvez acabes por encontrar dias melhores.

Noinín ficou mais um dia e, na manhã seguinte, viu três corvos diante da janela numa colina. Naquele momento, as aves lutavam umas com as outras.

— E uma pena ver dois matar um — disse o filho.

— Não te preocupes com os corvos — respondeu Noinín. – Não é fácil saber se convém ou não que te intrometas.

Quando anunciou à rainha que tencionava partir na manhã seguinte, esta última discordou.

— Não irás ainda. Gosto da tua companhia. Quero conversar contigo mais tempo.

Na manhã imediata, viram os três corvos pela segunda vez.

— E uma pena ver dois matar um — observou o filho.

— Já te disse ontem que não te preocupasses com isso — lembrou-lhe Noinín.

— Mas preocupo-me! Tenho de ajudar o terceiro corvo.

— Não o farás — decidiu, e, nesse dia, impediu-o de ir ter com as aves.

Mais tarde, falou com a rainha:

— Estou a causar-te mais problemas do que devia e a atrasar-me demasiado.

— Fica comigo hoje, e não te pedirei mais. Tenho algumas outras coisas para te dizer.

Mais uma vez, os três corvos lutavam, dois contra um.

— É uma pena ver dois matar um — tornou a repetir o filho. – Tenho de ajudar o terceiro.

— E difícil manter-te afastado da peleja — reconheceu Noinín, e desta vez não se opôs.

— Tenho uma irmã que afastaram de mim há muitos anos – informou a rainha do Sol. — Agora, que viajarás por lugares solitários e estranhos, abre bem os olhos para veres se a descobres. E impossível prever se voltarás a passar por aqui, mas se tal acontecer avisa-me. Dar-te-ei uma toalha de mesa que, caso necessites, te proporcionará comida e bebida em abundância. Aqui a tens.

O filho dirigiu-se à colina onde se encontravam os corvos.

— É uma vergonha dois tentarem matar um.

— Mais valia que te preocupasses contigo, em vez de vires incomodar-nos — replicou uma das aves.

— Seja como for, vou pôr termo a isto. A partir de agora, só lutará um contra um e o terceiro comigo.

O filho de Noinín lutou com um dos corvos, que voava à sua volta e sobre a sua cabeça, disposto a abatê-lo, quando o jovem lhe apontou a espada e deu uma estocada. O sangue da ave jorrou para a sua mão e, quando a agitou, atingiu outro corvo. Ato contínuo, este transformou-se no homem mais elegante do mundo. Quando o rapaz se deu conta do sucedido, disse ao segundo corvo:

— Não tenho nada contra ti que não tenha contra este.

Salpicou-o de sangue e viu que se convertia num homem como o anterior.

Noinín despediu-se da rainha e empreendeu a marcha com os dois homens e o filho. Os homens iam à frente e, quando começava a anoitecer, chegaram a uma abertura estreita numa enorme escarpa, que se fechou no momento em que eles acabavam de a transpor. Noinín puxou da varinha oferecida pela rainha da Lua e aplicou uma pancada, depois outra e finalmente uma terceira. A passagem abriu-se e ela desceu ao Mundo Inferior, à terra mais magnífica que se podia conceber. Os dois homens encontravam-se lá, na sua frente. Reataram o caminho, que se prolongou por muito tempo. Havia luz a jorros e um campo admirável, com cada zona melhor e mais admirável que as precedentes.

Noinín lembrou-se então do gorro e pô-lo na cabeça, ao mesmo tempo que dizia:

— Desejo que se abra caminho até Gleann Dearg.

Abriu-se imediatamente e eles viajaram longo tempo, não se sabe quanto, até que chegaram a Gleann Dearg, mas não podiam ver nada, porque estava tudo coberto de pó, neblina e um feitiço ofuscante. Encontravam-se esgotados e debilitados pela fome, e não se avistava comida em parte alguma. Noinín lembrou-se então da toalha que trouxera da casa do Sol e não tencionava utilizar até que se visse muito necessitada. Estendeu-a no chão e verificou que estava coberta de comida e bebida em abundância. Todos comiam com prazer, quando surgiu um cisne, que se apoderou da melhor iguaria e voou para longe. Passado pouco tempo, reapareceu e levou outra.

— Se voltas a fazer isso, utilizo a varinha — ameaçou o filho.

O cisne apareceu pela terceira vez, e descia suavemente, quando o filho de Noinín pegou na varinha e o atingiu com ela. No instante imediato, o cisne caiu no chão, transformado numa bela mulher, a irmã da rainha do Sol, que disse a Noinín:

— Esperei durante muito tempo pela chegada do filho de Sgiathán Dearg para quebrar o feitiço que me subjugava. Bem sei que te trouxe nesta direção. Agora, fica aqui. Estes dois heróis proteger-te-ão até que voltemos. O jovem e eu partiremos juntos. E partiram os dois.

— Não tardarás a ver o rei — referiu a cunhada do Sol ao filho de Noinín -, pois ele já sabe que vamos, mas não quem somos. Quando te perguntar quem és e onde vais, responderás que és o filho de um pai e de uma mãe da Irlanda do Norte, já falecidos, e viajas com a tua irmã. Procuras um lugar em que ela possa ficar a servir. Ele aceitar-me-á então para criada de quarto da filha. Tu ficarás nas proximidades, pois eu sairei a dar uma volta todas as noites. Em virtude do cargo que exercer lá, poderei inteirar-me do que se passa no castelo.

Com efeito, o rei de Gleann Dearg contratou a cunhada do Sol para ficar ao serviço da filha. No dia seguinte, a princesa e a criada saíram a passear.

— Isto é um lugar escuro e solitário — disse esta última. — Como consegues suportar a vida aqui, onde só há nevoeiro espesso?

— Não te preocupes — replicou a filha do rei. — Vem comigo, para darmos uma volta.

Andaram até chegar a um castelo, que, outrora, devia ter sido suntuoso. Na porta, havia uma aldrava, e a princesa indicou, apontando-a:

— Puxa-a. — A criada obedeceu. — Agora olha em volta.

A terça parte da planície estava iluminada com intensidade. Tornou a puxar a aldrava, e a luz propagou-se a dois terços. Ao terceiro puxão, a iluminação foi total.

— A minha mãe enfeitiça esta planície todas as manhãs para toda a gente, exceto para si própria, e permanece assim até à noite. Nessa altura, fica tão escura para ela como para os outros, mas se um homem conhece o segredo dos puxões da aldrava, pode iluminar a planície, como nós acabamos de fazer.

Na noite seguinte, a criada saiu para se encontrar com o filho de Noinín. Passearam juntos e andaram longamente, até que chegaram ao castelo parcialmente em ruínas.

— Na sua época, era suntuoso — disse ela.

— Ainda hoje se nota.

— Puxa essa aldrava, mas com força.

Ele obedeceu, e a terça parte da planície tornou-se visível.

— Torna a puxar — indicou a criada.

Desta vez, tornaram-se visíveis dois terços. Ao terceiro puxão, toda a planície resplandecia.

— Também a podes arrancar, se quiseres.

O filho de Noinín assim fez, e o feitiço de Gleann Dearg desapareceu por completo.

— Agora, puxa a deste lado da porta.

No momento seguinte, uma voz proferiu:

— Sou Fear an Fháinne. Que pretendes de mim?

— Quero que a rainha e a sua filha não voltem a enfeitiçar esta planície e Sgiathán Dearg venha imediatamente.

O poder da rainha terminou nesse momento e, pouco depois, Sgiathán Dearg encontrava-se entre eles. Quando o filho de Noinín atingiu o pássaro Sgiathán Dearg com a varinha, este transformou-se num herói mais formoso que qualquer outro homem e acompanhou-os ao lugar onde Noinín e os outros o aguardavam.

— Tinhas-me visto antes? — perguntou Noinín.

— Sim — respondeu Sgiathán Dearg. — Com certeza.

— Porque não me procuraste ou foste atrás de mim, em vez de me deixares só no mundo, a lamentar-me e a vaguear por lugares solitários?

— Não estava dentro das minhas possibilidades. Dominava-me a magia da rainha de Gleann Dearg, que me obrigava a permanecer no seu castelo como homem todas as noites, exceto três em cada sete anos. Foram essas que passei no do teu pai ou perto dele. De resto, se te encontrasse sob a forma de pássaro, que poderia fazer por ti?

— Absolutamente nada — reconheceu Noinín.

O seu filho mantinha relações excelentes com a jovem princesa de Gleann Dearg. Amavam-se muito, casaram e ficaram a viver nesse país.

— Voltemos para a nossa casa e deixemos isto ao meu filho -propôs Noinín.

— Não desejo outra coisa — declarou Sgiathán Dearg.

E puseram-se a caminho em direção ao Mundo Superior — os dois heróis que tinham sido corvos e a cunhada do Sol acompanharam-nos. Quando passaram perto da casa do Sol, Noinín sugeriu:

— Podíamos pernoitar aqui.

Assim fizeram. A rainha do Sol acolheu-os com entusiasmo, mostrando-se encantada e contente.

— Conheces esta mulher? — perguntou Noinín.

— Não — respondeu a rainha.

— Contaste-me que tinhas uma irmã que foi separada de ti há muitos anos.

— Sim, mas era então muito jovem. Não conheço esta mulher.

Noinín trouxera de Gleann Dearg a aldrava que convocava Fear an Fháinne e chamou-o.

— Explica à rainha que esta mulher é a sua irmã — ordenou-lhe.

Fear an Fháinne narrou a história, a rainha acreditou e ele desapareceu imediatamente.

— O meu marido jaz aqui convertido numa pedra — informou a rainha. — Foi a rainha de Gleann Dearg que o reduziu a essa forma. Dá-lhe saúde e força de novo. Liberta-o.

— Puxa essa aldrava — indicou-lhe Noinín. — Convoca tu própria Fear an Fháinne.

A rainha obedeceu. Ato contínuo, Fear an Fháinne devolveu ao Sol a sua força e brilho, encontrando-se perante a sua rainha, tão ágil e em bom estado como sempre.

Todos passaram a noite com alegria e prazer. Na manhã seguinte, ressuscitaram o corvo morto, o terceiro irmão. Os três homens que haviam sido corvos e lutado permanentemente na colina diante da casa do Sol eram irmãos de Sgiathán Dearg que também tinham sido enfeitiçados pela rainha de Gleann Dearg e continuariam a defrontar-se entre si, se não fossem resgatados.

Noinín regressou ao seu lar no Mundo Ocidental, acompanhada de Sgiathán Dearg e dos seus três irmãos.

Fonte:
Contos Tradicionais da Irlanda

sábado, 4 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 153


Isabel Furini (Ao Amanhecer)


A. A. de Assis (Marilinda, Heroica Mulher)


Godô, que assinava Godofredo, chegou para tentar a vida na cidade nova. As ruas poeirentas assistiam ao erguimento simultâneo de centenas de casas, de madeira quase todas. Os moradores, por volta de cinco mil pioneiros, denunciavam pelo sotaque suas diferentes origens. Godô estava pronto para incorporar-se àquela aventura: vinha com algum capital, um jipe, muita esperança de enricar com a loja que planejava abrir.

No Fagundes Hotel, na Pensão Familiar e na Hospedaria Dona Chica não havia quarto disponível, tudo lotado. Godô não teve alternativa senão pedir pousada numa das casas da “zona”, quarteirão afastado do centro, onde cheirosas mulheres davam colo aos solitários do lugar. Marilinda, vasta morena de fartos cabelos negros, abriu o quarto e o coração para acolher o hóspede. Ele, se quisesse, poderia ficar ali até alugar uma casa. Pagaria cama e comida; os carinhos seriam de graça. Marilinda, por uma dessas razões que a razão desconhece mas sempre aplaude, gostara dele, assim de primeira olhada.

Em vez de alugar, Godô decidiu construir uma casa, com espaço para montar a loja na frente. Agradava-lhe, porém, a mordomia oferecida pela generosa hospedeira. Continuaria lá por uns três meses, o tempo que fosse necessário. Achava melhor do que hotel ou pensão: tinha conforto e companhia. Mais tarde, de alguma forma, compensaria Marilinda, tão bondosa era, embora bem mais Mari do que linda fosse.

Terminada a construção, Godô montou estoque (secos, molhados, armarinhos, de um tudo), mobiliou a casa, mudou, abriu a loja, formou logo promissora freguesia. Sozinho de noite, sentia saudade; convidou então Marilinda para governanta. Ela aceitou chorando de feliz, saiu da “zona”, acomodou-se na casa do amigo. Trabalhava de cozinheira, arrumadeira, balconista, lavadeira. Terminado o expediente, acalorava o repouso do patrão.

Solteiro, solteirão para bem dizer, com seus quarenta e tantos, ele jamais se casara. Por falta de tempo, dizia. Homem trabalhador, desde muito moço vinha juntando para se estabelecer num lugar de futuro. Ora se deu, todavia, que Marilinda um dia súbito embarrigou. O passado dela, mais por precisão do que por sem-vergonhice, não era lá essas coisas, desde menina na difícil vida-fácil. Mas coração puro estava ali, mulher leal, de serventia total, nunca reclamava, nada exigia, era toda uma oferta constante de trabalho e ternura ao patrão, agora futuro pai do seu primeiro filho, acidentalmente gerado.

Godô não ficou bravo não. Antes se emocionou até, com a ideia de ganhar herdeiro. Abraçou a companheira, abriu um vinho. Mas a situação dos dois não poderia continuar daquele jeito, a criança teria que nascer em lar organizado, era urgente providenciar o casamento nos conformes da lei, da fé e dos costumes, o passado dela pouco importaria.

Providenciou roupas melhores para a noiva, matriculou-a na escola para aprender as letras, as contas e os bons modos. Queria a mãe do seu filho devidamente transformada em dama,  que deveras ela  merecia,  tão  dedicada  a  ele  desde  o  dia  em  que ali chegara desospedado  e  cansado.  Era a amiga,  a  confidente,  a  servidora,  a  parceira  de  cama   e conversa. Seria injustiça descartá-la, agora que os negócios vinham rendendo e ela trazia no ventre a continuação dele, o filho não encomendado porém bem-vindo.

O bebê nasceu direitinho, e macho. A mãe queria o nome de Godozinho, o pai preferiu José, homenagem ao avô que o criara. Marilinda teve mais quatro, formando com José bonita prole de três meninos e duas meninas. A loja crescendo sempre, junto com a cidade. Godô agora barrigudo, cabeça calva, prestígio grande no lugar, vereador, diretor de várias entidades, só não o lançaram candidato a prefeito porque ele de fato não quis: temia perder fregueses. Aceitou ser presidente do orfanato: queria ajudar as crianças pobres, principalmente as filhas de mães solteiras. Heroicas mulheres, dizia, dando Marilinda como exemplo. Ela teve a sorte de se casar; outras no entanto lutavam sozinhas, marginalizadas. O orfanato iria acolher suas crianças não encomendadas mas bem-vindas, como o José. E assim se fez.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor.

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 5



1
Abaixa teu dedo em riste
e, antes que alguém, te descubra...
Sente a humildade que existe
nas cores da tarde rubra!
2
Afasta indignos clamores,
e falsas juras secretas,
que em meio a tantos pastores
há muitos falsos profetas!
3
A manhã, de alma serena,
e a tarde, de alma tristonha;
juntas, vão dosando a pena
da solidão de quem sonha!
4
Ao dedilhar minha lira,
bem cedo, ao romper da aurora,
a voz do vento suspira
gemendo como quem chora!
5
Ao fim da tarde, eu medito,
e percebo a contra gosto,
que a tristeza do infinito
se faz presente em meu rosto!
6
Ao rever a mocidade,
depois de velho e cansado...
Vi a sombra da saudade
nas cinzas do meu passado!
7
À tarde, o que me apavora,
é ver que a melancolia
nos meus olhos também chora
nas horas finais do dia!
8
Buscando cores mais belas,
Deus ouvindo os meus apelos...
Pintou brancas aquarelas
nas telas dos meus cabelos!
9
Carrego em minha mochila,
um brinquedo, amigo e irmão:
Meu pião, que ainda cochila
quando gira em minha mão!
10
Carro-de-bois, teu gemido
fez no sertão nossa história;
teu canto triste e sofrido
é culto em nossa memória!
11
Cerejeira, não se zangue,
que as suas cores florais,
têm a cor rubra do sangue
da luta dos samurais!
12
Com vingança não se encerra
tudo que o mundo desfaz...
Em vez de pactos de guerra
façamos tréguas de paz!
13
Corrupção - é o lado injusto
da mente perversa, insana,
que esquece o preço do custo
do resto da raça humana!
14
Cruzando nossos destinos,
nossas mãos, guardam segredos,
que meus dedos peregrinos
vão revelando em teus dedos!
15
Descalça vai para a escola,
a menina, e não se cansa...
leva sonhos na sacola
e em cada passo a esperança!
16
É bem mais pesada a cruz
que arrasta o velho andarilho,
quando o olhar quase sem luz,
é a luz dos olhos do filho!
17
Guardo esta velha cartilha
que foi luz dos olhos teus,
como centelha que brilha
nas trevas dos olhos meus!
18
Esquece a angústia incontida,
ama esse doce quebranto;
que em cada etapa da vida,
há lágrima, há riso e pranto!
19
Jangada - nos teus acenos,
não há sinais de maldade...
Mas em teus gestos serenos,
oceanos de saudade!
20
Mantém as mãos estendidas,
não firas outros irmãos...
Vê na cruz, que há mãos feridas
pelo perdão de outras mãos!
21
Mesmo por rumos incertos,
com Deus, fiz minha aliança:
Fazer dos braços abertos,
a grande cruz da esperança!
22
Nos braços de alguém que sonha,
ouço uma voz aos pedaços
de uma viola tristonha,
com saudade de outros braços!
23
O pão da vida é melhor,
e a massa cresce e se espalha,
tendo o sabor do suor
do rosto de quem trabalha!
24
O velho ancião, em seus passos,
já se arrasta entre os escombros,
como quem se entrega aos braços
da cruz que pesa em seus ombros!
25
O vento que beija a flor,
no galho onde a flor se arrancha,
nem deixa marcas no amor,
nem deixa mágoas nem mancha!
26
Quando a noite me tortura,
e a solidão me aquartela,
o vento triste murmura
soletrando o nome dela!
27
Quando a paixão me incendeia,
entre os gradis do meu teto...
Apago a luz da candeia
e acendo o fogo do afeto!
28
Quando, no amor, eu me aperte,
começo a fazer resumos...
Em busca de um rumo certo
para o amor que não tem rumos!
29
Sabiá, teu triste canto,
no alçapão que te prendeu,
em mim, dói do mesmo tanto
que em ti, tanto já doeu!
30
Se a seca, com seus ressábios,
deixa mil sonhos vazios...
Decreta a morte nos lábios
das margens secas dos rios!
31
Se há heróis, que se eternizam,
sendo sombras de outros sóis...
Na vida, todos precisam,
gravar seus atos de heróis!
32
Se placas mais luminosas
dão brilho a lutas inglórias...
Há derrotas dolorosas
que ofuscam falsas vitórias!
33
Sino!... Por que tanto alarde?
Há mais pranto em teu cantar...
Se és mesmo o pastor da tarde,
a tarde não quer chorar!

Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó/RN: Ed. do Autor, 2018.
Livro enviado pelo autor.

Rachel de Queiróz (O Quente e o Apertado)


Sempre defendi com paixão a teoria de que o homem não nasceu para viver nestas imensas cidades — formigueiros onde se concentra. Que a natureza humana pede espaços abertos, as distâncias curtas, os ares limpos, o viver natural do campo.

Mas outro dia essas minhas crenças — que na verdade exprimem as preferências mais veementes do meu coração — viram-se abaladas depois da leitura de um artigo não assinado, em jornal. Dizia o anônimo articulista que, ao contrário do que se clama, o homem não gosta de viver no campo, realmente detesta viver no campo. Que o homem acima de tudo é um animal gregário e só lhe apraz andar em bandos e enxames, como formigas ou abelhas.

A gente pensando — vai ver que é isso mesmo. O maior castigo que se pode impor a um homem é a solidão. Pior que os açoites ou correntes, há o castigo intolerável: o confinamento solitário. A natureza profunda do ente humano repugna ver-se isolada do convívio dos seus semelhantes, e o pior de todos os castigos é aquele que fere a nossa natureza profunda.

Vê-se aquele horror de pessoas amontoadas nas horas do rush nos trens da Central — é horror sim, mas logo se descobre que as pessoas gostam daquilo. Senão, davam um jeito. Não se dá jeito a coisas mais difíceis? Mas sentir-se amontoado, compactamente aglutinado, perdida a nossa identidade dentro do grupo, disso, obscuramente é que se gosta.

Que é que o homem entende por divertimento? Carnaval, procissão, barraquinha, quermesse, parada, baile: — aperto, multidão.

Recordo uma noite de carnaval no velho Highlife, tanta gente pulando no salão que dava para desmaiar. Chamamos nosso primo que viera conosco:

— Vamos para o jardim, aqui está quente e apertado demais!

E o primo, enxugando o suor do rosto, vermelho e sem fôlego, deixando-se arrastar por um tentáculo de cordão que ia passando perto:

— Mas eu gosto é de quente e de apertado!

É isso a gente: o quente e o apertado.

O camponês vive nos seus matos e só tem uma ideia: fugir dali, largar aquelas brenhas e aquela solidão, procurar a cidade, a aglomeração humana. Então deixa o sertão e a serra e se tocam todos, ele e os demais, para Rio e São Paulo, qualquer cidade grande, em procura de vida melhor, sim, mas principalmente em busca daquela atração maior de todas: a pululante companhia humana.

Aliás, pensando bem, a gente só se engana com isso porque quer. Desde os começos do tempo que o homem se agrega, se amontoa. Partindo do casal logo se chega à família, à tribo, à horda, ao povo, à nação, ao império. Quanto mais gente, melhor. O objetivo é congregar, uns porque aspiram a dominar os mais, que aceitam ser dominados conquanto a dominação lhes permita continuarem como unidades do rebanho. Rebanho: está aí o que o homem gosta de ser. Inventa palavras bonitas, nacionalismo, catequese, divisão dos frutos da civilização; mas o que ele quer mesmo é a proximidade, o toque, o cheiro, o convívio do chamado próximo. Bem próximo. A inefável promiscuidade.

Desde o índio. Toda a mata é deles, são uns poucos milhares, às vezes poucas centenas. Porque não se espalham para a caça e a pesca cada um com o seu arco e o seu landuá? Qual, têm que viver amontoados, juntam-se em ocas coletivas onde a tribo inteira dorme mais apertada do que marinheiros num porão de navio.

E as cidades antigas, dos hititas à Idade Média? Em qualquer cabeça de morto levantavam um muro em círculo e toca a apinhar gente ali dentro, As ruas eram corredores, os andares se trepavam uns sobre os outros. Não foram os americanos que inventaram as moradas coletivas, superpostas indefinidamente: já as havia no burgo medievo, já as havia em Roma e na Babilônia. Os americanos, dispondo de melhor técnica, apenas lhes aumentaram a altura.

E, falando em americano — por que dispondo eles de toda a vastidão do continente, foram se amontoar aos milhões dentro da pequena ilha de Manhattan, entre os dois braços de um rio? E de tal forma se multiplicaram e comprimiram que, literalmente, espirraram para o ar? Não foi necessidade de defesa, nem escassez territorial, nem riqueza especial daquele solo — ali eram apenas uns alagadiços doentios. Foi mesmo a atração da promiscuidade.

E favela? Por que, tendo em redor o morro inteiro, os barracos se apertam uns sobre os outros num espaço mínimo?

E rei? Pra fugir à solidão da grandeza, reúne multidões na sua corte. O palácio de Versalhes era uma aldeia formigante.

É inútil clamar e reagir contra a megalópole, pois para ela é que o mundo anda. Só quem ama o campo e deseja viver no mato em solidão, são alguns poucos excêntricos, misantropos, intelectuais sofisticados. O resto da massa humana, Deus lhe botou na alma o mesmo instinto gregário da abelha, que só sabe, só quer viver concentrada na colmeia, cada uma no seu alvéolo. Nem que morra por isso.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Varal de Trovas n. 152


Nota:
A busca da chamada Terra Sem Mal é uma constante no jeito de ser e da concepção de mundo do povo Guarani. É um lugar intocado onde não existe nem rivalidades, violência e falta de reciprocidade. Um espaço mítico onde o teko porã (“bom proceder”) predomina em relação ao teko marã (“mal proceder”) e o mba’e meguã (“coisa má”) simplesmente inexiste. (Fonte: Terra sem Males)