terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 2


A Noite — irmã da Saudade,
dela um dia alguém já disse:
Tão curta na mocidade,
como é longa na velhice...!
*
As alegrias e as dores
seguem os mesmos caminhos:
são iguais àquelas flores
que a gente colhe entre espinhos.
*
As maiores despedidas
são mudas. A gente sabe
que o que coube em duas vidas
numa palavra não cabe.
*
A trova para ser bela
não pode ser complicada.
Ela deve ser singela,
dizer tudo, em quase nada.
*
Com amor tu me dizias:
''tudo podes, tudo eu posso".
Ai de nós, tu te esquecias
que este mundo não é nosso!
*
Entre mim e ti havia
o tempo nos separando:
tu eras meu dia-a-dia,
eu era teu quando-em-quando.
*
Eu creio que Deus existe
nas profundezas do Amor,
quando num pântano triste
vejo nascer uma flor.
*
Há mãos que colhem as rosas...
há mãos cruéis que magoam.
Benditas as mãos rugosas,
trêmulas mãos que abençoam!
*
"Homem não chora'' e com isto
muita gente se enganou.
O maior homem foi Cristo,
e quantas vezes chorou...
*
Jamais o mal será eterno
para quem, em doce espera,
semeia no seu inverno
as rosas da primavera.
*
Já te quis, glória fugaz...
Já te amei, mundo inclemente...
Hoje quero e peço: Paz!
Como o tempo muda a gente.
*
Mocidade! Sonho, enredo,
tempo fugaz de uma flor.
Cada sorriso é um segredo,
cada segredo é um amor.
*
Muita gente há que não sabe
se uma trova tem valor.
Mas ela inteirinha cabe
na alma do trovador.
*
Não sei de vitórias plenas
em batalhas que não vi.
Mas sei de glórias serenas
nas lutas que já venci,
*
Na voz de um sino que tange
no dobre final da hora,
há sempre a ceifa do alfange
e um anjo que canta e chora.
*
No cair das tardes calmas
há tanta melancolia!
Parece que as próprias almas
soluçam no fim do dia!
*
No outono da vida a gente
não conta o tempo em auroras;
vai contando, tristemente,
na breve fuga das horas.
*
O amor é um raio profundo
de luz numa solidão.
Se não vale inteiro um mundo
vale, ao menos, a ilusão,
*
Por longos anos viveu.
Seu destino foi tão lindo!
Minha Mãe nunca sofreu
porque as mães choram sorrindo...
*
Quando Deus me pôs na alma
a humildade da alegria,
deu-me a bênção, deu-me a palma
deu-me o dom da poesia.
*
Quando vislumbro a procela
nas nuvens, em céu tristonho,
eu me debruço à janela
e abro a cortina do sonho.
*
Saudade! Tu és somente
a visita inesperada
que bate á porta da gente
depois da festa acabada.
*
Se a Esperança é uma quimera
mas pode alegrias dar,
é feliz sempre o que espera
porque viver é esperar!
*
Sempre em busca de uma flor
onde minha mão alcança,
se perco a rosa do Amor
colho o Lírio da esperança!
*
Senhor! Em prece conclamo:
(eu sei que tudo tem fim)
poupa-me ver os que amo
morrerem antes de mim.
*
Seu olhar curioso brilha,
quer ser moça a pequenina.
Se soubesses, minha filha,
como é linda ser menina!
*
Sorria na mocidade!
De risos faça um buquê.
breve virá a saudade
para chorar com você.
*
Vejo Deus na pura lida,
na humildade do caminho;
nas coisas simples da vida,
na Mãe que embala o filhinho!
*
Velhice ! Final de festa,
quando um triste violão
tange em surdina a seresta
nas cordas da solidão!

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

Contos e Lendas do Mundo (Dinamarca: O Príncipe-Veado)

Era uma vez um viúvo e uma viúva que casaram um com o outro. Cada um deles tinha uma filha — a do marido era formosa e elegante e a da mulher muito feia. A viúva tinha inveja da enteada, por ser muito mais bonita que a sua filha, pelo que passava o tempo a pensar como a podia prejudicar, e tratava-a pessimamente. O marido permanecia quase todos os dias fora de casa, de manhã à noite, razão pela qual não se achava muito informado sobre a situação da jovem.

Uma noite, quando já estavam todos deitados, bateram à porta, e a mulher disse à filha que fosse ver quem era. Como esta não se mostrasse muito entusiasmada em obedecer, a enteada ofereceu-se para o fazer, mas não lhe permitiram, pois a mulher desejava que fosse a filha. Por conseguinte, a jovem retirou o ferrolho, abriu a porta e viu um veado ou algo parecido. Sem perda de um segundo, pegou numa vassoura e fez menção de o agredir, conseguindo assim pô-lo em fuga. Depois, fechou de novo a porta e foi contar o sucedido à mãe.

Na noite seguinte, quando se preparavam para aferrolhar a porta, voltaram a bater, mas desta vez a filha da mulher não se atreveu a ir abrir, e ninguém se opôs a que o fizesse a enteada, à qual se deparou com o mesmo veado.

— Coitadinho — murmurou ela. — De onde vens?

— Sobe para o meu dorso, menina! – indicou o veado.

Mas ela disse que não estava disposta a fazê-lo, pois já tinha dificuldades suficientes ao carregar consigo próprio. O veado explicou que era a única maneira de o poder acompanhar, perante o que ela subiu em seu dorso — pois não queria continuar em casa — e partiram.

Pelo caminho, chegaram a uma planície, e ele perguntou:

— Que dirias se, um dia, nos pudéssemos divertir aqui?

No entanto, a jovem não conseguia conceber como ambos poderiam se divertir naquele prado. Finalmente, chegaram a um enorme palácio. O veado introduziu a companheira e disse-lhe que, dai em diante, teria de viver lá completamente só, mas teria todos os desejos realizados, e que tentasse passar o tempo o melhor que pudesse. Garantiu-lhe que, um dia, viria visitá-la e pediu que não entrasse num lugar em que havia três portas — uma de madeira, outra de cobre e a terceira de ferro. Não as devia abrir sob pretexto algum.

Entretanto, estava intimamente convencido de que seria a primeira coisa que faria.

Ela passou o resto do dia totalmente só. Chegou a noite e, na manhã seguinte, decidiu percorrer todo o palácio. Invadiu-a então uma vontade tão forte de abrir a porta de ferro, que não lhe pôde resistir. Fez-o e viu lá dentro dois homens que remexiam com as mãos e os braços uma caldeira de alcatrão, aos quais perguntou porque procediam assim sem usarem qualquer proteção. Eles responderam que estavam condenados a fazê-lo até que uma alma cristã lhes fornecesse algo para remexer o alcatrão. Sem hesitar, ela pegou numa acha, improvisou com ela uma espécie de colher plana e entregou-a aos homens.

O dia foi-se escoando e anoiteceu. Na manhã seguinte, ela ouviu muito barulho na corte e viu vários homens que davam de beber aos cavalos e numerosos serviçais a limpar as pratas. Todos estavam muito ocupados e moviam-se de um lado para o outro. A jovem teve então vontade de abrir a segunda porta. Era a de cobre, e viu duas raparigas que atiçavam uma chama com as mãos. Perguntou-lhes porque o faziam e responderam que tinham sido condenadas a proceder assim até que uma alma cristã lhes fornecesse alguma coisa para substituir as mãos. Sem hesitar, ela foi buscar uma barra de ferro, que lhe agradeceram com gratidão.

Na manhã seguinte, todo o palácio estava cheio de moças, que varriam, lavavam e punham tudo em ordem. Deixou o dia decorrer sem fazer nada, mas, a certa altura, não se pôde conter mais — tinha de abrir também a porta de madeira. Quando o fez, encontrou-se perante o veado num leito de palha e perguntou-lhe, naturalmente, porque estava ali deitado. Ele explicou que tinha de se conservar assim até que um alma cristã lhe limpasse a sujeira. Sem hesitar, a jovem pegou num molho de palha e começou a limpá-lo. A medida que o fazia, o veado transformava-se no príncipe mais atraente que ela jamais vira.

Depois, contou-lhe que todo o palácio tinha sido encantado, porém ela agora conseguira quebrar o feitiço, pelo que queria desposá-la, e foi uma boda extraordinária que se prolongou por vários dias.

Passado algum tempo, ele perguntou à esposa se queria convidar a madrasta e a filha e ela respondeu que sim, que gostaria muito de as voltar a ver. O marido disse então que não poderia estar presente, quando chegassem, e recomendou-lhe que, ao servir vinho ou qualquer outra coisa, deixasse cair uma gota no sapato. Ele apareceria então e a limparia. Além disso, advertiu-a de que não desse à madrasta nada que fosse uma, duas ou três coisas — tinham de ser mais de três, como cereais ou algo do gênero.

Quando a madrasta e a filha chegaram, a princesa — pois agora era princesa — mostrou-se muito atenciosa. Ofereceu-lhes vinho e deixou derramar uma gota no seu sapato dourado. No mesmo instante, surgiu o príncipe, que limpou a nódoa com o lenço. Se as outras ainda não estavam abismadas com o que as rodeava, ficaram-no sem dúvida quando o viram aparecer. Mais tarde, saíram ao jardim, e a madrasta empenhou-se em que a princesa lhe colhesse uma maçã, mas ela não quis. A mulher insistiu que queria maçãs que não fossem mais de três. No entanto, a princesa manteve a sua posição e disse-lhe que teria todas as que desejasse, quando estivessem maduras.

A outra ficou então furiosa. De regresso a casa com a filha, corroía-a a inveja de não ter sido esta a alcançar semelhante felicidade. Estava tão indignada, que não se conteve de a acusar culpada de tudo. A filha insurgiu-se e, palavra puxa palavra, acabaram por se puxar os cabelos, até que se desfizeram e converteram num monte de seixos rolados.

É este o motivo por que há tantos seixos rolados no mundo.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 185


Elisa Alderani (Sonho de Valsa)




Como é fácil deixar-se transportar em um tempo cronologicamente longínquo, escutando uma música; neste caso uma valsa. Tempo que, está vivo no agora, neste preciso instante. Um CD toca uma valsa...

Vejo-me menina, magra, de trancinhas apertadas, vestidinho simples, sempre de manguinha comprida com saia pregueada.

Lá estou eu, naquela pequena casa, sem luxo, frente a um magnífico jardim. Um pequeno aparelho de rádio tocando. Foi um presente de meu irmão mais velho que já trabalhava na fábrica da cidade. Comprado a prestação, fazia a alegria de minha mãe.

Ela amava ouvir programas musicais, consertos sinfônicos e música clássica, especialmente as valsas de Viena.

- Agora, agora, vem aqui "Lisute". Com este apelido ela me chamava, pegava-me pelas mãos e ensinava-me a dançar a valsa…

Assim, olha: "Um, dois, três, e um, dois, três"... O vestidinho rodado abria, eu fechava os olhos e sonhava estar em um lindo salão de baile, dançando com um príncipe. O vestido era de seda e o sapatinho de cristal... Igual a história de Cinderela.

A música acabava e tudo ficava como antes. Eu voltava contente ao brinquedo posto de lado e minha mãe retomava o trabalho deixado, voltava ao fogão, Ela sabia cozinhar muito bem, até os ingredientes mais simples se transformavam em pratos deliciosos; especialmente os doces e os bolos faziam a alegria na hora da merenda.

Acredito piamente que também ela, por um momento, a duração da valsa, viveu meu mesmo encanto, deixando-se transportar pelo lindo sonho de valsa...

A realidade de Cinderela iria reconduzi-la com um sorriso à nossa casinha pobre, mas cheia de paz e serenidade.

Fonte:
Elisa Alderani. Flores do meu jardim – Fiori del mio giardino. Edição bilingue. Ribeirão Preto/SP: Legis Summa, 2008.

Professor Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 6


A cruz que a pobre criança,
carrega sem perceber...
Tem os braços da esperança
e a luz do eterno viver!
*
Ama mais!... Sê mais feliz!...
Que esse amor, nas horas calmas,
será qualquer cicatriz
que dói no fundo das almas!
*
Aos ritos do amor se entrega
um casal apaixonado,
que até nos olhos carrega
o silêncio do pecado!
*
As borboletas formosas
imitando o beija-flor,
deixam nos lábios das rosas
eternos beijos de amor!
*
A tapera, no abandono,
afirma que em seu tormento,
sempre escuta a voz do dono
quando sopra a voz do vento!
*
À tarde, é que se descobre,
o quanto o sol nos afaga;
se apaga essa luz tão nobre
só a saudade não se apaga!
*
Desde minha juventude
que eu faço versos feliz...
Já fiz todos quanto pude,
mas o que eu quero, não fiz!
*
Essas roseiras viçosas
que a mão de Deus recupera,
nos dão de presente as rosas
que eclodem na primavera!
*
Faz ó Deus, que eu seja forte.
que em mim, brilhe a eterna Luz!
Que até meu fim, que eu suporte
os braços de minha cruz!
*
Fostes primavera em flor,
ó, mãos, na infância da idade!…
E hoje, no outono do amor,
sois estações de saudade!
*
Graças a Deus!... Minha aurora,
me reflete a mesma luz
daquela Estrela, que outrora,
brilhou nos braços da cruz!
*
Meu sertão não tem floresta,
é pobre o pó deste chão...
Mas esta paz que me empresta
me faz amar meu sertão!
*
Muito além, das nuvens densas,
do azul, desse mundo assim...
Reside o Pastor das crenças
desse Infinito sem fim!
*
Nas nuvens, da cor de neve,
com tinta rubra e dourada...
Deus mostra a paz que descreve
os arrebóis da alvorada!
*
Na tapera abandonada,
toda noite, a vela acesa...
Mostra a saudade sentada
repartindo o pão na mesa.
*
Na velha praça, à distância,
escuto um grito de dor,
da sombra de minha Infância
juntando cacos de amor!
*
Nossa vida se assemelha
à flacidez de uma vela,
que o tempo, a cada centelha,
enruga a beleza dela!
*
Ouvindo a voz do acalanto
dos fados sentimentais,
tentando acalmar meu pranto
dobrei a dor dos meus ais!
*
Quando a aurora adormecida,
rasga o ventre da alvorada...
Ouve-se o choro da vida
nos braços da madrugada!
*
Quando a noite me conduz,
minha inspiração vagueia
sob a neblina de luz
dos raios da lua cheia!
*
Quando nasce uma criança,
Deus vem do céu, para vê-la.
É uma estrela de esperança
enchendo a vida de estrela!
*
Quem és tu? fala destino,
aonde vais, de onde vens?
Sou teu viver peregrino,
dono de tudo que tens!
*
Se alguém me ferir, não ligo;
só perdoar me convém!...
Perdão - resposta e castigo
a quem coração não tem!
*
Se as rimas são maltrapilhas,
assumo os versos que faço...
No passo das redondilhas,
eu tento acertar meu passo!
*
Sem mágoa e sem dissabor,
onde eu pisar neste chão…
Que brote a rosa do amor,
nunca a flor da solidão!
*
Se na fé, tu te assemelhas,
ao justo Mártir da cruz...
Serás luz, entre as centelhas,
de outras centelhas de luz!
*
Sozinho!... E, no velho outono
da vida, na noite fria!...
A nostalgia, sem sono,
me esquenta a noite vazia!
*
Teu adeus trouxe os tormentos,
e com tanta fugacidade...
Que até nos uivos dos ventos
escuto a voz da saudade!
*
Uma aranha tão singela,
nada faz, que a nada ofenda;
é uma tecelã tão bela
que dorme em rede de renda!
*
Usando as tintas mais belas,
curto os sonhos de menino.,.
Pintando vergéis nas telas
dos arrebóis do destino!
*
Vai com fé, que a vida é bela,
se crês filho, a paz te alcança;
que a fé brilha, e o brilho dela,
mantém acesa a esperança!

Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.

Rachel de Queiroz (A Casa e a Máquina)

    
Dentro das nossas casas de cimento e vidro escutamos os protestos do Ministro de Minas e Energia Shigeaki Ueki e sentimos o consolo da sua ilustre solidariedade.

Mas creio que já vem tarde. Por esta fase da civilização, pelo menos, teremos que nos conformar em viver dentro das condições que nos são impostas pela moda arquitetônica  e ambiental. Novos ricos em lua-de-mel com a técnica, os homens de agora não acreditam mais em vida natural, o seu ideal de conforto e status é o que as máquinas lhes dão, sem se importarem com o que as máquinas lhes tomam.

     Maquinolatria. É esta a nova fé.

     O Ministro Ueki reclama e muito bem contra a arquitetura que domina o Brasil, agora; arquitetura que tem horror aos elementos naturais do ambiente e faz questão de manter os usuários dos seus prédios em condições rigorosamente artificiais, como se eles não ocupassem o seu habitat nativo, onde proliferam homens e bichos há uma dezena de milhões de anos, usando e adorando o Sol, eterna fonte de luz e vida. Os novos buracos de morar inventam-se não para homens sadios e criados no planeta Terra, mas para inquilinos de uma cápsula espacial ou uma colônia na Lua.

Aí está Brasília para quem quiser ver. Linda, claro, mas em alguns casos tão insensata que a gente até duvida.

Edifícios que crescem tanto debaixo do chão quanto por cima dele — e por que debaixo do chão? E tudo tão fechado em cima quanto embaixo. Tudo lacrado no vidro e no alumínio, para que um sopro de ar de fora não penetre.

E, como diz o ministro, tudo revestido de cortinas porque há que tapar a transparência do vidro que deixa ver a luz do Sol e a paisagem exterior. A ideia, parece, é criar condições artificiais tão perfeitas, que o mesmo edifício possa ser construído na Groenlândia ou na África Equatorial, no Canadá e no Amazonas. sem nenhuma alteração importante.

O ar se aquece ou se esfria, conforme a necessidade, e tudo se faz por intermédio de máquinas, climatizadores, focos de luz, elevadores. Parece que esses arquitetos sofrem de horror e repugnância ao natural, e a concepção que têm de paraíso seria o universo de um robô.

Não entendem que a máquina deve ser apenas corretiva ou supletiva das falhas do ambiente natural, que o homem é um bicho da terra e não uma criatura de laboratório. A arte e a indústria podem lhe aliviar os desconfortos excessivos, mas não condicioná-lo à existência de um micróbio de proveta. Desde a hora em que nasce numa sala de partos esterilizada até que morre noutra sala igual, a de Tratamento Intensivo, o homem moderno é maquinizado. E vocês já pensaram que, com o tempo, isso pode começar a gerar monstros, numa etapa mutante robotizada, do velho homo sapiens criado do barro?

E depois como é caro. Em vez de uns milheiros de tijolos e alguma madeira que isolavam a morada contra o sol e a chuva, o calor e o frio, em vez do sábio jogo de janelas criando correntes cruzadas de ventilação, em vez do vidro usado apenas como pequena vidraça para admitir a luz dia — sim, em vez de em casas, nós praticamente vivemos em máquinas sofisticadas, dependendo em tudo da corrente elétrica a caríssima corrente elétrica. Além do custo da construção, pois, acrescente-se o custo da manutenção. E se a corrente elétrica dá o prego, então o mundo se acaba, é o caos, é o pânico, como aconteceu anos atrás em Nova lorque, no seu já histórico black-out.

E como é estúpido. Fortaleza, minha terra natal, lavada dos ventos da praia, tapa as janelas e liga o condicionador de ar! E tapa aquele sol radiante, acende o globo de luz. Nos navios, trancafia-se tudo, como num submarino, como se o miraculoso ar marinho, lá fora, fosse um gás letal. O bom é o ar de dentro, cheirando a tinta e a enjoo, viciado, depois de passar por todos os pulmões e todas as gripes de bordo.

Porém o exemplo mais gritante da Maquinolatria a gente vê é nos campos de futebol. Eles pagam ingresso caro, enfrentam as dificuldades do trânsito, a fim de assistirem ao jogo com os seus próprios olhos. E ficam o jogo todo com o rádio de pilha colado ao ouvido, para que o locutor lhes diga que é que eles estão vendo!
(30/12/1974)

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 184


Monteiro Lobato (O Avô do Crispim)


— Somos todos aqui uns pulhas, uns seixos rolados — dizia-me Crispim Paradeda. — Sabe o que é seixo rolado? Essas pedras de fundo de rio que de tanto baterem umas nas outras acabam sem arestas. A civilização nos iguala, nos arredonda, nos tira a coragem da originalidade. Ah, o meu avô Paradeda...

Impossível uma conversa com o Crispim sem que esse avô aparecesse. Dias antes contara-me como o homem viera de Portugal, fugido à polícia, sob o melhor disfarce da época: uma batina de jesuíta. Ao pôr pé na terra nova achou de bom conselho experimentar a vida de padre clandestino pelos sertões, e levou bom tempo assim. Fez comércio de relíquias; vendeu muito osso de santo e sobretudo “tabuinhas aplainadas por são José” — sem que ninguém lhe objetasse não haver plainas naquele tempo e serem de bacurubu aquelas tabuinhas, madeira inexistente na Terra Santa.

Quando as autoridades eclesiásticas lhe deram em cima, o homem já estava cheio de dobrões. Lançou então às urtigas a batina salvadora e, mudando de zona, apareceu no mundo como o major Crispim Paradeda, o mesmo nome do meu amigo.

Dias antes tinha-me o Crispim contado essa história — e ia contar outra.

Crispim nunca citava o avô sem “vir com uma”.

— Esta manhã fiz um péssimo negócio — disse ele —, unicamente porque não passo de um seixo rolado. Imagine que emprestei quinhentos mil-réis a um sujeito que além de não pagar dívidas se diverte em difamar os credores. Ah, se eu fosse como o meu avô!...

Um novo caso vinha vindo. Preparei-me para ouvi-lo.

— Meu avô, depois daquela patifaria da batina, que você conhece, enriqueceu com o capital juntado.

— Comércio de madeira, as tabuinhas, sei...

— Sim. Reduziu a tabuinhas todo um velho bacurubu do seu quintal e salvou-se. Em seguida mudou de negócio. Comprou tropas e depois terras. Afazendou-se. Aos sessenta anos era dono de muitos escravos, da excelente fazenda do Pinhal e de regular soma de ouro e prata em moeda, que escondia num cofre de cabiúna de grandes ferragens nos cantos. A arca! Começou a fazer empréstimos, mas os primeiros calotes induziram-no a arrepiar caminho.

“— Chega — disse consigo. — De hoje em diante ninguém me leva uma só pataca.

“Ora, aconteceu que justamente no dia seguinte lhe aparece pela fazenda um novo candidato ao seu dinheiro. O homem apeia, entra, explica-se. Meu avô recebe-o risonhamente, com cara de porta aberta.

“— Só cem patacas? — pergunta.

“Tais palavras, que nenhum dador de dinheiro jamais teve, estarreceu o pretendente, o qual, já em estado de levitação, elevou o montante a cento e cinquenta — ‘já que o major...’.

“— É indiferente, meu caro. Cem, cento e cinquenta ou duzentas. Por que não leva logo duzentas?

“Ficou assentado que o empréstimo seria de duzentas e vinte patacas, e depois de combinados os termos da transação, prazo e juros — prazo longo e juros baixíssimos —, entram os dois para o escritório a fim de porem o preto no branco. Enquanto meu avô abre a arca e religiosamente vai tirando as moedas, contando-as e empilhando-as sobre a mesa em montinhos de dez, o pretendente, radiante, totalmente levitado, traça a obrigação com as palavras sacramentais: ‘Devo que pagarei etc.’.

“Naquele tempo as coisas eram mais simples do que hoje. Bastava uma folha de papel — um papel levemente azulado, lembro-me ainda, sem selos. Papel manilha, creio...”

— Sei. Adiante.

— Pois é. O pretendente traça com ótima letra o “Devo que pagarei...”, assina e mostra-o a meu avô. O endiabrado velho põe os óculos, lê tudo demoradamente, reclama contra uma falha qualquer de redação e obriga o homem a repetir o escrito. Por fim concorda. Acha que o documento está perfeito.

“— Muito bem — diz então, esparramando-se na cadeira de braços, com uma das mãos sobre o documento. — Agora quero que o amiguinho (tinha a mania de tratar toda gente assim) repita as palavras que vou dizer: ‘O major é um ladrão!’.

“O radiante pretendente perde metade da radiância. Fica atônito. Não entende. Olha para meu avô com olhos arregalados e boca entreaberta.

“— Sim, amiguinho — continua o velho. — Repita o que eu disse: ‘O major é um ladrão!’.

“O assombro do ex-radiante pretendente sobe de ponto. Continua a não entender coisa nenhuma de coisa nenhuma. Gagueja. Sua na asa do nariz.

“— Vamos, repita o que eu disse — teima o velho —, pois do contrário não apanha os cobres. Levante-se. Fique ali no meio da sala e diga”: ‘O major é um ladrão!’.

“A cena prolonga-se por alguns instantes, até que a insistência de um supera a resistência do outro. E o pobre homem, muito desconchavado, repete desconvencidamente a frase da encomenda.

“— Assim não serve — reclama o meu avô. — Quero que diga isso com calor, com indignação, a cara bem vermelha, batendo o punho na mesa, assim: ‘O MAJOR É UM LADRÃO!’. Berrado, amiguinho. Bem berrado! Vamos! Ah, não quer? Pois nesse caso o negócio está desfeito — e faz menção de varrer para dentro da gaveta os deliciosos montinhos de patacas.

“A tal ponto o gesto assusta o arrasado pretendente que ele repete a frase ofensiva ainda com mais veemência do que a encomendada.

“O meu diabólico avô incha-se de gozo. Sorri inteirinho. Esfrega as mãos.

“— Ótimo! Exatamente como eu queria. Agora vai o amiguinho dizer mais alguma coisa. Vai dizer, com o mesmo calor, com outro soco na mesa, mais isto: ‘O major tira a camisa dos pobres!’.

“— Mas, major, eu... — protesta o homem, cada vez mais atrapalhado. — Não posso estar a dizer o que não penso. Conheço o major, sou seu amigo, sei da sua generosidade e, portanto...

“— Nada de desvios, amiguinho! Ou repete o que mando ou não fazemos o negócio — e pela segunda vez leva as mãos às patacas no gesto de varrê-las para o gavetão.

“A ameaça valeu. O triste pretendente declama, com a voz mais indignada que pode, aquele horror: ‘O MAJOR TIRA A CAMISA DOS POBRES!’. Bem berrado!...

“— Isso! — aprova o velho. — Está perfeito. Está exatamente no tom que o amiguinho vai adotar quando a obrigação vencer-se e eu mandar cobrá-lo. E o irá dizer pelas esquinas, nas vendas, nos chás do Chico Mendes — por toda parte onde encontrar desafetos meus ou ouvidos vadios. Resultado: fico sem minhas patacas e perco um excelente amigo. Ora, se vai ser assim, por que não podarmos o mal pela raiz? O meio é simples. Retenho as minhas patacas — e ao dizer isto varre-as para a gaveta — e o amiguinho fica lá com a sua obrigação. Tome-a...

“Maquinalmente o náufrago pegou o papel azul, enquanto ia ouvindo o doloroso som das moedas a caírem no gavetão.

“— Perder o meu dinheiro — concluiu o meu avô Paradeda — não me parece o pior, porque, graças a Deus, tenho-o de sobra. Mas perder um amigo? Isso nunca! Como tenho menos amigos do que patacas, zelo mais pela conservação deles do que delas.

“E, cinicamente, mudando de assunto:

“— Escute cá, amiguinho. Será verdade o que andam dizendo por aí do filho da Nhana Lisa com a enteada do coronel Xandó? Francamente, esse negócio não me cheira bem. Você, que acha?”

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

Nilsa Alves de Melo (Trovas Temáticas) 2

  • CACHORRO
Não pense jamais que é um chiste,
ou que à loucura concorro,
quando eu lhe disser que existe
a doce alma de um cachorro.

Ao vires o olhar tão triste
de um cachorro abandonado,
poderás dizer que viste
um bom anjo disfarçado.
  • CAMINHO
Não veja apenas o fado
das agruras do caminho;
um coração bem formado
vê valor em meio ao espinho.

Se, a caminho do desejo,
causar a alguém um sofrer,
desista, pois outro ensejo,
mais nobre, há de aparecer.

O caminho dos seus pais
não foi fácil como o seu;
não queira dizer jamais,
que deles você esqueceu.

O meu caminho, esta trilha,
fui eu mesmo quem tracei;
se nem tudo é maravilha,
perdi menos que ganhei.

Vamos seguir o caminho,
caminho do bem-querer,
bem-querer, tirando o espinho,
o espinho que faz sofrer.
  • CÉU
Se almeja um céu que há de vir,
poderá o sentir bem perto,
se da vida usufruir
de alma livre e peito aberto!

É bem profícuo exercício,
em um caos, reconhecer
pedaços de um céu propício
para amar e conviver.

Quando parte uma alma boa,
sua partida é chorada,
mas lá no céu um anjo entoa:
– Bem-vinda, recém-chegada!
  • CIDADE
A cidade dos meus sonhos
não precisa ser tão grande;
deve ter rostos risonhos
e gente que o amor expande.

Cidade compartilhada
por todos, nem um a menos,
é a grande graça almejada
pelos grandes e pequenos.

Por que chorar vida afora,
a cidade que deixou?
É esta em que vive agora
que a vida lhe reservou.
  • CIGANO
Era um cigano andarilho,
já sabias de antemão;
não andaria no trilho
nem preso ao teu coração.
  • CORRUPÇÃO
O corrupto se associa
ao corruptor, seu igual,
e, corrompido, inicia
a corrupção — grande mal!

Corrupto! Da corrupção
que drena o sangue dos teus,
prestarás conta, atenção:
- Aos brasileiros e a Deus.

A corrupção, grande crime,
assola o Brasil inteiro;
de qualquer culpa se exime
o corrupto traiçoeiro.
  • CRIANÇA
Conservar em si aquela
singeleza da criança
demonstra sua mais bela
e mais valiosa herança.

Não exija da criança
ter do adulto uma postura;
no tempo certo ela alcança
voar em maior altura.

Do pássaro não corte a asa
que lhe dá o dom de voar.
Não corte a graça que embasa
da criança o doce olhar.

Fonte:
Nilsa Alves de Melo. Temas, versos e trovas. Maringá/PR: Massoni, 2018.

Carlos Drummond de Andrade (Como Comecei a Escrever)


Aí por volta de 1910 não havia rádio nem televisão, e o cinema chegava ao interior do Brasil uma vez por semana, aos domingos. As notícias do mundo vinham pelo jornal, três dias depois de publicadas no Rio de Janeiro. Se chovia a potes, a mala do correio aparecia  ensopada, uns sete dias mais tarde. Não dava para ler o papel transformado em mingau.

Papai era assinante da Gazeta de Notícias, e antes de aprender a ler eu me sentia fascinado pelas gravuras coloridas do suplemento de domingo. Tentava decifrar o  mistério das letras em redor das figuras, e mamãe me ajudava nisso. Quando fui para a escola pública, já tinha a noção vaga de um universo de palavras que era preciso conquistar.

Durante o curso, minhas professoras costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de escrever uma carta, narrar um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse  dever, que me permitia aplicar para determinado fim o conhecimento que ia adquirindo  do poder de expressão contido nos sinais reunidos em palavras.

Daí por diante as experiências foram-se acumulando, sem  que  eu percebesse que  estava  descobrindo a literatura. Alguns elogios da professora me animavam a continuar. Ninguém falava em conto ou poesia, mas a semente dessas coisas estava germinando. Meu irmão, estudante na Capital, mandava-me revistas e livros, e me habituei a viver entre eles.

Depois, já rapaz, tive a sorte de conhecer outros rapazes que também gostavam de ler e escrever.

Então, começou uma fase muito boa de troca de experiências e impressões. Na mesa do café, sentado (pois tomava-se café sentado nos bares, e podia-se conversar horas e horas  sem incomodar nem ser incomodado) eu tirava do bolso o que escrevera durante o dia, e  meus colegas criticavam. Eles também sacavam seus escritos, e eu tomava parte nos comentários. Tudo com naturalidade e franqueza. Aprendi muito com os amigos, e tenho pena dos jovens de hoje que não desfrutam desse tipo  de amizade crítica.

Fonte:
Para gostar de ler. Vol. 4.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 183


Monteiro Lobato (A Menina do Leite)


Laurinha, no seu vestido novo de pintas vermelhas, chinelos de bezerro, treque, treque, treque, lá ia para o mercado com uma lata de leite à cabeça – o primeiro leite da sua vaquinha mocha. Ia contente da vida, rindo-se e falando sozinha.

– Vendo o leite – dizia – e compro uma dúzia de ovos. Choco os ovos e antes de um mês já tenho uma dúzia de pintos. Morrem... dois, que seja, e crescem dez – cinco frangas e cinco frangos. Vendo os frangos e crio as frangas, que crescem, viram ótimas chocadeiras de duzentos ovos por ano cada uma. Cinco mil ovos! Choco tudo e lá me vêm quinhentos galos e mais outro tanto de galinhas. Vendo os galos. A 2 cruzeiros cada um – 2 vezes 5, 10... 1.000 cruzeiros!... Posso então comprar doze porcas de cria e mais uma cabrita. As porcas dão-me, cada uma, seis leitões. Seis vezes 12...

Estava a menina neste ponto quando tropeçou, perdeu o equilíbrio e, com lata e tudo, caiu um grande tombo no chão.

Pobre Laurinha!

Ergueu-se chorosa, com um ardor do joelho esfolado; e enquanto sacudia as roupas sujas de pó viu sumir-se, embebido pela terra seca, o primeiro leite da sua vaquinha mocha e com ele os doze ovos, as cinco chocadeiras, os quinhentos galos, as doze porcas de cria, a cabritinha – todos os belos sonhos da sua ardente imaginação...
_________________________________

Emília bateu palmas.

– Viva! Viva a Laurinha!... No nosso passeio ao País das Fábulas tivemos ocasião de ver essa história formar-se – mas o fim foi diferente. Laurinha estava esperta e não derrubou o pote de leite, porque não carregava o leite em pote nenhum, e sim numa lata de metal bem fechada. Lembra-se, Narizinho?

A menina lembrava-se.

– Sim – disse ela. – Lembro-me muito bem. A Laurinha não derramou o leite e deixou a fábula errada. O certo é como vovó acaba de contar.

– Está claro, minha filha – concordou Dona Benta. – É preciso que Laurinha derrame o leite para que possamos extrair uma moralidade da história.

– Que é moralidade, vovó?

– É a lição moral da história. Nesta fábula da menina do leite a moralidade é que não devemos contar com uma coisa antes de a termos conseguido.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Lóla Prata (Acróstico)


As letras iniciais dos versos formam nome de pessoa ou coisa. A partir desse nome que se pretende comentar, compõem-se os versos. As rimas e a observância da métrica são opcionais.

Acrósticos (e congêneres) podem ser em seu contexto: biográficos, históricos, comemorativos, filosóficos, didáticos, de boas-vindas, em forma de prece, etc. Poesia visual.


ORIGEM DOS ACRÓSTICOS - de Silvia Araújo Motta

O acróstico é uma poética composição
Rimada, na qual. livremente ou não,
Impõe um conjunto de letras iniciais
Garantidas mediais, cruzadas ou finais,
Em que a leitura vertical ou diagonal
Muitas vezes forma uma palavra ou frase.

Desde os Séculos V e VI, nos oráculos,
O grego Epicarmo já fazia acrósticos.
Surgia também nos epigramas funerais.

A frase "Jesus Cristo, filho de Deus e Salvador"
Contém o mais célebre acróstico “ICHTHUS"
Realmente escrito no século IV: "PEIXE"
O maior símbolo místico do Cristianismo;
Sua autoria foi atribuída a Lactâncio e Eusébio.
Tantos por Ênio em Roma. Comodiano de Gaza,
Idade Média, e os feitos na poesia métrica latina.
Com Hinos na poesia inglesa de John Davies
Os adeptos portugueses; Camões, Garcia Rezende...
Sinal Acadêmico do Padre Antônio de Oliveira, Edgar Poe.

Houve acrósticos em prosa, com as letras do começo de cada parágrafo. e se chegou à verdadeira mania de acrósticos nos tempos do barroco,

O cantor e compositor Roberto Carlos contribuiu para o enriquecimento e popularização dos acrósticos. Compôs a música cuja letra diz:


Mais que a minha própria vida
Além do que eu sonhei pra mim
Raio de luz
Inspiração
Amor, você é assim

Rima dos versos que eu canto
Imenso amor que eu falo tanto
Tudo pra mim
Amo você assim
 
Meu coração
Eternamente
Um dia eu te entreguei

Amo você
Mais do que tudo eu sei
O sol
Raiou pra mim quando eu te encontrei
________________________________________________

Acróstico = letras iniciais

Mesóstico = letras mediais

Teléstico = letras finais

Diacróstico = letras iniciais e mediais

_________________________________________
ACRÓSTICO ALFABÉTICO

O Salmo 119 (118), AT da Bíblia, grande meditação sapiental sobre a Lei de Deus, segue na composição literária, o artifício do acróstico alfabético.

Levando essa técnica à sua máxima expressão: são 22 estrofes com 8 versos cada uma, e cada verso começa com a mesma letra do alfabeto hebraico.

Exemplificando: Em nosso idioma, todos os versos da la. estrofe se iniciariam com a letra A. Segunda estrofe, todos os versos com B. Terceira, com C, etc.

Além disso, cada estrofe contém vários sinônimos de Lei: palavra, promessa, normas, vontade, estatutos, preceitos, testemunhos, mandamentos, verdade.

A palavra "salmo" quer dizer oração cantada e acompanhada com instrumentos musicais. É poesia em versos que expressa os sentimentos diante da realidade da vida.

Coleção dos salmos = saltério.

Davi foi mestre de canto da corte do rei Saul, a quem sucedeu no trono de Israel. Quando Saul recebia "um espírito mau" (insatisfação pessoal...), restaurava-se ao som da harpa e dos poemas de Davi, autor da maioria dos salmos.

Época dos Reis israelitas: 971 a 561 a. C., dado histórico que contraria a tese de que a modalidade acróstico teria surgido no século V.

É bem mais antigo…


Fonte:
Lóla Prata. E eu sei fazer versos? Bragança Paulista/SP: ABR, 2011.

Livro (Origens e Produção)


Livro é um volume transportável, composto por páginas, sem contar as capas, encadernadas, contendo texto manuscrito ou impresso e/ou imagens e que forma uma publicação unitária (ou foi concebido como tal) ou a parte principal de um trabalho literário, científico ou outro.

Em ciência da informação o livro é chamado monografia, para distingui-lo de outros tipos de publicação como revistas, periódicos, teses, tesauros, etc.

O livro é um produto intelectual e, como tal, encerra conhecimento e expressões individuais ou coletivas. Mas também é nos dias de hoje um produto de consumo, um bem e sendo assim a parte final de sua produção é realizada por meios industriais (impressão e distribuição). A tarefa de criar um conteúdo passível de ser transformado em livro é tarefa do autor. Já a produção dos livros, no que concerne a transformar os originais em um produto comercializável, é tarefa do editor, em geral contratado por uma editora. Uma terceira função associada ao livro é a coleta e organização e indexação de coleções de livros, típica do bibliotecário.

HISTÓRIA DO LIVRO

A história do livro é uma história de inovações técnicas que permitiram a melhora da conservação dos livros e do acesso à informação, da facilidade em manuseá-lo e produzi-lo. Esta história é intimamente ligada às contingências políticas e econômicas e à história de ideias e religiões.

Antiguidade

Na Antiguidade surge a escrita, anteriormente ao texto e ao livro. A escrita consiste de código capaz de transmitir e conservar noções abstratas ou valores concretos, em resumo: palavras. É importante destacar aqui que o meio condiciona o signo, ou seja, a escrita foi em certo sentido orientada por esse tipo de suporte; não se esculpe em papel ou se escreve no mármore.

Os primeiros suportes utilizados para a escrita foram tabuletas de argila ou de pedra. A seguir veio o khartés (volumen para os romanos, forma pela qual ficou mais conhecido), que consistia em um cilindro de papiro, facilmente transportado. O "volumen" era desenrolado conforme ia sendo lido, e o texto era escrito em colunas na maioria das vezes (e não no sentido do eixo cilíndrico, como se acredita). Algumas vezes um mesmo cilindro continha várias obras, sendo chamado então de tomo. O comprimento total de um "volumen" era de c. 6 ou 7 metros, e quando enrolado seu diâmetro chegava a 6 centímetros.

O papiro consiste em uma parte da planta, que era liberada, livrada (latim libere, livre) do restante da planta - daí surge a palavra liber libri, em latim, e posteriormente livro em português. Os fragmentos de papiros mais "recentes" são datados do século II a.C.

Aos poucos o papiro é substituído pelo pergaminho, excerto de couro bovino ou de outros animais. A vantagem do pergaminho é que ele se conserva mais ao longo do tempo. O nome pergaminho deriva de Pérgamo, cidade da Ásia menor onde teria sido inventado e onde era muito usado. O "volumen" também foi substituído pelo códex, que era uma compilação de páginas, não mais um rolo. O códex surgiu entre os gregos como forma de codificar as leis, mas foi aperfeiçoado pelos romanos nos primeiros anos da Era Cristã. O uso do formato códice e do pergaminho era complementar, pois era muito mais fácil costurar códices de pergaminho do que de papiro.

Uma consequência fundamental do códice é que ele faz com que se comece a pensar no livro como objeto, identificando definitivamente a obra com o livro. A consolidação do códex acontece em Roma, como já citado. Em Roma a leitura ocorria tanto em público (para a plebe), evento chamado recitatio, como em particular, para os ricos. Além disso, é muito provável que em Roma tenha surgido pela primeira vez a leitura por lazer (voluptas), desvinculada do senso prático que a caracterizara até então. Os livros eram adquiridos em livrarias. Assim aparece também a figura do editor, com Atticus, homem de grande senso mercantil. Algumas obras eram encomendadas pelos governantes, como a Eneida, encomendada a Virgílio por Augusto.

Acredita-se que o sucesso da religião cristã se deve em grande parte ao surgimento do códice, pois a partir de então tornou-se mais fácil distribuir informações em forma escrita.

Idade Média

Na Idade Média o livro sofre um pouco, na Europa, as consequências do excessivo fervor religioso, e passa a ser considerado em si como um objeto de salvação. A característica mais marcante da Idade Média é o surgimento do monges copistas, homens dedicados em período integral a reproduzir as obras, herdeiros dos escribas egípcios ou dos libraii romanos. Nos mosteiros era conservada a cultura da Antiguidade. Apareceram nessa época os textos didáticos, destinados à formação dos religiosos.

O livro continua sua evolução com o aparecimento de margens e páginas em branco. Também surge a pontuação no texto, bem como o uso de letras maiúsculas. Também aparecem índices, sumários e resumos, e na categoria de gêneros, além do didático, aparecem os florilégios (coletâneas de vários autores), os textos auxiliares e os textos eróticos. Progressivamente aparecem livros em língua vernacular, rompendo com o monopólio do latim na literatura. O papel passa a substituir o pergaminho. Mas a invenção mais importante, já no limite da Idade Média, foi a impressão, no século XIV. Consistia originalmente da gravação em blocos de madeira do conteúdo de cada página do livro; os blocos eram mergulhados em tinta, e o conteúdo transferido para o papel, produzindo várias cópias.

Foi em 1405 surgia na China, por meio de Pi Sheng, a máquina impressora de tipos móveis, mas a tecnologia que provocaria uma revolução cultural moderna foi desenvolvida por Johannes Gutenberg.

Idade Moderna


No Ocidente, em 1455, Johannes Gutenberg inventa a imprensa com tipos móveis reutilizáveis, o primeiro livro impresso nessa técnica foi a Bíblia em latim. Houve certa resistência por parte dos copistas, pois a impressora punha em causa a sua ocupação. Mas com a impressora de tipos móveis, o livro popularizou-se definitivamente, tornando-se mais acessível pela redução enorme dos custos da produção em série.

Com o surgimento da imprensa desenvolveu-se a técnica da tipografia, da qual dependia a confiabilidade do texto e a capacidade do mesmo para atingir um grande público. As necessidades do tipo móvel exigiram um novo desenho de letras; caligrafias antigas, como a Carolíngea, estavam destinadas ao ostracismo, pois seu excesso de detalhes e fios delgados era impraticável, tecnicamente.

Uma das figuras mais importantes do início da tipografia é o italiano Aldus Manutius. Ele foi importante no processo de maturidade do projeto tipográfico, o que hoje chamaríamos de design gráfico ou editorial. A maturidade desta nova técnica levou, entretanto, cerca de um século.

Idade Comteporânea


Cada vez mais aparece a informação não-linear, seja por meio dos jornais, seja da enciclopédia. Novas mídias acabam influenciando e relacionando-se com a indústria editoral: os registros sonoros, a fotografia e o cinema.

O acabamento dos livros sofre grandes avanços, surgindo aquilo que conhecemos como edições de luxo.

Livro Eletrônico

De acordo com a definição dada no início, o livro deve ser composto de um grupo de páginas encadernadas e ser portável. Entretanto, mesmo não obedecendo a essas características, surgiu em fins do século XX o livro eletrônico, ou seja, o livro num suporte eletrônico, o computador. Ainda é cedo para dizer se o livro eletrônico é um continuador do livro típico ou uma variante, mas como mídia ele vem ganhando espaço, o que de certo modo amedronta os amantes do livro típico - os bibliófilos.

Existem livros eletrônicos disponíveis tanto para computadores de mesa quanto para computadores de mão, os palmtops. Uma dificuldade que o livro eletrônico encontra é que a leitura num suporte de papel é cerca de 1,2 vez mais rápida do que em um suporte eletrônico, mas pesquisas vêm sendo feitas no sentido de melhorar a visualização dos livros eletrônicos.

Produção do Livro

A criação do conteúdo de um livro pode ser realizada tanto por um autor sozinho quanto por uma equipe de colaboradores, pesquisadores, co-autores e ilustradores. Tendo o manuscrito terminado, inicia a busca de uma editora que se interesse pela publicação da obra (caso não tenha sido encomendada). O autor oferece ao editor os direitos de reprodução industrial do manuscrito, cabendo a ele a publicação do manuscrito em livro. As suas funções do editor são intelectuais e econômicas: deve selecionar um conteúdo de valor e que seja vendável em quantidade passível de gerar lucros ou mais-valias para a empresa.

Modernamente o desinteresse de editores comerciais por obras de valor mas sem garantias de lucros tem sido compensado pela atuação de editoras universitárias (pelo menos no que tange a trabalhos científicos e artísticos).

Cabe ao editor sugerir alterações ao autor, com vista a ajustar o livro ao mercado. Essas alterações podem passar pela editoração do texto, ou pelo acréscimo de elementos que possam beneficiar a utilização/comercialização do mesmo pelo leitor. Uma editora é composta pelo Departamento editorial, de produção, comercial, de Marketing, assim como vários outros serviços necessários ao funcionamento de uma empresa, podendo variar consoante as funções e serviços exercidos pela empresa. Na mesma trabalham os editores, revisores, gráficos e designers, capistas, etc. Uma editora não é necessariamente o produtor do livro, sendo que quase sempre essa função de reprodução mecânica de um original editado é feita por oficinas gráficas em regime de prestação de serviço. Dessa forma, o trabalho industrial principal de uma editora é confeccionar o modelo de livro-objeto, trabalho que se dá através dos processos de edição e composição gráfica/digital.

A fase de produção do livro é composta pela impressão (posterior à imposição e montagem em cadernos - hoje em dia digital), o alceamento e o encapamento. Podendo ainda existir várias outras funções adicionais de acréscimo de valor ao produto, nomeadamente à capa, com a plastificação, relevos, pigmentação, e outros acabamentos.

Terminada a edição do livro, ele é embalado e distribuído, sendo encaminhado para os diferentes canais de venda, como os livreiros, para daí chegar ao público final.

Pelo exposto acima, talvez devêssemos considerar que a categoria livro seja a concepção de uma coleção de registros em algum suporte capaz de transmitir e conservar noções abstratas ou valores concretos. No início de 2007, foi noticiada a invenção e fabricação, na Alemanha, de um papel eletrônico, no qual são escritos livros.

Classificação dos Livros


Os livros atualmente podem ser classificados de acordo com seu conteúdo em duas grandes categorias: livros de leitura sequencial e obras de referência (anuário, bibliografia, dicionário, manual, enciclopédia, guia turístico, livro didático, relatório, vademecum e poesias).

Curiosidades

A Bíblia é o livro mais vendido do mundo.
O Guiness World Book of Records é o segundo livro mais vendido no mundo.
Harry Potter, da inglesa J. K. Rowling, é atualmente o livro que vendeu mais cópias em menos tempo.

Referências
Dados da Unesco.
FEBVRE, Lucien. O aparecimento do livro. São Paulo : Unesp, 1992.
KATZENSTEIN, Ursula. A origem do livro. Sao Paulo : Hucitec, 1986.
SCORTECCI, João. Guia do Profissional do Livro. São Paulo: Scortecci, 2007.

Fonte:
Secretaria de Educação do Estado do Paraná.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Varal de Trovas n. 182


Elisa Alderani (Auto-Retrato)


Ganhei um convite para uma noite de seresta neste carnaval. Olhei para ele com certo desinteresse, e disse para mim mesma: “não sei se vou participar, estou desanimada para este evento...” Agradeci, guardei-o em um dos departamentos da minha bolsa. Nela tem de tudo, bolsa de mulher é assim, todo mundo conhece.

O dia passou, fiz mil e uma coisas, mas principalmente dei prioridade à leitura; estou lendo um livro interessantíssimo. Devo policiar-me para não me deixar envolver demais e respeitar o horário para dormir o suficiente, pois o amanhã espera por mim. Será um dia bem recheado.

Sexta-feira, dia do baile seresteiro. Abro a bolsa, tiro o convite e coloco-o bem à vista na estante. Sigo o meu ritual de todas as manhãs, café e oferecimento do dia. Saio cedo de casa com a minha preciosa bolsinha branca, na qual carrego a Sagrada Comunhão para ser levada em domicílio aos doentes da paróquia. Hoje, dia especial, primeira sexta-feira do mês. Para quem tem Fé é dia de indulgência, dia para pedir misericórdia ao Sagrado Coração de Jesus.

Terminada a celebração da Santa Missa, lentamente subo os degraus do altar e o ministro extraordinário, depois de cumprimentar-me, pergunta: "Quantas"? Eu respondo com um leve sorriso: "Cinco, Sr. Lino, obrigada e um bom dia". - Ele, com muita calma coloca as hóstias consagradas na minha pequena "teca" dourada contando-as com muita atenção.

Devagar, com compostura, saio da igreja levando no colo o meu sagrado tesouro, louvando o SS. Sacramento com o coração. Ciente da grande responsabilidade a qual fui chamada. Sou eu por inteiro, presente naquilo que estou praticando. Executo esta tarefa com muito amor. Começo assim meu roteiro espiritual.

Em cada casa que visito são as mesmas orações pelo doente que me espera com devoção. Procuro sempre criar um clima de conforto, esperança e coragem, pois estou à frente do mistério da doença talvez devida ao envelhecimento.

No desenrolar das horas, caiu a tarde. O convite na estante espera por uma resposta. Ainda estou na dúvida, mas afinal decido pelo sim. Vou acordar aquela outra Elisa, um pouco adormecida, mas alegre e descontraída. Abro o guarda-roupa, e já invento minha fantasia: vai ser discreto, conjunto preto, é só jogar uma blusa bem florida por cima dele. Pronto! Chegando lá ponho o colar florido de carnaval… Olho-me no espelho: ficou bom, aliás, ótimo!

Assim, envolvida pela alegria contagiante das colegas, caio no samba e marchinhas antigas. Pulo, brinco alegremente, nem vejo o tempo passar.

Volto para casa cansada e feliz. Olho-me no espelho e converso comigo mesma: Amém! O meu dia passou. Valeu a pena... A alegria alivia as tensões, sinto-me leve e feliz. Afinal nada mudou. Continuo sendo eu mesma. Os diferentes papéis que a vida me oferece não mudam o meu interior, o meu jeito de ser.

Este é meu "auto-retrato". Afinal é muito bom ser autêntica em cada circunstância.

Fonte:
Elisa Alderani. Flores do meu jardim – Fiori del mio giardino. Edição bilingue. Ribeirão Preto/SP: Legis Summa, 2008.
Livro enviado pela autora.

A. A. de Assis (Trovas do Mestre Trovador) 2


Benditos, no mundo inteiro,
os que ao plantio procedem.
– São filhos do Jardineiro
que o verde implantou no Éden!

Creio na força do amor,
creio na força do exemplo.
Um credo com tal teor
nem necessita de templo.

Das provas feitas na escola,
uma vale nota cem:
– é a de quem, fugindo à “cola”,
mostra a ética que tem.

Dentre os bens que o filho espera
receber por transmissão,
tesouro nenhum supera
o exemplo que os pais lhe dão.

Destino, fado ou o que for...
isso tudo é só brinquedo.
– Na história real do amor,
cria o amor seu próprio enredo.

Deve o mundo ao gênio humano
obras de extremo valor.
O drama é ver, ano a ano,
minguar o espaço da flor...

Entre o pássaro e o poeta
há perfeita identidade:
seu canto só se completa
se há completa liberdade.

Esta é uma lei que não muda,
portanto preste atenção:
– O Pai jamais nega ajuda
àquele que ajuda o irmão!

Facilmente me dominas,
bastando apenas piscar...
– É o feitiço das meninas
que brincam no teu olhar!

Fé é uma forma de ver,
via amor, o além-da-vista;
é a graça de perceber
como é bom que Deus exista.

Hão de nos ser muito gratas
as futuras gerações,
se, em vez de queimar as matas
queimarmos as ambições!...

Mais que os lucros do trabalho,
mais que as honras e os troféus,
o amor é o único atalho
que de fato leva aos céus.

Nesta Terra outrora linda,
que aos pouquinhos se desfaz,
o lar é a ilha onde ainda,
às vezes, se encontra a paz.

Neste planeta avarento,
onde o “ter” é o ditador,
que triste é ver o cimento
roubar o espaço da flor!

No instante em que é concebida,
entra na história a criança.
Negar-lhe o direito à vida
é um crime contra a esperança!

O bem-querer une a gente
mais que a consanguinidade.
– De que vale ser parente,
sem os elos da amizade?

Passa em voo um passarinho,
outros tantos passarão...
Que os proteja São Chiquinho
contra nós e o gavião!

Poeta nenhum se priva
de certos dengos vitais:
– Sem pão talvez sobreviva,
mas sem ternura... jamais!

Pouco a pouco, passo a passo,
vamos nós, de déu em déu...
Já conquistamos o espaço;
só falta ganhar o céu!

Qual o vento, quando muda,
leva a nuvem que o céu cobre,
muita vez pequena ajuda
muda o destino de um pobre.

Quanta falta de juízo...
Perdão, meu bom Deus, Perdão!
– Ganhamos um paraíso;
fizemos dele um lixão...

Quanta vez, meu companheiro,
para não passar por bobo,
precisa o ingênuo cordeiro
usar disfarce de lobo...

Que dó, meu doce Arquiteto,
que tamanha insensatez...
Tão lindo era o teu projeto,
mas veja o que o homem fez!

Se a justiça, um dia, enfim,
a todos der vez e voz,
Deus dirá que agora, sim,
mora no meio de nós!

Vereis nos próximos anos
a decisiva corrida:
– Cuidam do mundo os humanos,
ou cessa no mundo a vida!

Fonte:
Vida, verso e prosa

Fernando Sabino (Condôminos)


A porta estava aberta. Foi só eu surgir e arriscar  uma  espiada para a sala, o dono da casa saltou da mesa para receber-me:

- Vamos entrar, vamos entrar. Estávamos à espera do senhor para começarmos a reunião: o senhor não é o 301?

Não, eu não era o 301. Meu amigo, que morava no 301, tivera  de fazer repentinamente uma viagem, pedira-me que o representasse.

O homem estendeu-me a mão, num gesto decidido: 

-  Pois então muito prazer.

Disse que se chamava Milanês e recebeu com um sorriso à milanesa a minha escusa pelo atraso. Desconfiei  desde  logo que fosse meio surdo - só mais tarde vim a descobrir que seu ar de quem já entendeu tudo antes que a gente fale não era surdez, era burrice mesmo.

Conduziu-me ao interior do apartamento onde várias pessoas, umas onze ou doze, já estavam reunidas ao redor da  mesa. À minha entrada, todos  levantaram a cabeça,  como galinhas junto ao bebedouro. O apartamento era luxuosamente mobiliado, atapetado, aveludado, florido e enfeitado, nesta exuberância de mau gosto a que se convencionou chamar de decoração. O Milanês fez as apresentações:

- Aqui é o Dr. Matoso, do 302. Quando precisar de um médico. . .  Ali o Capitão Barata, do 304 - representante das gloriosas Forças Armadas. Dona Georgina e Dona Mirtes, irmãs, não se sabe qual mais gentil, moram no 102. Aquele é o Dr. Lupiscínio, do 201, nosso futuro síndico...
       
Suas palavras eram recebidas com risadinhas chochas, a indicar que vinha repetindo as mesmas graças a cada um que chegava. Cumprimentei o médico, um sujeito com  cara  mesmo de Matoso, o capitão com seu bigodinho ainda de tenente, as duas velhas de preto, não se sabia qual mais feia, o futuro síndico, os demais. O dono da casa recolheu a barriga e as ideias, sentando-se empertigado à cabeceira. Busquei o único lugar vago do outro lado e acomodei-me. A mulher do Milanês passou-me um copo de refresco de maracujá - só então percebi que todos bebericavam refresco em pequenos goles, aquilo parecia fazer parte do ritual, convinha imitá-los. Um dos presentes, solene, papel na mão, aguardava que se restabelecesse a ordem para prosseguir.

- Desculpem a interrupção - gaguejei. - Podem continuar.

– Não havíamos começado ainda - escusou-se o Milanês, todo simpaticão. - Estávamos apenas trocando ideias.

 - Se o senhor  quiser, recomeçamos tudo - emendou a Milanesa, mais prática. - Ali o nosso Jorge, do 203, dizia que precisávamos...

- Perdão, quem dizia era o Dr. Lupiscínio - e o nosso Jorge do 203,  um rapaz roliço como uma salsicha de óculos, passou para o extrema. A  esta altura interveio o capitão, chutando em gol:

 - Pode prosseguir a leitura.

Alguém a meu lado explicou:

- O Dr. Lupiscínio fez um esboço de regulamento. O senhor sabe, um regulamento sempre é necessário.

O Dr. Lupiscínio pigarreou e leu em voz alta:

- Quinto: é vedado aos moradores... Espere – voltou-se para mim: - O senhor quer que leia os quatro primeiros?

 - Não é preciso - interveio o Milanês: - Os quatro primeiros servem apenas para introduzir o quinto. Vamos lá.

- Quinto: é vedado aos moradores guardar nos apartamentos explosivos de qualquer espécie...

O capitão se inclinou, interessado:

- É isso que eu dizia. Este artigo não está certo: suponhamos que eu, como oficial do exército, traga um dia para casa uma dinamite...

- O senhor vai ter dinamites em casa, capitão?  – espantou-se  uma  das velhas, a Dona Mirtes.

- Não, não vou ter. Mas posso um dia cismar de trazer...

- Um perigo, capitão!

- Meu Deus, as crianças - e uma senhora gorda na ponta da mesa levou a mão à peitaria.

- Pois é o que eu  digo: um perigo - tornou o capitão.-  Devíamos proibir.

- Pois então?

Ninguém entendia o que o capitão  queria  dizer.  Ele  voltou  à carga:

- E imagine se um dia a dinamite explode, mata todo mundo! Não, é preciso deixar bem claro no regulamento: NÃO é vedado ter em casa explosivos de qualquer espécie.

- NÃO é vedado? Quer dizer que pode ter? – desafiou o autor do regulamento, já meio irritado.

- Quer dizer que não pode ter explosivos - respondeu o capitão, quase a explodir.

O capitão não sabia o que queria dizer a palavra vedado - e dali não passariam nunca se o Jorge, do 203, não tivesse levantado a lebre:

- Vedado é proibido, capitão. Vedado explosivo: proibido explosivo.

- Vedado proibido?

Confundia-se, mas não dava o braço a torcer:

- Eu sei, mas acho que devíamos deixar mais claro que é  proibido. Isto de explosivo é perigoso, vedado só é pouco, se vamos proibir, é preciso a palavra NÃO. Para dar mais ênfase, compreendem? NÃO é vedado...

- Continue - ordenou o Milanês.

O capitão vedado pela própria ignorância, calou o bico. O Dr. Lupiscínio continuou a leitura e em pouco já ninguém estava prestando atenção: todos concordavam com a cabeça ao fim de cada artigo, quando o homem corria os olhos pela sala, para recolher aprovação. O Milanês, a certa altura, sugeriu que interrompessem o regulamento em favor da eleição do síndico - já se fazia tarde e dali haveria de sair um síndico naquela noite. A  Milanesa se aproveitou para ir lá dentro buscar mais refresco.

- Sugiro que aclamemos o nome do Dr. Lupiscínio para síndico – disse uma das velhas, desta vez a Dona Georgina.

Todos aprovaram, menos o Milanês que, pelo jeito, queria ser síndico também.

- Estamos numa democracia - falou, tentando o engraçadinho: - E sem desfazer os méritos ali do nosso preclaro Dr. Lupiscínio, acho que devemos lançar mão da mais importante das instituições democráticas: o voto secreto.

- Não precisa ser secreto - sorriu o Dr. Lupiscínio, certo da vitória: - Somos poucos, todos conhecidos, quase uma família.

- Que acha o 301? – perguntou-me o Milanês, tentando conquistar o meu voto. Eu, porém, incorruptível, votaria no Dr. Lupiscínio - a menos que a dona da casa, até o momento da eleição, se lembrasse de servir-me alguma coisa além de refresco de maracujá.

Disse-lhe que preferia não intervir, já que apenas representava um dos proprietários.

 - O senhor não é condômino? – estranhou a bem nutrida senhora da ponta da mesa. –  Então quem é que está em cima de mim? Eu sou 202.

Expliquei-lhe que não era condômino - esta palavra era uma das razões pelas quais até  então não tivera coragem de comprar um apartamento.

- Estou representando o 301. Em cima da senhora deve estar ali o Dr. Matoso, que, se ouvi bem, é 302.

Dr. Matoso sorriu amável, concordando:

- Faço muito barulho, minha senhora?

- Absolutamente - protestou ela, levando de novo a mão ao peito. - Mal ouço o senhor à noite descalçando os sapatos e botando os chinelos.

- A senhora é 202? – perguntou uma das velhas, novamente a Dona Mirtes. – Pois então seu ralo deve estar entupido: está pingando água no banheiro da gente.

A outra velha confirmou silenciosamente com a cabeça a  acusação terrível. Enquanto isso o Milanês providenciava a votação: cortou  lenta e caprichosamente uma folha de papel em doze pedaços, distribuiu-os a cada um de nós:

- E a urna? Onde está a urna?

A urna seria um horrendo vaso de alabastro. Nos solenizamos ao redor da mesa, exercendo o sagrado direito de  voto. Procedeu-se à apuração e o vencedor foi mesmo o Dr. Lupiscínio, do 201, por  esmagadora maioria: o Milanês ganhou apenas um voto, o seu próprio, naturalmente.

E a Milanesa? Eu também, 301, ganhei um voto, mas não foi dela, desconfio que foi da  senhora do 202, a do ralo entupido, que me proporcionava olhares à socapa. Felicitei o novo síndico, escusei-me e caí fora: ameaçavam retornar ao regulamento, e o capitão dizia:

 - Por "áreas comuns" entenda-se: escada, corredores, vestíbulo, entrada de serviço, garagem. E elevador, que é próprio, mas também não deixa de ser comum...

À saída notei, de passagem, que o edifício não tinha elevador.

Fonte:
Fernando Sabino. O Homem Nu. Rio  de  Janeiro: Record, 1976.

Contos e Lendas do Mundo (França: A Princesa do Bosque Encantado)

Era uma vez um rei, pai de três jovens príncipes, todos em idade de casar. Um dia, os nobres, reunidos na corte, perguntaram-lhe se já havia pensado nisso.

- Digam-me quem é a princesa mais bela e mais rica que conhecem e enviarei um deles para lhe pedir a mão - foi a resposta pronta.

Eles declararam que era a princesa do bosque encantado.

- Também não me ocorreria outra melhor, mas vai ser difícil. Muitos outros candidatos tentaram chegar até ela. Internaram-se no bosque, mas nenhum regressou.

- O príncipe tem de passar pela Pousada dos Quatro Gorriões, onde lhe explicarão como deve ultrapassar o primeiro obstáculo.

Depois de se apetrechar devidamente, o príncipe mais velho pôs-se imediatamente a caminho. Quando chegou à Pousada dos Quatro Gorriões, disseram-lhe que, para penetrar no bosque, tinha de matar a serpente de guarda à entrada.

Ao vê-lo aproximar, esta ergueu-se e ele tentou abatê-la, mas a espada limitou-se a roçá-la e ela indicou:

- Continua!

O príncipe embrenhou-se num bosque magnífico, cheio de árvores esplêndidas, povoado por aves de todas as cores e o solo coberto de flores odoríferas. Não tardou a sentir-se atraído por uma bela música de violinos e sanfonas, acompanhados por um coro. Jovens belos que dançavam convidaram-no a reunir-se a eles e ele não hesitou em aceitar.

Sucederam-se os dias sem que o rei tivesse notícias do filho mais velho. Por fim, o do meio anunciou-lhe:

- Também quero pôr-me a caminho.

Tampouco conseguiu matar a serpente, limitando-se a produzir-lhe pouco mais do que um arranhão com a espada, após o que ela indicou:

- Continua!

Quando chegou ao local onde se encontravam os dançarmos, o príncipe deteve-se, surpreendido com aquela música e coros de pessoas que o convidavam a reunir-se a eles. Reconheceu então o irmão e, tal como este, não seguiu em frente.

Como não chegavam notícias dos dois príncipes à corte do rei, o mais jovem comunicou ao pai:

- Agora, quero partir eu.

O monarca não desejava consentir, porém, o filho pegou na espada do avô, mandou-a abençoar e pôs-se a caminho.

Desta vez, a serpente recebeu um golpe mortal. Todavia, no mesmo instante, o príncipe viu que, no lugar do réptil, havia agora uma pequena e admirável raposa à qual faltava uma pata, como se lhe tivessem cortado.

- Vem comigo, príncipe - convidou-o. - Segue-me, mas procura não te deteres com os dançarinos.

Quando ouviu a música, ele voltou-se para o outro lado e prosseguiu o seu caminho, apesar de ter reconhecido as vozes dos seus irmãos, que o chamavam pelo nome. Quando os acordes deixaram de se ouvir, viu que a pequena e admirável raposa já só se apoiava às duas patas que lhe restavam. Apesar disso, ela indicou:

- Vem, vem, meu pequeno príncipe! Verás numerosos pássaros, cada um numa bela gaiola de ouro. Alguns cantam maravilhosamente bem e possuem plumagem deslumbrante. Não te detenhas junto deles. No entanto, quando vires uma gaiola com um pássaro de olhos tristes e penas eriçadas, apodera-te dela.

E, com efeito, o príncipe apoderou-se da gaiola do pássaro de penas eriçadas. No mesmo momento, deu-se conta de que a pequena e preciosa raposa caminhava sobre três patas, pois recuperara uma das perdidas.

- Agora, continua com a tua gaiola e, quando chegares ao palácio, apodera-te de uma mula que um gigante deixou aí a pastar - recomendou ela.

O gigante lamentou-se e rogou ao príncipe que não se apoderasse da mula, mas o jovem príncipe não cedeu aos seus pedidos insistentes, nem às ameaças. Desta vez, a pequena raposa, que recuperara a quarta pata, indicou-lhe:

- Ata a mula à portas do palácio, entra e pergunta ao rei se te concede a mão da filha.

O monarca respondeu que lhe concedia com o maior prazer. No mesmo momento, o pássaro de penas eriçadas transformou-se na princesa mais linda do mundo, a qual aceitou em se tornar esposa do príncipe e pediu-lhe que a levasse imediatamente à corte do pai. A pequena raposa, que aguardava à porta, recomendou ao príncipe:

- Montem ambos na mula e, se aproximar algum perigo, chamem-me com as seguintes palavras: "Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!"

Quando o príncipe passou junto dos dançarinos, os irmãos voltaram a reconhecê-lo. A noite, ele e a princesa desmontaram da mula para descansar. De repente, surgiram dois homens jovens, um dos quais se apoderou da princesa e o outro da mula. E enquanto um levava a princesa sequestrada, o outro - o seu irmão do meio - atirou o príncipe a um poço que havia muito perto dali.

O infortunado príncipe estava prestes a afogar-se, quando se lembrou da raposa e gritou:
- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!

No instante imediato, ela apareceu no topo do poço e indicou:

- Agarra-te à minha cauda!

Quando ele se encontrava quase no cume, da cauda soltou-se e voltou a cair na água.

- Acode em meu auxílio, pequena e preciosa raposa!

Ela voltou a aparecer e desta vez conseguiu retirá-lo do poço. Em seguida, informou:

- Regressa à cidade onde vive o rei, teu pai. Pelo caminho, encontrarás uma ferradura que a mula perdeu. Guarda-a. Quando chegares à cidade, veste-te de ferreiro e, depois de todos os outros terem tentado ferrar a mula, oferece-te para o fazer. A seguir, dá-te a conhecer ao teu pai e explica-lhe que foste tu que conseguiste chegar até à princesa do bosque encantado.

Os ferreiros foram passando um após outro, mas nenhum conseguiu aproximar-se da mula, que não parava de desferir coices, na presença do rei, com os seus dois filhos. Finalmente, apresentou-se um jovem ferreiro, que se acercou dela, levantou-lhe a pata e puxou de uma ferradura, que se lhe ajustou perfeitamente.

O príncipe deu-se então a conhecer e, cheia de alegria, a princesa abraçou-o. O monarca determinou que o casamento se celebrasse imediatamente.

Jamais se tinha assistido a uma boda tão faustosa. E hoje, o príncipe e a sua princesa são esposos jovens e felizes e trouxeram ao mundo vários principezinhos.

Fonte:
Ulf Diederichs, Palácio dos Contos. Lisboa/Portugal: Círculo de Leitores, 1999
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