quinta-feira, 16 de julho de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Um


COMO FOI MESMO QUE EU ME PERDI DE TUDO?

DA VARANDA DO MEU APARTAMENTO, olho compridamente para um ponto fixo bem longe que se descortina diante de mim. Desde aí, pareço suscitar, numa espécie de devaneio maquinal, um espaço oculto dentro de meu ser, onde alguma coisa que nele está aprisionada, quer se libertar de qualquer jeito, a ponto de me fazer alcançar, custe o que custar, o desiderato, como se fosse um sonho adormecido e não realizado que há muito desejei, em louca ambição. Não sei exatamente o quê. Alguma coisa, por certo, que me fez viajar além do descomedido, à custa de me fumegar por dentro, como um brandão que iluminasse uma áurea abandonada.

Num primeiro momento, tenho a impressão de ter acordado de um sono profundo. Melhor me expressando, voltado de um repouso recuperatório e, ao ter aberto os olhos, incrivelmente percebido robustas vibrações de medo. Medo e vazio. Medo por voltar de onde estava, assim, sem mais nem menos, e vazio, por senti-lo forte e horrendo, e não só isto, cheio de dimensões gigantescas. Tudo, num repente, se faz agora e, dentro dele, sessenta e sete anos parecem ter sido jogados fora. Literalmente lançados nas sarjetas da vida. Grosso modo, pareço bastante com aquela figura metálica do homem armado que, nos relógios antigos, dava as horas com um martelo e nossos avós apelidaram de Jaquemart.

Me vejo caminhando por uma estrada de compleição agrestemente chucra e tosca, os passos incertos, sem vislumbrar um porto seguro onde estancar esta dor forte e imensa que se alojou em mim e, contra a minha vontade, insiste permanecer sem pressa de ir embora. Esta dor estranha, esquisita,  fez de meu espírito  seu templo doméstico. Me sinto, por conta, como se tivesse a alma  alanceada por uma batalha da qual não participei, mas saí dela mortificadamente oprimido e derreado. Parece haver uma contenda acirrada, que não se define,  entre meu ser asfixiado e o meu agora -, meu agora desprovido de fôlego para continuar na peleja.

Esta dor parece também, lado outro, crescer como um tumor maligno, e, ao tempo em que evolui, me dá sinais de querer desgraçar a alma frangalhada e me colocar num buraco negro e inóspito, de onde tenho a impressão não haver retorno. Dentro da minha cabeça, uma confusão de ideias e pensamentos embaralhados tenta, a todo custo, me aniquilar, enquanto o coração, no peito, fortemente  descompassado e, numa aceleração centuplicada, me apavora e não só  isto, me tira fora da normalidade da razão. Todos os cômodos da minha residência, parecem ocupados por velhos fantasmas de semblantes  monásticos, que agora se juntam e me assustam.

Os ruídos ensurdecedores que eles  produzem (numa diversidade de aspectos infernais), irrompem dentro destes meus espaços compostos por (além aqui da varanda), uma sala, três quartos, banheiro e cozinha, como látegos martirizantes. Esta babel não vêm do motor da geladeira, nem do ventilador. Tampouco do aparelho de ar condicionado. Menos ainda dos pingos que rolam intermitentes da torneira da pia do lavabo que deixei aberta, inda  a pouco, quando  minutos atrás, escovava os dentes. Recordo que passei água num copo onde tomei um gole de café com leite. Os móveis da sala, o sofá, minha cadeira de descanso, a televisão, o som e até meus livros  igualmente entraram no furdunço.

Me dão a impressão de estarem mancomunados com esses espalhafatos horripilantes. Em razão disto, sinto como se, de repente, todos estes contratempos zaragatados houvessem fundidos, numa câmara de som compactada com o intuito único de me enervarem  os ouvidos.  A estuporação que me pesa no corpo, tem um aspecto desfigurado e repugnante. Se assemelha a galhofas inumanas. Como meu rosto, deve estar com uma máscara aterradora. Gelo, paralisando os movimentos. Esfrio o sangue nas veias. Fico como que petrificado, chumbado literalmente subjugado aos ladrilhos do alpendre. Boa parte de mim se acha perdida num emaranhado de quimeras desfeitas.

Um sentimento de urgência se apodera de todo meu eu e tenta me curvar derrubando meu esqueleto de encontro ao rés do chão. Meus movimentos, mesma onda,  se  portam sem ação, tolhidos e entravados, a ponto de não conseguirem mexer  os músculos, ao menos para me divorciarem um pouco dos maus presságios que chegaram e ainda chegam sem prévio aviso. Pareço, de repente, ter morrido. Perdido o ar hospedeiro da respiração,  todavia, não deixado o corpo. Não me vejo, não me sinto desvencilhado totalmente do plano terreno. A impressão que tenho é a de estar vagando por sobre toda a minha vida passada...

Vislumbro,  a cada dia, a cada minuto, a cada segundo,  tudo assim, numa  espécie de filme colorido como se voltasse literalmente no tempo. Nessa regressão, lobrigo  a minha família em peso. Encontro as minhas ex-mulheres,  topo com meus filhos, meus  netos, cada irmão, cada amigo, enfim, cada aparentado antes distante, agora tão perto... Pessoas que conheci por acaso no acaso do meio da rua, no bar da esquina, na padaria, no supermercado sem troca de olhares, sem gestos ou palavras... Bispo*, numa rápida de visu, minha mãe, imponente como a Vênus de Milo, de natureza inata, acomodada num lugar especial, solitária, como sempre,  na sua serenidade ímpar.

Meu pai, também se faz materializado, o sorriso entristecido. Percebo, igualmente, criaturas que  sumiram do mapa, outras que se foram... Por vontade própria... Numa espécie de magia, estão todas aqui diante de mim. Quero gritar, me fazer presente, me fazer ouvir per fas et nefas*. Dizer que sinto saudades, que me dói a falta de todo mundo... Me corrói uma tragédia escrita do fundo da subitaneidade dos refrigérios do meu ego.  No instante seguinte, me questiono, boquiaberto, espantado, quase enlouquecido: como foi mesmo que me perdi de tudo? Alguém, por favor, teria como me responder sem imprimir delongas?!  Por certo que não! Que bobo fui, ou...

Resumindo meus dissabores: o escalpelo que a vida me deixou, atingiu em cheio o meu porvir. Foi grandiosa a incisão e acredito que não haja cicatrização para o tamanho da ferida aberta. O fogo selvagem de todos os fracassos se deflagrou em mim. Me debato, ainda agora, na ganga da mediocridade e me sinto ajoelhado diante de um amanhã umbroso e repletado de trevas. Me questiono, por tudo o que vejo e sinto: em que espécie de idiota oblongo enlargado de imbecilidades me transformei? Nada nem ninguém, me responde. E o resto... Bem, o resto ao meu redor são só migalhas do que fui; ciscos de boas lembranças embalsamadas com respingos de árida e nervosa solidão.   
- - - - - –
Notas:
*Per fas et nefas – é uma locução latina que, traduzida, significa "por (para o) bem ou por (para o) mal". Isto é, com todos os meios possíveis. Ela é citada por Arthur Schopenhauer como representativa de uma situação em que um debatedor tenta manter de todas as formas possíveis qualquer coisa que tenha sido dita, mesmo que ele considere-a falsa ou duvidosa.
* Bispo – vislumbro, enxergo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Aparecido Raimundo de Souza, “Comédias da vida na privada”.  RJ: Editora AMC-Guedes, 2020.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 321


Altino Afonso Costa (Doce é Viver e Cantar)


Não é doce morrer no mar.

Doce é viver nas praias da Bahia, bebendo água de coco, vendo as mulheres passarem com seus corpos morenos e sentindo a brisa do mar; vendo as ondas debulhando espumas salgadas, na tarde ensolarada do Nordeste brasileiro.

Por mais linda que seja a flor, não posso colhe-la perfumada se nasceu entre o lodo do lago.

Eu não escrevo para os que estão tristes; escrevo para aqueles que estão imunes ao pessimismo, por enquanto.

Escrevo o que sinto e sinto o que escrevo.

Se há tristeza no que escrevo, é porque não sei mentir e encobrir os acontecimentos.

A vida não é somente uma pintura surrealista de Salvador Dali e nem é também apenas um sorriso enigmático aflorando nos lábios da Mona Lisa de Da Vinci...

Os atores fingem, por isso são chamados de hipócritas, por transmitirem uma realidade que não sentem, apenas interpretam.

Eu escrevo para aqueles que pensam livremente e claramente enxergam a vida com olhos anatômicos.

Viver é simplesmente lutar para não ser vencido; e vencer é a meta de todo guerrilheiro.

A minha vida sempre foi um campo de batalha e nesse campo eu luto, me firo, me esfarrapo, indiferente ao rufar dos tambores da morte.

Assim vivo, assim penso, assim descrevo o que sinto.

Disse-me um amigo fraterno: "o teu canto é triste e sem fim".

E eu respondi-lhe: eu sei que o meu canto é entristecido... mas, se não for para cantar assim, prefiro ficar emudecido.

Fonte:
Altino Afonso Costa. Buquê de estrelas: crônicas e poemas. Paranavaí/PR: Olímpica, 2001.
Livro gentilmente enviado por Dinair Leite.

IX Concurso Internacional de Trovas Estados Unidos (Trovas Premiadas)



Tema: AMIZADE
 
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VETERANOS
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VENCEDORES

1º Lugar

Sempre certa em hora incerta,
a fraternal amizade,
é casa de porta aberta
em noite de tempestade.
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

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2º Lugar
Meus  amigos,  sou  bem  franco,
como  é  bom  ter  nesta  vida,
mesmo  em  mundo  em  preto   e  branco,
a  amizade  colorida !!!
Antonio Colavite Filho
Santos/SP

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3º Lugar
Ao saber que por fracassos
vivemos ao rés do solo,
a amizade abre os seus braços
e nos carrega no colo.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba/SP
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4º Lugar

Amizade é uma conduta,
às vezes, firme e calada,
no gesto de quem te escuta,
te empresta um ombro, e mais nada.
Marília Oliveira
Porto Alegre/RS
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5º Lugar 
Todo aquele que é cercado
de amizades verdadeiras
tem o visto carimbado
para um mundo sem fronteiras!
Renata Paccola
São Paulo/SP
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MENÇÃO HONROSA

1º Lugar

Ah! Seria mesmo incrível
se fosse assim a amizade:
produto não perecível,
sem data de validade!
Geraldo Trombin
   São Paulo/SP  
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2º Lugar

Nossa paixão quase trágica,
foi a amizade quem fez…
paixão que, perdendo a mágica,
fez-se amizade outra vez.
Francisco Gabriel Ribeiro
Natal/RN
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3º Lugar

Aos  amigos  de  verdade,
de  coração  agradeço,
pois  a  sincera  amizade
é  um  amor  que  não  tem  preço!
Edna Gallo
Santos/SP
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4º Lugar

Nesse abraço, cativante,
minha mente me afiança,
que amizade é semelhante
ao amor de uma criança.
Ari Santos de Campos
 Balneário Camboriú/SC  
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5º lugar

Do amigo espero a verdade,
mútua confiança, sem medo;
que o segredo da amizade
é amizade sem segredo!
A. A. de Assis
Maringá/PR
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MENÇÃO ESPECIAL

1º Lugar

Naqueles momentos quando
tudo soa indiferente,
amizade é Deus mandando
alguém pra cuidar da gente.
Manoel Cavalcante
Pau dos Ferros/RN
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2º Lugar

Toda amizade conforta:
dá leveza em qualquer hora.
E sempre nos abre a porta,
não tem fim...nem vai embora!
Maria Dulce de Lima Pessoa
Tabira/PE
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3º Lugar

A amizade é tecelã
de amor, respeito, aliança;
ela tece no amanhã
o fio da confiança…
Cristina Cacossi
Bragança Paulista/SP 
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4º Lugar

Amor que não conseguiu
transformar-se em amizade
depois que a paixão ruiu,
não foi amor de verdade.
Massilon Ferreira da Silva
Aracaju/SE
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5º Lugar

Amizade é a força atenta,
que nos ama e nos cativa:
Na queda, é a mão que sustenta;
na glória, é a mão que incentiva!
Mara Melinni Garcia
Caicó/RN
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NOVOS TROVADORES
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1º Lugar

Amizade é um sentimento
de inestimável valor,
pois no meu entendimento,
amizade é quase amor.
Suely Ribella
Santos/SP
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2º Lugar

O valor de uma amizade
não se pode calcular,
um amigo de verdade
ninguém consegue comprar!
Aurineide Alencar de Freitas Oliveira
Dourados/MS
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3º Lugar
Tempos de calamidade,
tudo lembra escuridão.​
Grandeza de  uma amizade​
ilumina o coração.
 Agnes Izumi Nagashima
 Londrina/PR
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4º Lugar

“Amizade não tem preço”
diz o dito popular.
Tem mais valor, esclareço,
que o próprio familiar.
Maria Cristina de Oliveira
Campinas/SP
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5º Lugar
Amizade é como agir
presente sem se mostrar,
doando sem exigir,
amando sem revelar.
Abelardo Nogueira
Araçoiaba/CE


Fonte:
Maria Luíza Walendowski (coordenadora geral)

Monteiro Lobato (Velha Praga)


ANDAM TODOS EM NOSSA TERRA por tal forma estonteados com as proezas infernais dos belacíssimos “vons” alemães, que não sobram olhos para enxergar males caseiros.

Venha, pois, uma voz do sertão dizer às gentes da cidade que se lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos destruidor devasta nossas matas, com furor não menos germânico.

Em agosto, por força do excessivo prolongamento do inverno, “von Fogo” lambeu montes e vales, sem um momento de tréguas, durante o mês inteiro.

Vieram em começos de setembro chuvinhas de apagar poeira e, breve, novo “verão de sol” se estirou por outubro adentro, dando azo a que se torrasse tudo quanto escapara à sanha de agosto.

A serra da Mantiqueira
ardeu como ardem aldeias na Europa, e é hoje um cinzeiro imenso, entremeado aqui e acolá de manchas de verdura — as restingas úmidas, as grotas frias, as nesgas salvas a tempo pela   cautela dos aceiros. Tudo mais é crepe negro.  
 
À hora em que escrevemos, fins de outubro, chove. Mas que chuva cainha! Que miséria d’água! Enquanto caem do céu pingos homeopáticos, medidos a conta-gotas, o fogo, amortecido mas não dominado, amoita-se insidioso nas piúcas, a fumegar imperceptivelmente, pronto para rebentar em chamas mal se limpe o céu e o sol lhe dê a mão.

Preocupa à nossa gente civilizada o conhecer em quanto fica na Europa por dia, em francos e cêntimos, um soldado em guerra; mas ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas.

As velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para pior do clima com a agravação crescente das secas; os vedos e aramados perdidos; o gado morto ou depreciado pela falta de pastos; as cento e um particularidades que dizem respeito a esta ou aquela zona e, dentro delas, a esta ou aquela “situação” agrícola. Isto, bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar ninguém soma...

É peculiar de agosto, e típica, esta desastrosa queima de matas; nunca, porém, assumiu tamanha violência, nem alcançou tal extensão, como neste tortíssimo 1914 que, benza-o Deus, parece aparentado de perto com o célebre ano 1000 de macabra memória. Tudo nele culmina, vai logo às do cabo, sem conta nem medida. As queimas não fugiram à regra.

Razão sobeja para, desta feita, encararmos a sério o problema. Do contrário a Mantiqueira será em pouco tempo toda um sapezeiro sem fim, erisipelado de samambaias — esses dois términos à uberdade das terras montanhosas.

Qual a causa da renitente calamidade?

É mister um rodeio para chegar lá.

A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao solo brasileiro como o Argas o é aos galinheiros ou o Sarcoptes mutans à perna das aves domésticas. Poderíamos, analogicamente, classificá-lo entre as variedades do Porrigo decalvans, o parasita do couro cabeludo produtor da “pelada”, pois que onde ele assiste se vai despojando a terra de sua coma vegetal até cair em morna decrepitude, nua e descalvada. Em quatro anos a mais ubertosa região se despe dos jequitibás magníficos e das perobeiras milenárias — seu orgulho e grandeza, para, em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à humildade da vassourinha e, descendo sempre, encruar definitivamente na desdita do sapezeiro — sua tortura e vergonha.

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se.

É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de “agregado”; nômade por força de vagos atavismos, não se liga à terra, como o campônio europeu: “agrega-se”, tal qual o Sarcoptes, pelo tempo necessário à completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para diante com a mesma bagagem com que ali chegou.

Vem de um sapezeiro para criar outro. Coexistem em íntima simbiose: sapé e caboclo são vidas associadas. Este inventou aquele e lhe dilata os domínios; em troca o sapé lhe cobre a choça e lhe fornece fachos para queimar a colmeia das pobres abelhas.

Chegam silenciosamente, ele e a “sarcopta” fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela da saia — este já de pitinho na boca e faca à cinta. Completam o rancho um cachorro sarnento — Brinquinho, a foice, a enxada, a pica-pau, o pilãozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido, três galinhas pevas e um galo índio. Com estes simples ingredientes, o fazedor de sapezeiros perpetua a espécie e a obra de esterilização iniciada com os remotíssimos avós. Acampam.

Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam ideia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza — se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias.

Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem.

Começam as requisições. Com a pica-pau o caboclo limpa a floresta das aves incautas. Pólvora e chumbo adquire-os vendendo palmitos no povoado vizinho. É este um traço curioso da vida do caboclo e explica o seu largo dispêndio de pólvora; quando o palmito escasseia, rareiam os tiros, só a caça grande merecendo sua carga de chumbo; se o palmital se extingue, exultam as pacas: está encerrada a estação venatória.

Depois ataca a floresta. Roça e derruba, não perdoando ao mais belo pau. Árvores diante de cuja majestosa beleza Ruskin choraria de comoção, ele as derriba, impassível, para extrair um mel-de-pau escondido num oco.

Pronto o roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções o isqueiro. Mas aqui o Sarcoptes se faz raposa. Como não ignora que a lei impõe aos roçados um aceiro de dimensões suficientes à circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei, cocando destarte a insigne preguiça e a velha malignidade.

Foi neste momento que o viu o poeta:

Cisma o caboclo à porta da cabana. (1)

Cisma, de fato, não devaneios líricos, mas jeitos de transgredir as posturas com a responsabilidade a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um álibi demonstrativo de que não esteve lá no dia do fogo.

Onze horas.

O sol quase a pino queima como chama. Um Sarcoptes anda por ali, ressabiado. Minutos após crepita a labareda inicial, medrosa, numa touça mais seca; oscila incerta; ondeia ao vento; mas logo encorpa, cresce, avulta, tumultua infrene e, senhora do campo, estruge fragorosa com infernal violência, devorando as tranqueiras, estorricando as mais altas frondes, despejando para o céu golfões de fumo estrelejado de faíscas. É o fogo de mato!

E como não o detém nenhum aceiro, esse fogo invade a floresta e caminha por ela adentro, ora frouxo, nas capetingas ralas, ora maciço, aos estouros, nas moitas de taquaruçu; caminha sem tréguas, moroso e tíbio quando a noite fecha, insolente se o sol o ajuda.

E vai galgando montes em arrancadas furiosas, ou descendo encostas a passo lento e traiçoeiro até que o detenha a barragem natural dum rio, estrada ou grota noruega. Barrado, inflete para os flancos, ladeia o obstáculo, deixa-o para trás, esgueira-se para os lados — e lá continua o abrasamento implacável.

Amordaçado por uma chuva repentina, alapa-se nas piúcas, quieto e invisível, para no dia seguinte, ao esquentar do sol, prosseguir na faina carbonizante.

Quem foi o incendiário? Donde partiu o fogo? Indaga-se, descobre-se o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado num litro de terra litigiosa.

E agora? Que fazer? Processá-lo?

Não há recurso legal contra ele. A única pena possível, barata, fácil e já estabelecida como praxe, é “tocá-lo”.

Curioso este preceito: “Ao caboclo, toca-se”. Toca-se, como se toca um cachorro importuno, ou uma galinha que vareja pela sala. E tão afeito anda ele a isso, que é comum ouvi-lo dizer: “Se eu fizer tal coisa o senhor não me toca?”.

Justiça sumária — que não pune, entretanto, dado o nomadismo do paciente. Enquanto a mata arde, o caboclo regala-se.

— Eta fogo bonito!

No vazio de sua vida semisselvagem, em que os incidentes são um jacu abatido, uma paca fisgada na água ou o filho novimensal, a queimada é o grande espetáculo do ano, supremo regalo dos olhos e dos ouvidos.

Entrado setembro, começo das “águas”, o caboclo planta na terra em cinzas um bocado de milho, feijão e arroz; mas o valor da sua produção é nenhum diante dos males que para preparar uma quarta de chão ele semeou.

O caboclo é uma quantidade negativa. Tala cinquenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar fome”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro — está tudo muito bem; assim fez o pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.

Quando se exaure a terra, o agregado muda de sítio. No lugar fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e só este atestará a sua estada ali; o mais se apaga como por encanto. A terra reabsorve os frágeis materiais da choça e, como nem sequer uma laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali de Manoel Peroba, de Chico Marimbondo, de Jeca Tatu ou outros sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha.
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Nota:
(1) Verso de Ricardo Gonçalves (1888-1916), poeta e j ornalista libertário que fez parte do célebre grupo “Minarete”, organizado por Lobato.


Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. Publicado em 1914.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 320


Arthur de Azevedo (Toc, Toc, Toc, Toc...)


O Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna: só lhe conhecia o busto, e não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na verdade ela possuía o palmo da cara mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo que era possível imaginar.

Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do prédio em que ambos moravam. Não iam a parte alguma.

Havia uma circunstância, uma só, que contrariava o Borges; a mãe da pequena tinha sido mulher da vida alegre; dera em público toda a espécie de escândalos, e fora, afinal, assassinada, durante uma pândega, por um dos seus inúmeros e sucessivos amantes. É verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora subtraída ao contato dessa mulher, e nunca mais a viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe; entretanto, não se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tão forte era a simpatia que a moça lhe inspirava.

A filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se formara no coração de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à tarde, caminho da repartição ou caminho de casa, ela correspondia ao seu cumprimento respeitoso com um sorriso afável, que não era o sorriso de uma janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.

Estava o Borges impressionado ao último ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges não sabia outra coisa senão a lamentável particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no bonde, ouvindo a conversa de dois passageiros que a viram à janela e a conheciam.

O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações, desfez-se em calorosos elogios.

- É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma santa; uma verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...

O Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e atalhou:

- Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça?

- Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse rica, não digo nada; há homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai, não tem por onde se lhe pegue...

- Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.

- Tu?... Apesar de...?

- Apesar de tudo!

- Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!

- Por quê?

- Seria ridículo!

- Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?

- Ah! Por esse lado, não conheço outra que mais o seja!

- Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter com o pai e que a peças em meu nome.

- Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente consultá-la, e só depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e não eu. O mais que posso fazer é apresentar-te ao velho.

- Pois está dito!

No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu chegasse às mãos de Idalina:

"Minha senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me Laurindo Borges, sou de família honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um emprego público, não tenho ligações nem compromissos de espécie alguma, e ganho o necessário para constituir família. Julgo que não lhe sou de todo indiferente; portanto, rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu pai. O obstáculo que de alguma forma se poderia opor a nossa união desaparece diante do amor profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou."

A resposta não se fez esperar:

"Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia condenar-me ao celibato, e uma vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos que despertei no seu coração, autorizo-o a pedir a minha mão a papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e prevenido por mim."

À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse.

No domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os recebeu de braços abertos.

- Aqui tem - disse-lhe o Ventura - o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer um pedido muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.

- Queiram sentar-se - disse o velho; e, depois de sentados os três, continuou: - Já sei do que se trata. Minha filha, que não tem segredos para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em resposta. Mas fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor não considera um obstáculo a...

- Não! - interrompeu o Borges. - E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso. Dona Idalina possui qualidades morais que tudo compensam.

- Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?

- Já lhe disse que sim.

- Bom; nesse caso, vou chamá-la.

E erguendo a voz:

- Idalina?

- Papai? - respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos de Borges como um hino de amor.

- Vem cá, minha filha!

Não se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o namorado, e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, à primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau!

Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava aquela ausência de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em pranto.

- Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? - perguntou o vidraceiro.

- Eu referia-me à mãe de D.Idalina...

- Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o contrário do que foi aquela infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo, como todas as pérolas.

Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas da moça acabaram de subjugá-lo. Ele ergueu-se e, num generoso ímpeto de amor, correu para ela, ajoelhou-se aos seus pés - quero dizer: ao seu pé - tomou-lhe as mãos ambas, e beijou-as dizendo:

- Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração de ouro?

- Ora, ainda bem! - exclamou o velho. - Case-se, e creia que leva uma mulher completa, apesar de lhe faltar uma perna!

Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razão.

O Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes dizia aos seus botões:

- Idalina talvez não fosse tão boa, tão carinhosa, tão submissa, tão fiel, se tivesse ambas as pernas...

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 5


minha amiga
indecisa
lida com coisas
semifusas

quando confusas
mesmo as exatas
medusas
se transmudam
em musas
****************************************

sabendo
que assim dizendo
— poema —
estava te matando
mesmo assim
te disse

sabendo
que assim fazendo
você estava durando
foi duro
mesmo assim
te trouxe

mesmo assim
te fiz
mesmo sabendo que ias
fugaz
ser infeliz
sempre infeliz

mesmo assim
te quis
mesmo sabendo
que ia te querer
ficar querendo
e pedir bis
****************************************

pompa há tanto conquista
cautela tão mal calculada
pausa na pauta
quem sabe em pio pousada
me passa este meio-dia
atravessa este meio-fio
aplaca em luz
a causa desta madrugada

atiça-me a calma
em cólera e guerra floresça
toda esta falta minha alma
tanta valsa chama saudade
tanto A tanto B tanto Z

tanto mim me pareça você
****************************************

não possa tanta distância
deixar entre nós
este sol
que se põe
entre uma onda
e outra onda
no oceano dos lençóis
****************************************

sexta-feira
cinza

quantas vezes
vais ser treze?

quantas horas
têm teus meses?

quantas quintas
vão ser trinta?

quantas segundas
nem são nunca?

quantas quartas
infinitas?
****************************************

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência
****************************************

pétala
não caia esse orvalho

olho
não perca essa lágrima

auras que já se foram
grato pela graça
a graça que eu acho
em tudo que fica
por tudo que passa
****************************************

Desculpe, cadeira,
está pisando no meu pé.
Desse jeito, mais parece
esta mesa: nada mais faz
que cansar minha beleza.

Vocês vão ver uma coisa.
Nem porque é de ferro
pode moer meu dedo
este prego, o martelo.

Vocês não têm cabeça.
Não passam de objeto.
Vocês nunca vão saber
quanto dói uma saudade
quando perto vira longe
quanto longe fica perto.

Desculpe, cadeira,
está pisando no meu pé.
Desse jeito, mais parece
esta mesa: nada mais faz
que cansar minha beleza.

Quanto ao resto — até.
****************************************
elas quando vêm
elas quando vão
versos que nem
versos que não
nem quero fazer
se fazem por si
como se em vão

elas quando vão
elas quando vêm
poesia que sim
parece que nem

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos (saques, piques, toques & baques). Publicado em 1987.

Malba Tahan (O Santo Ladrão)


Certa vez, no interior da Índia, um ladrão aproveitando-se da escuridão da noite, tentou assaltar a casa de um rico senhor. Sentindo-se percebido, fugiu para um bosque vizinho e ficou escondido sob uma árvore, de onde via, de quando em vez, avermelhados clarões que surgiam nas trevas. Eram os criados do ricaço que o procuravam, com grandes tochas, pesquisando todos os recantos do bosque.

— Estou perdido — pensou. — Os malditos servos fatalmente virão encontrar-me aqui.

E, sem perda de tempo, resolveu arranjar um disfarce qualquer. Sujou o rosto de terra, rasgou as vestes e, ajoelhando-se no chão, fingia um santo faquir absorvido em profunda meditação.

Os seus perseguidores não reconheceram naquele humilde penitente o astucioso ladrão que, pouco antes, havia tentado violar a residência do rico patrão.

E pressurosos levaram a notícia ao dono do palácio:

— Não encontramos as pegadas do ladrão, e o único ser vivo que conseguimos descobrir foi um santo que orava sob uma árvore!

— Um santo em minhas terras! — bradou entusiasmado o proprietário — Que felicidade!

E foi, sem demora, acompanhado da esposa e filhos, levar frutas e doces ao falso anacoreta.

A notícia correu célere pela cidade. Na manhã seguinte, crentes, em multidão, foram admirar o extraordinário faquir que vivia no bosque sob uma árvore, com o rosto sujo de terra e as vestes em frangalhos. Deram-lhe muito dinheiro e valiosos presentes.

Ao ser informado da presença do santo, o Príncipe Nahor, que governava a região, assaltado por súbita e devota curiosidade, ordenou que seus oficiais fossem ao bosque e obtivessem do venerando penitente permissão para conduzi-lo ao palácio.

E num carro dourado, à frente de grande cortejo, o audacioso aventureiro foi levado à suntuosa morada do Príncipe Nahor. Pelas ruas, quando o préstito passava, os homens ajoelhavam-se e beijavam fervorosos a terra entre as mãos.

O príncipe recebeu o novo santo com o maior respeito e solenidade, beijando-lhe a ponta
esfarrapada da túnica.

— Santo faquir! — exclamou — Só hoje chegou ao meu conhecimento a vossa vida exemplar e modesta de orações e penitências. Desejo que demonstres aos meus queridos súditos a grandeza de vosso poder milagroso. Assim é que vos peço realizeis em minha presença, e na dos ilustres Brâmanes, um milagre prodigioso que robusteça ainda mais a nossa fé e confiança!

Respondeu o falso anacoreta:

— Ó Príncipe! Bem sei que sois generoso e bom, mas só poderei realizar o milagre que acabais de ordenar se prometeres conservar-me sob vosso amparo e proteção! Receio que contra mim se assanhem os ódios exaltados dos incrédulos!

— Asseguro-vos, sob palavra — atalhou o príncipe — que estais sob a minha proteção e
ninguém ousará o menor movimento contra a vossa pessoa. Aquele que tentar contra vós qualquer ofensa ou vingança será castigado impiedosamente.

— As vossas palavras — declarou o ladrão — traduzem a maior garantia que um ser humano pode desejar.

E acrescentou:

— Vou realizar diante de vossos olhos dois espantosos milagres que deslumbrarão os crentes e deixarão humilhados os pecadores. E, com o maior cinismo, narrou ao príncipe as peripécias por que havia passado desde a sua tentativa de assalto à casa do ricaço até sua chegada ao palácio.

— Eis, senhor — concluiu — os dois milagres que prometi.

— Que milagres? — retorquiu o príncipe, tomado de incontido rancor — Não vejo milagre algum, ó cão miserável!

— O primeiro milagre, ó príncipe generoso, foi o seguinte: com um punhado de areia e um pouco de cinza, transformei um ladrão num venerável e virtuoso santo. Depois, narrando a verdade em vossa presença, fiz com que o venerável santo se transformasse, novamente, num ladrão abjeto. Penso que essas extraordinárias metamorfoses que realizei foram altamente milagrosas!

Percebeu o arrebatado príncipe que se achava impossibilitado de castigar o inteligente ladrão, pois havia empenhado a sua palavra, e o aventureiro nada poderia sofrer. Dirigindo-se ao respeitável Sind Avastir, o mais sábio dos seus conselheiros, perguntou-lhe:

— Qual a conclusão moral, ó brâmane!, que poderíamos tirar dessa história? Não resultará dela algum ensinamento útil para o meu povo?

O digno sacerdote hindu respondeu:

— A aventura ocorrida com esse aventureiro que faz jus, aliás, a uma boa recompensa,
subministra-nos vários pensamentos e ensinamentos morais. Penso, entretanto, que será
mais interessante deixar o público, por si mesmo, tirar do caso as conclusões que achar mais acertadas.

E, nesse sentido, o príncipe lavrou uma sentença que se tornou célebre.

Fonte:
Malba Tahan. Lendas do deserto. Publicado originalmente em 1929, com prefácio de Olegário Mariano.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 319


Aparecido Raimundo de Souza (Cena Urbana I)


- Maria - grita a patroa lá da garagem enquanto acaba de tirar as coisas de dentro do carro. - Ponha a Regininha no berço e o resto da mamadeira na gaveta da geladeira.

- Tá legal, dona Camila.

Uma hora depois, a patroa apavorada, surge, na sala, à procura da recém nascida. A serviçal está com os olhos grudados na televisão, um saco de pipocas de um lado, uma latinha de refrigerante do outro:

- Maria, Maria, por tudo quanto é mais sagrado! Onde está minha filha?

- Ué! No berço...

- Meu Deus, Maria, no berço encontrei a mamadeira!

- Credo em cruz, dona Camila! Valha-me Jesus Nossa Senhora! Na pressa para aprontar o jantar e ver o capítulo de hoje, da novela, acho que troquei as bolas. Corre na gaveta da geladeira.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O Vulto da Sombra Estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Trovas do Sul) X


A natureza convida
para termos mais cuidado,
se amanhã quisermos vida
e o planeta preservado.
- - - - - -
Apressado o passarinho
quando chega a primavera,
procura fazer seu ninho
no lugar que prepondera.
- - - - - -
A vaidade tem seu preço,
elevado, por sinal!
Talvez doce no começo
mas amargo no final...
- - - - - -
A vida não surge pronta.
Muitas vezes nos frustramos.
Nem sempre nos damos conta
do quanto na vida erramos...
- - - - - -
Chorar de dor ou saudade,
não tem choro alentador,
todo choro na verdade
revela emoção ou dor.
- - - - - -
Comentários sobre a vida
a deixam muito abalada,
bem maior a dor sentida
do aquela comentada.
- - - - - -
Dedo em riste aponta os erros
que a humanidade comete.
Nunca adentre em exageros
porque o dedo compromete.
- - - - - -
Junto à porta da mentira
a chave fica esquecida,
nela a verdade conspira
para proteger a vida.
- - - - - -
Lendas, mitos, casos raros,
pontilham a nossa história,
uns obscuros, outros claros,
todos vivos na memória.
- - - - - -
Mesmo sendo peremptória
tua humilde pretensão,
poderás mudar a história
se mudares tua ação.
- - - - - -
Nada vale abandonar
um leito velho, molhado,
se logo após for deitar
noutro pior, encharcado.
- - - - - -
Não confunda vida plena
com a pequena fortuna,
nem uma mata serena
com a plantação de tuna.
- - - - - -
Não deprede o patrimônio,
nem degrade a natureza,
a vida, neste binômio,
se completa na beleza.
- - - - - -
Não passa despercebida
na vastidão desta estrada,
a marca de quem na vida
deu luz a cada jornada.
- - - - - -
Na parede emoldurado
sob a forma de retrato,
um quadro já desbotado
pelo pó do anonimato.
- - - - - -
Nas estradas da existência
sempre tem alguns espinhos,
a machucar com frequência
o mais tenro dos pezinhos.
- - - - - -
Nunca deixe a fé morrer,
faça dela o seu fanal
de luta enquanto viver
do começo até o final.
- - - - - -
Os primeiros passos dados
independentes da idade,
são normalmente arquivados
nas gavetas da saudade.
- - - - - -
Para um sonho conquistar
nele terá que insistir,
a norma é sempre lutar
e a lei: nunca desistir.
- - - - - -
Pés descalços, machucados,
segue à vida em seu labor,
quem tem os ombros marcados
com sinais de um lutador.
- - - - - -
Pobreza e simplicidade
não rimam com rebeldia,
estilos que a humanidade
conhece no dia a dia.
- - - - - -
Propostas indecorosas
não merecem atenção,
envergonham, são danosas,
mancham a reputação.
- - - - - -
Quer algo que sempre dure?
Olhos no céu, pés no chão...
Amor firme que perdure
muito além de uma paixão.
- - - - - -
São tantos os eleitores
que elegem seus candidatos,
pra ser seus procuradores
no exercício dos mandatos.
- - - - - -
Se a forte dor não declina
nunca hesite em procurar,
o auxílio na medicina
para poder melhorar.
- - - - - -
"Se não puder fazer tudo",
por julgar que não tem jeito,
faça um pouco, sobretudo;
ao fazer, faça-o bem feito!
- - - - - -
Se um saudável chá caseiro
vindo da mata nativa,
não sanar o mal, inteiro,
busque nova alternativa.
- - - - - -
Sobre o mapa do progresso
procuramos o endereço,
onde resida o sucesso
e dos passos seu começo.
- - - - - -
Talvez quem tem mais conforto
jamais pensou que estivesse,
frente a um mundo pobre e torto
que sequer seus pés aquece.
- - - - - -
Tão longínqua primavera
dos meus tempos infantis,
revê-la, meu Deus, quisera!
Mesmo assim estou feliz...
- - - - - -
Triste pranto banha a face
de quem chora grande dor,
pior se for desenlace,
ou rompimento do amor.
- - - - - -
Uma sombra cobre os dias,
manhãs, tardes, madrugadas.
Duas cadeiras vazias
pela saudade, ocupadas...
- - - - - -
Um tremor, mesmo remoto,
causa temor tão profundo,
faz de um simples terremoto
parecer o fim do mundo.
- - - - - -
Vitória, fruto colhido,
dos ramos da persistência,
pela mão com braço erguido
nos pomares da existência.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Ialmar Pio Schneider (Crônica, Soneto e Trova a Pablo Neruda)

Pablo Neruda

(Por ocasião da data do aniversário de nascimento do poeta Pablo Neruda que foi em 12.07.1904, em Parral, no Chile).

Ao transcorrer a data de aniversário do nascimento de um dos maiores poetas, senão o maior da América do Sul, fiz-lhe o soneto abaixo, que ora transcrevo. Começou ainda jovem a compor seus poemas de um lirismo a toda prova e ao longo dos anos se dedicou também à política, visando os menos favorecidos, como foi a história da sua vida. Lembro-me de uma passagem em que ele fala que o piano de sua infância foi o barulho que as goteiras faziam ao cair nas vasilhas que sua mãe colocava para receber a água que caía dentro de casa. Diz ele que aquelas notas o acompanharam, caindo sobre o seu coração e sobre a sua poesia.

Em 21 de outubro é escolhido ganhador do "Prêmio Nobel de Literatura", viajando a Estocolmo para recebê-lo das mãos do monarca sueco, em 1971.

E no 2º terceto do seu soneto XXIX, conclui: “Eres del pobre Sur, de donde viene mi alma: / en su cielo tu madre sigue lavando ropa/ con mi madre. Por eso te escogí, compañera”.

Eis o soneto de minha autoria:

SONETO PARA PABLO NERUDA
homenagem póstuma

Li seus Poemas e a Canção Desesperada,
há quantos anos, quando enfrentei a paixão
que invadiu minh´alma e não fiz quase nada,
porque não contrariei a voz do coração...

E fui andando... andando e a vida abandonada,
às vezes me deixou na dor da solidão,
pensando na mulher que fora minha amada
e que só meu causou uma desilusão...

Quem pôde cantar tanto, ainda sendo moço,
em plena juventude, os cânticos de amor
que senti produzir o maior alvoroço

no peito varonil onde o sonho não muda?!
O Poeta Genial, de saudades e dor,
produzindo poesia... O irmão Pablo Neruda !

TROVA

Pablo Neruda, o cantor
que leio de madrugada:
“Veinte Poemas de Amor”
e a “Canción Desesperada”.

Fonte:
Texto e versos enviados pelo autor.

Carla Rejane Silva (Ser Feliz é Responsabilidade dos Outros? Não, Só Nossa)


Quando você se sente só, eternamente infeliz e desiludida é engraçado. De repente, do nada, você dá um encontrão com o tão sonhado amor. Então faz dessa paixão a sua prioridade. Seu mundo, seu tudo. E cada vez mais você se entrega à Luxúria do prazer de amar.

Depois de algum tempo, talvez muito tempo, percebe que não está feliz, que não é feliz, como nos livros de romances, onde tudo são flores e estrelinhas, nos ditos cujos existe sempre um começo, um meio, e um fim. Nessa desilusão sombria, ouvi de uma amiga querida, algo que mexeu com minhas emoções.

Quando impomos à alguém, seja quem for, a nossa felicidade ou infelicidade, na verdade estamos destruindo a nós mesmos, e em consequência levamos a pessoa de roldão, no mesmo barco. Ninguém tem por obrigação fazer alguém feliz, ou covardemente infeliz (seja família, parceiro, filhos, etc.). A pessoa é apenas um complemento de um todo.

Ser feliz é, portanto, responsabilidade nossa. Nossa somente, de mais ninguém. Como podemos despertar uma afeição profunda, um desejo eloquente, uma paixão arrebatadora, em uma grata persona, se a própria criatura não tem amor por si mesma, ou sequer respeito? Primeiro devemos nos amar, nos respeitar, nos colocarmos para cima. Depois então, distribuir-nos para os outros... Mesmo assim, em dosagens poucas.

O que adianta doar seu ego hipocondríaco, para satisfazer fulano ou beltrano? Onde certamente se predispõe uma atitude falsamente medíocre, ali está colado o nosso DNA. Como tudo nessa vida, é puramente insano, buscamos impensadamente reciprocidade. Contudo, quando isso não acontece por “A ou B”, nosso mundo desmorona de uma forma aterradora que nos faz ficar vazia, oca rés-ao-chão.

Depois disso tudo, vem aquela certeza que estamos errando feio diante de nós mesmos. Pior, jogando toda culpa de nossa incapacidade de enxergar os erros cometidos em alguém que não teve nenhuma culpabilidade.

Por que?!

Fraqueza! Fraqueza. Isso mesmo, fraqueza. É como querer obrigar que alguém lhe ame, ou que retribua, por igual, seus sentimentos. Ninguém pode gostar da outra, ou agir da maneira que melhor lhe convém. Ou, lado outro, retribuir o idêntico amor que é oferecido. Amor é entrega, é liberdade... Amor é paz e harmonia; nunca uma prisão.

Quer ser amada, e respeitada, ser digna de ter a felicidade plena? Então ache seu caminho de volta. Regresse. Vá de encontro ao seu próprio eu e seja responsável por trilhar o caminho de sua serenidade e completude. Ai sim será capaz de trazer a bem aventurança por onde passar, sem se anular, sem machucar ninguém, e o melhor de tudo, sem se machucar a si mesma.

Seja dona de si, de sua tão sonhada e propriamente dita. FELICIDADE.
****************************************

CARLA REJANE DA SILVA COSTA DOS SANTOS (nome literário: Carla Rejane Silva). Cinquenta e cinco anos, viúva. Sou mineira de Araguari, onde nasci em 1965. Escritora inveterada. Coleciono vários escritos. Pretendo lançar meu primeiro livro em um futuro próximo. Não penso, um dia, me tornar famosa. Sonho, todavia, em me perpetuar na literatura que é a minha paixão e quero, simplesmente, ser uma partícula dentro dela e, num futuro próximo poder embriagar os corações dos meus leitores. Ainda sou pequena, estou dando os primeiros passos como cronista. Tudo o que escrevo vem do coração.

Fonte:
texto enviado por Aparecido R. de Souza.

domingo, 12 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 318


Paulo R. O. Caruso (Crônica) 1


Sábado, 5h20min da manhã. A aurora esticava tenuemente os braços rumo ao despertar para o novo dia. Os olhos de Rubinelson Furtado brilharam quando ele, após algumas horas perambulando por um bairro da Zona Norte da cidade, enxergou Margareth. A estonteante morena saíra do seu trabalho como corretora de imóveis direto para a balada, em celebração ao seu aniversário de 26 anos, com colegas da academia de educação física.

A localidade não era das mais seguras, o que fez a moça, ao descer do ônibus exausta, esticar a largura dos passos rumo ao beco que dava para a sua residência. Mais uns cem metros e enfim estaria em segurança para dormir até a tarde após uma sexta-feira tão exaustiva, conquanto divertida. Nem parecia preocupada com a, segundo ela, "tal virosezinha que, após devastar vários países, recém adentrara o território brasileiro.

O rapaz, por seu turno, mantinha-se muito bem informado acerca do Coronavírus e trajava luvas brancas e máscara, temendo um possível contágio nas ruas. Todavia, igualmente acelerou suas passadas com o intuito de alcançar a beldade.

- É o seguinte, dona. Perdeu, perdeu! Passa o celular e a bolsa já já!

- Oi? Como assim? Assaltante se protegendo dessa frescura de virose????

- Frescura não, madame. Mais respeito! Co-ro-na-ví-rus! COVID-19, viu? Já matou milhares na China, na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos, na França, na Inglaterra e só Deus sabe onde mais! E chegou aqui ao Brasil, tá?

- Sério isso?

- Olha só, sem conversa! Passa tudo! Já me enchi de ficar correndo risco por sua causa! - esbravejou com olhos esbugalhados o vagabundo, de tão apavorado ante a possibilidade de se contaminar num "acidente de trabalho"...

A morena, segundo ordens do neurótico interlocutor, já ia se preparando para passar álcool em gel na parte externa da bolsa pirateada e no celular para entregá-los ao larápio quando, de repente, veio a fatalidade. Ele, que mantinha a mão direita no bolso como quem aponta uma pistola contra a vítima, se desesperou ao receber perdigotos no rosto, na máscara e na roupa. Afinal, Margareth soltara um forte espirro proveniente de uma rinite alérgica devida a uma lufada de vento empoeirada.

O rapaz, apavorado, imediatamente desfaleceu na frente da jovem. Acordou na delegacia e, depois do resultado negativo do teste, deu graças a Deus pelo confinamento involuntário...

Fonte:
texto enviado pelo autor

Nadir D’Onofrio (Poemas Escolhidos) II


NOITE DE LUA CHEIA    

O coração em fase minguante
luta contra a maré cheia
Num esforço desgastante
como barco que vagueia

Sem o marujo arrogante
que meu rosto afogueia
Quando chega insinuante
deitando-me na areia...

Ante o porte elegante
minha mente devaneia
Este é o meu amante!

A luz do luar bruxuleia
por entre nuvem gigante
E o teu calor que incendeia...
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QUE CHEGUE A PRIMAVERA...


Traga o aroma das flores de laranjeira
E as cores que ornam as jardineiras
No jardim espetáculo das cerejeiras
Onde cria sua teia... a aranha fiandeira...

O cerrado apresenta festivais de formas
Cenário mostra ipê, lobeira, poinciana
Mescla de beleza, delicadeza, aromas
Entre pequizeiros, destaca-se a tipuana

 Em meio à imensa diversidade
Surge um filhote de lobo guará
Mostra-se altivo em sua jovialidade

Em sobrevoos constantes, um carcará
Astuto, busca a presa com voluptuosidade
Que dorme à sombra da palmeira indaiá
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SORRISOS


Sorri ao te encontrar!
Sorrio ao saber que vais chegar
Esboço um riso ao pensar em ti
E na verdade, que por tempos omiti...

Há dias que meu semblante entristece
Não tenho você, para aconchegar
E quando sem causa, desaparece
Faz meu espírito, desassossegar

Acostumei-me a sua presença!
O carinho de sua mão
Afasta de meu ser a descrença

Não quero vida de ermitão
Tampouco, decreto de sentença
Aceito seu comando capitão...
****************************************

SOU TEU VÍRUS...


Terrivelmente contagioso
Em teu ser fiz morada
Aninhei-me e prolifero
No teu corpo... arraigada

Meu único hospedeiro!
Por seres tão especial
Amado e desejado!
Isso tudo é natural...

Tentei escamotear
Sufocar o sentimento
É somente acarinhar

Com versos incomodar
Mostrar meu assanhamento
Na forma sutil de te amar...
****************************************

VENDAVAL DE PAIXÃO

Saltitava fogoso como um corcel
Meu pensamento obsceno!
Mente rodopiava em carrossel
Misturando o sacro e o pecado

Bastou a tarde findar
A noite fria chegar
Essa melancolia vem acampar
Intrometida, chega sem avisar!

Fique, se aninhe
Será só por um momento!
Ou espera que eu definhe?

Essa paixão é como vendaval
Que se  forma no meu ego!
Varrerei a tristeza para o quintal...

Fonte:
Asas dos Sonhos

Aparecido Raimundo de Souza (Luis Fernando Veríssimo em Xeque)


(Nota do Blog: Entrevista realizada em Porto Alegre/RS, na casa de Veríssimo, onde o escritor fala de seus livros e de sua vida pessoal.)
- - - - - –

CONHECI LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO em 1981, em Porto Alegre, na Feira do Livro. Trocamos figurinhas. Ele lançava “O Analista de Bagé” e eu lhe dei de presente o meu “Quem se abilita?” Fizemos uma boa amizade, e acabei indo parar em sua casa, onde me concedeu uma pequena e breve entrevista. Eu primaverava na casa dos vinte e oito,  enquanto ele, velho na estrada, sorria fazendo enorme sucesso com suas crônicas humorísticas.

Diante de um famoso, não tinha muito a perguntar. A empresa que eu trabalhava em São Paulo, não me deu um roteiro para ser seguido, tipo pergunte isto, pergunte aquilo, não pergunte isto, tampouco aquilo outro. “Vá para Porto Alegre e se vire”.  Fui. Resolvi, então, por conta própria, seguir meu instinto de jornalista.

A Entrevista

ARS: Luiz Fernando Veríssimo, me  fale do livro que acabou de lançar aqui na Feira de Porto Alegre, “O Analista de Bagé”. Pelo que fiquei sabendo a edição se esgotou num abrir e piscar de olhos? A que o senhor atribui esse sucesso?

LFV: Acredito que pelo fato de ser um livro novo, falando de uma cidade aqui do Rio Grande do Sul. Bagé. Eu considero “O Analista de Bagé” um dos personagens mais marcantes da minha carreira de cronista.  Inicialmente os textos que deram nome ao livro, foram publicados em O Popular. O que fiz foi reunir todas as crônicas já conhecidas do grande público e enfaixa-las em um livro. A seleção saiu pela L&PM Editores, de São Paulo. Juntei tudo o que havia escrito sobre o personagem e deu no que deu. Não esperava fosse dar todo esse frisson. Penso que fui duplamente recompensado. Primeiro, porque não precisei fugir do linguajar da terra. Usei muito as expressões regionais do povo gaúcho, e segundo, consegui dar vida ao personagem que considero mais atrapalhado do que cachorro em procissão.  Atribuo o sucesso ao fato de escrever todos os dias para o Zero Hora. O Zero Hora é um jornal diário que roda todo o Estado e isso me fez ficar um pouco mais conhecido. 

ARS: O fato do senhor ser filho do escritor Érico Veríssimo ajudou?

LFV: Não. Papai tinha um estilo clássico. Seus romances eram excepcionais, bem construídos, personagens estudados. Eu sou mais brincalhão, guindei minha linha criativa voltada para o humorismo. E tenho me dado bem.

ARS: Qual foi seu livro de estreia como escritor?

LFV: “A Grande Mulher Nua”.

ARS: Me fale sobre as “Comédias da vida privada”.

LFV: Em “Comédias da vida privada” eu procurei me movimentar com mais destreza usando uma logística nova. O território onde movimento os personagens é imenso, ao mesmo tempo que opaco, denso e impreciso da classe média. Seus heróis anônimos, os grandes e pequenos gestos, a complicada engenharia familiar, o cotidiano das grandes cidades, ambientes onde transitam a esmagadora  maioria dos habitantes deste país. Eu diria que me transportei para um universo ao mesmo tempo rico e banal. Foi nele  que  me inspirei para dar vida aos personagens criados desde que comecei a escrever. São trinta e poucas crônicas, a maioria já publicadas no Zero Hora e no Jornal do Brasil. 

ARS: É verdade que o senhor viveu parte da sua infância fora do Brasil?

LFV: Sim, é verdade. Papai lecionou literatura brasileira nas Universidades de Berkeley e Oakland, entre 1941 e 1945. Em 1953 voltamos aos Estados Unidos, quando meu pai assumiu a direção do Departamento Cultural da União Pan-Americana, em  Washington, e só retornarmos ao Brasil em 1956. Nessa época, eu estudei no Roosevelt High School, também em Washington. Desenvolvi nesse entremeado de tempo, o gosto pelo Jazz, chegando a ter aulas de saxofone.  

ARS: Quer dizer que além de escritor é também músico?

LFV: Não exatamente. Cheguei a integrar um conjunto musical Renato e Seu Sexteto. Mas só de brincadeira, para passar o tempo e ganhar uns trocadinhos.

ARS: Vamos sair um pouco da sua vida literária e partir para a  pessoal. Me fale de sua família. 

LFV: Em 1962 eu saí daqui de Porto Alegre e fui morar no Rio de Janeiro. Trabalhei como tradutor e redator publicitário. Em 1963, encontrei o amor da minha vida. Me casei dois anos depois com a Lucia Helena Massa e tivemos três filhos: Pedro Veríssimo, Fernanda Veríssimo e Mariana Veríssimo. Pedro é cantor, Fernanda, jornalista e  Mariana, roteirista.

ARS: O senhor se sente realizado?

LFV: Acho que se sentir realizado é exatamente não se sentir realizado.

ARS: Seu maior sonho hoje.

LFV: Curtir futuramente meus netos. 
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Essa foi a minha breve entrevista com o escritor Luiz Fernando Veríssimo, esse gaúcho amável e simpático nascido em Porto Alegre em 26 de setembro de 1936. Autor de vasta obra, poderíamos citar: As Cobras e Outros Bichos,  O Jardim do Diabo, Sexo na Cabeça, A Velhinha de Taubaté, A Mulher do Silva, A Mesa Voadora, Orgias, O Suicida e  o Computador, As Mentiras que os Homens Contam, e outros mais.
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Aparecido Raimundo de Souza, é natural de Andirá/PR, radicado em Vila Velha/ES, jornalista e escritor. Autor de "Ligações Perigosas", série veiculada pela Rede Globo de Televisão.
 
Fonte:
Entrevista enviada por Aparecido R. de Souza.

sábado, 11 de julho de 2020

Varal de Trovas n. 317


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Aqui criamos juízo


Numa certa manhã, meados dos anos 1960, um dos pioneiros da cidade desceu do carro em frente ao local onde estava sendo construída a nova catedral de Maringá, ao lado da antiga igrejinha de madeira. Lá estava, em visita às obras, nosso primeiro bispo, Dom Jaime Luiz Coelho. O grandioso templo, projetado para chegar a 124 metros (mais 10 contando a cruz a ser colocada no topo), já estava com cerca de 30 metros. O homem aproximou-se, cumprimentou o bispo, fez uns rodeios, pediu licença e disse:

Olhe aqui, Dom Jaime, se eu fosse o senhor, mandava parar a construção no ponto em que está, que está muito bom assim, botava um telhado por cima e pregava uma placa dizendo: “Aqui criamos juízo”.

Graças a Deus Dom Jaime não criou “juízo”. Abraçou o amigo, agradeceu o conselho, porém disse que continuaria a obra até o final. No meio da conversa ainda conseguiu que o homem prometesse continuar ajudando, como de fato continuou: no dia seguinte mandou entregar lá um monte de sacas de cimento.

O querido pastor estava acostumado a ouvir espantos relacionados com a imponência do novo templo. Com frequência alguém lhe dizia: “O senhor é um homem peitudo mesmo. Pra tocar uma obra dessas tem que ter muito tutano”. Ele respondia: “Peitudo, na verdade, não sou eu; é o povo de Maringá. Sou apenas um homem de fé. Desde que aqui cheguei senti a fibra desta gente. Tenho certeza absoluta de que vamos juntos concluir logo a construção”.

Ele via a cidade crescer rapidamente em todos os sentidos. Achava então que a Casa de Deus teria de ser grande também, para mostrar que a espiritualidade estava em primeiro lugar no coração das famílias pioneiras. Imaginou um grande cone apontando para o céu, procurou em São Paulo o célebre arquiteto José Augusto Bellucci e em abril de 1958 expôs aos fiéis a maquete da futura catedral.

Quatro meses depois, no dia 15 de agosto, festa da padroeira Nossa Senhora da Glória, fez-se o lançamento da pedra fundamental – um pedaço de mármore retirado das escavações da basílica de São Pedro, no Vaticano, bento pelo papa Pio XII.

Em julho de 1959 iniciaram-se as obras. No dia 10 de maio de 1972, aniversário da cidade (25 anos), festejou-se o término da estrutura. No dia 31 de dezembro do mesmo ano, Dom Jaime celebrou a primeira missa na catedral nova. A Casa de Deus, que o povo de Maringá construiu em união com o primeiro bispo da diocese, está lá até hoje e lá estará por todo o sempre, como realização máxima da geração desbravadora. Quantos ajudaram a erguer tão belo símbolo de fé? Quanto suor de quantos operários? Quantas sacas de café doadas por pequenos e grandes agricultores? Quantas moedinhas oferecidas por humildes fiéis?

Um bispo peitudo e um povo generoso e forte. A fé faz maravilhas.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 25-6-2020)
Fonte:
texto enviado pelo autor.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 5


Viandeiro das manhãs. Porcelana azul. Nuvens poucas. Murmúrio das águas. Sol de inverno. O Grande Lago em calmaria. Pensares ruminando. A vida em magnitude.

Junho outra vez. E o vinte chegou. O mês mais bonito e o dia mais querido. Mais um ano vivido. Vívido ? Tentando . . . Nesta volteada do tempo é bom saber que viver em harmonia com o mundo é gratificante - a cultura, as artes, a música, os livros, o contato e relações com as pessoas - nos dá este caldo de bom viver, um cadinho de vivências que só aumenta com o passar do tempo. O bom-humor, a alacridade, o otimismo, são alimentos essenciais para conduzir bons ofícios sempre com simplicidade. Quintana disse que " são as pessoas que fazem os caminhos ".

Sigamos, pois, caminhando, que delícias nos esperam nalguma encruzilhada do futuro. 
BOA VIDA ENTÃO SE TENTA.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Adroaldo Soares de Albergaria (Poemas Escolhidos)


QUEIXUME

No velho casarão, em vaga indiferença,
em tropeços, entrei, num passo muito lento,
minha alma, qual um cofre submerso, em descrença.
viu se apagar a luz de um canto fumarento...

Chorando das desgraças, a corroer-lhe a vida,
estava u'a mulher em trajes infelizes...
Seio dilacerado e a alma ressofrida,
nos braços seminus, extensas cicatrizes,..

Sentado num caixão, olhando-a, desprezada,
depois de apreciar a noite transitória,
e fitando, de perto, a triste desamada,
pedi que me contasse a vida, sua história...

Erguendo-se tristonha e chorosa, tão pálida,
declamou, devagar, uma canção silente:
"Senhor, já tive reino e, hoje, sou inválida,
de todos, esquecida, e agora, assim, doente...

"Senhor, eu fui mulher, em sublime honraria,
via-me, com respeito, a grande humanidade...
Eu fui, senhor, eu fui tua excelsa Poesia,
trovadora do Amor e da Felicidade...

"No século passado, em gala, nos salões,
por todos cortejada, eu fui primeira dama...
Mas tudo se acabou, vim parar nos porões,
por muitos profanada, ora vivo na lama...

"Carcomido o meu peito, nesta noite tétrica,
nada valho nas mãos dos que se acham artistas.
Outrora, tive rima; outrora, tive métrica.
Hoje, estou poluída, às mãos dos modernistas...

"Que me vale, na vida, o gozo de ilusões?
se mataram, sem pena, a minha fantasia...
Só no passado existo, em muitos corações,
num palpitar contínuo, em perene alegria...

"Se Castro Alves souber do meu triste poente,
por certo, há de chorar, lá no seu trono augusto…
Se Azevedo souber ficará descontente,
mesmo que inda voltasse à taberna, e a custo...

"Quando Bilac vir-me estendida na lousa,
o fulgente parnaso estará desolado...
Chamará o Casimiro, o dos Anjos e o Souza
e, aí, protestarão em canto apaixonado…

"De Campos viu-me, noite antiga do passado,
lacrimosa, em surdina — era um momento vário..
Quem dera que pudesse enviar um recado,
inda quando vivendo o brilhante Olegário...

"Ó tira-me, senhor, das horas malfadadas!
ó tira-me, senhor, desta ingente agonia!
e lança-me, eu te peço, ao longo das estradas,
para florir de novo a divina poesia..."
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DUELO COM O POETA

"Já cheguei, poeta louco, vou te levar
para amplidão nefasta da caverna!...
Os teus olhos irão lacrimejar
nas malvadezas da miséria eterna!
Quero é ver o teu corpo na tortura
do páramo infernal da desventura!"

"Eu quero te matar, poeta funéreo,
quero beber teu sangue e, enfurecida,
te transportar até o cemitério!
Supuseste tua alma era esquecida
e que a hora, por certo, não chegava,
de sangrar-te, com minha rubra clava?..."

 - Cala-te, voz de campo funerário,
não receio o teu eco miserando,
nem teu brado de vulto sepulcrário,
nem teu clamor, este clamor nefando!

Cala-te, sussurrar mefistofélico,
meus nervos pra te ouvir já estão aptos!
Olha a distância, sou um arcangélico,
muito acima de vícios mentecaptos!

Ia alta a noite, e a treva, em seu segredo,
mostrando um vulto forte em exorcismo,
enchia-me de tremores e de medo,
de solidão, de dor, de misticismo...

(No destino de minha torpe vida,
nunca ouvi murmurar tão leve brisa...
E a barca do meu ser, tão comovida,
em proceloso mar é que desliza...)

Repercutia e já falava tudo...
E a voz, em convulsões, dentro em meu ego
e, lentamente, eu fui ficando cego,
e, lentamente, eu fui ficando mudo!,..

Não resisti, senhores, fui entregue
ás torpezas da minha negra sorte:
Se uma, angústia intensa me persegue,
muito mais me persegue a voz da morte!...

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CONVULSÕES MENTAIS 


Por uma grande porta semi-aberta,
eu penetrei na casa da loucura...
A minha alma tristonha, já deserta,
retorcia-se de dor e de amargura...

O meu ser, em misterioso recoberto,
deitava-se no chão, em reservado…
A consciência era o oásis do deserto
e o coração, tugúrio infortunado...

Uma jovem na sala das misérias
se deitava num berço sem retoque...
E as algozes, mulheres deletérias,
aplicam-lhe na mente brutal choque...

No universo, inconsciente, em misticismo,
a moça, em transe, em vis crises frenéticas,
se torce nervosa, em seu paroxismo,
de convulsões tremendas, epilépticas...

Puseram-me na mesa do infortúnio
e me aplicaram as fatais descargas:
Minha mente tornou-se um plenilúnio
de coisas miserandas, mui amargas...

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Anuário de Poetas do Brasil – Volume 4. Rio de Janeiro: Folha Carioca, 1979.

Fernando Sabino (O Retrato)


Tanto reclamaram, que acabei telefonando ao Arnaldo: que diabo de retrato é esse que vocês foram me arranjar? Ele achou graça, disse que não tinha encontrado coisa mais recente, mas que eu ficasse descansado: ia dar nova busca no arquivo, tratar de substituí-lo. E sugeriu que eu tirasse outro, acrescentando — o meu bom Arnaldo! — num assomo de otimismo: um retrato novo, porreta!

Porreta que fosse — desde que me deixo seduzir por este belo adjetivo com ar de palavrão: retrato novo é mesmo este aqui, que acompanha regularmente a minha crônica na revista.

Olho-o pela primeira vez com atenção, num número atrasado. Para falar com franqueza, podia ser até do Marechal Dutra, eu pouco estaria me incomodando: a cara não tem nada a ver com o que se escreve, quem vê cara não vê coração. Mas a verdade é que a reclamação dos conhecidos tem cabimento, a minha não é mais esta.

Vejo um jovem de nariz fino e olhar assustado, com ar de quem vai se erguer de um momento para outro e começar a viver. O meu nariz continua fino e cada vez mais torto, talvez de tanto se meter onde não é chamado. Mas a vida já não assusta os olhos de quem dela recebeu mais do que esperava.

É fotografia tirada há bem uns vinte anos, daí para mais. Em vinte anos muita água correu debaixo da ponte. Mudei de casa, de hábitos, de profissão e de mulher. Continuei escrevendo, mas não escrevi o que devia. Ganhei e perdi tempo, amigos e ilusões. (Mais um pouco e sairia para uma letra de samba.) No entanto, tudo bem pensado e medido, nada me aconteceu.

A esta altura paro, e o leitor comigo, para me perguntar: a que vem esta conversa? Estamos habituados, um escrevendo e outro lendo, a casos pitorescos ou triviais, colhidos na vida cotidiana. Onde está o caso de hoje, a propósito ou não de velhas fotografias?

Pois aqui vai ele:

Era um fotógrafo de rua, desses que fingem fotografar e, depois de aceito e pago o talão, saem correndo para bater a chapa. Estávamos na Avenida Rio Branco, era de tarde, meu amigo e eu resolvemos documentar o acontecimento de sermos amigos e estarmos juntos numa tarde qualquer, na Avenida Rio Branco. Dois anos depois, não digo que o mesmo fotógrafo, mas na mesma Avenida Rio Branco, e em companhia do mesmo amigo, sou de novo fotografado. Não haveria nada de especial no fato de termos aceitado esta nova fotografia de rua, se não me ocorresse um dia compará-la com a anterior. Éramos praticamente os mesmos dois amigos — dois anos não haviam feito em nós grande estrago. Mas, para meu assombro, um sujeitinho baixo, magro e de bigode, que numa das fotos nos seguia na rua a poucos passos, era também o mesmo que na outra caminhava atrás de nós.

A coincidência era impressionante. Mas o que me perturbou mesmo foi a suspeita de estar sendo seguido pelo tal sujeito, já que ele não poderia ter ficado andando à toa pela Avenida Rio Branco durante dois anos. Neste caso, teria de aceitar a sugestão do Borjalo, a quem contei o caso, de tratar-se de um tira de polícia ou outra espécie qualquer de malfeitor; um anjo-da-guarda de bigode era coisa que eu não podia admitir.

A mesma sensação me vem agora, ao olhar este retrato que encima a minha crônica, por exigências de moderna paginação. Estou sendo seguido. Este jovem me persegue. Já foi flagrado mais de uma vez, caminhando atrás de mim. Não sou eu, mas eu fui assim. E cheguei quase a ficar assim! Nem graças ao elixir de inhame eu hoje seria assim. O Arnaldo prometeu arranjar outra mais recente no arquivo. Como escrevo com uma semana de antecedência, não sei se já fui atendido. Espero que tenha encontrado uma bem porreta.

Mas espero também que ao morrer, queira Deus que velho, bem velho — se o tal sujeito que me segue não tiver antes dado cabo de mim — possa dizer, olhando o retrato deste jovem num recorte antigo, entre meus guardados: nada me aconteceu; em tudo que ele acreditava eu continuo acreditando.

E senti-lo morrer comigo, só então senti-lo morrer dentro de mim.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.