quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Rubem Braga (O Fiscal da Noite)


Fui eu que vi o Cruzeiro erguer-se do mar e mais tarde chegar até o horizonte de minha varanda; vi duas estrelas muito brilhantes nascerem depois dele e subirem também. Analfabeto olhando as  estrelas, segui sua navegação sem saber seus nomes; vigiei de meu imóvel tombadilho.

Estava solitário, mas não  triste; lembrei o velho dito dos bêbados: "A noite ainda é uma criança".

Mas o tempo avança. Agora medito no seio de uma noite madura, como à sombra de uma grande árvore; de raro em raro, madura demais, cai uma estrela e se perde na escuridão do céu ou do chão. Quase não vejo o mar, apenas o pressinto e o sei arfando lânguido, sem vento.

Deus me pôs nesta rede a olhar a noite. Não tenho sono nem vontade de sair; não telefonarei para ninguém. Sou como um débil  mental a quem houvessem dado o emprego de fiscalizar as estrelas, e acompanho com paciência sua marcha lenta. Devo dizer que estão se comportando bem, tanto as mais novas como as mais velhas; andam de leste  para  oeste  de maneira morosa e sensata, guardando com atenção as respectivas distâncias. Se o major-fiscal me telefonar direi que não há nenhuma alteração. O nascimento da lua está marcado para as 2h45min da madrugada; espero que seja pontual e não me dê aborrecimentos. O  número de estrelas cadentes é diminuto.

Informarei: "Pequenas baixas; o desperdício de estrelas durante a noite a meu cargo foi mínimo e, creio, inevitável; nosso estoque é imenso, senhor major". O major comunicará ao  coronel,  este ao general, este ao Presidente da República. O Presidente  da  República expedirá mensagens congratulatórias a Deus e a Albert Einstein, no Paraíso.

Adormeço na rede, e desperto assustado; mas o céu está em ordem, e as estrelas marcham  sempre na mesma direção, como crianças bem comportadas. Deus me pôs nesta rede, e o Diabo me fez dormir. Felizmente a lua ainda não nasceu. Risco um fósforo para olhar meu relógio ("a opinião do prefeito de Genebra sobre a hora de  Ipanema"), meu  famoso relógio antimagnético, antiatômico e antilírico, e suspiro aliviado; ainda faltam 18 minutos para o nascimento da lua. Levanto-me e tomo posição em outro ângulo da varanda, murmurando:  "Vamos  providenciar isso".

Fonte:
Rubem Braga. A Traição das Elegantes. RJ: Sabiá, 1967.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 386

 


Arquivo Spina 11 (Rita Queiroz)

 


Carolina Ramos (O Poder de Um Simples Gesto!...)


As "coisas" não têm o mesmo sabor durante a vida toda. A própria vida é que, com arte, tempera tudo o que nos transita ao redor, misturando cores, sabores, criando sutilezas mutantes, fruto do que vemos, do que sentimos, inalamos e saboreamos ao longo da existência, sujeitos sempre à alquimia das múltiplas fases. E se assim  admitimos, ronda perto a resposta ao perplexo questionamento machadiano, já lugar comum: — "Mudou o Natal, ou mudei eu?!"

Que imensidade, espiritual e também material, se esconde por detrás dessa palavra sublime - Natal! Na infância, a expectativa, o ansioso aguardo da chegada, do Pai Noel, misto de fé e fantasia, alimentado pela matutina corrida aos sapatinhos, à espera dos presentes deixados, na noite anterior, sobre aquele fogão de cada dia, nessa noite, alçado ao status de lareira — à imitação dos moldes europeus ou dos pagos do sul, onde o frio aperta e o desejo de aconchego troca a sofisticação por necessidade.

Os pais a dormir tarde, no controle aos olhos curiosos, doidinhos para flagrar e perturbar os preparativos da Noite Santa! Fugida ao leito bem cedo, cara e asas de anjo, a criançada corria em busca do presente que o Velho Noel deixara nos sapatos dos merecedores — os tais "bonzinhos" daquele ano — o que, no final, todos acabavam por ser, já que ninguém ficava sem recompensa! — Não seria isto, por acaso, a semente dessa impunidade que por aí viça?!

Pergunta incômoda, esqueçamos! Nada de conotações constrangedoras quando o assunto é o Natal da nossa infância, aquele Natal que tinha brilho, tinha gosto... tinha cor e cheiro de Natal!

Para a Ceia, a mesa adornada com carinho especial, "enquitutada" no capricho, (vale o neologismo!) rodeava-se de gente amiga, gente alegre e gulosa, a esbanjar lembranças, meio àquela zoeira festiva dos reencontros bem humorados, dos abraços e tilintar de taças! Num canto nobre da sala, um pinheiro, natural ou não, enfeitado de luzes e bolas coloridas, brilhosas e tão frágeis, que exigiam renovação a cada novo ano!

Sob a árvore simbólica, o encantamento espiritualizado e singelo, do pequenino presepe, à espera do momento máximo das doze badaladas, quando o Menino seria colocado no berço de palha pelas mãozinhas puras de algum anjo, escolhido especialmente dentre os mais novos da família, para consumar a magnitude daquele ato sublime.

Natal Santo! Natal Família! — ao correr dos tempos, esvaziado e amargurado pelo sal das ausências (outro lugar comum das crônicas natalinas, sempre repetido, porque inquestionável).

Os ciclos, se repetem, alguns mais longos que outros. E, tempos depois, quase tudo é reestruturado, tão logo a algazarra dos netos nos invade a intimidade, a despertar os guizos das lembranças, a sacudir e reativar emoções, suavizando até mesmo aquelas saudades queridas, tão pesadas e doridas que, graças ao milagre natalino, se adoçam e chegam até a ganhar brandura!

Neste ano, fato inusitado antecipou-me o sabor de infância, chegado de surpresa pelas mãos carinhosas de uma filha. O singelo presente devolveu-me o delicioso sabor, perdido pelas esquinas da vida, sem que o esperasse voltar a provar! Sabor engolido pelo tempo e chegado, sem espera, naquele potinho de louça, repleto de amoras maduras, fresquinhas, cor avinhada e perfume suave! Não simples amoras, compradas numa banca de supermercado, que, se assim fosse, seriam menos valiosas sem o rótulo do carinho filial. O regalo deixava transparecer, ainda, um toque de justificado orgulho, servindo de invólucro o lembrete da filha: — "Mãe, estas amoras, são daquela amoreira que eu mesma plantei... lá no meu quintal!"

Deliciada, confesso nunca ter saboreado nada tão gostoso quanto o que me oferecia a terna doçura daquele punhado de amoras, frescas e perfumadas... nascidas no quintal de minha segunda filha!

E então, "não mais que de repente..." como diria Vinícius, o espírito natalino acenou, avisando já andar por perto! O pequeno pinheiro, que neste ano, inexplicavelmente, "preguiçava" sem ser desempacotado, saltou da gaveta e ganhou o costumeiro lugar no canto da sala, agora mais bela, coruscante de luzes e bolas coloridas, menos frágeis, não se partindo à-toa como antigamente.

Magia do Natal? — Com certeza! Mas, com certeza, também, aquele punhado de amoras frescas muito contribuiu para o empurrãozinho estimulador!

É que, para o coração de qualquer mãe, um pequeno e oportuno gesto de carinho, na maioria das vezes, vale bem mais que uma pepita de ouro!
- - - - - -
(Crônica publicada no jornal "A Tribuna", de Santos)

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela escritora.

XXX Concurso Nacional de Trovas de Bandeirantes/PR (Trovas Premiadas)


TEMA: DECISÃO

****************************************
Veteranos (ordem alfabética)
****************************************

Bela e santa vocação
a que faz que alguém decida,
para ver feliz o irmão,
dar por ele a própria vida.
Antonio Augusto de Assis
Maringá/PR
- - - - - -

No amor, a escolha é uma aposta
que independe da razão.
Se a gente gosta ou não gosta,
quem decide é o coração.
Antonio Augusto de Assis
Maringá/PR
- - - - - –

Em  decisão  acertada,
os  teus  lábios  de  veludo
fizeram  o  "quase  nada"
transformar-se  em..."quase  tudo"...
Antonio Colavite Filho
Santos/SP
- - - - - –

Mãe é juiz desonesto,
firme em sua decisão
pois absolve, em nobre gesto,
 de seu  filho a ingratidão.
Ariete Regina Fernandes Correa
Rio de Janeiro/RJ
- - - - - –

Se é delicada a questão,
aja como os fortes agem
e, ao tomar a decisão,
primeiro, tome coragem!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG
- - - - - –

Tantas lutas... tantas penas...
pede a missão da  mulher
e eu decido ser apenas
a mulher que Deus requer.
Carolina Ramos
Santos/SP
- - - - - –

Casulo de inércias fartas,
de indecisões em virose,     
a Terra, contém lagartas
que odeiam metamorfose.
Cezar Augusto Defilippo
Astolfo Dutra/MG
- - - - - –

Qualquer decisão que eu tome,
ante a atitude de alguém,
sempre a tomarei em nome
da Lei, do Amor e do Bem.
Cléber Roberto de Oliveira
São João de Meriti/RJ
- - - - - –

Se escuras encruzilhadas
transformam vida em abrolhos,
são decisões acertadas
fazer da Fé nossos olhos.
Dodora Galinari
Belo Horizonte/MG
- - - - - –

O momento decisivo,
pesou em meu coração...
E é morto de amor que vivo
a difícil decisão...
Edmar Japiassú Maia
Miguel Pereira/ RJ
- - - - - –

Se um julgamento se inclina
aos pleitos dos fariseus,
a decisão cristalina
vem dos exemplos de Deus!
Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre/MG
- - - - - –

Metade dos nossos ais
são das decisões que tens!...
Queres voltar quando vais;
queres partir quando vens!...
Edy Soares
Vila Velha/ES
- - - - - –

Pandemia, o seu legado
não conduza à decisão
de esquivar-me, amedrontado,
ao abraço de um irmão...
Eliana Dagmar
Campinas/SP
- - - - - –

Dá-me, ó Pai, a direção...
Ilumina a  caminhada,
para a minha decisão
ser perfeita e iluminada!
Ercy Maria Marques de Faria
Bauru/SP
- - - - - -

Se a decisão que careces
diz respeito aos sonhos teus,
eleva a Deus tuas preces
e deixa na mão de Deus.
Ercy Maria Marques de Faria
Bauru/SP
- - - - - –

Não trafegue entre cascalho,
fuja das coisas banais;
na decisão por atalho,
o preço é caro demais.
Francisco Ribeiro
Natal/RN
- - - - - –

Ah, Pilatos, que ilusão!...
Aquele pobre inocente
esperando a decisão
era Deus... na sua frente!
Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo/RJ
- - - - - –

Se o fracasso tem dois lados,
vale muito a decisão:
chorar os planos frustrados
ou bendizer a lição.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho/RO
- - - - - –

Quando tomo a decisão
de fazer coisa bem feita,
consultando o coração
faço uma trova perfeita!
José Antônio de Freitas
Pitangui/MG
- - - - - –

Não culpo a vida, meu fado,
por decisões infelizes,
porque sei que sou culpado
pelas minhas cicatrizes!...
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo/SP
- - - - - –

Nos momentos cruciais,
que nos cobram decisões,
atitudes valem mais
que retóricos sermões.
José Ouverney
Pindamonhangaba/SP
- - - - - -

Viver dividido é um risco
mas, quase sempre no fim,
o meu "lado São Francisco"
é quem decide por mim!
José Ouverney
Pindamonhangaba/SP
- - - - - –

Este olhar com frustrações,
sem brilho e tão triste assim,
vem das duras decisões
que a Vida tomou por mim.
Manoel Cavalcante
Pau dos Ferros/RN
- - - - - –

O amor tomou, por nós dois,
decisões tão desiguais...
Que quando eu te amei, depois,
já era tarde demais...!
Mara Melinni
Caicó/RN
- - - - - –

Na humildade dos seus passos,
lembre sempre a decisão
de dar a mão, nos fracassos,
a quem lhe estendeu a mão...!
Mara Melinni
Caicó/RN
- - - - - –

A decisão da partida
abafou a nossa voz,
cada lágrima caída
dizia tudo por nós!
Maria Aparecida Ferreira de Vasconcelos
Santos/SP
- - - - - –

Reféns   de  poucas  escolhas
que  demandam  decisão ,
nós  somos   pequenas  folhas
que  voam  sem   direção ...
Marialice Araújo Veloso
São Gonçalo/RJ
- - - - - –

Somente pude notar
perante o Amor e a Razão
como é difícil tomar
uma sábia decisão!...
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ
- - - - - –

A decisão foi tomada...
Só resta seguir em frente.
Rancor é morte passada,
sem vida no meu presente.
Max Reis
Belém/PA
- - - - - –

Decidiste impor intrigas,
mas a distância, sem voz...
Diz que é melhor nossas brigas
que esse silêncio entre nós!
Professor Garcia
Caicó/RN
- - - - - –

Num impulso de momento,
decisões, no dia a dia,
são reféns do sentimento,
orquestrando a travessia.
Relva do Egypto Rezende Silveira
Belo Horizonte/MG
- - - - - –

A mais feliz decisão
é fazer a Paz vencer
quando o mundo disser  não
às manobras do poder!
Rosilene Tramontin
Ponta Grossa/PR
- - - - - –

Finda a paixão proibida...
E ao seguir novos caminhos,
a decisão foi da vida,
que fez, de nós...dois sozinhos!
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP

****************************************
Novos Trovadores
****************************************

Decisão é coisa séria.
Convencido agora estou.
Quem concorda com miséria,
decidiu, mas não pensou.
Albano Bracht
Toledo/ PR
- - - - - -

Sofrer, chorar e morrer
eis o dilema ou questão:
sorrir, brincar e viver,
cabe a ti, a decisão.
Artemiza Correia
 Ocara/ CE
- - - - - –

Nas atitudes ou crença,
com firmeza e precisão,
faz a grande diferença,
o poder de decisão!
Artemiza Correia
Ocara/ CE
- - - - - –

Não existe hora ou lugar
pra se tomar decisão,
sem antes ter que escutar
as ordens do coração.
Aurineide Alencar
Dourados/ MS
- - - - - –

- Fui buscar, na poesia,
consolo pra solidão.
Faço versos todo dia.
Oh,  que sábia decisão!
Célia M. G. Mendonça de Melo
Juiz de Fora/ MG
- - - - - –

Decisão é como um sonho
com começo, meio e fim.
Só acerto  quando ponho
Deus pra decidir por mim.
Geraldo Amâncio Pereira.
Fortaleza/ Ceará
- - - - - –

Decisão sempre correta
permite boa vitória,
com objetivo e com meta
vou construindo uma história.
Henrique Lück
Londrina/PR
- - - - - –

Há que pensar muito bem
e acertar na decisão:
se casar, case com quem
casa com seu coração.
Jeferson Luiz Cadamuro Nunes
Maringá/PR
- - - - - –

Processo em tramitação
é a vida. E segue o seu curso...
A morte é uma decisão
que não cabe mais recurso.
Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras/ RJ
- - - - - –

Decisão precipitada
nos traz em algum momento,
glória da sorte lançada
ou grande arrependimento.
Lucélia Santos
Patu-RN
- - - - - –

Que momentos cruciais
nos umbrais das invernadas,
quando ecoam nossos ais
pelas decisões erradas...
Luciana Pessanha Pires
Itaperuna/ RJ
- - - - - -

Triste deixar de te amar,
todavia, foi preciso...
Decisão que vi sangrar
meu coração indeciso.
Maria Luísa Bontorin Dipp
Curitiba/PR

Contos e Lendas do Brasil (Erro do Burro)


Nas rodas sertanejas, antigamente se contava certa história de bichos, que ainda hoje não é esquecida. Vez por outra algum velho está a relembrá-la com todo os rique-fifes. História simples, sem maiores artifícios, não escondendo, entretanto, o fator moral como razão de ser da passagem pitoresca ocorrida entre animais que falavam, discutiam e agiam de conformidade com os seus interesses.

O fato é que o burro se encontrava muito de seu, pastando nos campos, comendo panasco verde – e a sua atitude pacata até despertava inveja dos próprios homens. Aquilo sim, é que era felicidade sem perturbações incômodas. Se chegava a hora de trabalhar, o burro trabalhava no duro, sem pedir misericórdia, sustentando o peso do serviço de carregamento e, ainda pior do que isso, sob o chicote dos moleques condutores ou boiadeiros malvados. Também do boleeiro, pois puxava o cabriolé do senhor e, diziam, fazia-o com uma competência ajudada pela carícia e pela ternura de servir. Embora o sangue mau do condutor.

Realmente, o burro era detentor de bondade extraordinária: não fazia nada de cara fechada, era sempre alegre que costumava enfrentar o serviço. Pois, em compensação, os instantes de folga eram compridos por demais, às vezes duravam dias e semanas. Comia o panasco e bebia no tanque de pedra. Andava gordo, sereno e venturoso. De que se queixar? A vida lhe sorria. Não era assaltado por nenhuma aspiração que não fosse sossego e paz, tranquilidade e bonança, trabalho e repouso, boa mesa e sono solto. A liberdade era tudo. Ela rodava-lhe em torno. Os homens falavam em democracia. Democracia deveria ser mais ou menos aquilo: liberdade e abastança, barriga cheia e despreocupação pelo que venha a suceder.

Mas de repente, quando se achava pensando nessas coisas amáveis, surge pela frente a raposa (a comadre raposa é sempre a mesma figura, no litoral, na mata e no sertão: aje astuciosamente e, de ordinário, com requintes de perversidade criminosa) que, desde muito, espiava aquela beleza de existência retirada, sem imprevisto, sem qualquer sinal a mais ou a menos, sem a nota de altos e baixos. Que coisa? Aquilo precisava de sangue novo. Estava reclamando mais movimento, mais ação e, portanto, mais intimidade com a vida. Pois esta andava monótona para os espíritos inquietos e inteligentes, requerendo novidade e que, neste sentido, se fizesse o maior esforço de criação.

Pensou indagando de si mesmo:

- Perto daqui não existe chiqueiro de galinhas?

Então a raposa dispôs-se à luta, procurando o burro, com ele mantendo longa conversação, fazendo-lhe sentir a necessidade de entrar por outros caminhos menos insípidos.

– Olhe, eu conheço a onça pintada que vive na Furna da Alegria. É um prazer visitá-la. Tem vivido muito e passado pelo que o diabo jamais imaginou. Nos meus momentos de angustia é para lá que rumo os meus passos.

– Mas eu não sofro nada, disse o burro. Tenho saúde perfeita. E não me queixo de coisa alguma.

– Isso não significa nenhuma novidade. Também quando me sinto feliz vou bater à porta da amiga. Ouço-lhe a voz carinhosa dos conselhos. Fico ainda mais alegre e cheia de felicidade. A tristeza vai-se embora.

Perversa, a raposa não desanimava na cantada, tudo fazendo para demover o burro do lugar onde se encontrava, pois não tinha ofício nem obrigação, se saía era sempre a passeio e, à noite, os galinheiros estavam à disposição de suas garras. Vagabunda, faladeira, mexeriqueira. Gostava e alimentava a perversidade como estigma da espécie a que pertencia.

Enquanto falava naquele tom, no íntimo bem sabia que a onça pintada era velha e encarquilhada, má, vivendo faminta e assaltando os bichos que tinham o topete de andar por perto de sua morada.

– Vou fazer essa visita que me pede.

E, decidido, largou-se o burro para o lugar em que vivia a onça tão boa, como afirmava a raposa, pacífica e generosa. Chegou às imediações da Furna da Alegria. Viu a bicha cheia de pintas pretas, saindo com um ar de mansidão, se arrastando, com os olhos fuzilando e, dando salto ágil, procurou atingir o limite onde estava o burro. Este desconfiou da parada. E pernas para que te quero, danou no mundo, a galope, regressando num fôlego aos pastos de sua deliciosa mansão. Não sairia mais dali. E comentando com os botões:

- A onça queria me botar no papo. Faminta como quê. Essa cachorra da raposa que me apareça para eu lhe dar o troco merecido.

Os dias correram. Certa vez chega inesperadamente a comadre com toda delicadeza e a pedir desculpa. Aquilo fora um horror. Como obter o perdão de seu amigo? Não tinha direito a isso. Era uma pobre miserável, merecia a morte e, assim, lamentou-se até conseguir manifestações de ternura do burro. Animou-se a maliciosa hipócrita dizendo:

- A onça, eu sabia, estava doente há várias semanas e foi exatamente na ocasião em que você apareceu que ela, zangada e faminta, não o conhecendo, atirou-se com a violência que costuma empregar contra suas presas.

Adiantou cautelosa

- Porém eu já fiz as necessárias recomendações e ela, agora ciente, pede-lhe mil desculpas, contrariada que está e, sendo possível, espera-o quando você quiser ou achar conveniente.

– Bem, neste caso irei mais tarde.

E, de fato, renovou a dose, isto é: seguiu o caminho já de seu conhecimento. Foi e não voltou. A onça banqueteou-se a semana inteira com mesa opípara. Fazia muito tempo até que não saboreava carne tão gostosa. Carne macia e cheia de vitaminas.

A raposa alcançou o que escondia: os pastos precisavam ficar abandonados para o senhor da casa-grande, sem querer perdê-los (outro animal para soltar não possuía nas redondezas; o gado andava no cercado; apenas o burro estava privando de uma consideração excepcional; era privilégio forçado) e, ante a evidência, abrisse o chiqueiro e deixasse as frangas e capões invadi-lo para o mais gordo aproveitamento. E ainda teria dito consigo mesmo, apreciando os fatos em que fora figura principal:

- Vá ser burro assim no inferno, na casa do diabo que o carregue.

Fonte:
VIDAL, Ademar. Lendas e superstições: contos populares brasileiros. RJ: O Cruzeiro, 1950.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 385

 


Benedita Cristófoli (O Sonho de Voar!)


Era Sábado, uma manhã de muito sol, os pardais desciam do pé de carambola para saborear as nutridas sementes do gramado.

Ainda sonolenta, Maria Júlia sentou-se na calçada para observá-los e de vez em quando só olhar não a satisfazia, corria numa tentativa de pegá-los, mas quando se aproximava, eles voavam. Essa incompatibilidade a fez tirar o sapato e depois de um prolongado tempo, foi que percebeu que havia tirado só um pé.

Pelas folhas da grama escorriam as últimas gotas de orvalho, com a semelhança de um colar de pérolas debulhando entre as folhas e caindo para ser bebida pela terra.

Uma borboleta grande de cor azul voava ao seu redor num zig-zag, aguçando mais desejo de aprisionar os bichinhos!

Maria Júlia completaria 6 anos de idade na próxima semana, tinha pele clara, olhos castanhos esverdeados e cabelos loiros cacheados. Parecia uma bonequinha das mais lindas existentes.

O sol das dez horas já aquecia o seu rosto, deixando as bochechas vermelhas destacando ainda mais sua beleza.

Cansada, voltou à posição inicial, pôs os cotovelos no colo e a cabeça entre as mãos. Pensou, gostaria que meu presente de aniversário fosse uma noite de sonho, e pudesse transformar-me numa borboleta amarela por um dia de muito sol. Reforçando o pedido, escrevia bilhetes ao papai do céu, punha-os na janela, no gramado, na sala de jantar, na biblioteca, "Papai do céu! Quero ser uma linda borboleta amarela por um dia".

Foram passando os dias e para familiarizar-se mais com as borboletas, ela ia para o jardim todas as manhãs.

- Maria Júlia! Gritou sua mãe.

- Estou aqui no jardim treinando.

- Deixa de brincadeira e vem experimentar o seu vestido.

- Não, mamãe, já escolhi o meu.

Dona Neide fazia todas as tarefas domésticas e nas horas vagas costurava as roupas das crianças.

A noite soprava um vento fresco, Maria Júlia deitou mais cedo cobriu-se até o pescoço, sentiu a suavidade dos lençóis como a leveza da veste de um anjo. O quarto foi invadido por um clarão, uma voz dócil chamou:

- Maria Júlia! Acorda! Tenho um trabalho pra você.

- O quê? Respondeu já em frente ao espelho, admirando a bela borboleta em que tinha se transformado.

- Ouça com muita atenção: "Procure no jardim quatro sementes que estão bem juntinhas, coloque-as numa caixinha. Você não pode perdê-las, tenha muito cuidado! Vá aos quatro cantos do mundo; peça a seus habitantes que as plantem com muito carinho e dedicação. Quando essas plantinhas começarem a soltar o pólen, eles deverão soprá-los para o alto e
fazer três pedidos".

- Quais são os pedidos? – perguntou Maria Júlia.

- Isso vai depender da necessidade de cada região,

- Sim! Farei o que mandar.

Aborrecida, ela pensou, puxa! e meu dia de sol? Queria voar, voar rente ao chão, subir até as copas das árvores,.. É melhor não perder tempo. Pôs a bolsinha tiracolo no pescoço, já com as sementes, e voou, voou alta.

Imaginou os quatro pontos, e foi onde encontrou terra e gente, maravilha! Mas nos polos, fora uma viagem sofrida. Era o último lugar o Polo Norte, quando chegou, já sem forças e cansada, caiu numa geleira ficando presa uma de suas asas. Chorava e debatia tentando sair do gelo e assim permaneceu quase uma hora naquela situação lamentável. Até que decidiu pedir socorro e gritou:

- Onde está o povo deste lugar? Eu vou morrer congelada!

Com a gritaria apareceu um pinguim e seguidamente outros e alguns leões marinhos para ver o que acontecia.

- Calma, calma linda borboleta! Não vê que está se cansando cada vez mais?

- Me tire desse gelo, eu não tenho tempo a perder, por favor!

O pinguim delicadamente puxou com o bico a asinha dela para cima, tirou as pedras de gelo. Numa posição mais confortável ela respirou aliviada e agradeceu.

- Ah, que bom! Que mundo gelado esse de vocês!

- Sem dúvidas, mas eu no seu mundo quente, morreria!

- Onde estão os habitantes deste lugar?

– Somos nós.

- Tenho que achar alguém para plantar esta sementinha.

– Mas no gelo?

- Não sei, arrume uma terra, e faça esse trabalho.

E pronta para partir, depois de ter olhado tudo às pressas e muito curiosa, esquecia o motivo mais importante da sua ida ali. Despedia acenando com suas encantadoras asas.

- Linda borboleta! Disseram em coro.

– Sim!

– Você não falou os nossos pedidos.

- São as necessidades da região.

- Que nosso lugar seja habitado como o seu!

Será o primeiro pedido, disse o pinguim que lhe prestou socorro; o leão-marinho ia pedir para o homem preservar a vida deles. Um filhote pinguim pediu para que ela voltasse outras vezes para colorir o seu mundo.

Naquela manhã, Maria Júlia acordou mais tarde, a sua mãe preocupada entra no quarto e deseja-lhe feliz aniversário, percebe que dormia tranquila! Beija-a na face dizendo: – Levanta dorminhoca!

- Já acordei. Disse indo em direção à janela que a mãe acabara de abrir.

Fontes:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro.

Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) III


IMPOSSIBILIDADES

Querer voltar
e não achar o caminho.
Querer segurar
e sentir que tudo o que tenho
escapa-me por entre os dedos.
Querer falar
e não achar as palavras.
Querer esquecer
e ser perseguido pela memória
dos fatos,
da vida,
das sensações
e das lembranças
que não se apagam
e que,
com nitidez penetrante
invadem o meu ser
tornando-se indeléveis.
Não é possível apagar
o que já não existe.
****************************************

INCLUSÃO

Dos males que nos afligem
estamos bem informados.
Na leitura dos jornais
ou pela televisão
temos notícias de tudo
que acontece no mundo.
O coração oprimido
compartilha o sofrimento
daqueles mais atingidos
que sem amigo, sem nada,
permanecem na exclusão.
Quisera encontrar caminhos
que possam levar os homens
a descobrir soluções
que amenizem as dores
do irmão injustiçado,
já bastante machucado
por agruras dessa vida.
Em minha busca incessante
percebo que, com caridade,
fé e amor no coração,
superaremos barreiras
e alcançaremos as mãos
daqueles que as estendem
suplicando proteção.
****************************************

INDAGAÇÕES

O que foi feito de nós?
Um de um lado,
outro de outro,
e um mundo entre nós dois.
O que foi feito
de nossas conversas noturnas
que se transformaram
em rotineiros Bom-dia?
Onde estão as luzes,
os risos, a alegria,
a música suave,
que ecoava em nossos ouvidos?
O que sobrou de nossas esperanças,
das tristezas partilhadas,
das angústias divididas?
Um sofrer inexplicável,
um temor silencioso,
tédio da vida,
Por quê?
As montanhas permanecem,
o sol brilha atrás das nuvens
e as estrelas clareiam as noites,
O que é mais importante?
****************************************

INFÂNCIA

O menino não tem brinquedo.
Nunca teve.
Mas brinca com serrote,
tesoura,
revólver,
caco de vidro.
Ele não reza. Ninguém lhe ensinou.
Se ensinou, esqueceu.
Mas vai à Igreja quando chove.
Se não puder entrar
fica na soleira, que lhe dá abrigo -
desde que não haja matança
como na Candelária.
O menino não come. Nem tem fome.
Cheira cola e dorme, com seu corpo osso,
num degrau de escada
sem frio, sem nada,
E dorme, e sonha,
até que os donos do mundo
surgindo dos cantos,
interrompam seu sono
e arrebentem seu sonho.
Batendo, espancando,
não ouvem seus gritos
e fazem calar
a quem nunca soube
infância, o que é.
****************************************

LEMBRANÇAS

Seu olhar enevoado enxergava os vultos
dos irmãos sentados à mesa da cozinha
e ouvia com atenção, o alarido incessante
que misturava perguntas e respostas
sem permitir que alguém fosse entendido.
Às suas lembranças, do tempo de criança,
juntavam-se outras de quando era cercada
por filhos e por netos. A vida transformada
trouxe alegrias e tristezas alternadas,
a partida de alguns, de outros a chegada.
Com a família dispersa foi ficando tão sozinha
que os retratos pelos móveis se tornaram companhia.
Dos momentos felizes restou-lhe a saudade
preenchendo as esperas inúteis de seus dias.
****************************************

MARCAS DO TEMPO

Tempestades marcaram a fronte enevoada
e sulcaram caminhos indistintos
pela serena face encarquilhada.
Com mãos trementes e sorriso tímido,
com a vergonha de insistir vivendo tanto,
olha perdido contemplando o nada
e enche de vazio a vida sem sentido.
Melancolia suave, lembranças persistentes
de ausentes presentes, teimosas companhias
que com ele ficaram, embora já partidos.
Indagações contínuas, perguntas sem resposta
de um mundo irreal e que ele não entende,
aqui vivendo em vida separada.
Com seus fantasmas conversa ensimesmado,
provoca risos e olhares aos quais não corresponde.
Fechado no seu eu, sorri às vezes,
ao receber um beijo ou carinhoso afago
daqueles que percebem qual o significado
da escrita confusa e empergaminhada
que traduz uma história de lutas e de dores
no seu rosto tranquilo e abnegado.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Cenas. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2010.
Livro enviado pela poetisa.

Concurso Cultural Literário 15 Anos Piquete Chama Nativa (Premiados)


TROVA LITERÁRIA

1 Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora/MG

2
Francisco Gabriel Ribeiro
Natal/RN

3
Ailto Rodrigues
Nova Friburgo/RJ

4
Edweine Loureiro da Silva
Saitama/Japão

5
Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Niterói/RJ

6
Jerson Lima de Brito
Porto Velho/RO

7
Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras/RJ

8
Luis Parellada Ruis
Londrina/PR

9
lalmar Pio Schneider
Porto Alegre/RS

10
Mário Moura Marinho
Sorriso/MT

11
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

12
Lucêmio Lopes da Anunciação
Canela/RS

13
Leonilda Yvonneti Spina
Londrina/PR

14
Caterina Balsano Gaioski
Irati/PR

15
Agnes Izumi Nagashima
Londrina/PR
****************************************

POESIA

1
Alberto Salles
Caxias do Sul/RS
Cenário de Campo

2
José Luíi dos Santos
Santa Maria/RS
Ao menino da cidade

3
Jussara Cony
Porto Alegre/RS
Tecedeira Mulher

4
Mário Amaral
Capão da Canoa/RS
Artesão das Horas

5
Gargione Ávila
Rio Grande/RS
Peleia braba

6
Cleomar Brasil
Nova Esperança do Sul/RS
Último pedido

7
Edson Martelo Spode
Chapecó/SC
Pelas encilhas da vida

S
Lori José Schiavo
São Nicolau/RS
Missioneiro

9
Deniele Bresolin Schiavo
São Sebastião do Cai
Devastação


10
João Antunes
Bossoroca/RS

Afrânio Marchi
Bossoroca/RS

José Dirceu Dutra
São Miguel das Missões/RS

Nego Lúcio

11
Luciano Salerno
Bento Gonçalves/RS
Cismas

12
Matheus Bauer
São Borja/RS
Eu me sinto prisioneiro

13
Paulo Cesar Limas
Itaqui/RS
Balaios

14
Carlos Eugênio Costa da Silva
Capão do Leão/RS
Pra meus amigos

15
Luiz Paulo Pizolotto dos Santos
Coronel Bicaco/RS
Lições e valores
****************************************

CAUSOS

1
Vítor Mauricio Horn
Porto Alegre/RS
A detectora de mentiras

2
João Antunes
Bossoroca/RS
O microfone é teu

3
Jo$é Luiz dos Santos
Santa Maria/RS
O jundiá e a escova

4
Eduardo Chaves Laurent
Lisboa/Portugal
Ritual

5
Eloiza Dalila S. Oliveira
Porto Alegre/RS
O equívoco

6
Severino Moreira
Candiota/RS
Ramão Véio

7
Henrique Mann
Setúbal/Portugal
No bolicho do Maneca

8
Erner Antonio Freitas Machado
Capão Novo/RS
Antonio novo

9
Rui Gressler
São Leopoldo/RS
Gafanhotos

10
Expedito Neves
Santo Ângelo/RS
Tesouro encantado

11
Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Niterói/RJ
O patrão enlouqueceu

12
Camilo de Lélis Furlin
Porto Alegre/RS
0 velho Herculano

13
Renato Jacob Schorr
Santo Ângelo/RS
Seu Maroca e a Teiniaguá

14
Waldemar Menchik Júnior
Santo Ângelo/RS
Atestado de retorno

15
Pedro Franco
Rio de Janeiro/RJ
O pai e a égua baia

Fonte:
Piquete Chama Nativa

domingo, 20 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 384

 


Isabel Furini (Poema 19) Assombram as Sombras

  

Isabel Furini é de Curitiba/PR

Fábulas (A Ilha)


Era uma ilha que vivia no meio do oceano. Levava uma vida tranquila, sem grandes questionamentos. Conhecia outras ilhas e com elas se comunicava. Um dia porém uma ideia a inquietou: se toda vez que a maré baixava, uma porção de terra se descobria, então até que ponto haveria terra? Isso lhe tirou o sono por várias noites.

De repente seu conceito sobre si mesma mudou. Sempre se considerara uma porção de terra boiando à superfície da água, isso era ponto pacífico, todas as outras ilhas também pensavam assim. Mas agora já não podia acreditar nisso. Uma ilha não terminava ali na superfície. Não. Continuava para baixo. Uma ilha era na verdade uma montanha.

Saber que ela continuava além do que pensava ser era algo espantoso de se pensar. Assim, dia após dia, a ilha prosseguiu em seus esforços de auto-investigação – queria saber até onde existia. Mas à medida que sua atenção mergulhava em si mesma, as águas ficavam mais escuras. Era preciso cada vez mais concentração para não se perder. Ela prosseguiu e descobriu que o que existia abaixo da superfície possuía vida própria e, mesmo sem ser reconhecido, era capaz de interagir e até determinar o que existia acima. Uma ilha não era algo tão independente quanto pensava. Muito tempo se passou até que se convencesse de que era mesmo uma montanha com o pico emerso. E muito mais tempo para compreender que não flutuava solta nas profundezas do oceano: ela estava presa a uma base e essa base era uma enorme extensão de terra que funcionava como chão.

Vinham de lá todas as ilhas. E para lá voltariam todas quando os movimentos da terra e das águas as forçassem a isso. Mas as ilhas não sabiam da montanha e muito menos da terra ao fundo. Por isso as reais motivações do que faziam eram na maior parte desconhecidas. Se a montanha era a parte inconsciente de cada ilha, o fundo do mar era o inconsciente maior, único, de todas elas. Ao entender esse fato a ilha lembrou do tempo em que sua consciência de si própria se limitava àquela minúscula porção de terra à superfície. Todas as ilhas vêm do mesmo lugar - ela repetiu, intrigada - porque são feitas da mesma terra. A areia e os nutrientes que as raízes de suas plantas colhem vêm do mesmo chão. Todas as ilhas que existem são no fundo uma coisa só.

A ilha viu que eram ideias grandes demais, confundiam a mente. Aquela auto-investigação era importante mas era preciso muita atenção durante o processo. Só assim poderia voltar à superfície sempre que quisesse.

Enquanto tudo isso acontecia, as outras ilhas observavam seu comportamento e não entendiam. Concluíram então que estava louca e espalharam a notícia. A ilha sentiu-se só. Mas como poderiam condená-la por não compreenderem o que ela descobrira? Pensando melhor, eram todas partes dela mesma!

Então ela mesma ainda não se compreendia inteiramente. Foi então que a ilha percebeu, num clarão de compreensão, que toda aquela vasta extensão de terra inconsciente funcionava como um útero a expulsar pequenos pedaços de si mesma, forçando-os a ir à superfície.

Uma vez lá, eles se entendiam ilhas e começavam então sua aventura individual em busca de saber quem eram, aventura que podia durar anos, séculos, milênios, mas que um dia chegaria à mesma conclusão: todas as ilhas eram montanhas e todas as montanhas na verdade eram uma só extensão de terra a se experimentar em cada uma delas. Mas por que a terra fazia isso? Talvez para ela própria aprender com a experiência de cada ilha. Ao morrer uma ilha trazia à terra sua experiência para servir de aprendizado às futuras ilhas. Uma ilha continha em si, sem se dar conta, a mesmíssima areia das que a antecederam. A terra como um todo estava sempre aprendendo cada vez mais sobre si mesma.

Era mesmo uma tremenda aventura - pensou a ilha enquanto se divertia com os olhares estranhos que as outras lhe lançavam. Uma aventura de cada ilha. Mas também da terra inteira.

(autoria desconhecida)

Fonte:
Universo das Fábulas

Rubens Luiz Sartori (Poemas Avulsos)


NA BEIRA DO LAGO

Na beira do lago
não há "faz de conta".
Só coisas de fato.
Rodeiam os patos,
espreitam os sapos,
incautos insetos
fatores de vida,
da beira do lago.

Nos lagos tranquilos
de mato fechado,
carreiros de pacas,
de antas, capinchos,
galhadas, catetos,
e a noite barulha
nas águas do lago.

E o lago sozinho
nas vagas do tempo
seu mundo refaz.
Encrespa co' vento,
redobra suas ondas,
se torna tenaz.
E os dias escoam,
esvaem nas enchentes,
espraiam banhados
de beira de lago.

A lua debruça
seu manto de paz,
espelho luar
no ventre do lago.
E a vida contínua
na beira do lago,
é como ninar
de mãe benzedeira,
que conta a seus filhos,
centenas de histórias,
infindas de afago,
de todas as horas
na beira do lago.
****************************************

O TIJOLO E A VIDA

I
Ah! o tijolo do oleiro,
que amassa o barro bruto,
é um trabalhador resoluto,
retira da terra altaneiro
o seu sangue absoluto.
Faz na arte primitiva,
uma espécie alternativa
que constrói área e sala,
edifica até a senzala,
da negritude cativa.

II
Os tijolos da minha terra,
que se assentam em seus muros,
são tijolos de seis furos,
de oito, e muitos maciços;
são fortes, não são quebradiços.
São tijolos que guardam nobres,
nas tumbas dos cemitérios;
que também guardam gaudérios,
que viveram assim sem rumo,
mas que se igualam no prumo,
que só a tumba campestre,
nivela a todos os homens
na eternidade celeste.

Ill
São da terra que os adorna,
sem obedecer qualquer norma,
mas só a voz da natureza,
que nos tijolos da igreja,
celebram seu Criador.
Mas de que adianta a oração,
pro rude e louco pagão,
que só fez estripulia,
pois da sua vida um dia
só sobrou maledicência,
que pra muita consciência
é coisa feia e pecado.

IV
Porém, na vida, o passado,
só vale na hora da morte,
pros que têm muito mais sorte,
de ter uma cova bem rasa,
que agora será sua casa,
sem tijolo, porta ou cozinha,
mas na terra, mãe-madrinha,
que a todos recebe em consolo,
ajuntando cada tijolo
pras novas casas-mansões,
sucedendo as gerações
que virão sempre na terra,
qual tijolos cimentados,
na argamassa escondida
nas paredes da existência,
adornando a querência,
nas planuras e no vento,
fazem o arrimo da história,
que canta toda sua glória,
na herança eterna do tempo.

Fonte:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro

Francisca Júlia (O Monge)


Uns mercadores, com suas malas às costas, caminhavam em direção à cidade, para vender suas mercadorias. Mas a viagem tinha sido longa e eles estavam cansados.

Tinham atravessado campos, galgado montanhas e sentiam já tanta fadiga, que resolveram sentar-se sobre a relva para descansar. Mas o sol estava muito ardente e eles seguiram adiante. Entraram num bosque onde a sombra era fresca e em cuja entrada havia uma gruta de pedras brutas, iluminada de alvas estalactites.

Penetraram, não sem algum receio, cautelosos, porque podia ser um covil de malfeitores.

Tudo estava às escuras. Mas, logo que se habituaram às trevas s da gruta, viram um monge de joelhos, as mãos postas, a fronte erguida, absorvido nas suas preces.

— Monge, disse um deles; perdoa-nos ter-te interrompido nas tuas meditações. Entramos em tua habitação para te pedir abrigo contra os ardores do sol.

— Entrai, viajantes, respondeu o monge mal desperto das suas contemplações místicas Todos os peregrinos terão aqui seguro abrigo contra as inclemências do sol e contra as tempestades da noite.

Os mercadores agradeceram, e, como sentissem fome e sede, falaram:

— Na nossa longa e perigosa jornada a fome devorou nossas entranhas e a sede secou nossas gargantas; mas tu deves estar tão acostumado ao jejum, que em tua habitação nada pode haver.

— Nada há, de fato, pobres viajantes; mas o poder de Deus é infinito e a sua misericórdia é sem limites. Então, de um gesto, fez jorrar de uma fenda da rocha um grosso fio de água clara, onde eles beberam até à saciedade; e, arrancando do chão uns calhaus que se transformaram em pães, entregou-os aos peregrinos, dizendo:

— Tomai; cumpriu-se a divina vontade.

Os mercadores, homens materiais e rudes, tremeram de susto, receando algum sortilégio diabólico; mas, ao mesmo tempo, diante da religiosa bondade e aspecto humilde do monge, comeram.

E um deles falou:

— Monge, se tu estás revestido de tanto poder e podes, com um gesto apenas, fazer brotar a água e transformar em pães os calhaus brutos, por que não fabricas também o ouro para gozares as delicias da riqueza? E por que vives oculto nas trevas desta gruta, como uma fera, emagrecido pelos jejuns e cilícios?

— Que errada e falsa compreensão tendes da vida, meus amigos! Sabei que o ouro serve somente para corromper os sentimentos, envenenar a alma, e não poderá dar-me os gozos a que eu aspiro. Ao menos, na pobreza em que vivo e que desprezais, sem as preocupações que acarreta a fortuna e os pecados que ela desperta, posso mergulhar-me inteiramente em minhas preces e na contemplação da divindade.

Os viajantes agradeceram ao monge o generoso acolhimento, beijaram-lhe respeitosamente as mãos e partiram.

Fonte:
O Poeteiro

sábado, 19 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 383

 


Arquivo Spina 10 (Luciene Avanzini)

 


Sammis Reachers (O Pau-de-Sebo)


As novas gerações e mesmo as mais maduras, porém criadas em ambiente urbano, talvez não saibam o que seja um pau-de-sebo – ou imaginem, de pronto e maldosamente, que ele seja algo muito diverso do que é na realidade.

Antes de maiores desentendimentos, deixe-me aclarar logo a questão: Pau-de-sebo é uma tradição típica de festas juninas, uma tora de madeira de grande altura, à semelhança de um poste desses de eletricidade, completamente lambuzado, lubrificado, empapado com sebo (gordura) de porco. Eeeecaaa!, dirá você. E qual o objetivo disso? Um totem para ser incendiado à meia noite? Um símbolo do sincretismo pátrio que fundiu temas do catolicismo a outros oriundos dos cultos de matriz afro?

O pau-de-sebo é apenas uma brincadeira, algo perigosa, sim, mas muito divertida, daquelas diversões cruentas hoje já tão raras.

Instalada a grande tora em ponto central da festa, já devidamente “confeitada”, avisava-se aos festeiros presentes que, no topo daquele poste, havia uma nota ou um cheque representando um valor algo considerável – Digamos, em valores de agora, 300, 500, até mil reais. Pois bem: Estava dada a largada para as tentativas de subir em tal poste. Escadas e apetrechos de apoio não podiam, claro, ser utilizados: O valente ou a valentina, pois sempre houve dessas, deveria atracar-se a todo aquele escorregadio desafio e escalar tronco acima, como um macaco. E como era divertido! De quando em vez o sebo era reposto, pois o frenesi de candidatos ao tesouro acabava arrancando boa parte do tal sebo, que saía grudado em camisas e bermudas... Era comum ver alguns, já quase chegando ao topo, cansados e de repente tocando área de banha ainda “virgem”, repentinamente despencar – e o sebo restante na enorme envergadura daquele pau, mesmo já ralo, fazia as vezes de poderoso lubrificante, pois para baixo, seja em festa de São João ou de qualquer outro patrono, todo santo ajuda.

Certa feita, fins da década de oitenta, realizaram aqui na comunidade gonçalense do Jardim Nazaré, também dito Palha Seca pelas línguas maledicentes, e bem em frente à minha casa, uma festa junina. O festim foi organizado dentro do tradicional, no prumo da ortodoxia: Montaram palanque para a dança de quadrilha, forraram a rua de lado a lado com barraquinhas de guloseimas e prendas; bandeirinhas cruzando os céus, bambus e caniços dando o tom de roça. O organizador da festa era um camarada bem simpático, eterno candidato a vereador (eterno não, depois cansou-se), o William. William era também cana, meganha, magarefe: Soldado porra-louca como era o normal dos policiais militares cariocas daquele tempo.

Anunciado o valor, os durangos, aventureiros e também cachaceiros do bairro se lançaram ao desafio, como heróis numa batalha.

Dias se passaram enquanto aqueles sôfregos ferrabrases de birosca se revezavam na frente – ou tora – de combate, e nada de nenhum dos valentes conseguir assenhorear-se daquela quantia, a essa altura já mítica.

Euzinho e outros peraltas, bem que tentamos dar nosso sangue em tal peleja comunitária, mas nada logramos. Nem o talvez maior escalador de nossa idade, o legendário Luciano “Neném”, também dito “Highlander, o Imortal” – que se tornara lenda não por seus dotes de abraça-tora mas, acredite se quiser, por engolir QUALQUER remédio que achasse no lixo durante as expedições em que catávamos ferro-velho, sem jamais manifestar qualquer efeito, seja salutar, seja colateral, de tão sinistro apetite – conseguia superar a extensão daquela vara... O expediente era coisa pra adultos mesmo.

A causa ou a bufunfa já era dada como perdida. Mas, num arroubo final, já no penúltimo dia dos festejos – que se estenderiam por uma semana – uma aliança sombria foi formada, uma cabala de malandros do “melhor” que havia na área. Iluminados ou apertados pela desesperança, elucubraram uma ideia, uma última cartada contra a fortaleza de sebo. E assim, com cada um dando o melhor de si, formou-se uma pirâmide humana, composta de uns seis bravios canabravas...

E não é que os rapazes conseguiram? Nande, o mais leve deles, ficou com a honra ou a temerosa missão de ser o topo da pirâmide. Foi lindo: O sol de fim de tarde chegou a emitir um pulso, um flash, um brilho especial quando aquela mão leve – na plena acepção do termo – apalpou a pontinha do cheque.

Ao desmontar-se aquela pirâmide mambembe, salvos todos sem ferimentos, grande foi a festa! Cada um daqueles pipa-avoadas parecia imitar um bicho, de tanto que urravam, ou mugiam, ou grasnavam, ou sei lá que som um burro faz quando avoa!

Apanhando o cheque das mãos de Nande, o suarento Marcão, organizador ou chefe daquela estranha liga dos escaladores de tora, e que aturara o peso de cinco homens nas costas (não tente isso em casa!), foi conferir o valor do mesmo e a assinatura. Assinatura não constava, e o valor era nenhum: O cheque estava em branco.

O que se seguiu, amigo leitor, naquela festa que se iniciava, foi um fuzuê, um arranca-rabo, um salseiro como o Jardim Nazaré poucas vezes teve o desplante de ver.

O impasse entre xerife William e aqueles homens agora furiosos – sujos, fedorentos e furiosos – terminou em desobediência civil e desrespeito à autoridade, que afinal era gente boa mas não merecia lá muito respeito mesmo.

Naquele eterno vai-não-vai que sempre impede o cidadão de bem de esmurrar a cara dum poliça, sobrou mesmo foi para o segundo-em-comando da festa: O DJ, mestre de cerimônias, eletricista, técnico em eletrônica, mecânico de mobiletes e professor Pardal da comuna, Paulo.

E finalmente, ao som de Gonzagão e Gonzaguinha, a pancadaria se estabeleceu no arraiá. E, naquele anarriê, entre chutes e sopapos, badulaques e enfeites foram arrancados, caniços de bambu se tornaram varas justiçadoras, e até as inocentes caixas de som, grandes e valiosas e que pertenciam ao franzino Paulo, tiveram seus alto-falantes arrebentados a coices por aquela boiada em estouro.

O dia seguinte, último dia da agora esvaziada festa, parecia dia de luto: Eu fora proibido de atravessar o portão e, contrafeito, observava por cima do muro. Era cada um em sua casa, chorando mágoas, esfregando roupa encardida até o talo, de tanto abraçar aquela grande e sebenta tromba, e aplicando emplasto de saião nas feridas e nos magoados.

Quanto ao cheque em branco, em branco ficou: Nunca foi saldado, e cada um ficou com seu prejuízo. Mais que o valor imaginário do cheque, custavam as caixas de som que foram despedaçadas naquela festa de São João, um São João palha-sequence regado a maçãs-do-amor e tapas na cara e que, ao menos naquele ano, foi melhor que o de Campina Grande, a capital paraibana e mundial do tal festim!

No camarote das santidades, imagino que o bom São Gonçalo deve ter olhado para o veterano João e, desaguentando a bronca e desrespeitando a hierarquia, soltado: “Espia, espia... Espia e aprende como se faz uma festa, meu padrinho...”

Fonte:
Texto enviado pelo autor.