quinta-feira, 15 de outubro de 2020

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Peladão


Por motivos fartos e facilmente compreensíveis, ele acabou ganhando status de atração turística – um dos pontos de parada obrigatória para todo grupo que visite Maringá pela primeira vez. Ali o guia aproveita para contar como começou a história da cidade: é o local do encontro entre o Maringá Velho e o Maringá Novo. Oficialmente, o nome do charmoso espaço é Praça Sete de Setembro. Mas na boca do povo é Praça do Peladão.

Deu-se assim: o prefeito na época (1972) era o Doutor Adriano Valente. Ocorreu-lhe a ideia de dotar a cidade de um monumento em homenagem aos nossos grandes pioneiros. Propósito mais do que justo, visto que a bela urbe da qual hoje tanto nos orgulhamos só existe porque um peitudo grupo de homens e mulheres teve a coragem de erguer aqui os primeiros ranchos.

A obra foi confiada ao renomado artista plástico Henrique Aragão, a quem o Doutor Adriano explicou o que pretendia: algo que configurasse um esperançoso desbravador com os braços levantados para o céu, como que a saudar o futuro e indicar sua sede de infinito.

O artista, que residia em Ibiporã, foi para casa, dialogou com a inspiração, voltou com o projeto pronto: uma grande e esguia estátua, tendo ao lado três machados estilizados lembrando a abertura da mata para construção da cidade.

Até aí tudo bem. Era um conjunto bonito, empolgante mesmo, traços modernos, e seria fácil entender a simbologia. Surgiram, porém, dois “poréns” deveras embaraçosos.

O primeiro era que o bravo desbravador, ali representado pela estátua, seria instalado de frente para o Maringá Novo. Coisa chique sim. Mas com isso o bumbum ficaria desaforadamente virado para o Maringá Velho... E aí aconteceu o que ninguém imaginara antes: os moradores do bairro pioneiro não gostaram nadinha da história, armou-se o entrevero, e o enredo por pouco não desenredou.

Foi necessária uma caprichada dose de diplomacia para convencer o pessoal de que realmente não havia outro jeito. Ou seja: não havia como fazer o desbravador olhar ao mesmo tempo para o leste e para o oeste.

O segundo problema era mais delicado ainda: é que o artista, movido pela sua pureza de alma e de coração, esculpira a estátua desnuda. Isso mesmo: nuinha da cabeça aos pés, tal qual Adão no paraíso. Entendeu o drama?...

Pois deu no que deu... o maior bochicho na cidade: “Como é que o Doutor Adriano, um homem tão fino e de tão bons princípios, consentira numa vexação daquelas?”. Pressão em cima do prefeito, pressão em cima do escultor. O único jeito de pacificar os ânimos foi acatar a genial ideia não se sabe de quem: colocar uma folha de parreira por sobre as partes pudendas do inocente herói de cobre. Só não foi possível evitar que o simpático personagem resultasse condenado a carregar para todo o sempre o folclórico apelido de “Peladão”.

O que, aliás, faz dele uma atração mais chamativa ainda.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 17-9-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) IV

CRESCIMENTO

De crescer, o ser começa,
a partir do nascimento
e o crescimento só cessa
depois do sepultamento,
a fim de avançar depressa
se acelera o crescimento,
porque todos temos pressa
em conquistar nosso intento,
quando a meta não for essa,
se chega a fazer promessa:
pra alcançar nesse momento.

Talvez a felicidade,
que tanto sonhamos ter,
esteja à nossa vontade
para dela nos valer,
viver com simplicidade
num mundo sempre a crescer,
sem excesso, nem vaidade,
que possa comprometer,
não só como humanidade
mas também na eternidade,
é feliz quem souber SER.
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ESSÊNCIAS


Nunca espere frutos ter
se nada tiver plantado,
sempre acaba sem colher
quem nunca tem semeado.
Portas que só têm sinais
de entrada e não de saída,
quem entrar, talvez jamais,
de lá voltará com vida.
Sejam ternos os fanais,
eternos fachos florais
numa senda colorida.

A primavera nos traz
as primeiras sensações,
que enchem da sublime paz
tão sequiosos corações,
um sorriso transbordante
cobre a face com olores
e no olhar do ser pensante
um ramalhete de cores,
essência aromatizante,
unge e perfuma o semblante
dos sensíveis prosadores.
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MEDIDA CERTA


Peço a Deus que me dê vida
na devida proporção,
se possível na medida
pra cumprir minha missão,
nunca me falte energia
nem vontade de viver,
mostrando no fim do dia
a paz que brota do ser,
minha mão plante harmonia
meu semblante a luz que guia
nos caminhos do saber.

Tudo na vida são fases
nem sempre bem sucedidas,
muitas delas são capazes
de causar graves feridas,
tomara, possamos vê-las
integralmente vencidas
sabendo que pra vencê-las
por nós devem ser vividas,
mesmo sem nunca querê-las
preferimos ser estrelas
frente as flores coloridas.
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MUTAÇÕES


Tarde de julho, nublada,
o vento uivando anuncia
que a noite será gelada
e a manhã cinzenta e fria,
quem nunca teve morada
faz da estrada a moradia,
entre o pouco e o quase nada
com o pouco ficaria.
Vida insossa provocada
pela ferida causada
nos passos de cada dia.

Mas o sol quando desponta,
bem cedo, no alvorecer,
lentamente toma conta
do cosmos vital do ser.
Toda a treva, a luz desmonta,
fazendo à paz florescer
um vasto rol que remonta
aos confins do entardecer.
A vida não nasce pronta
nela o tempo é quem reponta
sonhos que fazem viver.
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PONTE


Muitos fazem das marquises,
um improvisado teto,
resultante dos deslizes
na busca de amor e afeto.
Repousando nas calçadas
sem colchão, sem protetor,
calça e manga arregaçadas
tendo o céu por cobertor.
Corpo inerte estatelado,
ignora o que passa ao lado
mesmo assim é sonhador.

Sedentos por natureza
buscamos água na fonte,
vida vinda à profundeza
do mais distante horizonte.
Com farta delicadeza
descemos ao pé do monte,
pra sorver toda a beleza
refletida em nossa fronte.
O tempo mostra agudeza,
nos lapida com destreza
para sermos dele a ponte.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (Uganda) A História de Dois Amigos

Era uma vez um oleiro, a mulher e um filho. À medida que este crescia, os pais ficavam cada vez mais tristes, pois ele era diferente das outras crianças. Nunca brincava com eles; nem ria, nem cantava. Só ficava sentado, sozinho. Mesmo com os pais ele só falava de raro em raro, e nunca aprendeu os modos educados das outras crianças da aldeia. Ele ficava só sentado, pensando o dia inteiro - e ninguém sabia em que ele tanto pensava, o que entristecia muito aos pais.

As outras mulheres tentavam consolar a mulher do oleiro, dizendo:

- Talvez você ainda tenha outro filho, igual às outras crianças!

Mas ela dizia:

- Eu não quero outro filho. Eu quero é que esse seja sociável.

E os homens da cidade tentavam animar o oleiro, dizendo:

- Esses meninos estranhos frequentemente se tornam grandes homens!

E o homem dizia:

- Deixem o garoto em paz. Algum dia vamos saber se ele é um homem sábio ou um idiota. Ao chegar em casa, o oleiro contou à mulher a conversa com os outros homens.

O menino escutou e pareceu despertar. Ficou pensando naquilo durante alguns dias, e por fim, um dia saiu bem cedinho, levando seu cajado, e foi para a floresta ficar lá pensando.

Perambulou o dia todo e acabou chegando a uma pequena clareira no flanco de um morro, de onde podia avistar todo o país. O Sol estava se pondo sobre as gigantes montanhas azuis e tudo tinha um luminoso tom róseo e dourado. Profundas sombras cobriam as bananeiras e florestas ao longe. Mas o menino não via nada disso. Estava com os pés doídos, exausto e miserável; sentou-se sobre um tronco caído, cansado do longo dia.

De repente, um leão surgiu na clareira.

- O que você está fazendo aqui, tão sozinho? - perguntou o leão, ríspido.

- Estou desolado! - disse o menino - e vim para a floresta pensar, pois não sei se sou um homem ou um idiota.

- E é só nisso que você fica pensando? - inquiriu o leão.

- É - respondeu o menino - penso nisso dia e noite.

- Então você é um idiota - falou o leão decidido - homens sábios pensam sobre coisas que beneficiam o país.

E foi embora.

Um antílope veio saltando pela clareira e parou, encarando o menino.

- O que é que você está fazendo aqui? - perguntou.

- Estou muito desolado - respondeu o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Você costuma comer alguma coisa?

- Sim - disse o menino - minha mãe faz comida duas vezes por dia, e eu como.

- E você alguma vez agradece?

- Não. Nunca pensei nisso - respondeu o menino.

- Então, você é um idiota. Os homens sábios são sempre agradecidos.

E foi embora para dentro da floresta.

Então chegou um leopardo, olhando-o desconfiado.

- O que é que você está fazendo aqui? - perguntou.

- Estou muito desolado - respondeu o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Eles gostam de você, lá na aldeia?

- Não, acho que não - disse o garoto. Eu nem os conheço direito.

- Então você é um idiota - disse o leopardo - todos os meninos são bons; muitas vezes eu tenho vontade de ser um menino. Os homens sábios se misturam aos companheiros e conquistam seu respeito.

E foi embora, fungando.

Nesse momento, um grande elefante cinza veio se embaralhando pela trilha da floresta, abanando o rabinho, catando um galhinho aqui, uma folhinha ali, das árvores por onde passava.

- O que você está fazendo aqui, sozinho, com o Sol já se pondo? Você devia estar na sua casa, na aldeia! - falou o elefante.

- Estou desolado - disse o menino - não sei se sou um homem sábio ou um idiota.

- Que tipos de trabalhos você faz? - perguntou o elefante.

- Eu não trabalho em nada - respondeu o menino.

- Então você é um idiota - disse o elefante - todos os homens sábios trabalham.

E afastou-se gingando pela trilha que levava ao lago da floresta, onde os animais matam a sede.

O menino apoiou a cabeça nas mãos e chorou amargamente, de coração partido, pois já não sabia o que fazer. Pouco depois, ouviu uma voz ao seu lado, dizendo gentilmente:

- Oh meu irmãozinho, não chore assim; conte-me o seu problema.

O menino viu então uma pequena lebre ao seu lado.

- Estou muito triste. Eu não sou como as outras pessoas e ninguém gosta de mim. Vim para cá tentar descobrir se sou um homem sábio ou idiota e todos os animais me falaram que sou idiota!

E chorou mais do que antes. A lebre deixou-o chorar e depois falou:

- Não chores mais. O que os animais falaram é verdade. Disseram para você ser agradecido... Ter pensamentos grandiosos... Ser simpático com as outras pessoas... Trabalhar... Todas essas coisas são sábias.

Os animais não são ociosos e ficam admirados ao ver que os homens, tão bem-dotados, conseguem desperdiçar suas vidas. Pense em como ficaram surpresos ao ver um menino como você, forte e saudável, sem fazer nada o dia inteiro! Eles sabem que o mundo estará a seus pés, se você comandar. Mas há muito tempo ainda: você é um menino!

O Sol já desaparecera atrás das montanhas distantes e a mansa escuridão ia cobrindo rapidamente toda a floresta. A lebre disse:

- Você está cansado, com fome e longe de casa. Passe a noite aqui comigo, para conversarmos.

Então, entraram pela floresta. A lebre trouxe água numa cuia e maravilhosas nozes para o menino se alimentar e preparou-lhe uma cama macia com folhas secas. Conversaram sobre muitas coisas e o menino disse:

- Meu pai é oleiro e acho que gostaria de ser oleiro também.

- Se você for, nunca se contente com trabalho malfeito - disse a lebre - seus potes podem ser os melhores do país. Não descanse até conseguir fazer coisas realmente lindas. Nenhum homem tem o direito de espalhar coisas malfeitas pelo mundo. A vida do homem é como um rio... Fluindo sem parar... O que passou, acabou-se, mas sempre vêm outras águas. Ninguém pode dizer que é tarde demais, ainda mais você, com a vida toda pela frente. E só os idiotas ficam desencorajados pela zombaria.

"A aurora prateada as sombras dissipou; aos sonhos alegres, adeus eu dou. A multidão da floresta já amanheceu; nas árvores, o canto dos pássaros ecoou, do longo sono, toda flor despertou; e eu sei hoje o mundo é meu. Meu passo é seguro e forte é minha mão; enquanto puder, muito vou trabalhar. Quando num mar de luz o Sol se apagar e a noite trouxer a escuridão por direito, vou então descansar, pois hoje o mundo eu vou ganhar."

De manhã bem cedo, a lebre acompanhou o menino até a orla da floresta e fizeram um juramento de amizade, tão sagrado para os animais quanto para os homens. A lebre falou:

- Volte de vez em quando para me ver. Venha até esse ponto e cante essa canção; os passarinhos me avisarão e eu lhe esperarei.

O menino voltou animado para casa e encontrou a mãe trabalhando na horta. Ele a cumprimentou tão alegre como qualquer outra criança simpática, e viu que ela ficou feliz. Depois foi ter com o pai e disse:

- Quero ser oleiro. Vou tentar aprender.

O pai ficou muito contente. Todos na aldeia ficaram sabendo e alegraram-se com o casal e seu menino.

O menino trabalhava com afinco e anos mais tarde tornou-se um oleiro famoso. Vinha gente de todas as regiões comprar seus potes, que sempre eram bem-feitos e bonitos. Contudo, quando vinha uma depressãozinha, ele se recolhia para a floresta e lá encontrava-se com sua amiga lebre. Passavam o dia juntos.

O homem abria seu coração para a amiga, contando todas as suas tristezas. E sempre recebia amor, carinho, consolo e encorajamento, voltando ao trabalho cheio de esperança.


Fonte:
Universo das Fábulas.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 407

 


Sammis Reachers (Os Primeiros Livros [e Enciclopédias] a Gente Nunca Esquece)

Se não todas as pessoas, pelo menos a maioria das que são letradas possuem uma história com o livro. Essa história pode ser breve ou longa, mono ou multilogal, a depender da quantidade e qualidade dos livros - entendendo qualidade não pelo redundante valor literário, mas pelo impacto que determinado livro possa ter causado naquela alma.

Em meu caso, a história começa na formatura da alfabetização (hoje Pré-Escola), ao ganhar meu primeiro livro: A Tartaruga Infeliz - fato devidamente registrado (e como lembraria?!) por uma prosaica fotografia 10x15. O título do opúsculo quelônio (quelônio é a ordem das tartarugas, jabutis e cágados) foi de mau augúrio: queimou de melancolia o futuro leitor e poetastro...

Mas, pensando bem, definir "primeiros livros" é difícil, pois havia em minha casa paterna uma pequena quantidade deles, e sabe-se lá qual daqueles possa ter sido adquirido tendo a minha pessoa como alvo primário... Exempli gratia, tínhamos pequenas coleções com jeitinho de enciclopédia, assim, querendo, já quase sendo, mas sem ser, sabe? Uma delas era a Saber em Cores (Enciclopédia Didático Visual), de 1975, publicada pela Maltese/Melhoramentos. Belas ilustrações e informações hiper resumidas, mas que me deram o primeiro contato com grandes nomes da Literatura, artes plásticas, além de noções de geografia e ciências. Hum, mas não sei se foi adquirida antes ou depois de meu nascimento (78). E não eram enciclopédias de fato...

Enciclopédia, essa coisa hoje anacrônica, naftalinado ônibus (bonde?) do Conhecimento, surgiu como ideia onde surgiram a maioria delas (as boas ideias), na Grécia antiga. Mas o modelo nosso conhecido é mais recente, do séc. XVIII, filha dos esforços dos franceses d’Alembert e Diderot, por isso mesmo chamados de enciclopedistas.

Passemos então à minha primeira enciclopédia, minha mesmo e enciclopédia mesmo, de fato e direito. Era uma Conhecer, editada pela Abril Cultural, no longínquo 1966, contando com reedições várias. A princesa me chegou usada, como doravante a maioria de livros que me atravessaram a ânima e as manoplas. Na altura de uns 11, 12 anos, corria a brincar de pique-esconde na pequena favelinha onde meio que me "criei", na verdade uma única rua de média extensão formada por algumas casas humildes e até alguns barracos. Algumas casas ainda possuíam o quintal aberto, sem muros. A favelinha era a Beira Rio, que possuía tal nome justamente por... beirar um pequeno rio (o Anaia ou Alcântara ou outros nomes, pois a cada trecho tal rio assume um nome, enquanto percorre meio município de São Gonçalo), que o tempo transformou em valão. Na ânsia de esconder-me, entrei por um desses quintais abertos, que era composto por quatro casinhas, quando o titular do terreno, um negro simpático que trabalhava na cidade de Niterói como porteiro, dito Quiquinho, me chamou, lotado de sorrisos, e mostrou aquela maravilha. Como ele, que só me conhecia de vista na rua, adivinhara que eu era a presa certa, eu nunca soube. A tal maravilha, como eu poucas vezes (brevemente na biblioteca escolar) havia contemplado parecida, teve sobre minha curiosidade um efeito estonteante, catártico.

Fascinado, desliguei-me da brincadeira e mergulhei naquele esplendor - sim, pois a Conhecer contava não com fotos, mas com ilustrações primorosas em praticamente cada uma de suas grandes páginas. "Gostou?", sorria o vendedor de ocasião. "Peça a seu pai para comprar pra você. Diga para ele vir aqui falar comigo. Como essa, há outras dez, olha ali" - e apontou-me para a estante capenga que se escorava numa parede de tijolos nus de seu casebre.

Corri para casa. Perturbei seu Mário que, entre um trago e outro de cachaça (naquela época ainda bebia), consertava na varanda dos fundos máquinas de escrever e mimeógrafos. Perturbei e perturbei, até que ele resolveu ir até lá. Era também a seu modo um amante dos livros, e comprador regular das tais coleções pretensamente enciclopédicas, que nos idos eram vendidas de porta em porta por colportores ou mascates. Bom negociador - arte em que inutilmente tentou a vida inteira me iniciar - seu Mário sempre foi. Conversa vai, choro vem, e lá fomos nós para casa com aquela riqueza, aquela internet de papel (da qual faltou um volume), a Wikipédia possível em fins da década de 80. Nos anos seguintes, aquela enciclopédia foi devorada e sacramentou minha excursão pelo sendero luminoso das sabenças.

Hoje o tesouro, o tesauro das enciclopédias de papel esboroou-se: A Britannica deixou de ser impressa em 2012. Sem mágoas, por favor: A Wikipédia, com seus contras e (a meu humilde ver, muitos) prós aí está, solapando com terabytes de informação uma geração abençoada, eleita, reluzente que nunca saberá do sacrifício que era necessário, pouco tempo antes de nascerem, para a aquisição de conhecimento. E nem sentirão jamais o peso físico de ter que carregar doze volumes duma enciclopédia!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Arquivo Spina 17 (Maura Luza Martins Frazão)

 

Baú de Trovas XVIII


Teus olhos são dois poemas,
escritos na mesma cor;
são dois rosários de penas,
são duas trovas de amor.
ANTÔNIO LAFAYETTE
- - - - - -
Embora mortos estejam,
não feches os olhos meus;
pois eles talvez te vejam,
por um milagre de Deus!
ARCHIMIMO LAPAGESSE
- - - - - -
Sê franca e bem humorada,
mostra em tua alma e dulçor.
— Flor de corola fechada
nunca atraiu beija-flor!
ARGENTINA DE ARARIPE AIGNER
- - - - - -
A saudade tem tal arte,
é em bondade tão rica,
que não despreza quem parte,
nem abandona quem fica!
ARLETE REGINA
- - - - - -
Grande alegria me deste,
pois, quando eu me despedia,
numa lágrima disseste
tudo aquilo que eu queria!
APARÍCI0 FERNANDES
- - - - - -
Quis rasgar o teu retrato,
mas que tristeza, que sina...
— Até no papel, o ingrato
do teu olhar me domina!
BENNY SILVA
- - - - - -
O que é preciso na trova?
A paz, a delicadeza
de um beijo de lua nova
nuns lábios de camponesa...
BRITO MACHADO
- - - - - -
O Tempo ao Amor não mata...
é disso prova fiel
as nossas Bodas de Prata,
em plena Lua de Mel.
CARLOS GUIMARÃES
- - - - - -
Vou pelo braço da noite,
levando tudo que ó meu:
— a dor que os homens me deram
e a canção que Deus me deu.
CECÍLIA MEIRELES
- - - - - -
Eu da morte não me agrado,
mas morreria com gosto,
se fosse logo enterrado
na covinha de teu rosto.
CHRISTIANO TAVARES SIMÕES
- - - - - -
Tu não crês no que te digo,
o teu Sorriso me diz.
— Mas só quando estou contigo
é que me sinto feliz!
CLÓVIS RAMOS
- - - - - -
Quanto mais por ti eu peno,
mais gosto tenho em penar.
— O mundo inteiro é pequeno
para a glória de te amar!
COLOMBINA
- - - - - –
Fico a ver se ouço os teus passos,
quando estás para chegar,
que um só momento em teus braços
paga a pena de esperar!
DANIEL DE CARVALHO
- - - - - –
Creio que você não sabe
(se sabe, você não crê...):
— Não há no mundo o que acabe
meu grande amor por você!
DELMAR BARRÃO
- - - - - -
Se ela de mim chega perto
e há troca de saudação,
sua mão é um lírio aberto
perfumando minha mão!
DIAS MONTEIRO
- - - - - -
Enfrentando o mundo bronco,
ponho, apesar das perfídias,
ternura do velho tronco
alimentando as orquídeas.
DORMEVILLY NÓBREGA
- - - - - -

Esse teu beijo, querida,
profundo, louco, fremente,
tem tudo que, nesta vida,
desgraça a vida da gente!
DURVAL MENDONÇA
- - - - - -
Não chores, linda menina,
não chores, botão de flor!
— O teu sorriso ilumina
as trevas da minha dor.
EDGAR REZENDE
- - - - - -
Saudade, lembrança triste
de tudo que já não sou.
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou...
EDGARD BARCELLOS CERQUEIRA
- - - - - -
Queres partir? Sê feliz!
Porém te digo sincero:
ninguém te quer como eu quis,
ninguém te quis como eu quero!...
EDGAR DE ALENCAR
- - - - - -
Saudade é tudo que fica
de uma ventura fugaz,
no pranto que não se explica,
no verso que não se faz!,..
ERASMO SILVA

- - - - - -
Retornado ao pó obscuro,
coração, urna de pranto,
quem saberá no futuro
que amaste e sofreste tanto?
ESMERALDO SIQUEIRA
- - - - - -
Saudade, velha canção,
saudade, sombra de alguém,
que os tempos só levarão
se me levarem também.
FERNANDES SOARES
- - - - - -
Contemplar, risonha, a face
de uma criança contente,
é como se o céu cantasse
para a ternura da gente!
FERNANDO BURLAMAOUl
- - - - - -
Não tremas ingenuamente,
nem te cubras de rubor!...
O beijo é coisa inocente
na velha história do amor.
F. LUZIA NETTO
- - - - - -
Na pureza da inocência
e no cálice da flor
há, decerto, a florescência
sublime e santa do amor!
LUIZ G. CASTELLIANO

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

O Nosso Português de Cada Dia (Por quê, Porquê, Porque e Por que)


 1- Por quê: separado com acento

Trata-se da junção entre uma preposição (classe de palavras que tem a função de ligar um termo ao outro) com um pronome interrogativo (quê). É usado apenas em final de oração, pois o “quê” vira tônico antes de ponto de interrogação (lembre-se que na fala é necessário uma entoação na voz para fazer perguntas).  Pode ser trocado, sem nenhum prejuízo por “por qual motivo” e “por qual razão”.

Exemplo:
Se os mantimentos estão embrulhados, a Maria está nervosa por quê?

2- Porquê: junto e com acento

É um substantivo e deve vir acompanhado por um artigo “o/os”.  O “porquê” junto e acentuado é sinônimo da palavra motivo e razão (nesse caso sem a preposição “por”).

Exemplo:
Nunca me disse o porquê não falar mais comigo.

3- Por que: separado e sem acento

Nesse caso, é semelhante ao “por quê” separado com acento. Forma-se a partir de uma preposição (por) mais um pronome interrogativo ou relativo (que) e pode ser usado tanto em frases interrogativas quanto nas orações afirmativas. Desse modo, aqui também pode ser trocado pela palavra “motivo” ou razão” e serve para perguntas diretas e frases terminadas com ponto final.

Exemplos:
Por que você chegou correndo? (Por qual razão você chegou correndo?).

Maria sabe por que eu não pude trabalhar hoje. (Maria sabe por qual motivo eu não pude trabalhar hoje.).

4- Porque: junto e sem acento

É uma conjunção explicativa, assim, para não ter erro, você pode substituir por outra conjunção explicativa como “pois”, “já que”, “porquanto”, se não houver prejuízo no sentido, o uso está correto. Ele serve para indicar causa, explicação ou justificativa.

Exemplos:
Não consegui fazer a lição de casa porque estava doente. (Não consegui fazer a lição de casa, pois estava doente.).

Cheguei muito adiantado porque não quis incomodar os convidados. (Cheguei muito adiantado, pois não quis incomodar os convidados.).

Fonte das diferenças:

Infoenem.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 406

 


Carolina Ramos (S.O.S.)

Iara exultou ao ver as duas salas cheias de mantimentos, uma. A outra, de pacotes, brinquedos e roupas usadas, que prodigamente forravam as paredes até o teto envernizado.

Nos seus sete anos de existência, o "Lar da Tranquilidade" conquistara o apoio público de maneira bastante sensível. Neste ano, a mudança para moeda forte, vencidos os temores iniciais, tornara as pessoas mais confiantes, eufóricas e, consequentemente, mais dadivosas as bolsas.

O Natal rondava perto e logo começaria a faina das senhoras da sociedade, prontas para esquecer imperativos fúteis e empenhar as mãos no Banco Anônimo da Caridade Cristã.

O "Lar da Tranquilidade" abrigava, de um lado, velhinhos carentes que, no convívio com gente da sua idade, encontravam ouvidos pacientes para a troca de confidências, sobre dores e mazelas sazonais. No outro, crianças órfãs ou abandonadas.

Com um sorriso de íntima satisfação. Clara rememorou fatos que haviam precedido a fundação da entidade. Fora sua a ideia da formação do Lar beneficente. Ideia aprovada com entusiasmo pela maioria daqueles que lhe ofereciam apoio. Boa parte, entretanto, tivera de ser conquistada a duras penas e muita tenacidade, porque não poucos se opunham ao binômio velho-criança sob o mesmo teto, embora em alas distintas. Para Clara, valia tentar. O ponto é o começo e o fim de tudo. Infância e velhice, ainda que em campos opostos, tinham pontos afins. Nas voltas que o mundo dá, acabam por encontrar-se. Por quê, então, não colaborar para esse encontro? Crianças e velhos gostam de ouvir e de serem ouvidos. Crianças adoram histórias, velhos adoram contá-las. Como se não fossem eles compêndios vivos, repletos de histórias escritas pela mão da vida! Velhos e crianças amam e precisam sentir-se amados. E por quê não atirar uns nos braços dos outros?! Sofisma?

Vencidas as barreiras, o projeto, por si, dera mostras de viabilidade.

O "Lar da Tranquilidade", há muito, deixara de ser mera expressão literária. Funcionava. E muito bem! Ganhara apoio incondicional e, cada vez mais procurado, abria os braços para a acolhida carinhosa. A ajuda da sociedade viera espontânea — chuva gratuita que vem e vai, deixando o campo preparado para nova colheita.

Contudo, como nada nesta vida é perfeito, embora as intenções sejam as melhores possíveis, a própria prosperidade ostensiva, acabara por incomodar. Não a quem dela gozava, evidentemente, por necessidade, mas, em particular, a quem pretendia apenas usá-la e dela tirar proveito.

O aprazível "Lar da Tranquilidade" não tardaria em atrair atenções dos que, ignorando a amplitude do seu alcance social, viam nele, tão somente, fonte rendosa de fácil acesso.

Aproximavam-se as festas natalinas e já marcada a distribuição dos donativos. Crescia a ansiedade de Clara e a daquelas mãos bondosas que a assessoravam na direção do estabelecimento.

Entre os abrigados, poder-se-ia dizer que só havia crianças. Os olhos cansados dos velhinhos tinham brilho especial que os igualava aos olhos da garotada que serelepeteava pela área interna do prédio, a espichar o pescoço para alcançar o beiral das janelas e bisbilhotar o interior das salas abarrotadas de presentes.

Naquela manhã, como sempre. Clara chegara de braços cheios sendo logo rodeada pelo alvoroço das crianças.

- Tia... Tia... deixa a gente espiar... só um "poquinho", deixa?

Clara fingia zanga, sentindo o coração explodir de felicidade!

— Nada disso... deixem de ser abelhudos. Falta só um pouquinho para o Natal! Quinze dias só! E, aí, vocês vão ver e pegar tudo aquilo a que têm direito. Está bem? Olhem lá os velhinhos. Eles não têm pressa. Sentadinhos, tomando sol e esperando, sem queixa nenhuma. Eles sabem esperar. Vocês precisam aprender com eles. E eles têm tanto a ensinar a vocês!...

A equilibrar embrulhos, Clara torceu a chave e entreabriu a porta, com cautela, evitando a curiosidade que a cercava.

Recuou de pronto, reprimindo um grito. Tudo vazio! Atônita, correu para outra sala. O mesmo! A história se repetia. Já vira esta cena uma outra vez! Sentiu-se também vazia por dentro. Era demais! Há dois anos, por essa mesma data, acontecera fato idêntico. Na surdina, os larápios haviam levado tudo o quanto puderam, deixando sua festa de Natal mergulhada no caos. As lágrimas saltaram incontroláveis, num misto de raiva e desapontamento. Desta vez, fora bem pior! Nada sobrara! Nadinha! As quatro operações completas! Somar e multiplicar, até que não fora tão difícil. Dividir, mais fácil ainda, que as mãos estendidas apareciam em profusão! Reconhecia que, subtrair, dentre todas, tinha sido a operação mais rápida! Numa só noite, os gatunos haviam dado conta de tudo!

Clara recusava-se a acreditar: — Outra vez, não! Não é possível, meu Deus!

O que fazer nos quinze míseros dias que precediam o Natal?!

A névoa da desolação abateu-se sobre o "Lar da Tranquilidade". Velhinhos e crianças perderam o brilho do olhar. Crianças ficaram menos crianças e velhinhos, ficaram mais velhinhos ainda!

Clara trancou o desespero entre as quatro paredes do quarto vazio. Não queria ver nem falar com ninguém. Saiu, pouco depois, decidida. Ao voltar, trazia consigo larga faixa de pano, que fez estender na parede frontal do prédio e que esclarecia em letras negras e gritantes:

"S.O.S.— Senhores ladrões: O "Lar da Tranquilidade" mantém velhinhos e crianças, apenas com contribuições. Somos pobres. Precisamos da ajuda de vocês. Ajudem-nos, por favor."

Alguns dias depois, nova surpresa. Abertas as portas, as duas salas estavam repletas de presentes. Pacotes de todos os tamanhos forravam as paredes suplantando o volume dos surrupiados.

O brilho voltou aos olhos e o riso novamente trouxe alegria àquela casa. O Natal do Tranquilidade foi, desta vez, verdadeiramente muito especial! Crianças de diferentes idades, várias com mais de oitenta anos, cantavam e cirandavam ao redor da Árvore iluminada.

No presépio, em Seu leito de palhas, o Menino-Deus sorria, ansioso por erguer-se e cirandar também com elas.

E, até hoje, não houve mais qualquer problema naquele Lar abençoado, a não ser a renovação anual da faixa, agora com apenas três palavras; "DEUS LHES PAGUE!"

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 405

 


Aparecido Raimundo de Souza (Por todos estes pequenos pedacinhos da minha vida)


HOJE, MEU DEUS, HOJE eu deveria estar completamente venturoso e beatificado, próspero e feliz!  Imensamente louvado, satisfeito e realizado. Afinal, hoje 12 de outubro, é o Dia das Crianças. Das minhas crianças, em particular. Hoje é o dia das minhas filhas que se tornaram mães e me deram, de presente, netos.

Mesmo trilho, dia de ver estes pequeninos seres e trocar com eles os obsequiosos benfazejos que estão escondidos dentro de mim. Trancafiados num lugarzinho secreto onde somente eu tenho livre e total acesso. Hoje também é o dia ‘D’, ou seja, o dia de dizer aos meus filhos o quanto eu os amo e os venero.

Via de extensão, me abraçar aos netinhos, gritando, a plenos pulmões, o meu amor incondicional, e demonstrando, às claras, e não só isto, fazendo fluir, em toda a sua plenitude, a afabilidade, o comprazimento e o folguedo ímpar, a felicidade contagiosa e tamanha, que me invade o âmago.

Tudo isto me deixa em frangalhos, à beira de um ataque  de nervos, em vista das emoções jubilosas e dos regalos que me elevam a um estado de graça jamais imaginado. Meu Deus, como eu me sinto realizado em poder estar com eles nesta data, nesta hora, neste momento tão especial e marcante.

Entretanto, apesar de toda esta exultação, me ocorre exatamente o oposto. No pleno e abastado da minha vida, uma dor desgostosa e maçante, pegajosa e chata resolveu me fustigar a alma. Uma tristeza destas grandiosas, vinda não sei de onde,  me tirou a paz, me atirou o sossego no ralo.

Num repente, se achegou, de mansinho, e me pegou de jeito. Me escanteiou do foco. Destruiu a minha fortaleza interna e me fez beijar o chão frio. Me embaçou a visão não me permitindo enxergar um palmo adiante do nariz, e, logo à frente, a linha do horizonte a ser seguida.

Para completar meu quadro perversamente lúgubre, uma solidão despropositada me deixou igualmente aprisionado, me abandonou num imprevisto mal chegado, completamente à deriva, algemado, acorrentado ao sombrio sepulcral de uma senda sem retorno.

Em razão disto, estou aqui, assim, perdido mesmo, ao “Deus  dará”, sem saber como fazer para voltar e tentar dar um novo tapa no visual da minha entenebrecida desgraça mal parida e completamente obumbrada de um túrbido gigantesco que não desgruda nem por reza braba.

Pelo exposto, diante do que está à minha frente, almejava, agora, aparecer para todos os meus pequenos, travestido num semblante alegre e descontraído, envolto num sorriso franco, enroupado numa plenitude que bailasse fácil ao som cativante e terno de uma melodia maviosa e gostosa de ser digerida e revisitada por todos que me são caros.

Hoje, meu Deus, hoje, exatamente hoje, agora, eu deveria estar completamente feliz! Imensamente satisfeito e realizado. Afinal, está na minha porta, o 12 de outubro. Chegou o  dia das crianças. Das minhas crianças, em particular. Hoje é o dia das minhas filhas que se tornaram mães e me deram, de presente, netos.

Entretanto, meu coração chora copiosamene. Meu peito arfa ao sabor de uma febre agonizante que me está definhando, aos poucos, a goles compassados, me colocando à pique a estrutura da planta dos pés às raizes dos meus fios de cabelos.

Apesar dos netos lindos, das filhas maravilhosas, do dia das crianças estar lá fora esplendoroso e imensurável, eu me sinto como aquela criança órfã... Tal e qual aquele menino que esqueceu de voltar correndo para os braços aconchegantes do mundo que roda, roda, roda, ao compasso engenhoso de um imenso carrossel girando continuamente em derredor de mim.      

Fonte:
Texto e fotos enviados pelo autor, de Conceição da Barra/ES.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) III


CRIANÇA

Cada vez que surge a flor
traz consigo, além das cores,
toda a magia do olor
que perfuma seus valores.
Na difusa luz do dia
fonte de vida e de paz,
guarda as marcas da harmonia
que sempre nova se faz.
Força impulsionando o ser
feliz por vê-lo crescer
no berço que se compraz.

Voando às asas dos ventos
num passeio à eternidade,
pereniza os bons momentos
com o pólen da amizade.
Assim, torna pleno o passo,
de quem no afã de crescer
dança ao som dum só compasso
o recital do viver.
Manter a estrada florida
deve a margem ser mantida
num eterno renascer.
****************************************

CARGA PESADA

Velha carreta de bois
rente à curva do estradão,
dorme cansada, depois,
de rodar num duro chão.
E o carreteiro exaurido
pelas andanças campeiras
descansa por ter cumprido
suas metas condoreiras,
rodas que não rangem mais,
ecos que somem jamais
das lembranças corriqueiras.

Ora transportando feno,
ora um fardo inconformado.
Se hoje parecer pequeno
o que ontem foi transportado,
basta ter olhar sereno
pra ver quanto tem mudado.
Percurso, talvez ameno,
porém não menos pesado.
Quem andar na direção
da carreta ou caminhão
faz deles o seu cajado.
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COLHEITA

Toda a leitura conduz
à sonhada descoberta,
pelo fruto que produz
o afeto ao livro desperta.
Leitura, a ceifa perfeita,
em todas as estações,
farta e constante colheita
no campo das plantações.
Ninguém deixe pra ser feita
à sombra da sala estreita
das cabais desilusões.

Sempre uma nobre razão
nos faça chegar à glória,
fonte que à luz dê evasão
escrevendo em paz a história.
Há momentos que perdemos
o entusiasmo de viver,
porém morrer não podemos,
sem cumprir nosso dever,
cada página que lemos,
uma mensagem colhemos
não sem antes florescer.
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MARCAS DO SER

Na beleza de uma flor
o vigor não se resume,
pode demonstrar a dor
mesmo que espalhe perfume.
Essência, luta e labor,
sob o respaldo do esmero,
farão do batalhador
suprimir o vil desterro
e os reflexos do esplendor,
descrições do semeador
sem rasura e desespero.

As primeiras impressões
sempre vão permanecer,
no arquivo das emoções
e delas nunca esquecer.
Dentre tantas expressões
a última a vir florescer
seja a das confirmações
nas linhas do entardecer.
Que tudo, sem exceções,
nada traga decepções
no rol do perene ser.
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ODE ÀS LETRAS

As doces uvas plantadas
nos ramos do nosso ser,
foram letras enxertadas
nas videiras do viver,
nobres fontes transbordaram
excelsa sabedoria,
as águas se transformaram
em dileta Academia.

Na bandeira vislumbramos
a estrela sempre a brilhar,
nessa luz nos espelhamos
pra também iluminar
e às letras, hoje cantamos,
sob o sol, raro esplendor,
à Academia exultamos
exaltando o seu fulgor.

Um passado de sucesso,
revestido de bravura,
dos anais desse progresso
à egrégia literatura.
Nestas plagas, semeadora,
da cultura universal,
das letras, desbravadora,
no universo cultural.
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PÃO

Daquilo que tem faltado
nas mãos do consumidor,
talvez mais tenha sobrado,
na mesa do produtor,
num desejo redobrado
de se tornar vencedor,
busca o passo tão sonhado
na rota de um lutador,
com vigor fica provado,
ninguém se torna abastado
sem ser um desbravador.

Nosso pão de cada dia
o tenhamos sobre a mesa,
seja a fonte de energia,
dando vida à natureza.
É de ti que vem o pão
louro fruto dos trigais,
alvo pó vindo do grão
celebrado em madrigais.
Ceifado, colhido à mão,
ondulante cobre o chão,
herança dos ancestrais.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.

Fernando Sabino (O Falso Coronel)


SONHEI que ia por uma estrada sob a luz da lua, quando, a uma curva do caminho, dou com um casarão estranho, ares de mal-assombrado. No andar inferior podia-se ver através das janelas o que se passava lá dentro. A princípio me pareceu a mais desvairada orgia: corpos semidespidos ou completamente nus que se misturavam numa dança frenética, ou que rolavam pelo chão, engalfinhados. Logo percebi que eram loucos furiosos, aprisionados num hospício. Parecia uma visão medonha do próprio inferno.

Apavorado, eu já ia tratando de me afastar, quando surge à minha frente um sujeito enorme, que mais parecia um gorila: olhos dilatados; cabelos revoltos, mãos crispadas, braços estendidos para a frente como se estivesse para se abater sobre mim. Era, certamente, um louco fugido daquele hospício. Antes que ele me agredisse, todavia, ocorreu-me a ideia salvadora:

— Enquadre-se! — ordenei, numa voz de comando que não admitia vacilações: — Apresente-se ao comandante de sua unidade!

O louco imediatamente se perfilou, fazendo-me continência:

— Pois não, meu coronel.

Fiz-lhe também uma continência, já contendo o riso, e o vi dar meia-volta, para logo se recolher ao hospício de onde fugira. Não resisti mais e abri numa gargalhada. A essa altura minha mulher me acordou, assustada, perguntando o que se passava, pois me vira fazer dormindo uma continência e depois começar a rir ruidosamente, como um idiota.

Contei mais tarde o sonho a meu amigo Hélio Pellegrino e pedi que me desse, como psicanalista, uma interpretação. Ele não vacilou:

— Quer dizer simplesmente isto: o doido que existe em você é trazido num verdadeiro regime de disciplina militar, com exercícios de ordem unida e tudo mais. O diabo vai ser o dia em que ele descobrir que você não é coronel.

O doido que existe em mim. Em todos nós — inclusive no Hélio Pellegrino, no entanto mais sensato e equilibrado que muito coronel. O ser humano ainda não conquistou um mínimo de equilíbrio mental que justifique a sua pretensão de civilizado — nem sequer de ser racional, feito à imagem e semelhança de Deus. Perdeu no pecado a divina condição de sua origem. Perdeu tudo, menos a razão, como na célebre definição de Chesterton. Não passa de rei dos animais, com desdouro para o leão, na sua autêntica e incontrastável realeza. Basta um olhar ao redor, para nos certificarmos que é tudo tantã — como dizia aquele doido do programa de televisão. O único homem equilibrado e perfeito que jamais existiu na face da terra foi Jesus Cristo — e esse, como sensatamente dizia aquele outro doido, olhem só o fim que ele teve.

Basta observar este ser dos mais puros, na flor da sua inocência, que é uma criança. Se a criança é mesmo o pai do homem, então estamos bem servidos, porque menino e doido é a mesma coisa. Menino fala sozinho, rasga dinheiro, bota fogo na casa e acha sempre que tem um jacaré debaixo da cama,
 
O pior é que às vezes tem.

Pois então deixa eu dizer que o doido que existe em mim é o responsável pelas emoções mais puras que a vida me deu. Foi ele, este monstro oligofrênico de olhos cintilantes e cabelos desgrenhados, que um dia saltou dentro de mim e gritou basta! num momento em que meu ser civilizado, bem penteado, bem vestido e ponderado dizia sim a uma injustiça. Foi ele quem amou e se apaixonou e possuiu a mulher e lhe fez filhos. Foi ele quem sofreu quando jovem a emoção de um desencanto, e chorou quando menino a perda de um brinquedo, debatendo-se na camisa de força com que os mais velhos procuram conter o seu protesto. E é ele que dorme dentro de mim o seu sono cheio de pesadelos, pronto a despertar a qualquer momento para reivindicar o direito de ir aonde levem os seus passos e fazer ouvir o som inarticulado de suas palavras. Este ser engasgado, contido, subjugado pela ordem iníqua dos racionais é o verdadeiro fulcro da minha verdadeira natureza, é o cerne da minha condição de homem, herói e pobre-diabo, pária, negro, judeu, santo e débil mental, soldado raso submetido ou beneficiado pela hierarquia dos privilégios, escravizado à férrea disciplina das conveniências, mas que um dia há de rebelar-se, enfim liberto, poderoso na sua fragilidade, terrível na pureza da sua loucura ao descobrir enfim que nunca fui nem serei coronel.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

domingo, 11 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 404

 


Arthur de Azevedo (Piedade Filial)


    O Brochado veio rapazito para o Rio de Janeiro e saltou aqui com o pé direito, porque arranjou logo emprego, e dois anos depois estava primeiro caixeiro, com magnífico ordenado e caderneta na Caixa Econômica.

    Considerava-se feliz; só uma coisa o afligia: as saudades do pai, que deixara na aldeia.

    Um dia em que, passando por uma loja da Rua do Ouvidor, viu exposto um retrato a óleo, lembrou-se de mandar pintar o do velho, a fim de pendurá-lo defronte da cama. Não podendo ter perto de si a pessoa, teria ao menos a imagem de seu pai!

    O Brochado informou-se da residência do pintor e foi ter com ele.

    - Vinha pedir-lhe que me pintasse o retrato de meu pai.

    - Com todo o gosto.

    - Mas não queria coisa que me custasse mais de trezentos mil réis. ~ quanto posso pagar.

    - Está dito! Esse não é o meu preço, é muito barato; mas como o senhor não pode pagar mais, paciência! Onde está o senhor seu pai?

    - Em Portugal.

    - Ah! está ausente? É pena, porque não gosto de fazer retratos senão diante dos respectivos modelos. Enfim, como não há remédio...

    - Faz o retrato?

- Faço. Queira mandar-me a fotografia.

- Que fotografia?

- Do senhor seu pai.

- Não tenho.

- Ah! não tem fotografia? Tem então um desenho?

- Que desenho?

- Um retrato qualquer do senhor seu pai.

- O retrato vai o senhor fazer-me.

- Mas o senhor não tem outro, do qual eu possa copiar o meu?

- Não, senhor; se eu tivesse o retrato de meu pai, não lhe encomendava outro; bastava-me um!...

- O senhor supõe que eu seja um telefotógrafo?

- Um quê?

- Como quer o senhor que eu faça o retrato de uma pessoa que não conheço, que nunca vi, e que não está presente?

- Dar-lhe-ei todas as informações necessárias.

O pintor compreendeu então que espécie de homem tinha diante de si e logo pensou em não perder os trezentos mil réis que estavam ganhos.

- Pois bem - disse ele - vamos às informações...

- Meu pai chama-se Francisco Brochado.

- O nome não é preciso.

- É viúvo.

- Adiante.

- Tem coisa de cinquenta anos. É alto, magro, barbado, louro, e corta cabelo à escovinha. Eu pareço-me com ele.

- É quanto basta - disse o pintor. - Daqui a três dias pode mandar buscar o retrato.

O Brochado Filho saiu, e no dia aprazado lá estava em casa do artista.

- Ali tem seu pai! - disse este apontando para um retrato que estava no cavalete.

O Brochado aproximou-se, teve um gesto de surpresa e levou muito tempo a olhar para a pintura.

Depois, as lágrimas começaram a deslizar-lhe pela face.

- Que tem o senhor?... Por que chora? - perguntou o pintor.

E o pobre diabo, com a voz embargada pelos soluços, exclamou:

- Como meu pai está mudado!...

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Humberto de Campos (Fortunato)


Em luta permanente com a adversidade, Fortunato segurou uma noite, entre as mãos, a cabeça da mulher e confessou o seu propósito:

- A fome, como tu vês, bate-nos à porta. Sem pão e sem amigos, a vida neste povoado é a mim de todo impossível. É preciso, pois, que eu me prive do teu carinho, e parta sozinho pelo mundo em busca de terra menos ingrata. Tudo que possuímos dar-te-á com certeza para uns vinte ou trinta meses. Com o teu trabalho honesto, poderás dilatar a utilidade desses recursos, fazendo-os durar cinco anos. Se dentro desse prazo, eu não tornar aos teus braços e ao teu amor, considera-te viúva, porque decerto eu morri.

Na manhã seguinte, após um esforço inaudito para libertar-se das cadeias de cristal e mármore que eram as lágrimas e os braços da esposa jovem, Fortunato punha às costas, preso ao seu cajado de caminhante uma trouxa com a roupa indispensável e desaparecia, limpando os olhos úmidos na manga da camisa grosseira na curva da estrada por onde passara há um ano, trazendo a noiva pela mão.

Errando de terra em terra, de fazenda em fazenda, eram-lhe companheiros por toda a parte o infortúnio impiedoso, a má sorte inclemente, os contratempos inevitáveis. Debalde se esforçava, infatigável, para juntar um pecúlio, amontoando algumas moedas com que levasse ao lar um pouco de felicidade e fartura. As suas tentativas mais tímidas, mais simples, mais modestas, eram sempre como uma árvore infeliz, cujas folhas fossem dispersadas ainda tenras por um sopro de tempestade.

Ao fim de quatro anos, porém, como por um milagre, tudo mudou. As moedas multiplicaram-se em seu bolso, acumulando-se, amontoando-se, como se a fortuna arrependida de tanta avareza se tivesse predisposto a compensar a usura anterior com um gesto de espantosa prodigalidade.

Meses depois, nas vésperas, quase, do prazo concedido à mulher, Fortunato encheu de moedas o seu grande surrão de couro, prendeu-o à cintura e, velho, barbado, desfigurado pelos sofrimentos inomináveis tomou a pé o caminho da terra natal. Ao cabo de quatro semanas, com os pés sangrando viu enfim, da curva da estrada por onde se fora cinco anos antes, a sua aldeia e o seu lar. Trôpego, magro, faminto, mas disposto mesmo assim a dar uma sensação de alegria à companheira querida, encaminhou-se de manso para a porta e bateu. Uma criança de quatro anos, linda e forte, em quem se repetiam os traços inolvidáveis da esposa, surgiu na sala pequenina e chamou para dentro:

- Papai!

- Heim? - respondeu do compartimento contíguo uma voz masculina.

- Aqui está um homem - informou alto a pequenita.

Fortunato cambaleou numa síncope, encostando-se ao portal para não cair. Antes que o dono da casa aparecesse, entregou o saco de ouro à criança, retomou o seu bordão de peregrino e partiu...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

sábado, 10 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 403

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 10

Neste mundo velho sem porteira - como diz um amigo - são constantes os reclamos de que já não é mais como foi "antigamente " - tanta bandalheira, preconceito, desfaçatez, desrespeito, vida à deriva. Parece verdade que isto é coisa dos nossos dias.

Nas pesquisas para os anais da Academia Caçadorense de Letras sobre "Fatos Históricos de Caçador", achamos um "achado", pequeno livro publicado por autor caçadorense, cujo título é NOSSO MUNDO TÁ VIRADO (Edição do Autor, 1946).

E o mensageiro escreve com verve e linguagem totalmente sáfara, inculta, popular. Domínio de proseador: " Nosso mundo tá virado / anda de pata pro á, / assim há muito tempo / eu vejo o povo falá. / Já preguntei pra muitos, / ninguém sabe me contá / proquê que o mundo / anda de pata pro á ".

Leio, releio, me enleio, permeio ideias e reflito: nosso mundo natural é sempre o mesmo, com suas mutações cíclicas. O que muda com constância é a cabeça do habitante comumente devastador - o bicho-homem.

Por que será que as coisas boas não perduram ?
Por que o avanço traz retrocessos?
Estou mal das ideias, algum abcesso ?
Mundo mau, quero recesso !

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Carolina Ramos (Paixão à Primeira Vista...)



Foi mesmo assim, paixão à primeira vista. Sempre pensei que isso não existisse!

Aconteceu numa tarde, quando eu encerrava as compras natalinas daquele ano. Olhei para ele, ele olhou para mim e os sininhos tocaram! De ambos os lados, talvez? Incendiaram-se os meus sentidos! O verbo ter sobrepujou qualquer outro. Mas, não cedi à tentação, prontamente. Continuei a caminhar sem pressa, examinando, com cuidado exagerado, mercadorias que, por certo, não seriam compradas — demonstrava até certo alheamento pelo que, realmente me interessava.

Caminhei pela grande loja encantando os olhos, fascinada pelas luzes, cores e brilhos que a cada ano despertavam o espírito natalino, transportando almas para um mundo diferente onde, só em dezembro, todos falavam a mesma língua.

Depois de andar à roda, fechei o círculo em frente a ele. E, aí, não deu para esconder, nem disfarçar o meu real interesse.

Fitamo-nos olhos nos olhos e, sem mais ponderações, capitulei — aquele Papai Noel de três palmos de altura, cabelos longos, barbas branquinhas e vestido com requinte, seria meu, sem importar quanto custasse, mesmo porque, com a chegada da bisneta, qualquer quantia seria válida para comprar-lhe um sorriso.

O olhar azul do Bom Velhinho fixou-se no meu, cativando-me em definitivo. Quase voltei a ser criança quando, ao pressionar um botão, ouvi novamente soarem os sinos, a modular canções natalinas enquanto o boneco movia cabeça e braços ao ritmo das melodias. Numa das mãos, um saco de presentes e, na outra, uma lanterna acesa.

Que festa, voltar no tempo e sentir renascer as mesmas ingênuas emoções outrora sentidas!

Um Pai Noel como aquele não poderia faltar numa Noite de Natal em que um pequenino anjo, redundantemente chamado Ângela, fazia seu debut natalino.

Foi mágico o instante em que Angela pousou seus olhos no Papai Noel surpreendente, que se mexia e tocava sininhos invisíveis! Fascinação total! Tanto por parte do anjo, de apenas dez meses de idade, como dos que, enlevados, observavam a cena!

Findo o êxtase, difícil foi estabelecer limites protetores que preservassem a integridade do Bom Velhinho indefeso, exposto à curiosidade exacerbada de duas mãozinhas indóceis. No primeiro descuido, a lanterna trocou de dono, indo parar nas mãos angelicais, que quase a destruíram!

Passados os ecos do Natal, o Dia de Reis exigia que os vestígios natalinos desaparecessem nas caixas, nas gavetas e nos armários. A árvore tradicional, despida de luzes e enfeites, galhos dobrados, sumiu numa caixa comprida, no alto de um armário. O presepe, com carinho desmontado. As velas e os arranjos típicos, que enfeitavam mesas e móveis das salas, recolhidos.

Faltava ele! Só o Papai Noel, com suas barbas branquinhas e lanterna em punho, permanecia no posto, à espera de outra visita de Angela, para que o visse, uma vez mais, antes da sua forçada hibernação até o Natal vindouro.

Passaram-se quinze dias...e… Ângela não veio! Por várias vezes, ao me sentir solitária, acionei aquele botão mágico que me deliciava com melodias escolhidas para prolongar as emoções recentes do que poderia ser, quem sabe, meu último natal.

Questionei-me: — Por que me apegara tanto àquele Papai Noel tão meigo?! Por que não o doara, definitivamente a Ângela, já que evidentemente o comprara pensando nela?! As respostas não foram tão fáceis quanto as perguntas. Tentei justificar-me perante mim mesma; — Talvez porque, inconscientemente, eu quisesse atraí-la para mais perto de mim, para nos deliciarmos, juntas! Ela, com a magia dele emanada. Eu, com o encantamento que as duas presenças me proporcionariam.

Olhei-me, frente a frente, e então, a verdade aflorou. Ângela, minha tão querida bisneta, fora apenas um pretexto para justificar a compra daquele Papai Noel, que um dia será dela!

Simplesmente, porque a magia daquele Velhinho trazia à tona lembranças doces de natais felizes, (tão felizes!) que nunca mais voltarão, é que o fiz descer da prateleira da loja, trazendo-o para casa!

Comprei-o, sim! Impossível negar... comprei-o para mim mesma!

E com tristeza maior... sem mais esperas, engavetei o meu Papai Noel!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Prof. Garcia (Trovas que Sonhei Cantar) 10


Anjo do Bem bate palmas,
mostra as mãos com seus sinais;
sê paz e perdão das almas
que encorpam nossos Natais!
- - - - - -
A solidão - dobra quando,
no fim da tarde, eu medito,
ao ver o Sol se apagando
na solidão do infinito!
- - - - - -
Beijaste a flor ressequida
e a rosa mudou de cor;
teu beijo de amor, querida,
mudou a vida da flor!
- - - - - -
De uma roseira, tão pobre,
que lindo gesto o da flor:
Perfuma a casa do nobre,
enche a do pobre de amor!
- - - - - -
Em minhas preces pequenas,
faço um pedido, e afinal...
Quero apenas Pai, apenas,
ser feliz neste Natal!
- - - - - -
Enquanto a noite se aninha,
a saudade me seduz
e a tarde, bela e sozinha
enche os meus versos de luz!
- - - - - -
Escravo, do teu assédio,
refém de tua ternura,
sofro, por não ter remédio,
para um mal que não tem cura!
- - - - - -
Esse orgulho que te ronda,
que entulha o teu peito aflito;
impede que o amor responda
aos apelos do teu grito!
- - - - - -
Hoje, eu despertei cantando,
molhando os pés no mormaço
das nuvens soltas brincando
tecendo rendas no espaço!
- - - - - -
Lembranças, são pergaminhos,
onde o tempo, por maldade,
vai rabiscando os caminhos
dos perfis da mocidade!
- - - - - -
Não temo o tempo que avança!
Envelhecer, na verdade...
É voltar a ser criança
no fim da terceira idade!
- - - - - -
O artista que a tarde pinta,
mostra aos ateus e ao descrente,
que alguém sem pincel nem tinta
pinta a dor do sol poente!
- - - - - –
O cego percebe o filho,
pelo cheiro do suor!...
Por trás desse olhar, sem brilho,
brilha um olhar, muito maior!
- - - - - -
O poeta encontra meios,
de às vezes, mesmo sozinho...
Ser feliz, sem ter receios
da solidão do seu ninho!
- - - - - -
Por descartar teus conselhos,
mas por teu beijo roubado...
Beijo os teus lábios vermelhos
no guardanapo encharcado!
- - - - - -
Por mais que outro alguém te ofenda,
mantém firme a compostura,
que a mão, do tempo, remenda
a cicatriz da amargura!
- - - - - -
Quando a tarde me entristece,
roubando a luz da razão,
pinta no ocaso uma prece
com versos de solidão!
- - - - - -
Rondando o circo do sonho,
num suspiro derradeiro,
velho, o palhaço tristonho,
diz adeus ao picadeiro!
- - - - - -
Saudade!... Eu sei quem tu és;
e em cada sonho desfeito,
fica a sombra de teus pés
tatuada no meu peito!
- - - - - -
Se a cruz redime o pecado,
seu peso nos leva á Luz...
Eu quero o peso dobrado
nos braços de minha cruz!
- - - - - –
Semeia filho, a semente
do amor, que te dei um dia!...
Que um neto meu, certamente,
há de colher alegria!
- - - - - -
Se o remorso se agasalha,
num coração descontente...
Sem gume, é velha navalha
cortando o peito da gente!
- - - - - -
Somos pobres passarinhos,
que a vida, em seus rituais,
dá-nos os mesmos caminhos
com destinos desiguais!
- - - - - -
Tempo!... ó tu, que me devoras,
não sejas ingrato assim!...
Se és tu, meu pastor das horas,
prendas as horas por mim!
- - - - - -
Vivi tão pouco ao teu lado,
mamãe! Contigo sonhei.
Devia ter te beijado
bem mais, do que te beijei!


Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018.  Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Grande Doutor Altino

Os primeiros jornais e revistas de Maringá tiveram o privilégio de contar com um megaelenco de colaboradores: Dom Jaime Luiz Coelho, Hélenton Borba Cortes, Mário Urbinatti, Túlio Vargas, Ademaro Barreiros, Emílio Germani, Ricarte de Freitas, Luiz Carlos Borba, Ary de Lima, Duque Estrada, Tertuliano dos Passos. E entre eles um que eu costumava chamar de Dom Altino, talvez porque o achasse com jeito de príncipe – o Doutor Altino Borba.

Paranaense de Palmeira, o Doutor Altino formou-se em Direito em 1940 pela Universidade Federal do Paraná. Veio para Maringá no comecinho da década de 1950, porém já chegou aqui com uma biografia bem substantiva. Em Curitiba, no tempo de estudante, havia sido craque de futebol (bicampeão pelo Atlético Paranaense – 1929-30), depois árbitro, cronista esportivo, e durante alguns anos funcionário da Rede Ferroviária Federal. Em Guarapuava, foi vereador, prefeito e suplente de deputado estadual.

Em Maringá, pela sua competência jurídica e notável talento como orador, logo de início conquistou a admiração da comunidade pioneira. Foi também o primeiro professor de língua portuguesa no Ginásio Municipal (precursor do Colégio Estadual Gastão Vidigal) e um dos diretores da Sociedade Telefônica do Paraná, juntamente com o empresário e depois deputado Ardinal Ribas. Nessa função, participou da implantação da telefonia automática na cidade.

Com tanta atividade, Doutor Altino ainda achava tempo para ser jornalista, poeta e apaixonado torcedor do nosso velho e glorioso Grêmio. Escreveu para todos os jornais e revistas que aqui circulavam na época e por longo tempo foi o orador do antigo Clube de Rádio e Imprensa de Maringá, cujo presidente era o inesquecível Ivens Lagoano Pacheco.

Poeta de nascença, deixou um belo acervo de trovas, sonetos e poemas livres e ajudou muito nos primeiros eventos literários da cidade. Lembro-me de um concurso nacional de trovas em que ele presidiu a comissão julgadora. Como vieram mais de mil trovas do Brasil inteiro, Doutor Altino propôs que um de nós fizesse a leitura de uma por uma, em voz alta, para que selecionassemos as melhores como finalistas. Mas qual seria o critério?

Ele explicou: “As que, ao serem lidas, provocarem um arrepio serão consideradas boas; as demais serão de pronto deixadas de lado”. Estava assim inaugurado o “arrepiômetro” como método de avaliação de poesia. E querem saber de uma coisa?... Deu certo. As dez classificadas como vencedoras eram realmente ótimas. Grande Doutor Altino.

De futebol ele gostava tanto que, num certo dia em 1966, sem nenhum rodeio, chegou em casa e perguntou a Dona Stella: “Topas ir à Inglaterra ver a Copa?”. Ela topou. Foram. Na volta ele contou tudo num livro-reportagem que fez enorme sucesso: “Maringá na Taça do Mundo”.

Amou o Grêmio até o último minuto de sua linda vida. Infartou no dia 14 de fevereiro de 1982, no Estádio Willie Davis, no momento em que o Galo do Norte fez o segundo gol contra o Internacional de Porto Alegre, na vitória por 2 a 0. Foi um dos homens mais queridos da história de Maringá.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo - Maringá – 24-9-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 402

 


Daniel Maurício (Poética) 5

 


Olivaldo Júnior (O Catador)


Fazia um frio descomunal na Cidade. Quatro, cinco horas da manhã, e lá se ia. Não era velho nem jovem. Estava ao meio da vida e à margem de si. Sussurro seu nome, mas ele não ouve. Nem a ninguém, nem a mim. Sua única preocupação é passar a madrugada nas ruas fazendo o menor barulho possível. Assim, é fácil catar o lixo das casas, que dormem, sonham, esperam o dia. Para ele, o dia não vem. Quando chega, está em casa, na cama, coruja humana que só vai despertar com o primeiro raio lunar em seu rosto. Então, como se fosse um artista, paramenta-se todo e, com a cara limpa, palhaço às avessas, conversa com o cão que cria com restos de janta e se vai. Logo, não é nem mais visto com seu carrinho de lata, com sua cara de quem já teve outra vida. Vivo, fareja a sucata que pode lhe dar um pão mais quentinho, um leite mais puro no dia seguinte. Tento esperá-lo, mas o sono me vence e nunca o encontro. Triste, me deito e, de vez em quando, num sonho qualquer, lá está ele, o catador que se infiltra nas latas de lixo, em nossas calçadas, no vão das lixeiras, em busca de... Não, não pode ser! Detrás de seu rosto, outro rosto se vê! Não, não pode ser!... O catador de meus sonhos, quem diria, sou eu!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.