sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 10 –

 


Fernando Sabino (Televisão para Dois)


Ao chegar ele via uma luz que se coava por baixo da porta para o corredor às escuras. Era enfiar a chave na fechadura e a luz se apagava. Na sala, punha a mão na televisão, só para se certificar: quente, como desconfiava. Às vezes ainda pressentia movimento na cozinha:

- Etelvina, é você?  

A preta aparecia, esfregando os olhos:  

- Ouvi o senhor chegar... Quer um cafezinho?  

Um dia ele abriu o jogo:  

- Se você quiser ver televisão quando eu não estou em casa, pode ver à vontade.

- Não precisa não, doutor. Não gosto de televisão.  

- E eu muito menos.  

Solteirão, morando sozinho, pouco parava em casa. A pobre da cozinheira metida lá no seu quarto o dia inteiro, sozinha também, sem ter muito que fazer... Mas a verdade é que ele curtia o seu futebolzinho aos domingos, o noticiário todas as noites e mesmo um ou outro capítulo da novela, "só para fazer sono", como costumava dizer:

- Tenho horror de televisão.  

Um dia Etelvina acabou concordando:  

- Já que o senhor não se incomoda...  

Não sabia que ia se arrepender tão cedo: ao chegar da rua, a luz azulada sob a porta já não se apagava quando introduzia a chave na fechadura. A princípio ela ainda se erguia da ponta do sofá onde ousava se sentar muito ereta:

- Quer que eu desligue, doutor?  

Com o tempo, ela foi deixando de se incomodar quando o patrão entrava, mal percebia a sua chegada. E ele ia se refugiar no quarto, a que se reduzira seu espaço útil dentro de casa. Se precisava vir até a sala para apanhar um livro, mal ousava acender a luz:

- Com licença...  

Nem ao menos tinha mais liberdade de circular pelo apartamento em trajes menores, que era o que lhe restava de comodidade, na solidão em que vivia: a cozinheira lá na sala a noite toda, olhos pregados na televisão. Pouco a pouco ela se punha cada vez mais à vontade, já derreada no sofá, e se dando mesmo ao direito de só servir o jantar depois da novela das oito. Às vezes ele vinha para casa mais cedo, especialmente para ver determinado programa que lhe haviam recomendado, ficava sem jeito de estar ali olhando ao lado dela, sentados os dois como amiguinhos. Muito menos ousaria perturbá-la, mudando o canal, se o que lhe interessava estivesse sendo mostrado em outra estação.

A solução do problema lhe surgiu um dia, quando alguém, muito espantado que ele não tivesse televisão em cores, sugeriu-lhe que comprasse uma:

- Etelvina, pode levar essa televisão lá para o seu quarto, que hoje vai chegar outra para mim.

- Não precisava, doutor. - disse ela, mostrando os  dentes, toda feliz.

Ele passou a ver tranquilamente o que quisesse na sua sala, em cores, e, o que era melhor, de cuecas - quando não inteiramente nu, se bem o desejasse.

Até que uma noite teve a surpresa de ver a luz por debaixo da porta, ao chegar. Nem bem entrara e já não havia ninguém na sala, como antes - a televisão ainda quente.

Foi à cozinha a pretexto de beber um copo d'água, esticou um olho lá para o quarto na área: a luz azulada, a preta entretida com a televisão certamente recém-ligada.

- Não pensa que me engana, minha velha - resmungou ele.

Aquilo se repetiu algumas vezes, antes que ele resolvesse acabar com o abuso: afinal, ela já tinha a dela, que diabo. Entrou uma noite de supetão e flagrou a cozinheira às gargalhadas com um programa humorístico.

- Qual é, Etelvina? A sua quebrou?

Ela não teve jeito senão confessar, com um sorriso  encabulado:

- Colorido é tão mais bonito...  

Desde então a dúvida se instalou no seu espírito: não sabe se despede a empregada, se lhe confia o novo aparelho  e traz de volta para a sala o antigo, se deixa que ela assista a  seu lado aos programas em cores.

O que significa praticamente casar-se com ela, pois, segundo a mais nova concepção de casamento, a verdadeira felicidade conjugal consiste em ver televisão a dois.

Fonte:
Os melhores contos de Fernando Sabino. RJ: Record, 1986.

Prof. Garcia (Pantuns) V

PANTUN DA ALMA ARREPENDIDA


Trova tema:
Na praça da minha vida
vi, de joelhos, em vão,
uma ofensa arrependida
pedindo abraço ao perdão...
(José Valdez - SP)


Vi, de joelhos, em vão,
um alguém, que nunca via,
pedindo abraço ao perdão
no altar da Virgem Maria.

Um alguém, que nunca via,
Confessa os pecados seus,
No altar da Virgem Maria,
pedindo perdão a Deus.

Confessa os pecados seus,
por sentir-se angustiada;
pedindo perdão a Deus
vi a pobre alma penada.

Por sentir-se angustiada,
tristonha e arrependida,
vi a pobre alma penada
na praça da minha vida.
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PANTUN DA ETERNA ILUSÃO

Trova tema:
Foi pela guerra enlutada...
Mas a ilusão de Maria
Fincava os olhos na estrada
Quando a porteira batia!...
(José Messias Braz - MG)


Mas a ilusão de Maria
era ura eterno estribilho;
quando a porteira batia
ela ouvia a voz do filho.

Era um eterno estribilho;
quanto mais a mãe rezava,
ela ouvia a voz do filho
que da guerra não voltava.

Quanto mais a mãe rezava,
mais sentia entre os arcanjos
que da guerra não voltava,
que o filho estava entre os anjos.

Mais sentia entre os arcanjos
já chegando ao fim da estrada,
que o filho estava entre os anjos,
Foi pela guerra enlutada!...
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PANTUN DA PEDRA ESCONDIDA

Trova tema:
Nas ruas da minha vida
quantas pedras eu saltei,
mas a pequena escondida...
Foi nela que eu tropecei!
(Vera Maria Bastos Braz - MG)


Quantas pedras eu saltei,
na menor de todas elas,
foi nela que eu tropecei
em meio a pedras tão belas,

Na menor de todas elas,
eu vi um brilho tão forte,
em meio a pedras tão belas
há nela, o brilho da sorte.

Eu vi um brilho tão forte,
e essa luz, eu não renego,
há nela, o brilho da sorte
da velha cruz que carrego,

E essa luz, eu não renego,
eis a forma desmedida,
da velha cruz que carrego
nas ruas de minha vida!
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PANTUN DE ELEVADA PRECE

Trova tema;
Na aurora de cada dia,
a Deus elevo uma prece:
- Pai, enchei de poesia
nosso povo que padece!

(Joamir Medeiros – RN)


A Deus elevo uma prece:
ó Pai, salvai por favor,
nosso povo que padece
por falta de pão, de amor.

O Pai, salvai por favor,
os excluídos do afeto,
por falta de pão, de amor,
vivem sem lar e sem teto.

Os excluídos do afeto,
não têm voz, nem têm razão,
vivem sem lar e sem teto
ante a cruel exclusão.

Não têm voz, nem têm razão,
por berço, a melancolia,
ante a cruel exclusão
na aurora de cada dia,
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PANTUN DOS DESAJUSTADOS

Trova tema:
Quando a família é rompida
por atos cegos, tiranos,
deixa destroços de vida,
restos de seres humanos.
(Manoel Cavalcante - RN)


Por atos cegos, tiranos,
por ciúme ou por loucura,
restos de seres humanos
são sobras da desventura.

Por ciúme ou por loucura,
as decisões mal tomadas,
são sobras da desventura
de vidas abandonadas.

As decisões mal tomadas,
as vezes gera a desgraça
de vidas abandonadas
jogadas no chão da praça.

As vezes gera a desgraça
das almas cheias de vida,
jogadas no chão da praça
quando a família é rompida.
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PANTUN DOS MARES DA VIDA

Trova tema:
Singrei mares de agonia,
lutei contra vendavais,
para achar a calmaria
que só encontro em teu cais.
(Lisete Johnson - RS)


Lutei contra vendavais,
tentando encontrar alguém,
que só encontro em teu cais,
e no cais de mais ninguém.

Tentando encontrar alguém,
procuro por todo canto;
e no cais de mais ninguém,
ninguém verá mais meu pranto.

Procuro por todo canto,
esse alguém, que disse adeus;
ninguém verá mais meu pranto
no pranto dos olhos meus.

Esse alguém que disse adeus,
me fez sofrer todo dia;
no pranto dos olhos meus,
singrei mares de agonia.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Inglês de Souza (A Feiticeira)


 Chegou a vez do velho Estevão, que falou assim:

“ - O tenente Antônio de Sousa era um desses moços que se gabam de não crer em nada, que zombam das coisas mais sérias e riem dos santos e dos milagres. Costumava dizer que isso de almas do outro mundo era uma grande mentira, que só os tolos temem o lobisomem e feiticeiras. Jurava ser capaz de dormir uma noite inteira dentro do cemitério, e até de passear às dez horas pela frente da casa do judeu, em sexta-feira maior.

“Eu não lhe podia ouvir tais leviandades em coisas medonhas e graves sem que o meu coração se apertasse, e um calafrio me corresse a espinha. Quando a gente se habitua a venerar os decretos da Providência, sob qualquer forma que se manifestem, quando a gente chega à idade avançada em que a lição da experiência demonstra a verdade do que os avós viram e contaram, custa ouvir com paciência os sarcasmos com que os moços tentam ridicularizar as mais respeitáveis tradições, levados por uma vaidade tola, pelo desejo de parecerem espíritos fortes, como dizia o dr.  Rebelo. Peço sempre a Deus que me livre de semelhante tentação. Acredito no que vejo e no que me contam pessoas fidedignas, por mais extraordinário que pareça. Sei que o poder do Criador é infinito e a arte do inimigo varia.

“Mas o tenente Sousa pensava de modo contrário!

“Apontava à lua com o dedo, deixava-se ficar deitado quando passava um enterro, não se benzia ouvindo o canto da mortalha, dormia sem camisa, ria-se do trovão! Alardeava o ardente desejo de encontrar um curupira, um lobisomem ou uma feiticeira. Ficava impassível vendo cair uma estrela e achava graça ao canto agoureiro do acauã, que tantas desgraças ocasiona. Enfim, ao encontrar um agouro, sorria e passava tranquilamente sem tirar da boca o seu cachimbo de verdadeira espuma do mar.

“- Quereis saber uma coisa? Filho meu não frequentaria esses colégios e academias onde só se aprende o desrespeito da religião. Em Belém, parece que todas as crenças velhas vão pela água abaixo. A tal civilização tem acabado com tudo que tínhamos de bom. A mocidade imprudente e Leviana afasta-se dos princípios que os pais lhe incutiram no berço, lisonjeando-se duma falsa ciência que nada explica, e a que, mais acertadamente, se chamaria charlatanismo. Os maus livros, os livros novos, cheios de mentiras, são devorados avidamente. As coisas sagradas, os mistérios são cobertos de motejos, e, em uma palavra, a mocidade hoje, como o tenente Sousa, proclama alto que não crê no diabo (salvo seja, que lá me escapou a palavra!), nem nos agouros, nem nas feiticeiras, nem nos milagres. É de se levantarem as mãos para os céus, pedindo a Deus que não nos confunda com tais ímpios!

“O infeliz Antônio de Sousa, transviado por esses propagadores do mal, foi vítima de sua leviandade ainda não há muito tempo. Tendo por falta de meios abandonado o estudo da medicina, veio Antônio de Sousa para a província em 1871 e conseguiu entrar como oficial do corpo de polícia. No ano seguinte, era promovido ao posto de tenente e nomeado delegado de Óbidos, onde antes nunca tivera vindo.

“O seu gênio folgazão, a sua urbanidade e delicadeza para com todos, o seu respeito pela lei e pelo direito do cidadão faziam dele uma autoridade como poucas temos tido. Seria um moço estimável a todos os respeitos, se não fora a desgraçada mania de duvidar de tudo, que adquirira nas rodas de estudantes e de gazeteiros do Rio de Janeiro e do Pará.

“Desde que lhe descobri esse lastimável defeito, previ que não acabaria bem. Ides ver como se realizaram as minhas previsões.

“Em princípio de fevereiro de 1873, por ocasião do assassinato de João Torres, no Paranamiri de cima, Antônio de Sousa para ali partiu, em diligência policial. Realizada a prisão do criminoso, a convite do Ribeiro, que é o maior fazendeiro do Paranamiri, resolveu o tenente delegado Lá passar alguns dias, a fim de conhecer, disse ele, a vida íntima do lavrador da beira do rio.

“Não vos descreverei o sítio do tenente Ribeiro, porque ninguém há em Óbidos que o não conheça, principalmente daquela grande demanda que ele venceu contra Miguel Faria, por causa das terras do Uricurizal.

“Basta lembrar que todos os cacauais do Paranamiri comunicam entre si por uma vereda mal determinada, e que é fácil percorrer uma grande extensão do caminho, vindo de sítio em sítio até a costa fronteira à cidade.

“Antônio de Sousa passava o tempo a visitar os sítios de cacau, conversando com os moradores, a quem ouvia casos extraordinários, ali sucedidos e zombando das crenças do povo. Como lhe falassem muitas vezes da Maria Mucoim, afamada feiticeira daqueles arredores, mostrava grande curiosidade de a conhecer. Um dia em que caçava papagaios, com Ribeiro, contou o desejo que tinha de ver aquela célebre mulher, cujo nome causa o maior terror em todo o distrito.

“O Ribeiro olhou para ele, admirado, e depois de uma pausa disse:

“- Como? Não conhece a Maria Mucoim? Pois olhe, ali a tem.

“E apontou para uma velha que, a pequena distância deles, apanhava galhos secos.

“O tenente Sousa viu na Maria Mucoim uma velhinha magra, alquebrada, com uns olhos pequenos, de olhar sinistro, as maçãs do rosto muito salientes, a boca negra, que, quando se abria num sorriso horroroso, deixava ver um dente, um só! comprido e escuro. A cara cor de cobre, os cabelos amarelados presos ao alto da cabeça por um trepa-moleque de tartaruga tinham um aspecto medonho que não consigo descrever. A feiticeira trazia ao pescoço um cordão sujo, de onde pendiam numerosos bentinhos, falsos, já se vê, com que procurava enganar ao próximo, para ocultar a sua verdadeira natureza.

“Quem não reconhece à primeira vista essas criaturas malditas que fazem pacto com o inimigo e vivem de suas sortes más, permitidas por Deus para castigo dos nossos pecados?

“A Maria Mucoim, segundo dizem más línguas (que eu nada afirmo nem quero afirmar, pois só desejo dizer a verdade para o bem-estar da minha alma), fora outrora caseira do defunto padre João, vigário de Óbidos. Depois que o reverendo foi dar contas a Deus do que fizera cá no mundo (e severas deviam ser, segundo se dizia), a tapuia retirou-se para o Paranamiri, onde, em vez de cogitar em purgar os seus grandes pecados, começou a exercer o hediondo ofício que sabeis, naturalmente pela certeza de já estar condenada em vida.

“Quem nada pode esperar do céu, pede auxílio às profundas do inferno. E se isto digo, não por leviandade o menciono. Pessoas respeitáveis afirmaram-me ter visto a tapuia transformada em pata, quando é indubitável que a Mucoim jamais criou aves dessa espécie.

“Mas o Antônio de Sousa é que não acreditava nessas toleimas. Por isso atreveu-se a caçoar da feiticeira:

“- Então, tia velha, é certo que você tem pacto com o diabo? (Lá me escapou a palavra maldita, mas foi para referir o caso tal como se passou. Deus me perdoe.)

“A tapuia não respondeu, mas pôs-se a olhar para ele com aqueles olhos sem luz, que intimidam aos mais corajosos pescadores da beira do rio.

“O rapaz insistiu, admirando o silêncio da velha.

“- É certo que você é feiticeira?

“O demônio da mulher continuou calada e levantando um feixe de lenha, pôs-se a caminhar com passos trôpegos.

“O Sousa impacientou-se:

“- Falas ou não falas, mulher do...?

“Como moço de agora, o tenente gastava muito o nome do inimigo do gênero humano.

“Os lábios da velha arregaçaram-se, deixando ver o único dente. Ela lançou ao rapaz um olhar longo, longo que parecia querer traspassar-lhe o coração. Olhar diabólico, olhar terrível, de que Nossa Senhora nos defenda, a mim e a todos os bons cristãos.

“O riso murchou na boca de Antônio de Sousa. A gargalhada próxima a arrebentar ficou-lhe presa na garganta, e ele sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. O seu olhar sarcástico e curioso submeteu-se à influência dos olhos da feiticeira. Quiçá pela primeira vez na vida soubesse então o que era medo.

“Mas não se mostrou vencido, que de rija têmpera de incredulidade era ele. Começou a dirigir motejos de toda espécie à velha, que se retirava lentamente, curvada e trôpega, parando de vez em quando e voltando para o moço o olhar amortecido. Este, conseguindo afinal soltar o riso, dava gargalhadas nervosas que assustavam aos japiins e afugentavam as rolas das moitas do cacaual. Louca e imprudente mocidade!

“Quando a Maria Mucoim desapareceu por detrás dos cacaueiros, o Ribeiro tornou o braço do hóspede e obrigou-o a voltar para a casa. No caminho ainda deram alguns tiros, mas de caça nem sinal, pois se em algum animal acertou o chumbo foi num dos melhores cães do Ribeiro que ficou muito penalizado e viu logo que aquilo era agouro. O Ribeiro, apesar das ladroeiras que todos lhe atribuem, é homem crente e de bastante siso.

“Quando chegaram à casa de vivenda, seriam seis horas da tarde. Ribeiro exprobou com brandura ao amigo o que fizera à feiticeira, mas o desgraçado rapaz riu-se, dizendo que iria no dia seguinte visitar a tapuia. Debalde o dono do sitio tentou dissuadi-lo de tão louco projeto, não o conseguiu.

“Era de mais a mais esse dia uma sexta-feira.

“Antônio de Sousa, depois de ter passado toda a manhã muito agitado, armou-se de um terçado americano e abalou para o cacaual.

“A tarde estava feia. Nuvens cor de chumbo cobriam quase todo o céu. Um vento muito forte soprava do lado de cima, e o rio corria com velocidade, arrastando velhos troncos de cedro e periantàs enormes onde as jaçanãs soltavam pios de aflição. As aningas esguias curvavam-se sobre as ribanceiras. Os galhos secos estalavam e uma multidão de folhas despegava-se das árvores para voar ao sabor do vento. Os carneiros aproximavam-se do abrigo, o gado mugia no curral, bandos de periquitos e de papagaios cruzavam-se nos ares em grande algazarra. De vez em quando, dentre as trêmulas aningas saía a voz solene do unicórnio. Procurando aninhar-se, as fétidas ciganas aumentavam com o grasnar corvino a grande agitação do rio, do campo e da floresta. Adiantavam os sapos dos atoleiros e as rãs dos capinzais o seu concerto noturno alternando o canto desenxabido.

“Tudo isso viu e ouviu o tenente Sousa do meio do terreiro, logo que transpôs a soleira da porta, mas convencerá a um espírito forte a precisão dos agouros que nos fornece a maternal e franca natureza?

“Antônio de Sousa internou-se resolutamente no cacaual. Passou sem parar nos sítios que lhe ficavam no caminho, e os cães de guarda, saindo-lhe ao encontro, não o conseguiram arrancar à profunda meditação em que caíra.

“Eram seis horas quando chegou à casa da Maria Mucoim, situada entre terras incultas nos confins dos cacauais da margem esquerda. E, segundo dizem, um sítio horrendo e bem próprio de quem o habita.

“Numa palhoça miserável, na narrativa de pessoas dignas de toda a consideração, se passavam as cenas estranhas que firmaram a reputação da antiga caseira do vigário. Já houve quem visse, ao clarão de um grande incêndio que iluminava a tapera, a Maria Mucoim dançando sobre a cumeeira danças diabólicas, abraçada a um bode negro, coberto com um chapéu de três bicos, tal qual como ultimamente usava o defunto padre. Alguém, ao passar por ali a desoras, ouviu o triste piar do murucututu, ao passo que o sufocava um forte cheiro de enxofre. Alguns homens respeitáveis que por acaso se acharam nos arredores da habitação maldita, depois de noite fechada, sentiram tremer a terra sob os seus pés e ouviram a feiticeira berrar como uma cabra.

“A casa, pequena e negra, compõe-se de duas peças separadas por uma meia parede, servindo de porta interior uma abertura redonda, tapada com um topé velho. A porta exterior é de japá, o teto de pindoba, gasta pelo tempo, os esteios e caibros estão cheios de casas de cupim e de cabas.

“Sousa encontrou a velha sentada à soleira da porta, com queixo metido nas mãos, os cotovelos apoiados nas coxas, com o olhar fito num bem-te-vi que cantava numa embaubeira. Sob a influência do olhar da velha, o passarinho começou a agitar-se e a dar gritinhos aflitivos. A feiticeira não parecia dar pela presença do moço que lhe bateu familiarmente no ombro:

“- Sou eu - disse. - Lembra-se de ontem?

“A velha não respondeu. Antônio de Sousa continuou depois de pequena pausa:

“- Venho disposto a tirar a limpo as suas feitiçarias. Quero saber como foi que conseguiu enganar a toda esta vizinhança. Hei de conhecer os meios de que se serve.

“Maria Mucoim abaixou a cabeça, como para esconder um sorriso, e com voz trêmula e arrastada, respondeu:

“- Ora me deixe, branco. Vá-se embora, que é melhor.

“- Não saio daqui sem ver o que tem em casa.

“E o atrevido moço preparava-se para entrar na palhoça, quando a velha, erguendo-se de um jato, impediu-lhe a passagem. Aquele corpo, curvado de ordinário, ficou direito e hirto. Os pequenos olhos, outrora amortecidos, lançavam raios. Mas a voz continuou lenta e arrastada:

“- Não entre, branco, vá-se embora.

“Surpreso, o tenente Sousa estacou, mas logo, recuperando a calma, riu-se e penetrou na cabana. A feiticeira seguiu-o. Como nada visse o rapaz que lhe atraísse a atenção no primeiro compartimento, avançou para o segundo, separado daquele pela abertura redonda, tapada com um topé velho. Mas aí a resistência que a tapuia ofereceu à sua ousadia foi muito mais séria. Colocou-se de pé, crescida e tesa, à abertura da parede, e abriu os braços, para impedir-lhe com o corpo a indiscreta visita. Esgotados os meios brandos, Antônio de Sousa perdeu a cabeça, e, exasperado pelo sorriso horrendo da velha, pegou-a por um braço, e, usando toda a força do seu corpo robusto, arrancou-a dali e atirou-a ao meio da sala de entrada. A feiticeira foi bater com a fronte no chão, soltando gemidos lúgubres.

“Antônio arrancou a esteira que fechava a porta e penetrou no aposento, seguido da velha, de rastos, pronunciando palavras, dente negro num riso convulso e asqueroso.

“Era um quarto singular o quarto de dormir de Maria Mucoim. Ao fundo, uma rede rota e suja; a um canto, um montão de ossos humanos; pousada nos punhos da rede, uma coruja, branca como algodão, parecia dormir; e ao pé dela, um gato preto descansava numa cama de palhas de milho. Sobre um banco rústico, estavam várias panelas de forma estranha, e das traves do teto pendiam cumbucas rachadas, donde escorria um líquido vermelho parecendo sangue. Um enorme urubu, preso por uma embira ao esteio central do quarto, tentava picar a um grande bode, preto e barbado, que passeava solto, como se fora o dono da casa.

“A entrada de Antônio de Sousa causou um movimento geral. O murucututu entreabriu os olhos, bateu as asas e soltou um pio lúgubre. O gato pulou para a rede, o bode recuou até ao fundo do quarto e arremeteu contra o visitante. Antônio, surpreendido pelo ataque, mal teve tempo de desviar o corpo, e foi logo encostar-se à parede, pondo-se em defesa com o terçado que trouxera.

“Foi então que, animada por gestos misteriosos da velha, a bicharia toda avançou com uma fúria incrível. O gato correndo em roda do rapaz procurava morder, fugindo sempre ao terçado. O urubu, solto como por encanto da corda que o prendia, esvoaçava-lhe em torno da cabeça, querendo bicar-lhe os olhos. Parecia-lhe que se moviam os ossos humanos, amontoados a um canto, e que das cumbucas corria sangue vivo. Antônio começou a arrepender-se da imprudência que cometera. Mas era um valente moço, e o perigo lhe redobrava a coragem. Num lance certeiro, conseguiu ferir o bode no coração, ao mesmo tempo que dos lábios lhe saía inconscientemente uma invocação religiosa.

“- Jesus, Maria!

“O diabólico animal deu um berro formidável e foi recuando cair sem vida sobre um monte de ossos; ao mesmo tempo o gato estorceu-se em convulsões terríveis, e o urubu e a coruja fugiram pela porta aberta.

“A Mucoim, vendo o efeito daquelas palavras mágicas, soltou urros de fera e atirou-se contra o tenente, procurando arrancar-lhe os olhos com as aguçadas unhas. O moço agarrou-a pelos raros e amarelados cabelos e lançou-a contra o esteio central. Depois fugiu, sim, fugiu, espavorido, aterrado. Ao transpor o limiar, um grito o obrigou a voltar cabeça. A Maria Mucoim, deitada com os peitos no chão e a cabeça erguida, cavava a terra com as unhas, arregaçava os lábios roxos e delgados, e fitava no rapaz aquele olhar sem luz, aquele olhar que parecia querer traspassar-lhe o coração.

“O tenente Sousa, como se tivesse atrás de si o inferno todo, pôs-se a correr pelos cacauais. Chovia a cântaros. Os medonhos trovões do Amazonas atroavam os ares; de minuto em minuto relâmpagos rasgavam o céu. O rapaz corria. Os galhos úmidos das árvores batiam-lhe no rosto. Os seus pés enterravam-se nas folhas molhadas que tapetavam o solo. De quando em quando, ouvia o ruído da queda das árvores feridas pelo raio ou derrubadas pelo vento, e cada vez mais perto o uivo de uma onça faminta. A noite era escura. Só o guiava a luz intermitente dos relâmpagos. Ora batia com a cabeça em algum tronco de árvore, ora os cipós amarravam-lhe as pernas, impedindo-lhe os passos.

“Mas ele ia prosseguindo sem olhar para trás, porque temia encontrar o olhar da feiticeira, e estava certo de que o seguia uma legião de seres misteriosos e horrendos.

“Quando chegou ao sítio do Ribeiro, molhado, roto, sem chapéu e sem sapatos, todos dormiam na casa. Foi direto à porta do seu quarto, que dava para a varanda, empurrou-a, entrou, e atirou-se ao fundo da rede, sem ânimo de mudar de roupa. O desgraçado ardia em febre. Esteve muito tempo de olhos abertos, mas em tal prostração que nem pensava, nem se movia.

“De repente, ouviu um leve ruído por baixo da rede e despertou da espécie de letargo em que caíra. Pôs um pé fora, procurando o chão, mas sentiu uma umidade. Olhou e viu que o quarto estava alagado. Levantou-se apressado. A água vinha enchendo o quarto, forçando a porta. Assustado, correu para fora.

“Um grito chegou-lhe aos ouvidos:

“- A cheia!

Um espetáculo assombroso ofereceu-se-lhe à vista. O Paranamiri transbordava. O sítio do Ribeiro estava completamente inundado, e a casa começava a sê-lo. Os cacauais, os aningais, as laranjeiras iam pouco a pouco mergulhando. Bois, carneiros e cavalos boiavam ao acaso, e a cheia crescia sempre. A água não tardou em dar-lhe pelos peitos. O delegado quis correr, mas foi obrigado a nadar. A casa inundada parecia deserta, só se ouviam o ruído das águas e, ao longe, aquela voz:

“- A cheia!

“Onde estariam o tenente Ribeiro e a família? Mortos? Teriam fugido, abandonando o hóspede à sua infeliz sorte? Onde salvar-se, se as águas cresciam sempre, e o delegado já começava a sentir-se cansado de nadar. Nadava, nadava. As forças começavam a abandoná-lo, os braços recusavam-se ao serviço, cãibras agudas lhe invadiam os pés e as pernas. Onde e como salvar-se?

“De súbito viu aproximar-se uma luzinha e logo uma canoa, dentro da qual lhe pareceu estar o tenente Ribeiro. Pelo menos era dele a voz que o chamava.

“- Socorro! - gritou desesperado o Antônio de Sousa, e, juntando as forças num violento esforço, nadou para a montaria, salvação única que lhe restava, no doloroso transe.

“Mas não era o tenente Ribeiro o tripulante da canoa. Acocorada à proa da montaria, a Maria Mucoim fitava-o com os olhos amortecidos, e aquele olhar sem luz, que lhe queria traspassar o coração...”

Uma gargalhada nervosa do dr. Silveira interrompeu o velho Estevão neste ponto da sua narrativa.

Fonte:
Inglês de Souza. Contos Amazônicos. Publicado em 1893.

O Soneto – Parte 5

texto de José Roberto Gullino para a Casa Raul de Leoni
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Considero a feitura de um poema como a escultura da prosa e da palavra. Como um arquiteto que projeta sua planta com detalhes de beleza, elegância e suavidade – assim é o poeta – um arquiteto do verbo que precisa transformar a prosa em poesia, combinando e esquematizando o ritmo, harmoniosamente, em cada palavra e detalhe, para maior valorizar seu trabalho, com temas sempre elevados e impactantes. Não sei se consigo atingir tais objetivos em meus trabalhos, mas são dois pontos distintos: a maneira de ver e apreciar o belo pode, muito bem, não se coadunar com a habilidade de transmiti-lo e de executá-lo, já que, para se admirar um bonito quadro, não há necessidade de, obrigatoriamente, saber-se pintar.

Cada um tem o direito de possuir seu estilo – tanto o pintor, como o compositor ou o escultor, tem cada um o seu traço próprio – e por que o poeta não poderá ter o seu também? E é como disse o escritor contemporâneo Fernando Jorge: “Poesia é acústica, ressonância de nossas emoções”. Mas a realidade é que, mesmo aqueles que repudiam o soneto, disfarçadamente, caem em tentação e se entregam nos braços do soneto e no afago da metrificação, mas somente na intimidade das alcovas, sem alarde, silenciosamente, escondidos de seus colegas para não demonstrar uma fraqueza “pecaminosa” e não macular a bandeira desfraldada. Como cita Vasco de Castro Lima, muitos dos grandes adeptos da semana de ´22, capitularam, submergindo às tentações do soneto: Menoti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Jorge de Lima e tantos outros, inclusive Drummond, também pecou, ao tentar reatar seu namoro com o soneto, após a Semana de Arte Moderna – mas pelo que tudo indica, não se entenderam muito bem.

Assim, não consigo alcançar a intenção de alguns poetas por quererem modernizá-lo. Se a poesia livre é, realmente, livre, por que imprensá-la em dois quartetos e dois tercetos, submetendo-a a tal regra e sacrifício, somente para defini-la como soneto? Para mim é incoerência.

A rigor, todo sonetista sente-se agredido com as críticas infundadas e o rancor pela metrificação, o que não fica restrito aos comentários de certos poetas ou o descaso da mídia, detalhes de somenos importância. O grave mesmo, é a opinião externada por alguém como Antonio Houaiss e Luis Carlos Lima, que lhe concedem uma profunda conotação pejorativa, com um radicalismo exacerbado, como foi mostrado por Houaiss no prefácio do livro “Reunião”, de ´68, de Drummond, quando ocupa 25 páginas para provar – se repetindo sempre – o valor do poeta, numa autêntica tautologia emocional. E entre tantos “conceitos” firmados por Houaiss, o texto classifica como “cegos” os que não apreciem a poesia de Drummond e a certa altura transcreve (apoiando) a visão de Luis Costa Lima que, por sua vez, faz eco a Otto Maria Carpeaux :

E Drummond é o maior e último poeta modernista. Quem ainda considera a poesia como enfeite decorativo, não pode compreender o poeta cuja matéria é a vida presente. Quem aprecia nos versos a harmonia artificial dos ritmos e das rimas, não admitirá que na vida a dissonância é, conforme Nietzsche, a regra e o acorde a exceção; e que o poeta pode ter todos os privilégios menos o de mentir.”

Bem, não vai aqui qualquer crítica a Drummond, mas vai sim, sobre a observação impertinente do comentário. Mesmo vindo de pessoas respeitadas como Houaiss ou Luis Costa Lima, poema metrificado não é “enfeite decorativo” nem possui “harmonia artificial” como querem demonstrar na nota, nem são “cegos” seus admiradores – o que prova o totalitarismo de opinião, desqualificando-os para tal análise e julgamento. O valor de um poema – como de qualquer prosa – depende do tema abordado, da maneira e do desenvolvimento de seu texto, independente do estilo – isto, obviamente, para simples mortais como nós, não para eles. Assim, o preconceito é evidente, pois não se conformam que ainda haja um segmento tradicional para perturbar a caminhada dos egocêntricos e que provoca um pavor traumático quando, na verdade, para quem se habitua a utilizar a metrificação, o faz com total comodidade, fluidez, facilidade e naturalidade. É somente uma questão de hábito, mas parece que o soneto vem a ser o lobo mau da poesia – provoca um certo pavor a quem dele se aproxime. E Houaiss, criticando a metrificação, está, diretamente, se opondo ao soneto que, sem a métrica, deixa de sê-lo.

Mas o soneto é imorredouro também na visão de Vasco de Castro Lima, autor do livro “O mundo maravilhoso do soneto”, que disse: “O soneto não tem idade! Os sete séculos que conta de existência, não pesam sobre sua vida maravilhosa. Parece que é mesmo definitivo. O mínimo que se pode dizer, é que se trata de um velho-moço de saúde invejável!"

Para mim, poema que agrada é aquele que marca sua passagem por nossa leitura, que grava-se na memória e que, volta e meia, é referência para nossas lembranças, como o trabalho do acadêmico Farid Felix, que não tive a ventura de conhecer, falecido em 2004 em Petrópolis –

… E DEUS DISSE AO POETA

Ao poeta disse Deus: “Vai, peregrino,
e cumpre as tuas árduas caminhadas,
e canta e que teu canto seja um hino,
mas de esperança às almas desoladas.

Vai e canta com teu verbo cristalino,
sejam dias de sol, ou de nevadas,
que este é, na vida amarga, o teu destino:
florir de sonho todas as estradas”.

Apóstolo do sonho e da esperança,
o poeta partiu, em doce calma,
à mercê de borrascas e bonança.

E cantou, e ainda canta aos sóis dispersos,
toda a beleza que lhe brota n’ alma,
e jorra em cataratas dos seus versos.


E para mostrar, mais uma vez, a força e a beleza que o soneto irradia, ainda nos dias de hoje, apesar do desprezo que muitos lhe dão, transcrevo, de outra saudosa acadêmica – Aládia Pereira de Almeida – falecida em 2003 –

SABOR DE VIDA

Eu amo a vida pelo que é a vida,
pela razão mais simples de viver,
sem me importar se árida é a lida,
se há mais dias de dor que de prazer.

Eu amo a vida mesmo na incerteza
do dia em que ela me abandonará;
sem pesar de deixar tanta beleza,
sem pensar, lá no Além, como será.

A vida é boa, é só saber vivê-la,
não desejar brilhar qual uma estrela,
nem também, como um verme se arrastar.

Saber chorar, se a dor nos atormenta,
sorrir, quando a alegria se apresenta,
compreender, esquecer e perdoar.

****************************************
continua…

Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni http://rauldeleoni.com.br/soneto/

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 9 –

 


Carina Bratt (Duelos Reversos)


As cenas com as quais sempre nos deparamos, eu e Aparecido, são engraçadas, divertidas, gostosas de serem lembradas, ou apreciadas, a ponto de carecermos estancar os passos para presenciarmos e não só presenciarmos, vivermos cada minuto e meditarmos sobre os seus mais intrincados objetivos.

Como as preciosidades que estamos vendo agora. Neste exato momento, as pessoas por todos os cantos do enorme saguão do aeroporto aqui em Vitória, choram, gritam se abraçam e sonham... São angústias que se renovam, promessas que se reiteram, enquanto uma nuvem de tristeza parece cobrir todo o ambiente tornando-o densamente frio e fora do normal, do  normal claro, considerado corriqueiro.

Nada é mais maçante e chato, cansativo e tenso, enojado e austero, que um recinto denso e frio, justamente na hora em que (como agora) estamos nos preparando para embarcar para algum lugar. Não faz diferença o lugar... Qualquer ponto é um lugar. O importante é chegarmos até ele.

O portão que acessa a sala de embarque é um só e já se abriu. A voz padrão da locutora do alto falante acabou de ultimar a galera para se preparar para cruzar o caminho afunilado que passará pelo detector de metais.

No meio dos que vão e vem, uma menina de mais ou menos cinco anos não está nem aí para o reboliço que se desenrola à sua volta. Ou melhor: ela só tem olhos e atenção voltados para a boneca – quase do seu tamanho – presente surpresa da tia Norma.

A tia Norma (fala tão alto que até um surdo conseguiria escutá-la a um quilômetro) veio se despedir da irmã e entregou, questão de minutos atrás, uma caixa enorme embrulhada em papel presente à sobrinha, antes dela desaparecer no corredor ‘ralo’ que desembocará na porta da aeronave estacionada lá fora, no imenso do pátio.

Chove um pouco. Um senhor de boné cinza na cabeça, lê “Anjos à Mesa”, de Debbie Macomber. Uma jovem cheia de piercing no rosto, o cabelo à expressão de alma penada recém chegada do purgatório conversa animadamente ao celular. Ela me faz recordar Amy Winehouse tentando imitar MontSerrat Caballé cantando     ‘How Can I Go On’, sem o Freddie Mercury.

O quadro, que aqui se me apresenta, no contexto geral, não muda. Em todos os lugares onde chegamos para embarcar (o correto seria, ‘para nos avionarmos’ - embarcar é se fôssemos para dentro de um barco), é sempre idêntico. Nada evoluiu. E por que não evoluiu? Porque com ele, os choros, os gritos, os abraços, os sonhos...

E mil outras inquietações e desolações, como promessas se renovando, abalos afetivos se materializando num emaranhado de beijinhos e abraços salpicados com tapinhas efusivos nas costas, fazem parte do que eu rotularia de ramerrão fastidioso e Aparecido de repetição "nhe-nhe-nhem".

Há um grupo enorme perto da lanchonete do café trocando beijos, os lábios se excitando em protestos de feliz regresso e o amor... Ah, o amor - esse sempre deixando no ar as melosas condescendências da mais plena felicidade.

Me vem à memória, por conta não sei de que Beneditos, a figura da Thammy Miranda beijando a sua querida e doce esposa, a Andressa Ferreira depois de ‘Pra quem você tiraria o chapéu no Programa do Raul Gil’.

Todos ao nosso entorno estão presos às etiquetas de estilo. As antecedências de uma viagem servem para muitas coisas, entre elas, reavivar aqueles afagos e mimos inseparáveis, onde as criaturas se confraternizam dizendo coisas importantes, como ‘eu te amo’, ‘volte logo’, ‘vai com Deus’, ‘não se esqueça de mim’, telefona, etc. etc...

Bravo! Que bom seria se todos seguissem às versatilidades da separação à risca, e com elas, colocassem em prática espontânea estes modelos de boas condutas e procedimentos.

Se ao invés de caras feias, rostos fechados e palavras de pronúncias contumazes, os humanos convergissem para um mesmo ponto, qual seja, aquele ‘objetivo atrelado a uma só finalidade', tudo seria um mar de rosas, um paraíso nos moldes de Adão e Eva.

Faço referência aquele jardim aprazível onde todos viveriam plenamente a Ausência de Conflitos e a Imperturbabilidade do Sossego, em toda a sua essência, juntamente com a Melodia do Esplendoroso se tornando a um só tempo o marco primordial para o recomeço de todas as coisas boas e suntuosas.

Quem sabe o mundo, o nosso mundo fosse menos violento e, do fundo mágico de suas entranhas uma série de civilidades tão comuns como as que presenciamos aqui de dentro deste terminal, florescesse (na sua melhor certeza de harmonia) e, de mãos dadas, seguissem grudadas, num amplexo ainda melhor e mais profundo, onde pudéssemos ver, à visão cristalina (ou a olho nu), o verdadeiro sentido da plenitude da PAZ CELESTIAL!

Certamente o nosso planeta (de roldão, os quadrados que habitamos, as nossas ruas, os nossos prédios, os nossos vizinhos, os nossos trabalhos, as moradas outras onde temos os demais membros da família...) e a nossa breve e corrida passagem aqui pela Terra fosse melhor, mais saudável e menos causticante.

Me pergunto e embora olhe e reolhe para todos ao meu redor, continuo me questionando: será que estou sonhando ou voando alto demais nas minhas divagações? Como voando alto demais?! Meu Pai Eterno, como pode ser isto, se ainda nem sequer embarcamos, perdão, avionamos?!

Fonte:
Texto enviado pela autora do aeroporto Eurico Sales, em Vitória, no Espírito Santo, voando logo para São Luiz do Maranhão.

Edy Soares (Cristais Poéticos) VI

CAMALEÃO


E lá vou eu,
Na carona da vela;
Na garupa da sela
Ou no barco à deriva;

Na rajada de vento;
No mar em tormento
Ou na calma da brisa;

No galope do bicho;
Na sacola do lixo
Ou na mesa da sala;

No dinheiro do rico
Ou dormindo em cortiço
Com povo que cala.

Adapto-me ao meio;
No palácio do rei
Ou entre povo sem fala.

Estou atrás do escudo
Ou no meio de tudo;
Na direção da bala.
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ESPERANÇA

Sem a presença tua,
Hoje, nem a companheira lua,
Que sempre ilumina a rua,
Quis me ouvir.

Simplesmente se escondeu
Atrás da nuvem escura,
Pra não dividir, comigo,
A tristeza que não dissipa.

Egoísta lua, que nos via,
E eu com ela te dividia,
Agora me deixa só.

Até a brisa, que chega,
Tem por companheira a chuva fina.

Choro eu
Na noite de breu.
Não deixo que caia,
E recolho cada lágrima,
Pois cada uma te pertence
E tem tua essência,

Guardo-as para ser o perfume
Que me embriagará,

Com elas ungirei meu corpo,
Para que na tua ausência,
Tragam a mim tua presença,
Nem que seja na ilusão
De eternamente te esperar.
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ETERNO AMOR II

Diante dos olhos teus,
meu corpo tremula e sua,
se olhas dentro dos meus,
minh'alma se sente nua.

Meu coração se perdeu
de amor por ti, bela musa,
se teu amor percebeu,
toma- me, usa e abusa.

Toma minh'alma acanhada,
dá-me tua boca molhada,
molha meus lábios nos teus,

Encosta-te sem pudor,
toma de mim esse amor
que a ti sempre pertenceu.
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MINHA FLOR

Quisera eu
Conservar-te latente,
Preciosa semente
Que gerou linda flor.

Quisera eu
Dormir ao teu lado,
Acordar embriagado
No teu primeiro amor.

Quisera eu
molhar-te amiúde,
Regar-te com perfume
E assistir-te crescer,

E no desabrochar
Dessa flor mais bela,
Ser o teu sentinela,
Só pra te proteger.

Seria eu
O primeiro a colher-te
E grudada em meu corpo,
Levar-te onde eu for.

Seria eu
Colibri sorridente,
Saciado e contente
Com o doce néctar da flor.

Mas mesmo sabendo
Não ser eu o primeiro,
Não serei derradeiro
E nem perdedor.

Pois tu, assim tão linda,
Que sejas bem vinda!
Já és rosa feita.
Serei o teu servo,
sempre a teu dispor.
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O BEM E O MAL

Quando o bom se corrompe,
o mau se justifica;
quando o bem enfraquece,
o mal se multiplica.

O bem é maior e forte;
o mal é menor em seu porte,
mas na ausência de um,
predomina o que fica.

Quando o maior foge à luta,
o menor toma a batuta
e coordena, e orquestra.

Quando a maioria se cala,
a minoria domina a fala
e prolifera o que não presta.
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PEDINTE CRIANÇA

O olhar tristonho, criança,
Na dança de carros no farol,
Sem temer a resposta se lança
Por um trocado, em busca do pão.

Pedinte, sem sorte, mulamba,
É samba ao olhar de quem passa,
Quem nega, o faz por desculpa
De que doar incentiva a desgraça.

Filhos da pátria que esbanja,
Se arranja com o pouco que sobra,
Ninguém quer saber onde dorme,
Também pouco importa, se acorda.

Salve! Salve! Pequenas crianças,
Esperança do futuro do mundo,
Sobra ouro nos cofres do rei,
Mas pra vocês, falta amor falta tudo.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro enviado pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 8: Lados opostos


A MENINA TODA SUJA, os pés descalços no cimento frio, uma sainha curta, desbotada e em tiras, encimada por uma camisa-blusa com vários buracos à luz de uma lua clara, surge diante de mim, assim, do nada. Traz, nas mãos, umas flores de aparências estranhas e, a princípio, penso que pretendesse vendê-las em troca de algumas moedas.

Humildemente ela se aproxima, me dirige um ‘boa noite’ vagaroso e pede ‘desculpas pela intromissão’. A minha mesa armada na calçada da longa avenida movimentada, junto com outras e, nelas, à distancias poucas, alguns gatos pingados bebem cerveja enquanto casais de namorados trocam afagos e permutam carícias espiando a escuridão do mar.

Ela parece ter me colocado na sua alça de mira. Ao invés de se dirigir aos demais, ao redor, prefere vir até mim. A mesa que ocupo, está cheia de pratos e talheres, além de duas garrafas de refrigerantes, uma delas com metade da bebida que eu ainda me servia a goles moderados e duas bandejas com restos de batatas fritas e alguns pedaços de um churrasco no palitinho que eu pedi e rejeitei, em face de conter restilhos de gordura.

Com a mesma simplicidade e candura que chega, e diante da minha negativa de lhe dar alguns trocados, a jovenzinha pergunta se eu me importo que ela pegue aquelas sobras. Aquiesço e ela rapidamente arremata o que eu deixei de comer e engole numa pressa de fome voraz intensa. Indaga, seguidamente, se eu ainda me servirei do restante do guaraná e também declino para que possa matar a sua sede.

Depois, num sorriso de satisfação me agradece e vai embora. Desaparece tão silenciosa como chegou. Fico imaginando, com meus botões, como a vida, para alguns, se mostra hostil e sem razão, enquanto para outros, se exibe maravilhosa e gentil, mostrando um leque de caminhos diferenciados que acabam em horizontes floridos e auspiciosos.

Para esta pobre criança, que acabou de sair do meu campo de visão, acredito ai, na casa dos treze, talvez menos, padece uma vida ingrata e infame, uma existência lhe cai cruel todos os dias sobre as costas. Para mim, ao contrário, se mostra alegre e benfazeja. Olho para meus pratos vazios e penso em tudo o que o meu dinheiro pode comprar, ao passo que a miserável criaturinha carece ficar à deriva.

Purgando ao acaso do Deus dará, indo e vindo, chegando e deschegando, implorando a um e outro alguma coisa que será jogada fora para colocar no estômago vazio e, com a voz áspera da maldita fome gritando severamente mais alta.

Meu Deus!... Eu tenho o direito de me sentar aqui e ela, coitadinha, sequer se pode dar ao luxo, ao prazer, ou ao gosto de se acomodar num destes estabelecimentos montados ao longo da calçada à beira mar e espantar a orexia* dolorosa e lastimosa que a atormenta e, via paralela, que esmaga e definha, corrói e deprava, de maneira contundente as belezas da sua infância perdida.
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*orexia – med.: necessidade ou desejo imperioso e contínuo de ingerir alimentos.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (A Comédia Humana, de Honoré de Balzac)


É o título pelo qual o autor francês Honoré de Balzac decidiu chamar todo o conjunto de sua obra, com exceção de alguns romances iniciais, e que constitui 95 obras concluídas e 48 inconclusas, em sua maior parte romances, novelas e contos, que retratam principalmente a ascensão da burguesia, ocorrida à época da Restauração francesa.

No Brasil, foi publicada integralmente em dezessete volumes, entre 1945 e 1953

UMA TAREFA COLOSSAL

Tudo na A Comédia Humana é imenso: dezessete volumes, noventa e cinco obras (mas planejada para ter cento e trinta e sete), mais de dez mil e seiscentas páginas, mais de dois mil e quinhentos personagens. No entanto, Balzac não se referia a si mesmo como escritor e, sim, como historiador de costumes.

Conforme Terezinha de Camargo Viana, "Balzac, ao se propor como "historiador de costumes", tem como perspectiva assinalar o processo de profundas mudanças pelas quais passa a sociedade francesa na primeira metade do século XIX, evidenciando a transição do Antigo Regime à consolidação da moderna sociedade burguesa". Para atingir este objetivo, o autor introduziu na literatura assuntos, profissões e classes que nela nunca tiveram lugar antes: o sistema de transporte interurbano na França, o processo da tipografia, o jornalismo nascente, a rotina dos cartórios e dos escritórios de advocacia, os comerciantes e suas listas de clientes e fornecedores, o sistema de descontos de letras, a confecção de perfumes, atas de concordatas, montagem de processos de falências etc, a nada Balzac se furtou, sem jamais cair no ridículo ou na monotonia.

Tratou também da luta de classes (seu romance póstumo Os Camponeses contém, pela primeira vez na literatura, a palavra "comunismo"), do espiritismo, dos meandros da política, do misticismo e de temas espinhosos, como o lesbianismo. Aliás, segundo Otto Maria Carpeaux, o gênero literário romance divide-se em antes e depois de Balzac. Antes, como em Manon Lescaut, do Abade Prévost, A Princesa de Clèves, de Madame de La Fayette ou A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau, um romance seria "a relação de uma história extraordinária, 'romanesca', fora do comum . Depois, o espelho do nosso mundo, dos nossos países, das nossas cidades e ruas, das nossas casas, dos dramas que se passam em nossos apartamentos e quartos".

DO ROMANCE POPULAR À PROVOCAÇÃO A DANTE

O primeiro volume saiu em 1842, mas a essa altura quase todas as obras já haviam sido publicadas, tanto em jornais como em forma de livros. Balzac estreou nas letras na década de 1820, escrevendo subliteratura influenciada pelo romance gótico, com títulos como A Última Fada ou a Nova Lâmpada Maravilhosa, Anette e o Criminoso, João Luís ou a Enjeitada e Clotilde de Lusignan ou o Belo Judeu. Sabia que eram livros sem nenhum valor artístico, por isso assinava-os com pseudônimos como Lord R'hoone e Horace de Sainte-Aubin. Finalmente, em 1829 publicou o primeiro título que assinou com seu nome, o romance histórico A Bretanha em 1799. A partir daí, em um ritmo cada vez mais frenético, saíram até 1833, entre outros, A Pele de Onagro, Luís Lambert, Sobre Catarina de Médicis, Fisiologia do Casamento, O Coronel Chabert, Eugênia Grandet e uma grande quantidade de contos, como Uma Paixão no Deserto, O Romeiral, A Obra-Prima Ignorada, O Ilustre Gaudissart, A Estalagem Vermelha etc.

Em 1834, resolve classificar todas as suas obras em três grupos: Estudos de Costumes, Estudos Filosóficos e Estudos Analíticos. Finalmente, em 1842 encontra o título definitivo de todo o conjunto: A Comédia Humana, um evidente contraponto à Divina Comédia de Dante.

A VOLTA SISTEMÁTICA DAS PERSONAGENS

Ainda em 1834, Balzac teve a ideia, inédita na história da literatura, de fazer reaparecer suas personagens em diferentes obras, em diferentes estágios de suas vidas: aqui na juventude, ali velhos e pobres, acolá ministros ou banqueiros; aqui coadjuvantes, ali figuras centrais; felizes em um conto, infelizes em um romance; por vezes ainda ingênuos e cheios de sonhos, uns rematados crápulas em outro momento etc. Essa invenção "originalíssima e de grande alcance, cujo mérito cabe exclusivamente a Balzac", nas palavras de Paulo Rónai, repercutiu não muito favoravelmente à época, mas teve uma enorme influência sobre inúmeros escritores, entre eles Camilo Castelo Branco, Marcel Proust, William Faulkner e José Lins do Rego.

Decisão tomada, Balzac pôs-se a refazer muitas de suas obras, trocando nomes e biografias de personagens, ajustando situações, datas, etc até conseguir um todo coerente. Considerando-se que a galeria dos tipos criados pelo autor chega à casa dos milhares, é surpreendente que ele raras vezes tenha se enganado em algum pormenor físico, psicológico ou biográfico de suas criaturas. Naturalmente, nem todas as personagens participam de mais de uma obra: Oscar Husson, por exemplo, protagoniza e só aparece em Uma Estreia na Vida; César Birotteau está todo em História da Grandeza e da Decadência de César Birotteau; e assim, com inúmeros outros. Entretanto, aproximadamente seiscentos, como Eugênio de Rastignac, a Marquesa d'Espard, o doutor Bianchon, a Condessa de Restaud, arrivistas como Máximo de Trailles e Henrique de Marsay, a corista Florina, o caricaturista Bixiou transitam por diversos livros, às vezes como personagens principais, às vezes (ou sempre) secundárias, às vezes apenas entrevistos ou entreouvidos. Só Esplendores e Misérias das Cortesãs, por exemplo, conta com mais de cento e cinquenta reaparições! O fato dessa técnica transformar cada romance, novela ou conto em capítulos de um conjunto maior e único, não significa que eles não possam ser lidos separadamente, com raríssimas exceções.

PENSAMENTO CONSERVADOR, ANALISTA IMPARCIAL

Cheio de ideias, com mil planos na cabeça e atormentado por eternas dívidas, Balzac impôs-se uma rotina insana que fazia com que trabalhasse de quatorze a dezoito horas por dia. Apenas em 1834 foram publicados A Procura do Absoluto, O Pai Goriot, A Duquesa de Langeais e Um Drama à Beira-Mar; em 1835, Seráfita, A Menina dos Olhos de Ouro, Melmoth Apaziguado, O Lírio do Vale e O Contrato de Casamento. E assim, todo o conjunto que forma A Comédia Humana foi escrito em menos de vinte anos.

E de que tratam todos esses livros? A rigor, Balzac fala de uma única paixão. Porém, ao contrário dos escritores até então, essa paixão não é mais o Amor, e sim o Dinheiro: os personagens se humilham, casam, traem e cometem crimes para escalar posições sociais, para manter as aparências, para adquirir poder. Amor, honra, lealdade, honestidade, tudo se subordina às novas tentações trazidas pela vida moderna pós-Revolução Francesa. Assim, é imperioso acalmar credores, resgatar letras vencidas junto a usurários, amortizar dívidas contraídas nos elegantes magazines erguidos em luxuosas galerias (os centros comerciais da época), exibir chapéus, luvas e bengalas incrustadas de diamantes em passeios pelos bulevares ou ainda ser aceito nos exclusivos salões da fervilhante Paris, a capital do mundo.

Carpeaux fez a síntese: "A Comédie Humaine é a "Tragédia do Dinheiro"". Balzac, não à toa considerado o criador do romance moderno, intuiu que aparência é tudo e que, dentro em pouco, todos estariam sujeitos à influência avassaladora da imprensa e da publicidade. Por outro lado, apesar de ferrenho monarquista e feroz católico, e apesar de em vários momentos colocar na boca de algum personagem suas ideias conservadoras, até mesmo reacionárias, Balzac disseca com invejável imparcialidade a ascensão da odiada burguesia, e a derrocada final da sempre bajulada nobreza, que se afogou em decadência moral e se deixou corromper por aquela nova classe social. Por isso, Vitor Hugo, em discurso proferido sobre sua tumba, afirmou que, querendo ou não, Balzac pertencia "à forte raça dos escritores revolucionários". Friederich Engels e Karl Marx, fãs confessos, não poderiam concordar mais.

OS GRUPOS E SUBGRUPOS

Mesmo depois do início da publicação dos volumes da A Comédia Humana, Balzac continuava a revisar incessantemente suas obras. Além da divisão nos já citados Estudos de Costumes, Filosóficos e Analíticos, criou subdivisões, como Cenas da vida privada, Cenas da vida provinciana, Cenas da vida parisiense etc, num total de seis, todas subordinadas aos Estudos de Costumes. Indeciso, diversos livros foram colocados arbitrariamente pelo autor ora em uma categoria, ora em outra, mesmo porque essas divisões sempre foram muito artificiais.

Ilusões Perdidas, por exemplo, apesar de fazer parte das Cenas da Vida Provinciana, caberia tranquilamente nas Cenas da vida parisiense; as obras arroladas em Cenas da vida rural poderiam perfeitamente ser colocadas entre as Cenas da Vida Provinciana; já as obras que compõem as Cenas da Vida Privada passam-se em Paris, em sua maioria, daí poderem fazer parte das Cenas da vida parisiense. Mas, ainda não satisfeito, Balzac criou ainda várias novas subdivisões dentro das Cenas: "Os Primos Pobres", para acomodar A Prima Bette e O Primo Pons, "Os Celibatários", "Os Parisienses na Província", "História dos Treze" etc. Pouco disso era necessário, porém demonstra mais uma vez a vontade do autor de ser o mais racional e analítico possível.

AS GRANDES OBRAS

Parte do que Balzac escreveu é reconhecidamente fraca (o próprio autor concordava com isso) ou ficou datada com o tempo. Entretanto, a grande maioria continua indispensável, pelo que representa de testemunho de uma época e, principalmente, pela relevância das questões levantadas, ainda atuais um século e meio depois de virem à luz.

OS GRANDES PERSONAGENS

Balzac povoou suas noventa e cinco obras com mais de dois mil e quinhentos personagens. Muitos são inesquecíveis: Luciano de Rubempré, o poeta ingênuo de Ilusões Perdidas; Eugênio de Rastignac, o provinciano ambicioso, que inicia sua trajetória vitoriosa em O Pai Goriot; o demoníaco e manipulador Vautrin, também apresentado na mesma obra; toda a fauna de Paris, como os dândis Máximo de Trailles e Henrique de Marsay, o caricaturista Bixiou, o doutor Bianchon, as cortesãs Ester e a Sra. Marneffe etc; a prima Bette e o primo Pons; aristocratas decadentes como a Marquesa d'Espard e a Duquesa de Maufrigneuse; a Cibot; Seráfita, o hermafrodita; o adolescente antipático Oscar Husson; Luís Lambert, gênio atormentado; a conformada Eugênia Grandet e seu pai avarento; o Pai Goriot e o Coronel Chabert; Birotteau e seus perfumes; Gobseck, o usurário filósofo; o juiz Popinot…; a galeria é imensa.

Obras foram escritas tentando relacionar todos os personagens, com suas respectivas biografias, os livros onde aparecem etc: Dictionnaire Biographique des Personnages Fictifs de la Comédie Humaine, de Fernand Lotte (Paris, 1952), Balzac et Son Monde, de Félicien Marceau (Paris, 1955) e Répertoire de la Comédie Humaine, de Anatole Cerfberr e Jules François Christophe (Paris, 1887). A respeito deste último, Paulo Rónai conta que "um dos dois autores, Cerfberr, ficou inteiramente alucinado por essa longa convivência com as personagens saídas do cérebro de Balzac e morreu quase louco imaginando ser ele mesmo uma personagem de A Comédia".

PARIS, O MAIOR PERSONAGEM

No entanto, o maior personagem d'A Comédia Humana é, sem dúvida, a cidade de Paris. Balzac situou suas obras por toda a França (Issoudun, Saché, Tours, Sancerre, Vendôme etc) ou em outros países (Itália, Espanha, Noruega, Alemanha), contudo nada menos que quarenta e sete (mais da metade, portanto) têm Paris por cenário, total ou parcialmente; várias começam com a descrição de um aspecto da Cidade-Luz: uma rua, uma loja, uma casa, o comportamento dos parisienses etc. Balzac foi, e ainda é, o maior de todos que se aventuraram a cantar Paris. Mas, que Paris seria esta? "A Paris dos dramas escondidos, dos devotamentos desconhecidos, das ignomínias humanas desapercebidas…A Paris leprosa do bairro dos estudantes, a prestigiosa do Faubourg Saint-Germain, a barulhenta dos negócios (…), onde mulheres elegantes, belas, aduladas, vão do seu amante ao agiota". Jovens de todos os continentes procuram Paris, em busca de riqueza, de fama, até (por que não?) de amor.

A maioria se deixa consumir pelo fogo da cidade e morre em silenciosa solidão; outros sobrevivem de expedientes desonestos e se esquivam por furtivas vielas; outros há que desistem e voltam para suas aldeias, envergonhados e ressentidos; e há os que vencem, brilham intensamente, chegarão a ministros, porém já sem alma, presas de luxúria, ganância e cinismo. Mas essa feérica Paris, que Balzac, ele mesmo parisiense apaixonado, chama de "uma doença e até várias doenças", "deserto sem beduínos", "um instrumento que é preciso saber tocar" etc, é também a capital das ideias, do luxo e da civilização; enfim, como disse um personagem de Modesta Mignon, Paris é "um inferno que se ama".

A COMÉDIA HUMANA E O BRASIL


Continuamente perseguido pelos credores e escravo da monstruosa tarefa a que se propôs, Balzac sonhava com soluções milagrosas, que iriam tirá-lo do atoleiro em que se encontrava, não importa quão absurdas elas fossem. No auge do desespero, chegou a pensar em mudar-se para o Brasil. Em 1840, escreve à Condessa Hanska, sua amante: "Cheguei ao cabo de minha resignação. Creio que deixarei a França e irei levar meus ossos ao Brasil, num empreendimento louco e que escolhi justamente por causa da sua loucura…Este é um projeto absolutamente firmado que será posto em execução ainda este inverno".

Como era de se esperar, desiste de tudo no mês seguinte. Mas o autor costumava seguir a vida do Brasil pelos jornais, e acabou por colocá-lo em várias obras. Para ele, o Brasil era uma terra exótica, cheia de oportunidades e onde era possível enriquecer rapidamente. Enfim, nada de muito diferente da imagem que a Europa tinha do país e, por extensão, das Américas.

Em O Baile de Sceaux, Maximiliano de Longueville associa-se a um banqueiro e fica rico numa especulação no Brasil; Carlos Grandet, de Eugênia Grandet, parte para o tráfico de escravos, entre outras atividades igualmente recrimináveis, e também enriquece; o Marquês de Aiglemont, personagem de A Mulher de Trinta Anos, conhecia muito bem as costas do Brasil, depois de muito trabalho e perigosas viagens que o deixaram rico.

Os diamantes brasileiros também marcaram sua presença: em Gobseck, o usurário do mesmo nome reclama que a joia está se desvalorizando porque o Brasil abarrotou a Europa com pedras menos puras que as da Índia; outro usurário, o joalheiro Elias Magus, concorda que o diamante brasileiro é mesmo inferior, em Um Contrato de Casamento. Por outro lado, Rafael de Valentin, o infeliz de A Pele de Onagro, pensou certa vez em se mudar para o Brasil; as "duras cangas do Brasil" são citadas numa frase perdida em Z. Marcas; em Um Caso Tenebroso, o olhar do personagem Michu é em certo momento comparado aos jaguares do país; Ferragus, na novela do mesmo nome, dá-se com o embaixador do Brasil.

Cite-se, ainda, o milionário Barão Henrique Montes de Montejanos, única personagem brasileira da Comédia Humana (apesar do nome castelhanizante), que tem papel destacado na trama de A Prima Bette; o barão é moreno, cara fechada, traja-se de acordo com a moda parisiense e usa um grande diamante na gravata…

Devido aos laços históricos e afetivos que unem o Brasil a Portugal, não se pode esquecer do abonado Marquês Miguel d'Ajuda-Pinto, personagem português cuja família possui ligações com os Braganças, e que aparece em várias obras: O Pai Goriot, Esplendores e Misérias das Cortesãs, Os Segredos da Princesa de Cadignan e Beatriz. No princípio um dos dândis mais distintos de Paris, o Marquês tem uma trajetória rica pela Comédia, casando-se, intrigando, apaixonando-se e participando de conspirações.

PRESENÇA D'A COMÉDIA HUMANA

Conquanto o público sempre prestigiasse as obras de Balzac, a quase totalidade da crítica negava seu valor. Com exceção de Victor Hugo e Teófilo Gautier, eram poucas as pessoas do meio literário com quem o autor podia contar, mesmo já próximo de sua morte, em 1850. Entretanto, cem anos depois, a bibliografia balzaquiana contava seis mil títulos.

Balzac é hoje universal. Sua obra começou a ser reconhecida ainda no século XIX: Dostoiévski traduziu Eugênia Grandet para o russo e teria sido influenciado pelo autor em obras como o conto O Senhor Prokhártchin (1846) e o romance inacabado Niétotchka Niezvânova (1849); em Portugal, Camilo Castelo Branco escreveu um conjunto de oito narrativas a que deu o nome de Novelas do Minho, (1875-1877), inspiradas em Balzac; já Eça de Queirós idealizou as Cenas da Vida Portuguesa, ciclo de romances destinados a retratar a sociedade portuguesa após o estabelecimento do liberalismo em Portugal, sob D. Pedro IV (D. Pedro I no Brasil), dos quais vieram à luz Os Maias e A Capital; a Comédia é a precursora do chamado roman-fleuve, ou "romance-rio", como Os Rougon-Macquart (1871-1893), de Émile Zola, Jean Christophe (1904-1912), de Romain Rolland, Em Busca do Tempo Perdido (1913-1927), de Marcel Proust e Os Thibault (1922-1940), de Roger Martin du Gard. Balzac também está presente, por exemplo, na obra do escritor brasileiro José Lins do Rego, particularmente nos romances do chamado Ciclo da Cana-de-Açúcar e em William Faulkner, ficcionista estadunidense, criador do mítico Condado Yoknapatawpha, por onde circulam gerações de Compsons, Sartoris, McCaslins, Snopes etc.

O Pai Goriot, Pierrette, A Pele de Onagro, Eugênia Grandet, Uma Mulher Abandonada e muitas outras obras já foram adaptadas para o cinema ou televisão. A Prima Bete, inclusive, já foi filmada três vezes, sendo a mais recente em 1998; em 1990, Gérard Depardieu encarnou o autor em uma minissérie francesa do mesmo nome, que conta sua vida; em 2001, outra minissérie francesa, Rastignac ou os Ambiciosos ("Rastignac ou les Ambitieux", no original), trouxe para o presente as vidas de Eugênio de Rastignac, Luciano de Rubempré e outros personagens balzaquianos, conservando todas suas motivações e características psicológicas; já em Balzac e a Costureirinha Chinesa ("Xiao Cai Feng" no original), filme chinês de 2002, dois jovens são enviados a uma vila nos confins da China para serem reeducados. Lá, descobrem uma caixa cheia de livros de Balzac e outros autores e passam a lê-los para a população, enquanto se apaixonam pelos personagens balzaquianos, principalmente Úrsula Mirouet, e pela costureira do título, cujo futuro é determinado pelo comportamento das mulheres criadas por Balzac.

Com a consolidação do capitalismo e, consequentemente, da moral burguesa, para uma quantidade imensa de pessoas o Dinheiro e o que ele proporciona—poder, ascensão social, bens de consumo—são o principal, e muitas vezes o único, valor a considerar. Em um cenário assim, Balzac está totalmente à vontade (e discretamente vingado), pois sua obra, iniciada há quase dois séculos, continua mais pertinente que nunca.
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continua com a sinopse de contos integrantes da obra…

Fonte:
Wikipedia.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 8 –

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 12


O Capitão Rodrigo Cambará (O TEMPO E O VENTO, Érico Veríssimo), um dos personagens mais marcantes da nossa literatura, certo dia aparece em Santa Fé cavalgando lentamente, e olhando de soslaio para todo lado, chega à frente do bolicho, apeia do cavalo e entra:

- Buenas e me espalho, nos pequenos dou de prancha, nos grandes dou de talho.

- Pois dê ! - respondeu Nicolau, o dono da bodega. O Capitão olhou em volta, sorriu para os presentes e disse:

- Calma, companheiro ! Estou cansado, venho de muitas lutas, peleias e pendengas. As guerras não dão lucro. Só dão prejuízo. Quando não a morte.


Se até nos romances as guerras são mal ditas (malditas), não seria nada diferente na vida real, diria o romancista contador de histórias.

No meu ser não há um fiozinho de esperança e otimismo a pensar que o ser humano mude. Por isso sigo a indagar. Será que os homens, perseguidores da paz fazendo a guerra, censurando-se uns aos outros, incitando-se mutuamente,  chegarão um dia a algum acordo pacífico que não seja apenas o preenchimento de um protocolo, a cobertura de mais um pobre labéu, a simbólica assinatura numa folha de papel ?

Será que os homens que digladiam com esta ganância desenfreada, com esta fartura de egoísmo, com esta falta de escrúpulos chegarão algum dia, ao final da batalha sem terem depreciado as virtudes, compungido seus dias, desordenado a vida neste planeta ?

Questões, dilemas, enigmas que permanecerão indecifráveis por muito tempo.

O planeta - nossa morada - seguirá humilhado e devassado pelo tempo a fora, como tem sido até hoje.

Pobre planetinha, paraíso azul !

Fonte:
Texto enviado pelo autor

A Árvore em Versos - 1

Organização por Sammis Reachers
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As árvores representam sentinelas da defesa e segurança, propiciando beleza e utilidade a todos, que não as podem dispensar, sob pena de anularem a própria existência sobre a face da terra.
Maria Thereza Cavalheiro
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Augusto dos Anjos

A ÁRVORE DA SERRA

" – As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

– Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs alma nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minha alma!...

– Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
"Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!"
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Florbela Espanca

ÁRVORES DO ALENTEJO

Horas mortas? Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido? e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A ouro e giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
– Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água.
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Jorge Sousa Braga

RAÍZES

Quem me dera ter raízes,
Que me prendessem ao chão.
Que não me deixassem dar
Um passo que fosse em vão.

Que não me deixassem crescer
Silencioso e ereto,
Como um pinheiro de riga,
Uma faia ou um abeto.

Quem me dera ter raízes
Raízes em vez de pés.
Como o lódão, o aloendro,
O ácer e o aloés.

Sentir a copa vergar,
Quando passasse um tufão.
E ficar bem agarrado,
Pelas raízes ao chão.
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Olavo Bilac

VELHAS ÁRVORES

Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas;
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas…

O homem, a fera, e o inseto à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! Envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem;

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!
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Oliveira Ribeiro Neto

ÀS ÁRVORES NOVAS

– Árvores pequenas que inda não crescestes,
Que doçura imensa existe em vossas sombras
Fracas e indecisas, sobre a terra quente!

Árvores pequenas, vós lembrais crianças
Esboçando gestos de bondade ingênua
Mas vosso destino como é diferente!

Quando vós crescerdes, dareis sombra e frutos,
E dareis aos homens, no verão candente,
Sonhos de fartura e flores aromais.

Mas os pequeninos não terão mais gestos
De bondade pura, de ternura ingênua...
Quando eles crescerem, serão meus iguais.
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Sophia de Mello Breyner Andresen

ÁRVORES

Árvores negras que falais ao meu ouvido,
Folhas que não dormis, cheias de febre,
Que adeus é este adeus que me despede
E este pedido sem fim que o vento perde
E esta voz que implora, implora sempre
Sem que ninguém lhe tenha respondido?

Fonte:
Sammis Reachers (organizador). Árvore: uma antologia poética. São Gonçalo/RJ, 2018. e-book.

Eduardo Affonso (Direito e Avesso)


O universo não se dividia, então, em luzes e sombras ou entre o Bem e o Mal, mas nos domínios do masculino e do feminino, representados pela máquina de escrever e a máquina de costura.

A primeira comandava o escritório do meu pai; a segunda, o quarto da minha mãe. Uma cercada de livros e silêncio; outra, de retalhos coloridos, música e risos.

Escrever, com os indicadores catando milho nas teclas da Remington, exigia concentração – ali, no âmbito das leis, não éramos bem-vindos. Nosso lugar era no chão, de tesoura da mão, recortando figuras das revistas de moda, aos pés da Singer.

Cada um desses mundos tinha seu vocabulário próprio, seu dialeto. Cerzir e sursis, corpetes e habeas corpus, evasês e evasões – palavras que se aproximavam, sem jamais se tocar.

Junto ao pedal da máquina de costura, imperava aquilo que mais tarde soube chamar-se francês: godê, plissê, cotelê, croqui. Nos raros momentos sob a escrivaninha, prevalecia o que desde sempre se chamou latim: animus, caput, data vênia, de cujus, pari passu, causa mortis, sine die.

Havia uma palpável hierarquia entre a matéria – o pano, a pence, o pesponto – e o espírito. Entre o braçal da carretilha, da agulha e do dedal, e o reino da autoridade intelectual, da retórica, da persuasão.

Essa divisão era ancestral: minha avó regia a roupa no varal, a labuta na cozinha, e meu avô, as conversas no salão, a posse do dicionário, as palavras cruzadas no jornal.

Um desses espaços era mais sentimental e mais lúdico: o do soutache, do ilhós, da passamanaria. Do cós, do viés, da sianinha, da lapela, do vivo, do gavião. Das revistas coloridas (o outro mundo não tinha figuras). Da tesoura que fazia ziguezague – da própria palavra ziguezague.

O outro mundo não oferecia grandes diversões além do perfurador, com o qual se podia fazer confete: não era permitido tocar a caneta-tinteiro, a carimbeira, o mata-borrão.

O mundo do papel manilha era melhor que o do papel almaço. A Burda, mais agradável de folhear que qualquer processo.

O quarto de costura era nosso quintal; o escritório, a sala de visita. Este, o território do não; aquele, o do sim. Um, o dos livros fora do alcance, na estante – o outro, o de sentar no chão, entre cortes de cambraia, retalhos de feltro, amostras de cetim.

Apesar de estar lá a cultura, de lá ficarem as letras, foi no lado de cá que se deu a descoberta de que cada palavra tem sua textura, seu caimento.

Assim o morim, a chita e o riscado, tão distantes da organza, do tafetá, do organdi – não só ao tato, mas também ao ouvido. Assim o linho e a flanela (ele, ríspido; ela, suave), o impecável poliéster e o suscetível algodão.

O mundo do Direito e o do avesso, o das Cortes e o da costura, o das Leis e o das linhas acabaram por se coser num só, este em que se pode chulear as frases, rematar sentenças e nelas ir alinhavando ideias e pregando as palavras como quem prega botão.

(publicado originalmente em 11 de abril de 2018)

Fonte:
https://eduardoaffonso.com/2019/06/23/direito-e-avesso/

O Soneto – Parte 4

Texto de José Roberto Gullino

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Quando se estuda música ou pintura, inicia-se pelos clássicos, para depois, cada um seguir o caminho que melhor vislumbrar. Na poesia também deveria caminhar na mesma sequência, porém, como está atrelada ao aprendizado da língua escrita, as pessoas não se preocupam em estudar suas origens.

Particularmente, com o soneto, não basta absorver suas regras e normas, simplesmente – há inúmeros detalhes que o poeta tem que se ater para não tirar o valor de seu trabalho, além da métrica e da acentuação. É a rima – um dos quesitos primordiais, que deve ser sempre apurada, mas não sofisticada, procurando fazê-la entre verbos, substantivos e adjetivos para não perder seu sabor auditivo e evitar o abuso de verbos no infinitivo, principalmente os da 1ª conjugação, que provocam uma sonoridade cansativa e da mesma maneira não se deve rimar singular com plural, nem cometer o pecado de utilizar rimas iguais, que quebram um pouco a musicalidade. Há poetas que procuram se sofisticar com palavras diferentes – possivelmente para mostrar intelectualidade ou por falta de rimas – isto poderia ser usual no passado quando o vocabulário era mais requintado, já que hoje os bons dicionários de rimas nos livram de tal necessidade, como bem nos alerta Mello Nóbrega em seu livro. Atualmente, o que dá beleza ao poema é a simplicidade de linguagem, propiciando uma fácil assimilação e compreensão, pois o que pesa num poema é seu conteúdo, sua essência, o desenvolver do tema abordado – seu efeito.

Tratando-se de soneto, o maior expoente no assunto, entre nós, foi o poeta Vasco de Castro Lima (1904/2002?) com o livro “O mundo maravilhoso do soneto”, quando penetrou com tanta profundidade em suas reentrâncias, ao longo de mais de 1.000 páginas. Geir Campos também deu uma grande contribuição com o “Pequeno Dicionário de Arte Poética”. Edgard Rezende participou com seus exemplos em “Os mais belos sonetos brasileiros”, que reproduz pequenos dados sobre cada poeta e J. G. de Araújo Jorge completou com a coletânea “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”, em quatro volumes, abrangendo trabalhos de todos os cantos do mundo. São detalhes importantes para os que querem seguir os meandros do soneto e cujos livros já estão desaparecidos (só conseguidos raramente nos sebos) e que, se vivêssemos num país realmente preocupado com a cultura, reeditariam tais obras para satisfação e incentivo dos cultivadores do segmento poético, pois são textos que não saem de moda mas que também não são de vendagem imediata, como é desejo das editoras, porém, bem poderiam ser editados pela Biblioteca Nacional. Outros trabalhos, ainda, deveriam ser revividos como “Tratado de versificação”, de Bilac e Guimarães Passos e “Rima e Poesia” de Mello Nóbrega (embora com conteúdo mais amplo, exemplificando em vários idiomas), além de muitos outros que vão sumindo da lembrança de todos. Hoje não há mais necessidade de se seguir regras nem de um poeta se nortear – “todos são poetas”.

Quanto à metrificação, por ser um assunto mais complexo, trataremos mais adiante com minúcias de detalhes, mas um item importante e que já ressaltei, é o final do último verso – a dita “chave de ouro” – que deve ser observada nos sonetos aqui apresentados, detalhes que os valoriza e enaltece.

Existem trabalhos que, por sua beleza, depois de lidos, nos deixa invejosos – no bom sentido – por não termos tido tal inspiração. Assim é o trabalho de Vasco de Castro Lima, que morreu quase centenário (1905/2002?), referido lá na frente, que trilhou A ESTRADA DO SONHO :

Cada dia em que o sol se abre, risonho,
e desfralda o seu leque de esplendores,
eu saio pela Estrada Azul do Sonho,
pisando espinhos e plantando flores…

E vou contente. Nos meus passos, ponho
a luminosidade dos alvores.
Sigo a Estrada. E é sorrindo que a transponho
eu, o mais sonhador dos sonhadores…

Sim, quero ter, na noite da velhice,
o mesmo coração da meninice –
um ninho de alvoradas luminosas –

para ser, no jardim dos desenganos,
uma alegre roseira de cem anos,
ardendo em sonhos, florescendo em rosas!


Da mesma maneira, outro dos nossos patronos, Décio Duarte Ennes (1926/1982), nos brinda com a beleza de uma CARTA :

Escrevo-te, querida, a última carta,
e nela envio o meu saudoso adeus
com o qual seguirão os dias meus,
que de viver minha alma já esta farta !

Tudo de mim agora já se aparta,
e o próprio Amor – este menino-deus –
já me renega e põe-me entre os ateus,
a mim, cuja existência quis eu dar-ta !

Poucas palavras restam-me, bem poucas,
( talvez, até as julgues tu bem loucas… ) :
Ofereci-te o amor – e o recusaste !

Ofereci-te a vida – e a não quiseste !
Agora eu te devolvo o que me deste :
– Os versos de um poeta que inspiraste !


E Romildes de Meirelles, do Rio de Janeiro – um dos idealizadores da ABRASSO – Academia Brasileira do Soneto, extremamente melancólico, se sentiu SÓ!…

Estou completamente só… O dia
acaba, a tarde morre docemente
e eu estou só em meio a tanta gente,
nesta tarde chuvosa, cinza e fria…

A solidão da tarde me angustia,
deixa-me imerso em um torpor dolente
e eu vejo o tempo ir-se lentamente
de gota em gota, em triste nostalgia.

A chuva aumenta a minha ansiedade,
enchendo-me de mística saudade,
numa tristeza atroz que o olhar me embaça.

E vejo tudo qual se fosse um sonho,
onde o tempo se escoa tão tristonho
na cadência da chuva na vidraça.
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continua...
 
Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni, http://rauldeleoni.com.br/soneto/