segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Lima Barreto (Lívia)


E todos os dias quando ela, de manhã cedo, ia, ainda morrinhenta da cama, preparar o café matinal da família, ia toda envolvida num nevoeiro de sonhos, sonhados durante um demorado dormir de oito horas a fio. Por vezes — lá na cozinha, só, vigiando pacientemente a água que fervia — ao lhe chegarem as reminiscências deles em tumulto, juntas, borbulhava-lhe nos lábios uma interjetiva qualquer, eco desconexo do muito que lhe falavam por dentro. De quando em quando, sofreando um gesto glorioso de satisfação, dizia — é ele — e isso de leve traduzia a grande carícia que lhe era dado gozar naquele instante, refazendo aquele sonho bom — tão bom e acariciador que bem lhe parecia um inebriamento de capitosos perfumes a se evolar do Mistério vagarosamente, suavemente...Depois, logo que o café se aprontava e, na sala de jantar, todos ao redor da mesa se punham a sorvê-lo, mastigando o pão de cada dia — ela, d'olhos parados, presos a uma linha do assoalho, levando compassadamente a xícara aos lábios, ficava a um canto a pensar, remoendo a cisma, procurando decifrar naqueles traços nebulosos — tão mal grudados pela memória — a figura viva daquele com quem, em sonhos, se vira indo de braço dado ruas em fora.

Esforço a esforço, de evocação em evocação, aparecia-lhe aos poucos a sua figura, o seu ar; e, após esse paciente trabalho de reconstrução, lhe vinha, anunciado por um sorriso reprimido que lhe encrespava radiosamente o semblante, o seu nome sílaba por sílaba... Go-do-fre-do. Então com volúpia, ela lhe pesava os recursos: ganhava cento e vinte, no emprego da Central, talvez, em breve, viesse a Ter mais. Quarenta para casa e o resto para o vestuário e alimentos.

Era pouco — convinha — mas servia, pois, assim ficaria livre da tirania do cunhado, das impertinências do pai; teria sua casa, seus móveis e, certamente, o marido lhe dando algum dinheiro, ela — quem sabe! — que tão bons sonhos tinha, arriscando no “bicho", aumentaria a renda do casal; e, quando assim fosse, havia de comprar um corte de fazenda boa, um chapéu, de jeito que, sempre, pelo Carnaval, iria melhorzinha à rua do Ouvidor, assistir passarem as sociedades.

O café já se havia acabado, e ela ficara ainda distraída e sentada, quando soou de lá da sala de visitas a voz vigorosa do cunhado:

—Lívia! Traz o meu guarda-sol que ficou atrás da porta do quarto. Depressa!... Anda que faltam só oito minutos para o trem!

E como se demorasse um pouco, o Marques, redobrando de vigor no timbre, gritou:

— Oh! C'os diabos! Você ainda não achou! Safa! Que gente mole!

Humildemente, Lívia lá foi aos pulos, como uma corça domesticada, entregar o objeto pedido, para lhe ser arrancado bruscamente das mãos...

Envolvida ainda naquele sonho que lhe soubera tão bem a manhã, ela, através das frinchas da veneziana viu o cunhado atravessar a rua e se perder por entre o dédalo de casas. Certificada disso, abriu a janela. O subúrbio todo despertava languidamente. As montanhas, verde-negras, quase desnudas de vegetação, confusamente surgiam do seio da cerração tênue e esgarçada. As casas listravam de branco e ocre o pardacento geral, enquanto bocados de neblina, finos, adelgaçados, flutuavam sobre elas como sombras erradias.

As ruas descalças e enlameadas eram atravessadas por alguns transeuntes cabisbaixos, mal vestidos, andando céleres em busca do embarcadouro. Corria, de resto, como sempre, morosamente o viver diário; e a Lívia, sacudida pelo silvo agudo de uma locomotiva, levantou de repente os olhos, até ali fitos na estação que emergia do ambiente pardo a clarear-se, para pregá-los numa nesga do céu que o sol abria, por entre a névoa, furiosamente, vitoriosamente.

A súbitas, sua alma voou, asas abertas, voo rasgado, para outras bandas, outras regiões. Voou para a cidade de luxo e elegância que, ao fim daquelas fitas de aço, refulgia e brilhava. Representaram-se-lhe os teatros de luxo, os bailes do tom, a rua da moda onde triunfavam as belezas. Ao considerar isso, viu-se ali também, ela, sim! ela, que não era feia, tendo o seu porte flexível e longo, envolvido de rendas, a desprender custosas essências e aqueles seus dedos de unhas de nácar, ornados de ouro e pérolas, escolhendo, na mais chique loja, cassas, baptistes, voiles...

Numa galopada de sonhos, supôs maiores coisas e — lembrando-se do que lhe contara a madrinha (oh! como era rica!) – imaginou a Europa, aquelas terras soberbas, por onde a "Dindinha" passeava a sua velhice e o seu egoísmo.

Doidamente revolvia a alma e as cismas... Calculou-se lá também, na alameda de um soberbo jardim, de landau, com ricas vestes ao corpo unidas, ressaltando delas o esplendor de suas formas e o esguio patrício de seu corpo. Imaginou que, através de um caro chapéu de palhinha branca, se coasse a luz macia do sol da Europa, polvilhando-lhe a tez de ouro, em cujo fundo brilhassem muito os seus olhos vivos, negros e redondos.

— Oh! que bom! Quem me dera! — quase exclamou por esse tempo.

De reviravolta, Lívia adivinhou outra coisa no sonho. Não pensara bem; era outro que não o Godofredo, o rapaz que imaginara. Aquele nariz grosso, aquela testa alta, o bigode ralo, não eram dele, eram antes do Siqueira, estudante de farmácia, filho do agente. Esse poderia lhe dar aquilo — a Europa, o luxo — pois que formado ganharia muito.

Dessa forma — resolvera –  "amarraria a lata" no Godofredo e "pegaria" com o Siqueira. E era muito melhor! O Siqueira, afinal, ia formar-se, seria um marido formado, ao braço do qual, se não fosse à Europa, viria a gozar de maior consideração...

Demais a Europa era desnecessária — para quê? Era querer muito. Quem muito quer nada tem; e ela para ter alguma coisa devia querer pouco. Bastava pois que lhe tirassem dali, fosse esse, fosse aquele; mas... se em todo o caso pudesse ser um mais assim... seria muito melhor.

E desde quando vinha ela querendo aquilo? Havia muitos anos; havia dez talvez. Desde os doze que namorava, que "brotava" só para aquele fim; entretanto, apesar de haver tido mais de quinze namorados, ainda ali estava, ainda ali ficava, sob o mando do cunhado.

Quinze namorados!

Quinze! De que lhe serviram?

Um levara-lhe beijos, outro abraços, outro uma e outra coisa; e sempre, esperando casar-se, isto é, libertar-se, ela ia languidamente, passivamente deixando. Passavam um, dois meses, e os namorados iam-se sem causa. Era feio, diziam; mas que fazer? como casar-se? Por consequência, como viver? A sua própria mãe não lhe aconselhava? Não lhe dizia: "Filha, anda com isso; preciso ver esta letra vencida"?

De resto, o amor lhe desculparia, pois não é o amor o máximo tirano? Não é a própria essência da vida, das coisas mudas, dos seres, enfim? Porventura ela os amara? Teria ela amado aquela legião de namorados? Amara um, sequer? Não sabia...

— O que é amar? interrogava fremente.

Não é escrever cartas doces? Não é corresponder a olhares? Não é dar aos namorados as ameaças da sua carne e da sua volúpia?

— Se era isso, ela amara a todos, um a um; se não era, a nenhum amara... E o que era amar? Que era então?

Ao lhe chegar essa interrogação metafísica, para o seu entendimento, ela se perdeu no próprio pensamento; as ideias se embaralharam, turvaram-se; e, depois, fatigada, foi passando vagarosamente a mão esquerda pela testa, correu-a pacientemente pela cabeça toda até à nuca. Por fim, como se fosse um suspiro, concluiu:

— Qual amor! Qual nada! A questão é casar e para casar, namorar aqui, ali, embora por um se seja furtada em beijos, por outro em abraços, por outro...

— Ó Lívia! Você hoje não pretende varrer a casa, rapariga? Que fazes há tanto tempo na janela?!

Obedecendo ao chamado de sua mãe, Lívia foi mais uma vez retomar a dura tarefa, da qual, ao seu julgar, só um casamento havia de livrá-la para sempre, eternamente.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

Estante de Livros (Livros das Comédia Humana, de Honoré de Balzac) 2


A PRIMA BETTE
(1846)

Romance que é uma das obras-primas definitivas do autor, pertence ao subgrupo "Os Parentes Pobres", do qual faz parte ainda O Primo Pons. Neste livro, a ressentida, pobre e solteirona Lisbeth Fischer, a personagem-título, vinga-se de maneira terrível de todas as humilhações verdadeiras e imagináveis que sofreu de seus parentes ricos. O trágico é que suas vítimas, várias sem nenhuma estatura moral, veem nela um exemplo de desprendimento e lealdade.

Outras grandes personagens são a calculista Valéria Marneffe, comparsa da Prima Bette e umas das maiores cortesãs criadas por Balzac; o decadente barão Hulot d'Ervy, presa do vício da libertinagem, que só faz aumentar à medida que envelhece; e o rico Barão Henrique Montes de Montejanos, único brasileiro a constar na galeria balzaquiana, com um nome que, aliás, de brasileiro tem muito pouco. Montejanos, apaixonado pela Senhora Marneffe, é por ela ludibriado com falsas promessas e reiteradas traições, até o momento em que reclama sua vingança. O horrível instrumento utilizado para isso está perfeitamente de acordo com pessoas originárias de país tão exótico e selvagem...
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A PROCURA DO ABSOLUTO (1834)

O tema do "pensamento matando o pensador", isto é, uma ideia fixa que se apodera do personagem, perpassa várias obras da Comédia, mormente aquelas colocadas entre os Estudos Filosóficos, como A Obra-Prima Ignorada e Gambara. Já neste romance, o químico Baltasar Claes deseja descobrir a matéria mãe de todas as matérias e de tudo que há nos reinos animal, vegetal e mineral. Para isso, ele sacrifica sua família, fortuna, honra e saúde. Balzac estudou Química para escrever o livro, mas chegou a ser acusado de igualar essa ciência à alquimia. Esta crítica não se sustenta, contudo outra sim: apesar de Claes levar a família à bancarrota várias vezes, sua filha sempre consegue repor a fortuna, deixando-a até maior.
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EUGÊNIA GRANDET (1833)

Universalmente reconhecido como um dos melhores romances de Balzac e, ao mesmo tempo, um dos mais lidos pelo público, conta a história de Eugênia, típica provinciana filha de pai rico e, por isso, disputada por potenciais maridos. Um dia, chega seu primo; ambos se apaixonam, mas o rapaz é fraco e, aconselhado pelo tio, parte em busca de fortuna. Eugênia fica à espera, com a fria resignação de quem ama sem pedir nada em troca. O que, em outras mãos, seria apenas um romance sentimental, alarga-se enormemente pela ação de outros personagens, com destaque para o pai, enriquecido pelo comércio de vinhos, considerado um dos maiores avarentos da história da literatura.
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ESPLENDORES E MISÉRIAS DAS CORTESÃS (1869)

A publicação deste romance se deu de forma bastante acidentada: o início da primeira parte ainda em 1838; o restante sucessivamente em 1843, 1844, 1846 e 1847. Todas as partes somente se juntaram em um único volume em 1869, quase vinte anos após a morte do autor. A composição é mais fragmentada que Ilusões Perdidas, da qual é continuação, desenvolvendo-se em quatro linhas, que correspondem às suas quatro partes: os amores de uma cortesã; os amores de um idoso; Luciano de Rubempré e sua segunda tentativa de conquistar Paris; e polícia versus bandidos.

Temos aqui quase um "livro de ação", passado em galés e masmorras, com tipos vindos do submundo e seu linguajar característico, crimes horríveis, personagens cruéis e, sem dúvida, uma força extraordinária. A essa altura, Luciano já não é mais aquele poeta ingênuo da obra anterior: agora ele perdeu todo o pejo e usa sua beleza como moeda de troca; mas continua a mesma pessoa fraca, de fácil manipulação. Desta vez, ele se deixa enredar pelo misterioso Padre Carlos Herrera, cuja verdadeira identidade logo descobrimos ser o diabólico Vautrin. Essa que é uma das maiores e mais polêmicas criações de Balzac faz aqui sua derradeira aparição e recebe do autor uma surpreendente, porém lógica e irônica, vida futura. Por outro lado, a descrição dos momentos finais de Luciano é um dos mais belos e poderosos textos saídos da pena do autor.
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HISTÓRIA DA GRANDEZA E DA DECADÊNCIA DE CÉSAR BIROTTEAU (1837)

Escrito em cerca de vinte dias, em troca de vinte mil francos, esta é uma das obras mais perfeitas e das que melhor ilustram o modo de Balzac fazer literatura. César Birotteau é um modesto perfumista, que se deixa levar pela ambição e acaba arruinado. A vingança engendrada por um antigo empregado, tendo por objeto a especulação imobiliária; a descrição do processo de falências; a fabricação de pomadas e elixires; embalagens, bulas, letras de câmbio, tudo isso faz do romance um verdadeiro tratado comercial, onde pouca coisa acontece, mas que prende a atenção até o fim. O retrato desse artista das essências, meio ingênuo, meio tolo, é tão convincente e humano, que o final deixa o leitor com uma ponta de tristeza e amargura.

Fonte:
Wikipedia

domingo, 13 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 12 –

 


Carolina Ramos (Maria Angélica)


Maria Angélica deveria beirar os trinta. Moça, ainda. Bonita. Cheia de sonhos. Belos sonhos! Altos em demasia, talvez. Mas, sonhos válidos. Desses que a vida, com suas garras sádicas, costuma furar, prazerosamente, como que invejosa da frágil e inimitável beleza das bolhas de sabão.

Natal. O natal de Maria Angélica chegara antecipado quase que um mês, colocando-lhe nos braços, de mãe solteira, um pequerrucho sadio, a alardear, a plenos pulmões, seu direito à vida.

O "mau passo" a colocara em choque com a família. Família modesta, opositora firme à paternidade irresponsável, que lhe punha à porta o fruto inocente de mais um desses dramas, incansavelmente repetidos no palco do cotidiano, sem lograr aplausos.

Padre Tiago alisou a batina e ajeitou os paramentos.

O sermão daquela noite seria o último de sua carreira eclesiástica, como largamente anunciado. Definido como despedida, teria de ser o máximo. Ultrapassar as emoções, tão pródigas, da noite natalina, penetrar nas almas, deixar marca indelével. Tudo o que de melhor dissera, em suas múltiplas falas, deveria ser superado.

Quantas almas sua palavra eloquente salvara? Nenhuma? Isto o menos provável. Se acaso assim fosse, ainda havia esta última oportunidade. Depois, bem depois era só apresentar-se ao Senhor dizendo: — Missão cumprida! Teria em mãos o passaporte para a suprema e derradeira viagem com data indefinida. Próxima, talvez.

Como que tangido por mãos de anjos travessos, o novo sino, fruto da última quermesse, lotara de fiéis a pequenina igreja.

Sem pressa, o velho sacerdote arrastou os pés de pastor cansado, até o centro do altar. Cabeça baixa, quase beijava as mãos contritas, enlaçadas sobre o peito. Sequer estendeu o olhar ao rebanho, que, sabia, acompanhava sua entrada com especial carinho.

Amava cada um daqueles que ali estavam, ansiosos todos para ouvir-lhe a palavra sábia, fluente e piedosa. Naquela grande noite, certamente mais sábia, mais piedosa do que nunca! Fluente, não!

Custava-lhe despedir-se. Entregar suas ovelhas a um pastor mais moço, prepará-lo com desprendimento para assumir funções para ele tão caras, era, antes de tudo, um ato de obediência, de renúncia, que não conseguia chamar de indolor.

As emoções, somadas de lado a lado, ganhavam vulto à medida que se aproximava o instante do sermão, propositadamente adiado para o final da missa.

Após a bênção, Padre Tiago estendeu o olhar ao longo do aprisco. Lá, bem ao fundo, emoldurada pela porta em arco, descobriu Maria Angélica, humildemente ajoelhada, véu branco, sobre os longos cabelos... nos braços, o filho pequenino a sorrir candidamente para o mundo, cuja hostilidade ainda não conhecia.

Padre Tiago viu repetida, em sua capela, a gruta de Belém! A emoção apertou-lhe a garganta. Pelo cristal das lágrimas, a cena ainda se fazia mais bela! Tentou falar. Não conseguiu.

A pausa silenciosa, atribuída às dificuldades da despedida, aumentava a expectativa.

Com esforço. Padre Tiago controlou parcialmente a emoção, dizendo, com voz embargada de quem enfrenta o público pela primeira vez:

— Feliz... Feliz Natal para todos!

E, naquela Noite Santa, não houve sermão algum.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Elisa Alderani (Jardim de Versos) II


ANGÚSTIA


Não sei de onde vem tanta tristeza
Que sem motivo aperta o coração.
Será lembrança de lágrimas escondidas
Desta inútil talvez fútil razão.

Será o tempo que passou perdido
Esperando um amor que não voltou.
Quem sabe, a procura envelhecida,
Não deu vazão para encontrar alguém.

De onde virá então tanta ansiedade,
Se o coração a tempo está em repouso...
Querendo doar somente ao semelhante
Amor fraterno, refletindo paz.

Inquieto agora insurge e quer gritar?
Encontrar a resposta certa
Para a alma tão dilacerada.
Será culpada a nuvem que desaba
Suas gotas pesadas de repente...

Até voltar um raio de sol que beija
A solidão que gorjeia
Como pássaro fechado na gaiola.
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ASAS

Sou igual passarinho de asas cortadas...
Deixaram-me a porta da gaiola aberta,
eu fico aqui preocupada, mas alerta...

Lá fora tem um inimigo, desconhecido à espreita...
Está esperando-me para atacar em qualquer lugar...
eu não o vejo, mas sei que está no ar...
Perto de estranhos que vejo passar...

Não dá para eu reconhecer, todos são mascarados,
usam cobertura facial...
Igual focinheira de cachorros perigosos...
Já que eu sou pássaro e tenho um bico
tão bonito colorido,
não a posso usar,
Iria ela se furar...

Pode ser a moda atual, nessa louca sociedade,
eu sou pássaro,
não sei de nada...
Quero cantar,
mas com esse medo que me assalta,
minha voz
perdeu-se no ar...

Só posso olhar e pular...
E assim estou confiante,
precisando esperar o tempo passar
dessa estranha coisa desconhecida,
que ronda pelos ares...

Minhas penas tão bonitas e coloridas
irão crescer e novamente,
quero ser livre e independente...

Daqui voar,
quero ainda cantar
e ganhar a sonhada liberdade,
que de minha vida, é absoluta propriedade!
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NOITE

Não pergunte para lua o porquê ela brilha,
Não pergunte as estrelas os porquês hoje se escondem...
Não pergunte ao tempo o porquê ele não para.

Somente o Universo terá a resposta.
Quando saberás escutar o Teu silêncio!
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NOSSO CAMINHO

Começo da ponte, primeiros passinhos,
talvez inseguro titubeando ...
equilibrando no percurso.
Ignoto o lugar, prosseguimos..
Talvez, para ver a paisagem
paramos o olhar!
O percurso pode ser curto
ou talvez longo...
ninguém pode medir.
Até a outra margem da chegada
que os olhos não alcançam.

É a ponte de nossas vidas...
Encontros e despedidas
Obstáculos no caminho nos param...
Mergulhos em nuvens escuras
impedem prosseguir...
Paramos mas logo,
retomamos o fôlego,
precisamos chegar
sem olhar para trás!

Para alguém, o caminho parece curto,
pra outros longo, infinito...
Tudo depende da maneira de pensar...
Analisar o progresso ou regresso
dos sonhos jogados por baixo
ao lado da ponte...
Inutilidades carregadas
sem importância alguma
nos impedem uma chegada serena.

O ignoto, as vezes nos assusta.
Mas sabemos que um dia qualquer
estaremos cansados de caminhar...
quando veremos outra margem
ficaremos felizes na chegada!
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POEMA POBRE

Não tenho riquezas de palavra,
tenho riqueza sim, de sentimentos.
Sinto a dor alheia ao ver tristezas...
perdas, lutos e traimentos.

Gosto de buscar as palavras,
que sejam certas, que animem
até um coração perverso...
ricas de amos e esperança!

Minhas palavras são tal vaga-lumes
nas noites sem estrelas
nas campinas desertas
do pobre sertão nordestino...

Onde a seca castiga, onde têm gente pobre,
criança feliz com nada...
e aqui na grande cidade,
encontramos só gente enjoada!

Somos carente de amor
e solidariedade, que são palavras
pregadas com facilidade
mas, difíceis de atuar...

Sou pobre de palavras,
simplesmente, sei só rimar
Amor e calor humano...
canção e coração!
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Nota do Blog:
"Vaga-lume", antes, era escrito assim e também sem hífen: "vagalume". As duas possibilidades estavam autorizadas. Na Nova Ortografia, somente a forma hifenizada é permitida.

Fonte:
Poemas enviados pela poetisa.

Olivaldo Júnior (Na Hora do Almoço)


Foi mais ou menos há duas semanas, num pequeno restaurante do Centro da Cidade, na hora do almoço. Raramente almoço lá, mas, de vez em quando, isso acontece. Geralmente almoço a marmita preparada por minha mãe, que a prepara com carinho para mim. No dia em que presenciei a cena que descreverei aqui, faltou-me a marmita e lá fui eu comer em paz. Conheço esse restaurante há quase dois anos e, quando é preciso, ele me serve bem.

Cheguei e, como de costume, no balcão mesmo, já pedi a comida e fui buscar uma mesinha vazia. Sentei-me e logo saquei de um livro que tenho levado sempre na bolsa, talvez você o conheça, “Mantenha seu cérebro vivo”, de dois autores, acho que americanos. Um desses livros, de poucas páginas e de muito conteúdo, com exercícios práticos de como melhorar a memória, descrevendo o funcionamento cerebral com perfeição e leveza.

A comida estava sendo preparada, eu estava lendo o livro, quando adentraram dois rapazes e também pediram comida. Um deles foi ao banheiro e, logo depois foi se juntar ao amigo, que já se havia acomodado e estava mexendo no celular. Ambos comentavam o que viam no fone, e duas meninas, entre onze e doze anos, chegaram e começaram a pedir a cada cliente que lhes pagasse o almoço. Era o meio do mês, e o dinheiro já estava contado.

Assim que uma delas se aproximou de mim, enquanto a outra continuava a se dirigir aos presentes pedindo dinheiro, ofereci duas moedas. Voltando a ler meu livro e já pensando na situação daquelas meninas, reparei nos rapazes da mesa ao lado, principalmente no que havia ido ao banheiro assim que entrou no restaurante. Ao ser abordado, como quase todos em volta, incomodou-se com a posição daquelas crianças que, àquela hora, deveriam era estar na escola e não esmolando pelas ruas como estavam.

Aquele rapaz, logo após essa abordagem, vendo que as meninas continuavam a tarefa, levantou-se e, junto do balcão, disse que pagaria dois salgados a elas. Assim fazendo, voltou à mesa em que seu amigo ainda mexia no celular. Porém, mesmo tendo se levantado e comprado dois salgados para as duas, vira e mexe, ele voltava seus olhos para junto do balcão, pois as meninas, mesmo tendo ganhado algum dinheiro e os salgados, queriam feijão e pediam à atendente o alimento.

O que me chamou a atenção foi ver que, enquanto as crianças não deixaram o restaurante, aquele moço ficou inquieto, como se algo o machucasse, e ele nada pudesse fazer. Aliás, até fez sim, visto que ajudou as duas com os salgados, mas, no fundo, parecia saber que era pouco. Dizem que pouco com Deus é muito. No caso da falta de proteção à infância comumente vista em nosso país e em vários outros, o pouco nem sempre é o bastante. Na hora do almoço daquele dia, nos lembramos disso.

Fonte:
texto enviado pelo autor

O Soneto – Parte 6, final

Vamos divergir um pouco do soneto tradicional e dar um passeio com humor, pois apesar do rigor na montagem de um soneto, às vezes, tal rigor se abranda quando invade o terreno da sátira e do humor. Aí se perdem um pouco as exigências quanto às rimas, embora nos exemplos a seguir, em alguns casos, elas foram respeitadas. São as licenças poéticas que o sonetista se reserva e aproveita para desenvolver um tema com criatividade e humor.

Pesquei, por exemplo, no site de Paulo Camelo, este seu espirituoso soneto para, graficamente, apresentar as diferenças entre “trás” e “traz” e entre “porque”, porquê”, “por que” e “por quê”. Ei-lo :

Não sei por que se traz, se vem de trás.
Talvez porque o que se traz por trás
lá não esteja. E por que saber
se é porque assim que tem que ser?

Mas o porquê da dúvida cruel
ainda existe e eu não sei por quê.
Por que razão, não sei. Será porque
é mesmo o som? Por que se clama ao céu

se lá por trás do que o pedido traz
é um não-sei-por-quê que não entendo?
Ora porque… bem… eu não sei por quê.

Por trás do que se traz, se é que se traz,
é mais complexo o mundo, é mais tremendo
e eu não sei por quê. Será porque… ?


Já Laurindo Rabelo (1826-1864) recorreu somente a duas rimas em todos os versos para poder fazer uma brincadeira com O TEMPO :

Deus pede estrita conta do meu tempo,
é forçoso do tempo já dar conta;
mas como dar sem tempo tanta conta,
eu que gastei sem conta tanto tempo?

Para ter minha conta feita a tempo,
dado me foi bem tempo e não foi conta.
Não quis sobrando tempo fazer conta,
quero hoje fazer conta e falta tempo.

Oh! vós que tendes tempo sem ter conta,
não gasteis esse tempo em passatempo:
cuidai enquanto é tempo em fazer conta.

Mas, oh! Se os que contam com seu tempo
fizessem desse tempo alguma conta,
não choravam como eu o não ter tempo.


Francisco Jugurtha Rocha (1902/?), falecido há poucos anos, aproveitando a deixa de Laurindo Rabelo, embarcou com muito humor, usando também somente duas rimas para passar seu recado bem ao JEITO DA COISA : .

Quanta gente quer ter a coisa sem ter jeito…
Quantos, jeito querem dar pra ter a coisa !
Certo haverá quem tenha a coisa sem ter jeito
mas, que adianta sem o jeito ter a coisa ?

Nada melhor que ter a coisa e ter o jeito,
sendo tão raro ter-se uma e outra coisa,
conformar-se com uma só coisa é o jeito,
pois, bem pior é não ter jeito nem ter a coisa…

Quantos, não tendo nem a coisa nem o jeito,
dariam tudo para a jeito ter a coisa,
mas sem a coisa se conformam só com o jeito?

Quantos já sem jeito ainda lutam pela coisa?
Quantos, ao sentir que a coisa não tem jeito
vão se agarrando a todo jeito a qualquer coisa ?


Arthur Azevedo (1855/1908), de humor refinado como sempre demonstrava nas peças teatrais, registrou sua marca inconfundível no soneto cobrando brios a TERTULIANO :

Tertuliano, frívolo peralta
que foi paspalhão desde fedelho,
tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
tipo que morto não faria falta.

Lá num dia deixou de andar à malta
e indo a casa do pai, honrado velho,
à sós, na sala, em frente de um espelho,
a própria imagem disse em voz bem alta :

– Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso…
Que mais no mundo se te faz precioso?

Penetrando na sala, o pai sisudo
que por trás da cortina ouvia tudo,
severamente respondeu : – Juízo.


E de que outra maneira um de nossos patronos, o saudoso poeta e compositor Mario Rossi (1911/1981), poderia expressar seu humor se não por meio da cadência de um soneto como fez pelo DIVINO ERRO:

Cansado de curtir o dia-a-dia
sem qualquer atração do Paraíso,
o Criador resolveu que era preciso
sair da fossa e da monotonia.

Com a argila celeste, de improviso,
compôs um alto estudo de estesia,
modelando a mulher, que lhe surgia
com a graça e a malícia de um sorriso.

Previu que ali forjava a sua fama
mas, com o molde ainda inacabado,
sentiu-se exausto e se jogou na cama.

Foi seu erro… o sono foi funesto.
Mefisto, apologista do pecado,
aproveitou a chance… e fez o resto.


Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni http://rauldeleoni.com.br/soneto/

sábado, 12 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 11 –

 


Rubem Braga (O Homem do Mediterrâneo)


Uma tarde, em algum lugar da Grécia.

Curvada para o chão, a velha recolhe as azeitonas e as joga dentro de um cesto. Talvez não seja muito velha, e a fadiga do trabalho a faça parecer menor e mais lenta. Com uma longa vara, o homem de cabelos grisalhos bate os galhos da oliveira. Um burrinho, ali perto, espera a hora de escurecer, de sentir um peso nas costas e marchar lentamente de volta à casa: o homem lhe dará a ordem numa só palavra resmungada.

Talvez em português, talvez em italiano, talvez em grego. Muda pouco a paisagem, mudam pouco as rugas do camponês, as oliveiras têm esse mesmo verde prateado, desfalecido, seja o pé de um convento manuelino, de um arco romano, de umas colunas dóricas abandonadas na planura. Novembro começa: e lentamente, como se o fizessem apenas nas horas de lazer, homens e mulheres começam a colher olivas, apenas de uma árvore ou outra, como na abertura de um rito. Sento-me no chão, à sombra de uma oliveira: o sol se faz subitamente muito claro, quase quente. Eu podia tirar uma fotografia, mas sou um mau turista: fico ali sentado no chão, analfabeto, animal; pensando que eu poderia ser, com esta mesma cara, aquele homem de cabelos grisalhos; e aquela mulher que se curva para a terra, de pano na cabeça, poderia ser minha mulher; e eu poderia estar repetindo lentamente, na mesma faina de sempre, o mesmo gesto do meu avô, meu bisavô, na mesma terra, junto, quem sabe, à mesma oliveira secular.

Sinto que sou um europeu do Mediterrâneo, me reencarno na rude pele de qualquer antepassado. Se eu ficasse louco neste momento, e perdesse a memória, talvez acabasse a vida nesta aldeia; e, como seria um louco manso, talvez me admitissem lentamente a cuidar da terra, a pastorear as ovelhas, a limpar os vinhedos, a colher azeitonas. Dar-me-iam algum monte de feno onde dormir, ao abrigo do tempo; e, ao cabo, talvez me estimassem, sentindo em mim um dos seus.

Como o Brasil está longe, além dos mares, das gerações! (Mas, mesmo na minha loucura mansa, perdida toda a memória, talvez eu guardasse um certo nome de mulher – e o repetisse baixinho, comigo mesmo, quando, perante um desses mármores lavados pelas chuvas, dourados pelos sóis, eu me lembrasse vagamente da pele de seu corpo e sentisse, talvez, uma confusa, violenta vontade de chorar.)

Fonte:
Correio da Manhã. RJ: 13 jan 1953.

Luiz Otávio (Um Coração em Ternura…) 7: Trovas


AGITAÇÃO
Meu pensamento não para.
Ele não para um momento...
Ai quanta angústia que eu sofro,
devido ao meu Pensamento!…
- - - - - –

A UM VELHO
Eis um pensamento fundo
que te põe entristecido:
— pensar no pouco que foste,
e o que querias ter sido...
- - - - - –

AURORA....
Na despedida sê forte!
Estóico em tua partida!
Deves encarar a Morte
como aurora de outra vida.
- - - - - –

COMPARAÇÃO
A Virtude que flutua
entre vícios, faz lembrar;
— um raio puro de lua
no lodo imundo a brilhar...
- - - - - -

DEDICATÓRIA
Para você, amor,
visão do Céu tão querida,
pelo carinho e esplendor,
que veio dar a uma vida...
- - - - - –

DESATINO
Se pudesses, o Destino,
de teu filhinho saber,
juravas — em desatino —
nunca mais um filho ter.
- - - - - –

ENSINAMENTOS
Na Vida fui aprendendo,
o que ela foi me ensinando;
que eu duvidasse, mas crendo...
e confiasse duvidando…
- - - - - -

ESQUISITO...
Às vezes, uma emoção
que na minh'alma se aninha,
não cabe bem num Poema...
…Mas cabe numa quadrinha.
- - - - - –

FICAREI
Dentro em pouco partirei,
mas não vou de todo não.
Deixo contigo minh’alma.
e também meu coração...
- - - - - -

FIM DE LINHA
Há tanta Estrada na Vida!
Dá tantas voltas a Sorte!
Mas o fim é sempre o mesmo
o ponto final da Morte!
- - - - - -

GRÃO DE AREIA
Uma ilusão quando nasce,
põe toda a noss’alma cheia...
— Só depois quando ela morre
vemos que foi grão de areia.
- - - - - –

IMAGEM
Olhando a melancolia
que tu trazias no olhar,
lembrei-me da lua fria
sobre uma campa a brilhar.
- - - - - –

INTRADUZÍVEIS
Há dores intraduzíveis,
que ferem a alma no fundo....
Só quem sente as compreende...
E mais ninguém neste Mundo...
- - - - - –

INÚTIL
A tua corrida cessa!
Não lucrarás a correr...
Para que tamanha pressa,
se teu final é morrer?!
- - - - - –

LENITIVOS
Uma distração bem fina,
numa tarde assim tão fria,
é ter um rádio em surdina
e um bom livro de Poesia.
- - - - - -

MATAR O TEMPO
“Matar o Tempo"... — Ilusão
que nos vai sempre enganando…
Não se mata o Tempo, não...
ele, sim, nos vai matando...
- - - - - –

PARALELO
Amor — palavra sublime…
Mais sublime do que a dor…
— Se o Sofrimento redime,
não há vida sem amor...
- - - - - –

PESSIMISMO
"Dor maltrata mas não mata!”
Foi sempre o que ouvi dizer…
Porém não sei se é melhor,
viver sofrendo ou morrer!...
- - - - - –

PREMATURAMENTE
Eu, hoje, olhei-me no espelho,
e tive cruel desengano...
— Quantos anos fiquei velho,
no período de um só ano!
- - - - - –

RESIGNAÇÃO
Vi morrer tanta ilusão!
Tantos castelos perdi...
— Não faz mal, pois tenho tudo
do pouco que vem de ti!...
- - - - - –

TORTURA
É bem cruel esta dor,
que me acabrunha, espezinha,
— saber que é meu teu amor,
mas que nunca serás minha...
- - - - - –

TRISTE MOMENTO
Um certo momento existe
de perturbante emoção:
é quando na cova triste,
desce aos poucos um caixão...
- - - - - -

VIOLÃO
Se traduzisses, violão,
minhas mágoas intranquilas,
tuas cordas, de emoção,
partiriam-se ao senti-las...
- - - - - -

ÚLTIMAS TROVAS
Eu tinha um sol dentro em mim,
que estava sempre a brilhar...
Mas vejo que chega o fim...
E o meu sol vai se apagar!
- - - - - –

Para o Fim a vida corre...
Meu Deus que fatalidade!
…Um poeta a mais que morre,
no esplendor da mocidade!…
- - - - - –

Quanto maior a Ventura
a gente possui na vida,
maior também a tortura
e mais triste a despedida..
- - - - - –

Sou de corpo, agora, fraco...
Mas tenho a alma de um forte.
Pois mesmo adorando a Vida,
corajoso enfrento a Morte!

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Estante de Livros (Livros da Comédia Humana, de Honoré de Balzac) 1


A Estalagem Vermelha (1831)

Conto que é umas das primeiras obras que Balzac assinou com seu nome, daí seu clima ainda levemente gótico. Uma das teses do autor é que "na raiz de toda grande fortuna existe um crime" e aqui conta-se como o banqueiro Taillefer construiu a sua. Assim, temos dois médicos que passam a noite numa taverna; um terceito hóspede traz consigo muito dinheiro e aparece morto; todas as provas são contra um dos amigos, que realmente teve a ideia de matá-lo, porém desistiu no último segundo; mesmo assim, aceita sua condenação à morte, pois se sente culpado; sua ideia do assassinato fora transmitida telepaticamente a Taillefer, o outro médico, que é o verdadeiro criminoso e se cala para ficar com a fortuna.

Mas o conto não acaba aí: Balzac empregou uma técnica complexa e inovadora, onde a história é contada pela única pessoa que conhecia a trama, estando presentes, entre outros, Taillefer e seu futuro genro, que o desmacara intimamente graças a um pequeno detalhe.

Daí, o dilema: é imoral aceitar riquezas sabidamente advindas de um ato criminoso?
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A Menina dos Olhos de Ouro (1835)

Esta noveleta é a terceira e última obra do subgrupo "História dos Treze", que também compreende Ferragus ou o Chefe dos Devoradores e A Duquesa de Langeais. Balzac, amante da literatura gótica e do romance histórico, acreditava em transmissão de pensamentos (que ainda não havia obtido o nome definitivo de telepatia), ocultismo, fisiognomia e, praticamente, qualquer outra teoria extra-científica com a qual se deparasse. Além disso, tinha uma queda por sociedades secretas, que aparecem mais de uma vez na Comédia e que são resquícios do que produzia no início de sua carreira.

A Sociedade dos Treze é formada por treze amigos que juraram ajudar uns aos outros sempre que houvesse necessidade. Aqui, o cínico e amoral dândi Henrique de Marsay, personagem donjuanesco caro a Balzac, persegue a misteriosa Paquita Valdés por uma Paris surreal, numa trama complexa, onde nada é muito claro e tudo é surpreendente. Balzac, como autoproclamado "historiador de costumes", não fugia dos tabus de sua época e, com a ousadia que chegou a lhe trazer muitos aborrecimentos, trata aqui do lesbianismo, um tema do qual foi virtualmente o pioneiro.
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A Missa do Ateu (1836)

Um dos contos mais apreciados de Balzac, escrito em uma única noite. O doutor Bianchon, personagem recorrente e a quem o próprio Balzac teria invocado em seu leito de morte, vê seu mestre, o cirurgião Desplein, entrar numa igreja e assistir contrito à missa e distribuir esmolas. Ora, Desplein é conhecido pelo seu ateísmo. Um ano depois, a mesma cena se repete. Curioso, Bianchon interpela-o e recebe uma resposta surpreendente, que coloca em dúvida diversos preceitos religiosos.
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A Obra-Prima Ignorada (1832)

Conto cuja ação se passa no século XVII e que, portanto, não tem ligação com o restante d'A Comédia Humana. Estamos aqui no terreno das artes plásticas, que Balzac tanto prezava. Mestre Frenhofer pinta sua tela, mas nunca se satisfaz com o resultado e põe-se a refazê-la obsessivamente, pois seu desejo é chegar à essência da arte. Contudo, essa sede de perfeição porá tudo a perder, inclusive sua sanidade. É o conceito de que "o pensamento mata o pensador", presente em diversas obras dos Estudos Filosóficos, além desta, como A Procura do Absoluto e A Pele de Onagro. Há suspeitas de que as ideias sobre pintura expostas na história são, na verdade, de Delacroix, grande amigo do autor. Para Paulo Rónai, "esta obra estranha (...) representa, com A Missa do Ateu e A Paz Conjugal, o apogeu alcançado por Balzac no domínio do conto".
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A Pele de Onagro (1831)


Este romance é sua obra mais importante entre aquelas do início da carreira, quando ainda escrevia sob a influência da literatura gótica. Em um clima de pesadelo, esta narrativa simbólica é a história de Rafael de Valentin, que vem a possuir uma pele de onagro. Essa pele misteriosa, cuja origem pode ser oriental, permite a satisfação de todos os desejos, porém vai diminuindo de tamanho, enquanto também diminui o tempo de vida de seu possuidor.

Há vários pontos de contato entre Rafael e Balzac: ambos escreveram um tratado filosófico, o "Tratado da Vontade" (Balzac era adolescente), ambos moraram em sótãos enquanto passavam por privações e ambos tiveram de enfrentar encarniçados credores.

Obra de transição ou aprendizado, há nela dois elementos díspares: a tentativa realista, que ficou em segundo plano, de pintar o retrato fiel de uma mulher manipuladora e a presença do fantástico, representada pelo objeto mágico, que acaba por se impor. Grande sucesso de público à época da publicação, o livro não foi bem visto pela crítica. Contudo, sua importância cresceu com o passar do tempo e hoje, relevando-se alguns defeitos de construção, é visto como sua primeira obra-prima.

Fonte:
Wikipedia

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 10 –

 


Fernando Sabino (Televisão para Dois)


Ao chegar ele via uma luz que se coava por baixo da porta para o corredor às escuras. Era enfiar a chave na fechadura e a luz se apagava. Na sala, punha a mão na televisão, só para se certificar: quente, como desconfiava. Às vezes ainda pressentia movimento na cozinha:

- Etelvina, é você?  

A preta aparecia, esfregando os olhos:  

- Ouvi o senhor chegar... Quer um cafezinho?  

Um dia ele abriu o jogo:  

- Se você quiser ver televisão quando eu não estou em casa, pode ver à vontade.

- Não precisa não, doutor. Não gosto de televisão.  

- E eu muito menos.  

Solteirão, morando sozinho, pouco parava em casa. A pobre da cozinheira metida lá no seu quarto o dia inteiro, sozinha também, sem ter muito que fazer... Mas a verdade é que ele curtia o seu futebolzinho aos domingos, o noticiário todas as noites e mesmo um ou outro capítulo da novela, "só para fazer sono", como costumava dizer:

- Tenho horror de televisão.  

Um dia Etelvina acabou concordando:  

- Já que o senhor não se incomoda...  

Não sabia que ia se arrepender tão cedo: ao chegar da rua, a luz azulada sob a porta já não se apagava quando introduzia a chave na fechadura. A princípio ela ainda se erguia da ponta do sofá onde ousava se sentar muito ereta:

- Quer que eu desligue, doutor?  

Com o tempo, ela foi deixando de se incomodar quando o patrão entrava, mal percebia a sua chegada. E ele ia se refugiar no quarto, a que se reduzira seu espaço útil dentro de casa. Se precisava vir até a sala para apanhar um livro, mal ousava acender a luz:

- Com licença...  

Nem ao menos tinha mais liberdade de circular pelo apartamento em trajes menores, que era o que lhe restava de comodidade, na solidão em que vivia: a cozinheira lá na sala a noite toda, olhos pregados na televisão. Pouco a pouco ela se punha cada vez mais à vontade, já derreada no sofá, e se dando mesmo ao direito de só servir o jantar depois da novela das oito. Às vezes ele vinha para casa mais cedo, especialmente para ver determinado programa que lhe haviam recomendado, ficava sem jeito de estar ali olhando ao lado dela, sentados os dois como amiguinhos. Muito menos ousaria perturbá-la, mudando o canal, se o que lhe interessava estivesse sendo mostrado em outra estação.

A solução do problema lhe surgiu um dia, quando alguém, muito espantado que ele não tivesse televisão em cores, sugeriu-lhe que comprasse uma:

- Etelvina, pode levar essa televisão lá para o seu quarto, que hoje vai chegar outra para mim.

- Não precisava, doutor. - disse ela, mostrando os  dentes, toda feliz.

Ele passou a ver tranquilamente o que quisesse na sua sala, em cores, e, o que era melhor, de cuecas - quando não inteiramente nu, se bem o desejasse.

Até que uma noite teve a surpresa de ver a luz por debaixo da porta, ao chegar. Nem bem entrara e já não havia ninguém na sala, como antes - a televisão ainda quente.

Foi à cozinha a pretexto de beber um copo d'água, esticou um olho lá para o quarto na área: a luz azulada, a preta entretida com a televisão certamente recém-ligada.

- Não pensa que me engana, minha velha - resmungou ele.

Aquilo se repetiu algumas vezes, antes que ele resolvesse acabar com o abuso: afinal, ela já tinha a dela, que diabo. Entrou uma noite de supetão e flagrou a cozinheira às gargalhadas com um programa humorístico.

- Qual é, Etelvina? A sua quebrou?

Ela não teve jeito senão confessar, com um sorriso  encabulado:

- Colorido é tão mais bonito...  

Desde então a dúvida se instalou no seu espírito: não sabe se despede a empregada, se lhe confia o novo aparelho  e traz de volta para a sala o antigo, se deixa que ela assista a  seu lado aos programas em cores.

O que significa praticamente casar-se com ela, pois, segundo a mais nova concepção de casamento, a verdadeira felicidade conjugal consiste em ver televisão a dois.

Fonte:
Os melhores contos de Fernando Sabino. RJ: Record, 1986.

Prof. Garcia (Pantuns) V

PANTUN DA ALMA ARREPENDIDA


Trova tema:
Na praça da minha vida
vi, de joelhos, em vão,
uma ofensa arrependida
pedindo abraço ao perdão...
(José Valdez - SP)


Vi, de joelhos, em vão,
um alguém, que nunca via,
pedindo abraço ao perdão
no altar da Virgem Maria.

Um alguém, que nunca via,
Confessa os pecados seus,
No altar da Virgem Maria,
pedindo perdão a Deus.

Confessa os pecados seus,
por sentir-se angustiada;
pedindo perdão a Deus
vi a pobre alma penada.

Por sentir-se angustiada,
tristonha e arrependida,
vi a pobre alma penada
na praça da minha vida.
****************************************

PANTUN DA ETERNA ILUSÃO

Trova tema:
Foi pela guerra enlutada...
Mas a ilusão de Maria
Fincava os olhos na estrada
Quando a porteira batia!...
(José Messias Braz - MG)


Mas a ilusão de Maria
era ura eterno estribilho;
quando a porteira batia
ela ouvia a voz do filho.

Era um eterno estribilho;
quanto mais a mãe rezava,
ela ouvia a voz do filho
que da guerra não voltava.

Quanto mais a mãe rezava,
mais sentia entre os arcanjos
que da guerra não voltava,
que o filho estava entre os anjos.

Mais sentia entre os arcanjos
já chegando ao fim da estrada,
que o filho estava entre os anjos,
Foi pela guerra enlutada!...
****************************************

PANTUN DA PEDRA ESCONDIDA

Trova tema:
Nas ruas da minha vida
quantas pedras eu saltei,
mas a pequena escondida...
Foi nela que eu tropecei!
(Vera Maria Bastos Braz - MG)


Quantas pedras eu saltei,
na menor de todas elas,
foi nela que eu tropecei
em meio a pedras tão belas,

Na menor de todas elas,
eu vi um brilho tão forte,
em meio a pedras tão belas
há nela, o brilho da sorte.

Eu vi um brilho tão forte,
e essa luz, eu não renego,
há nela, o brilho da sorte
da velha cruz que carrego,

E essa luz, eu não renego,
eis a forma desmedida,
da velha cruz que carrego
nas ruas de minha vida!
****************************************

PANTUN DE ELEVADA PRECE

Trova tema;
Na aurora de cada dia,
a Deus elevo uma prece:
- Pai, enchei de poesia
nosso povo que padece!

(Joamir Medeiros – RN)


A Deus elevo uma prece:
ó Pai, salvai por favor,
nosso povo que padece
por falta de pão, de amor.

O Pai, salvai por favor,
os excluídos do afeto,
por falta de pão, de amor,
vivem sem lar e sem teto.

Os excluídos do afeto,
não têm voz, nem têm razão,
vivem sem lar e sem teto
ante a cruel exclusão.

Não têm voz, nem têm razão,
por berço, a melancolia,
ante a cruel exclusão
na aurora de cada dia,
********************************

PANTUN DOS DESAJUSTADOS

Trova tema:
Quando a família é rompida
por atos cegos, tiranos,
deixa destroços de vida,
restos de seres humanos.
(Manoel Cavalcante - RN)


Por atos cegos, tiranos,
por ciúme ou por loucura,
restos de seres humanos
são sobras da desventura.

Por ciúme ou por loucura,
as decisões mal tomadas,
são sobras da desventura
de vidas abandonadas.

As decisões mal tomadas,
as vezes gera a desgraça
de vidas abandonadas
jogadas no chão da praça.

As vezes gera a desgraça
das almas cheias de vida,
jogadas no chão da praça
quando a família é rompida.
****************************************

PANTUN DOS MARES DA VIDA

Trova tema:
Singrei mares de agonia,
lutei contra vendavais,
para achar a calmaria
que só encontro em teu cais.
(Lisete Johnson - RS)


Lutei contra vendavais,
tentando encontrar alguém,
que só encontro em teu cais,
e no cais de mais ninguém.

Tentando encontrar alguém,
procuro por todo canto;
e no cais de mais ninguém,
ninguém verá mais meu pranto.

Procuro por todo canto,
esse alguém, que disse adeus;
ninguém verá mais meu pranto
no pranto dos olhos meus.

Esse alguém que disse adeus,
me fez sofrer todo dia;
no pranto dos olhos meus,
singrei mares de agonia.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Inglês de Souza (A Feiticeira)


 Chegou a vez do velho Estevão, que falou assim:

“ - O tenente Antônio de Sousa era um desses moços que se gabam de não crer em nada, que zombam das coisas mais sérias e riem dos santos e dos milagres. Costumava dizer que isso de almas do outro mundo era uma grande mentira, que só os tolos temem o lobisomem e feiticeiras. Jurava ser capaz de dormir uma noite inteira dentro do cemitério, e até de passear às dez horas pela frente da casa do judeu, em sexta-feira maior.

“Eu não lhe podia ouvir tais leviandades em coisas medonhas e graves sem que o meu coração se apertasse, e um calafrio me corresse a espinha. Quando a gente se habitua a venerar os decretos da Providência, sob qualquer forma que se manifestem, quando a gente chega à idade avançada em que a lição da experiência demonstra a verdade do que os avós viram e contaram, custa ouvir com paciência os sarcasmos com que os moços tentam ridicularizar as mais respeitáveis tradições, levados por uma vaidade tola, pelo desejo de parecerem espíritos fortes, como dizia o dr.  Rebelo. Peço sempre a Deus que me livre de semelhante tentação. Acredito no que vejo e no que me contam pessoas fidedignas, por mais extraordinário que pareça. Sei que o poder do Criador é infinito e a arte do inimigo varia.

“Mas o tenente Sousa pensava de modo contrário!

“Apontava à lua com o dedo, deixava-se ficar deitado quando passava um enterro, não se benzia ouvindo o canto da mortalha, dormia sem camisa, ria-se do trovão! Alardeava o ardente desejo de encontrar um curupira, um lobisomem ou uma feiticeira. Ficava impassível vendo cair uma estrela e achava graça ao canto agoureiro do acauã, que tantas desgraças ocasiona. Enfim, ao encontrar um agouro, sorria e passava tranquilamente sem tirar da boca o seu cachimbo de verdadeira espuma do mar.

“- Quereis saber uma coisa? Filho meu não frequentaria esses colégios e academias onde só se aprende o desrespeito da religião. Em Belém, parece que todas as crenças velhas vão pela água abaixo. A tal civilização tem acabado com tudo que tínhamos de bom. A mocidade imprudente e Leviana afasta-se dos princípios que os pais lhe incutiram no berço, lisonjeando-se duma falsa ciência que nada explica, e a que, mais acertadamente, se chamaria charlatanismo. Os maus livros, os livros novos, cheios de mentiras, são devorados avidamente. As coisas sagradas, os mistérios são cobertos de motejos, e, em uma palavra, a mocidade hoje, como o tenente Sousa, proclama alto que não crê no diabo (salvo seja, que lá me escapou a palavra!), nem nos agouros, nem nas feiticeiras, nem nos milagres. É de se levantarem as mãos para os céus, pedindo a Deus que não nos confunda com tais ímpios!

“O infeliz Antônio de Sousa, transviado por esses propagadores do mal, foi vítima de sua leviandade ainda não há muito tempo. Tendo por falta de meios abandonado o estudo da medicina, veio Antônio de Sousa para a província em 1871 e conseguiu entrar como oficial do corpo de polícia. No ano seguinte, era promovido ao posto de tenente e nomeado delegado de Óbidos, onde antes nunca tivera vindo.

“O seu gênio folgazão, a sua urbanidade e delicadeza para com todos, o seu respeito pela lei e pelo direito do cidadão faziam dele uma autoridade como poucas temos tido. Seria um moço estimável a todos os respeitos, se não fora a desgraçada mania de duvidar de tudo, que adquirira nas rodas de estudantes e de gazeteiros do Rio de Janeiro e do Pará.

“Desde que lhe descobri esse lastimável defeito, previ que não acabaria bem. Ides ver como se realizaram as minhas previsões.

“Em princípio de fevereiro de 1873, por ocasião do assassinato de João Torres, no Paranamiri de cima, Antônio de Sousa para ali partiu, em diligência policial. Realizada a prisão do criminoso, a convite do Ribeiro, que é o maior fazendeiro do Paranamiri, resolveu o tenente delegado Lá passar alguns dias, a fim de conhecer, disse ele, a vida íntima do lavrador da beira do rio.

“Não vos descreverei o sítio do tenente Ribeiro, porque ninguém há em Óbidos que o não conheça, principalmente daquela grande demanda que ele venceu contra Miguel Faria, por causa das terras do Uricurizal.

“Basta lembrar que todos os cacauais do Paranamiri comunicam entre si por uma vereda mal determinada, e que é fácil percorrer uma grande extensão do caminho, vindo de sítio em sítio até a costa fronteira à cidade.

“Antônio de Sousa passava o tempo a visitar os sítios de cacau, conversando com os moradores, a quem ouvia casos extraordinários, ali sucedidos e zombando das crenças do povo. Como lhe falassem muitas vezes da Maria Mucoim, afamada feiticeira daqueles arredores, mostrava grande curiosidade de a conhecer. Um dia em que caçava papagaios, com Ribeiro, contou o desejo que tinha de ver aquela célebre mulher, cujo nome causa o maior terror em todo o distrito.

“O Ribeiro olhou para ele, admirado, e depois de uma pausa disse:

“- Como? Não conhece a Maria Mucoim? Pois olhe, ali a tem.

“E apontou para uma velha que, a pequena distância deles, apanhava galhos secos.

“O tenente Sousa viu na Maria Mucoim uma velhinha magra, alquebrada, com uns olhos pequenos, de olhar sinistro, as maçãs do rosto muito salientes, a boca negra, que, quando se abria num sorriso horroroso, deixava ver um dente, um só! comprido e escuro. A cara cor de cobre, os cabelos amarelados presos ao alto da cabeça por um trepa-moleque de tartaruga tinham um aspecto medonho que não consigo descrever. A feiticeira trazia ao pescoço um cordão sujo, de onde pendiam numerosos bentinhos, falsos, já se vê, com que procurava enganar ao próximo, para ocultar a sua verdadeira natureza.

“Quem não reconhece à primeira vista essas criaturas malditas que fazem pacto com o inimigo e vivem de suas sortes más, permitidas por Deus para castigo dos nossos pecados?

“A Maria Mucoim, segundo dizem más línguas (que eu nada afirmo nem quero afirmar, pois só desejo dizer a verdade para o bem-estar da minha alma), fora outrora caseira do defunto padre João, vigário de Óbidos. Depois que o reverendo foi dar contas a Deus do que fizera cá no mundo (e severas deviam ser, segundo se dizia), a tapuia retirou-se para o Paranamiri, onde, em vez de cogitar em purgar os seus grandes pecados, começou a exercer o hediondo ofício que sabeis, naturalmente pela certeza de já estar condenada em vida.

“Quem nada pode esperar do céu, pede auxílio às profundas do inferno. E se isto digo, não por leviandade o menciono. Pessoas respeitáveis afirmaram-me ter visto a tapuia transformada em pata, quando é indubitável que a Mucoim jamais criou aves dessa espécie.

“Mas o Antônio de Sousa é que não acreditava nessas toleimas. Por isso atreveu-se a caçoar da feiticeira:

“- Então, tia velha, é certo que você tem pacto com o diabo? (Lá me escapou a palavra maldita, mas foi para referir o caso tal como se passou. Deus me perdoe.)

“A tapuia não respondeu, mas pôs-se a olhar para ele com aqueles olhos sem luz, que intimidam aos mais corajosos pescadores da beira do rio.

“O rapaz insistiu, admirando o silêncio da velha.

“- É certo que você é feiticeira?

“O demônio da mulher continuou calada e levantando um feixe de lenha, pôs-se a caminhar com passos trôpegos.

“O Sousa impacientou-se:

“- Falas ou não falas, mulher do...?

“Como moço de agora, o tenente gastava muito o nome do inimigo do gênero humano.

“Os lábios da velha arregaçaram-se, deixando ver o único dente. Ela lançou ao rapaz um olhar longo, longo que parecia querer traspassar-lhe o coração. Olhar diabólico, olhar terrível, de que Nossa Senhora nos defenda, a mim e a todos os bons cristãos.

“O riso murchou na boca de Antônio de Sousa. A gargalhada próxima a arrebentar ficou-lhe presa na garganta, e ele sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias. O seu olhar sarcástico e curioso submeteu-se à influência dos olhos da feiticeira. Quiçá pela primeira vez na vida soubesse então o que era medo.

“Mas não se mostrou vencido, que de rija têmpera de incredulidade era ele. Começou a dirigir motejos de toda espécie à velha, que se retirava lentamente, curvada e trôpega, parando de vez em quando e voltando para o moço o olhar amortecido. Este, conseguindo afinal soltar o riso, dava gargalhadas nervosas que assustavam aos japiins e afugentavam as rolas das moitas do cacaual. Louca e imprudente mocidade!

“Quando a Maria Mucoim desapareceu por detrás dos cacaueiros, o Ribeiro tornou o braço do hóspede e obrigou-o a voltar para a casa. No caminho ainda deram alguns tiros, mas de caça nem sinal, pois se em algum animal acertou o chumbo foi num dos melhores cães do Ribeiro que ficou muito penalizado e viu logo que aquilo era agouro. O Ribeiro, apesar das ladroeiras que todos lhe atribuem, é homem crente e de bastante siso.

“Quando chegaram à casa de vivenda, seriam seis horas da tarde. Ribeiro exprobou com brandura ao amigo o que fizera à feiticeira, mas o desgraçado rapaz riu-se, dizendo que iria no dia seguinte visitar a tapuia. Debalde o dono do sitio tentou dissuadi-lo de tão louco projeto, não o conseguiu.

“Era de mais a mais esse dia uma sexta-feira.

“Antônio de Sousa, depois de ter passado toda a manhã muito agitado, armou-se de um terçado americano e abalou para o cacaual.

“A tarde estava feia. Nuvens cor de chumbo cobriam quase todo o céu. Um vento muito forte soprava do lado de cima, e o rio corria com velocidade, arrastando velhos troncos de cedro e periantàs enormes onde as jaçanãs soltavam pios de aflição. As aningas esguias curvavam-se sobre as ribanceiras. Os galhos secos estalavam e uma multidão de folhas despegava-se das árvores para voar ao sabor do vento. Os carneiros aproximavam-se do abrigo, o gado mugia no curral, bandos de periquitos e de papagaios cruzavam-se nos ares em grande algazarra. De vez em quando, dentre as trêmulas aningas saía a voz solene do unicórnio. Procurando aninhar-se, as fétidas ciganas aumentavam com o grasnar corvino a grande agitação do rio, do campo e da floresta. Adiantavam os sapos dos atoleiros e as rãs dos capinzais o seu concerto noturno alternando o canto desenxabido.

“Tudo isso viu e ouviu o tenente Sousa do meio do terreiro, logo que transpôs a soleira da porta, mas convencerá a um espírito forte a precisão dos agouros que nos fornece a maternal e franca natureza?

“Antônio de Sousa internou-se resolutamente no cacaual. Passou sem parar nos sítios que lhe ficavam no caminho, e os cães de guarda, saindo-lhe ao encontro, não o conseguiram arrancar à profunda meditação em que caíra.

“Eram seis horas quando chegou à casa da Maria Mucoim, situada entre terras incultas nos confins dos cacauais da margem esquerda. E, segundo dizem, um sítio horrendo e bem próprio de quem o habita.

“Numa palhoça miserável, na narrativa de pessoas dignas de toda a consideração, se passavam as cenas estranhas que firmaram a reputação da antiga caseira do vigário. Já houve quem visse, ao clarão de um grande incêndio que iluminava a tapera, a Maria Mucoim dançando sobre a cumeeira danças diabólicas, abraçada a um bode negro, coberto com um chapéu de três bicos, tal qual como ultimamente usava o defunto padre. Alguém, ao passar por ali a desoras, ouviu o triste piar do murucututu, ao passo que o sufocava um forte cheiro de enxofre. Alguns homens respeitáveis que por acaso se acharam nos arredores da habitação maldita, depois de noite fechada, sentiram tremer a terra sob os seus pés e ouviram a feiticeira berrar como uma cabra.

“A casa, pequena e negra, compõe-se de duas peças separadas por uma meia parede, servindo de porta interior uma abertura redonda, tapada com um topé velho. A porta exterior é de japá, o teto de pindoba, gasta pelo tempo, os esteios e caibros estão cheios de casas de cupim e de cabas.

“Sousa encontrou a velha sentada à soleira da porta, com queixo metido nas mãos, os cotovelos apoiados nas coxas, com o olhar fito num bem-te-vi que cantava numa embaubeira. Sob a influência do olhar da velha, o passarinho começou a agitar-se e a dar gritinhos aflitivos. A feiticeira não parecia dar pela presença do moço que lhe bateu familiarmente no ombro:

“- Sou eu - disse. - Lembra-se de ontem?

“A velha não respondeu. Antônio de Sousa continuou depois de pequena pausa:

“- Venho disposto a tirar a limpo as suas feitiçarias. Quero saber como foi que conseguiu enganar a toda esta vizinhança. Hei de conhecer os meios de que se serve.

“Maria Mucoim abaixou a cabeça, como para esconder um sorriso, e com voz trêmula e arrastada, respondeu:

“- Ora me deixe, branco. Vá-se embora, que é melhor.

“- Não saio daqui sem ver o que tem em casa.

“E o atrevido moço preparava-se para entrar na palhoça, quando a velha, erguendo-se de um jato, impediu-lhe a passagem. Aquele corpo, curvado de ordinário, ficou direito e hirto. Os pequenos olhos, outrora amortecidos, lançavam raios. Mas a voz continuou lenta e arrastada:

“- Não entre, branco, vá-se embora.

“Surpreso, o tenente Sousa estacou, mas logo, recuperando a calma, riu-se e penetrou na cabana. A feiticeira seguiu-o. Como nada visse o rapaz que lhe atraísse a atenção no primeiro compartimento, avançou para o segundo, separado daquele pela abertura redonda, tapada com um topé velho. Mas aí a resistência que a tapuia ofereceu à sua ousadia foi muito mais séria. Colocou-se de pé, crescida e tesa, à abertura da parede, e abriu os braços, para impedir-lhe com o corpo a indiscreta visita. Esgotados os meios brandos, Antônio de Sousa perdeu a cabeça, e, exasperado pelo sorriso horrendo da velha, pegou-a por um braço, e, usando toda a força do seu corpo robusto, arrancou-a dali e atirou-a ao meio da sala de entrada. A feiticeira foi bater com a fronte no chão, soltando gemidos lúgubres.

“Antônio arrancou a esteira que fechava a porta e penetrou no aposento, seguido da velha, de rastos, pronunciando palavras, dente negro num riso convulso e asqueroso.

“Era um quarto singular o quarto de dormir de Maria Mucoim. Ao fundo, uma rede rota e suja; a um canto, um montão de ossos humanos; pousada nos punhos da rede, uma coruja, branca como algodão, parecia dormir; e ao pé dela, um gato preto descansava numa cama de palhas de milho. Sobre um banco rústico, estavam várias panelas de forma estranha, e das traves do teto pendiam cumbucas rachadas, donde escorria um líquido vermelho parecendo sangue. Um enorme urubu, preso por uma embira ao esteio central do quarto, tentava picar a um grande bode, preto e barbado, que passeava solto, como se fora o dono da casa.

“A entrada de Antônio de Sousa causou um movimento geral. O murucututu entreabriu os olhos, bateu as asas e soltou um pio lúgubre. O gato pulou para a rede, o bode recuou até ao fundo do quarto e arremeteu contra o visitante. Antônio, surpreendido pelo ataque, mal teve tempo de desviar o corpo, e foi logo encostar-se à parede, pondo-se em defesa com o terçado que trouxera.

“Foi então que, animada por gestos misteriosos da velha, a bicharia toda avançou com uma fúria incrível. O gato correndo em roda do rapaz procurava morder, fugindo sempre ao terçado. O urubu, solto como por encanto da corda que o prendia, esvoaçava-lhe em torno da cabeça, querendo bicar-lhe os olhos. Parecia-lhe que se moviam os ossos humanos, amontoados a um canto, e que das cumbucas corria sangue vivo. Antônio começou a arrepender-se da imprudência que cometera. Mas era um valente moço, e o perigo lhe redobrava a coragem. Num lance certeiro, conseguiu ferir o bode no coração, ao mesmo tempo que dos lábios lhe saía inconscientemente uma invocação religiosa.

“- Jesus, Maria!

“O diabólico animal deu um berro formidável e foi recuando cair sem vida sobre um monte de ossos; ao mesmo tempo o gato estorceu-se em convulsões terríveis, e o urubu e a coruja fugiram pela porta aberta.

“A Mucoim, vendo o efeito daquelas palavras mágicas, soltou urros de fera e atirou-se contra o tenente, procurando arrancar-lhe os olhos com as aguçadas unhas. O moço agarrou-a pelos raros e amarelados cabelos e lançou-a contra o esteio central. Depois fugiu, sim, fugiu, espavorido, aterrado. Ao transpor o limiar, um grito o obrigou a voltar cabeça. A Maria Mucoim, deitada com os peitos no chão e a cabeça erguida, cavava a terra com as unhas, arregaçava os lábios roxos e delgados, e fitava no rapaz aquele olhar sem luz, aquele olhar que parecia querer traspassar-lhe o coração.

“O tenente Sousa, como se tivesse atrás de si o inferno todo, pôs-se a correr pelos cacauais. Chovia a cântaros. Os medonhos trovões do Amazonas atroavam os ares; de minuto em minuto relâmpagos rasgavam o céu. O rapaz corria. Os galhos úmidos das árvores batiam-lhe no rosto. Os seus pés enterravam-se nas folhas molhadas que tapetavam o solo. De quando em quando, ouvia o ruído da queda das árvores feridas pelo raio ou derrubadas pelo vento, e cada vez mais perto o uivo de uma onça faminta. A noite era escura. Só o guiava a luz intermitente dos relâmpagos. Ora batia com a cabeça em algum tronco de árvore, ora os cipós amarravam-lhe as pernas, impedindo-lhe os passos.

“Mas ele ia prosseguindo sem olhar para trás, porque temia encontrar o olhar da feiticeira, e estava certo de que o seguia uma legião de seres misteriosos e horrendos.

“Quando chegou ao sítio do Ribeiro, molhado, roto, sem chapéu e sem sapatos, todos dormiam na casa. Foi direto à porta do seu quarto, que dava para a varanda, empurrou-a, entrou, e atirou-se ao fundo da rede, sem ânimo de mudar de roupa. O desgraçado ardia em febre. Esteve muito tempo de olhos abertos, mas em tal prostração que nem pensava, nem se movia.

“De repente, ouviu um leve ruído por baixo da rede e despertou da espécie de letargo em que caíra. Pôs um pé fora, procurando o chão, mas sentiu uma umidade. Olhou e viu que o quarto estava alagado. Levantou-se apressado. A água vinha enchendo o quarto, forçando a porta. Assustado, correu para fora.

“Um grito chegou-lhe aos ouvidos:

“- A cheia!

Um espetáculo assombroso ofereceu-se-lhe à vista. O Paranamiri transbordava. O sítio do Ribeiro estava completamente inundado, e a casa começava a sê-lo. Os cacauais, os aningais, as laranjeiras iam pouco a pouco mergulhando. Bois, carneiros e cavalos boiavam ao acaso, e a cheia crescia sempre. A água não tardou em dar-lhe pelos peitos. O delegado quis correr, mas foi obrigado a nadar. A casa inundada parecia deserta, só se ouviam o ruído das águas e, ao longe, aquela voz:

“- A cheia!

“Onde estariam o tenente Ribeiro e a família? Mortos? Teriam fugido, abandonando o hóspede à sua infeliz sorte? Onde salvar-se, se as águas cresciam sempre, e o delegado já começava a sentir-se cansado de nadar. Nadava, nadava. As forças começavam a abandoná-lo, os braços recusavam-se ao serviço, cãibras agudas lhe invadiam os pés e as pernas. Onde e como salvar-se?

“De súbito viu aproximar-se uma luzinha e logo uma canoa, dentro da qual lhe pareceu estar o tenente Ribeiro. Pelo menos era dele a voz que o chamava.

“- Socorro! - gritou desesperado o Antônio de Sousa, e, juntando as forças num violento esforço, nadou para a montaria, salvação única que lhe restava, no doloroso transe.

“Mas não era o tenente Ribeiro o tripulante da canoa. Acocorada à proa da montaria, a Maria Mucoim fitava-o com os olhos amortecidos, e aquele olhar sem luz, que lhe queria traspassar o coração...”

Uma gargalhada nervosa do dr. Silveira interrompeu o velho Estevão neste ponto da sua narrativa.

Fonte:
Inglês de Souza. Contos Amazônicos. Publicado em 1893.

O Soneto – Parte 5

texto de José Roberto Gullino para a Casa Raul de Leoni
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Considero a feitura de um poema como a escultura da prosa e da palavra. Como um arquiteto que projeta sua planta com detalhes de beleza, elegância e suavidade – assim é o poeta – um arquiteto do verbo que precisa transformar a prosa em poesia, combinando e esquematizando o ritmo, harmoniosamente, em cada palavra e detalhe, para maior valorizar seu trabalho, com temas sempre elevados e impactantes. Não sei se consigo atingir tais objetivos em meus trabalhos, mas são dois pontos distintos: a maneira de ver e apreciar o belo pode, muito bem, não se coadunar com a habilidade de transmiti-lo e de executá-lo, já que, para se admirar um bonito quadro, não há necessidade de, obrigatoriamente, saber-se pintar.

Cada um tem o direito de possuir seu estilo – tanto o pintor, como o compositor ou o escultor, tem cada um o seu traço próprio – e por que o poeta não poderá ter o seu também? E é como disse o escritor contemporâneo Fernando Jorge: “Poesia é acústica, ressonância de nossas emoções”. Mas a realidade é que, mesmo aqueles que repudiam o soneto, disfarçadamente, caem em tentação e se entregam nos braços do soneto e no afago da metrificação, mas somente na intimidade das alcovas, sem alarde, silenciosamente, escondidos de seus colegas para não demonstrar uma fraqueza “pecaminosa” e não macular a bandeira desfraldada. Como cita Vasco de Castro Lima, muitos dos grandes adeptos da semana de ´22, capitularam, submergindo às tentações do soneto: Menoti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Jorge de Lima e tantos outros, inclusive Drummond, também pecou, ao tentar reatar seu namoro com o soneto, após a Semana de Arte Moderna – mas pelo que tudo indica, não se entenderam muito bem.

Assim, não consigo alcançar a intenção de alguns poetas por quererem modernizá-lo. Se a poesia livre é, realmente, livre, por que imprensá-la em dois quartetos e dois tercetos, submetendo-a a tal regra e sacrifício, somente para defini-la como soneto? Para mim é incoerência.

A rigor, todo sonetista sente-se agredido com as críticas infundadas e o rancor pela metrificação, o que não fica restrito aos comentários de certos poetas ou o descaso da mídia, detalhes de somenos importância. O grave mesmo, é a opinião externada por alguém como Antonio Houaiss e Luis Carlos Lima, que lhe concedem uma profunda conotação pejorativa, com um radicalismo exacerbado, como foi mostrado por Houaiss no prefácio do livro “Reunião”, de ´68, de Drummond, quando ocupa 25 páginas para provar – se repetindo sempre – o valor do poeta, numa autêntica tautologia emocional. E entre tantos “conceitos” firmados por Houaiss, o texto classifica como “cegos” os que não apreciem a poesia de Drummond e a certa altura transcreve (apoiando) a visão de Luis Costa Lima que, por sua vez, faz eco a Otto Maria Carpeaux :

E Drummond é o maior e último poeta modernista. Quem ainda considera a poesia como enfeite decorativo, não pode compreender o poeta cuja matéria é a vida presente. Quem aprecia nos versos a harmonia artificial dos ritmos e das rimas, não admitirá que na vida a dissonância é, conforme Nietzsche, a regra e o acorde a exceção; e que o poeta pode ter todos os privilégios menos o de mentir.”

Bem, não vai aqui qualquer crítica a Drummond, mas vai sim, sobre a observação impertinente do comentário. Mesmo vindo de pessoas respeitadas como Houaiss ou Luis Costa Lima, poema metrificado não é “enfeite decorativo” nem possui “harmonia artificial” como querem demonstrar na nota, nem são “cegos” seus admiradores – o que prova o totalitarismo de opinião, desqualificando-os para tal análise e julgamento. O valor de um poema – como de qualquer prosa – depende do tema abordado, da maneira e do desenvolvimento de seu texto, independente do estilo – isto, obviamente, para simples mortais como nós, não para eles. Assim, o preconceito é evidente, pois não se conformam que ainda haja um segmento tradicional para perturbar a caminhada dos egocêntricos e que provoca um pavor traumático quando, na verdade, para quem se habitua a utilizar a metrificação, o faz com total comodidade, fluidez, facilidade e naturalidade. É somente uma questão de hábito, mas parece que o soneto vem a ser o lobo mau da poesia – provoca um certo pavor a quem dele se aproxime. E Houaiss, criticando a metrificação, está, diretamente, se opondo ao soneto que, sem a métrica, deixa de sê-lo.

Mas o soneto é imorredouro também na visão de Vasco de Castro Lima, autor do livro “O mundo maravilhoso do soneto”, que disse: “O soneto não tem idade! Os sete séculos que conta de existência, não pesam sobre sua vida maravilhosa. Parece que é mesmo definitivo. O mínimo que se pode dizer, é que se trata de um velho-moço de saúde invejável!"

Para mim, poema que agrada é aquele que marca sua passagem por nossa leitura, que grava-se na memória e que, volta e meia, é referência para nossas lembranças, como o trabalho do acadêmico Farid Felix, que não tive a ventura de conhecer, falecido em 2004 em Petrópolis –

… E DEUS DISSE AO POETA

Ao poeta disse Deus: “Vai, peregrino,
e cumpre as tuas árduas caminhadas,
e canta e que teu canto seja um hino,
mas de esperança às almas desoladas.

Vai e canta com teu verbo cristalino,
sejam dias de sol, ou de nevadas,
que este é, na vida amarga, o teu destino:
florir de sonho todas as estradas”.

Apóstolo do sonho e da esperança,
o poeta partiu, em doce calma,
à mercê de borrascas e bonança.

E cantou, e ainda canta aos sóis dispersos,
toda a beleza que lhe brota n’ alma,
e jorra em cataratas dos seus versos.


E para mostrar, mais uma vez, a força e a beleza que o soneto irradia, ainda nos dias de hoje, apesar do desprezo que muitos lhe dão, transcrevo, de outra saudosa acadêmica – Aládia Pereira de Almeida – falecida em 2003 –

SABOR DE VIDA

Eu amo a vida pelo que é a vida,
pela razão mais simples de viver,
sem me importar se árida é a lida,
se há mais dias de dor que de prazer.

Eu amo a vida mesmo na incerteza
do dia em que ela me abandonará;
sem pesar de deixar tanta beleza,
sem pensar, lá no Além, como será.

A vida é boa, é só saber vivê-la,
não desejar brilhar qual uma estrela,
nem também, como um verme se arrastar.

Saber chorar, se a dor nos atormenta,
sorrir, quando a alegria se apresenta,
compreender, esquecer e perdoar.

****************************************
continua…

Fonte:
Texto de José Roberto Gullino disponível na Casa Raul de Leoni http://rauldeleoni.com.br/soneto/

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

José Feldman (Versejando) – 9 –

 


Carina Bratt (Duelos Reversos)


As cenas com as quais sempre nos deparamos, eu e Aparecido, são engraçadas, divertidas, gostosas de serem lembradas, ou apreciadas, a ponto de carecermos estancar os passos para presenciarmos e não só presenciarmos, vivermos cada minuto e meditarmos sobre os seus mais intrincados objetivos.

Como as preciosidades que estamos vendo agora. Neste exato momento, as pessoas por todos os cantos do enorme saguão do aeroporto aqui em Vitória, choram, gritam se abraçam e sonham... São angústias que se renovam, promessas que se reiteram, enquanto uma nuvem de tristeza parece cobrir todo o ambiente tornando-o densamente frio e fora do normal, do  normal claro, considerado corriqueiro.

Nada é mais maçante e chato, cansativo e tenso, enojado e austero, que um recinto denso e frio, justamente na hora em que (como agora) estamos nos preparando para embarcar para algum lugar. Não faz diferença o lugar... Qualquer ponto é um lugar. O importante é chegarmos até ele.

O portão que acessa a sala de embarque é um só e já se abriu. A voz padrão da locutora do alto falante acabou de ultimar a galera para se preparar para cruzar o caminho afunilado que passará pelo detector de metais.

No meio dos que vão e vem, uma menina de mais ou menos cinco anos não está nem aí para o reboliço que se desenrola à sua volta. Ou melhor: ela só tem olhos e atenção voltados para a boneca – quase do seu tamanho – presente surpresa da tia Norma.

A tia Norma (fala tão alto que até um surdo conseguiria escutá-la a um quilômetro) veio se despedir da irmã e entregou, questão de minutos atrás, uma caixa enorme embrulhada em papel presente à sobrinha, antes dela desaparecer no corredor ‘ralo’ que desembocará na porta da aeronave estacionada lá fora, no imenso do pátio.

Chove um pouco. Um senhor de boné cinza na cabeça, lê “Anjos à Mesa”, de Debbie Macomber. Uma jovem cheia de piercing no rosto, o cabelo à expressão de alma penada recém chegada do purgatório conversa animadamente ao celular. Ela me faz recordar Amy Winehouse tentando imitar MontSerrat Caballé cantando     ‘How Can I Go On’, sem o Freddie Mercury.

O quadro, que aqui se me apresenta, no contexto geral, não muda. Em todos os lugares onde chegamos para embarcar (o correto seria, ‘para nos avionarmos’ - embarcar é se fôssemos para dentro de um barco), é sempre idêntico. Nada evoluiu. E por que não evoluiu? Porque com ele, os choros, os gritos, os abraços, os sonhos...

E mil outras inquietações e desolações, como promessas se renovando, abalos afetivos se materializando num emaranhado de beijinhos e abraços salpicados com tapinhas efusivos nas costas, fazem parte do que eu rotularia de ramerrão fastidioso e Aparecido de repetição "nhe-nhe-nhem".

Há um grupo enorme perto da lanchonete do café trocando beijos, os lábios se excitando em protestos de feliz regresso e o amor... Ah, o amor - esse sempre deixando no ar as melosas condescendências da mais plena felicidade.

Me vem à memória, por conta não sei de que Beneditos, a figura da Thammy Miranda beijando a sua querida e doce esposa, a Andressa Ferreira depois de ‘Pra quem você tiraria o chapéu no Programa do Raul Gil’.

Todos ao nosso entorno estão presos às etiquetas de estilo. As antecedências de uma viagem servem para muitas coisas, entre elas, reavivar aqueles afagos e mimos inseparáveis, onde as criaturas se confraternizam dizendo coisas importantes, como ‘eu te amo’, ‘volte logo’, ‘vai com Deus’, ‘não se esqueça de mim’, telefona, etc. etc...

Bravo! Que bom seria se todos seguissem às versatilidades da separação à risca, e com elas, colocassem em prática espontânea estes modelos de boas condutas e procedimentos.

Se ao invés de caras feias, rostos fechados e palavras de pronúncias contumazes, os humanos convergissem para um mesmo ponto, qual seja, aquele ‘objetivo atrelado a uma só finalidade', tudo seria um mar de rosas, um paraíso nos moldes de Adão e Eva.

Faço referência aquele jardim aprazível onde todos viveriam plenamente a Ausência de Conflitos e a Imperturbabilidade do Sossego, em toda a sua essência, juntamente com a Melodia do Esplendoroso se tornando a um só tempo o marco primordial para o recomeço de todas as coisas boas e suntuosas.

Quem sabe o mundo, o nosso mundo fosse menos violento e, do fundo mágico de suas entranhas uma série de civilidades tão comuns como as que presenciamos aqui de dentro deste terminal, florescesse (na sua melhor certeza de harmonia) e, de mãos dadas, seguissem grudadas, num amplexo ainda melhor e mais profundo, onde pudéssemos ver, à visão cristalina (ou a olho nu), o verdadeiro sentido da plenitude da PAZ CELESTIAL!

Certamente o nosso planeta (de roldão, os quadrados que habitamos, as nossas ruas, os nossos prédios, os nossos vizinhos, os nossos trabalhos, as moradas outras onde temos os demais membros da família...) e a nossa breve e corrida passagem aqui pela Terra fosse melhor, mais saudável e menos causticante.

Me pergunto e embora olhe e reolhe para todos ao meu redor, continuo me questionando: será que estou sonhando ou voando alto demais nas minhas divagações? Como voando alto demais?! Meu Pai Eterno, como pode ser isto, se ainda nem sequer embarcamos, perdão, avionamos?!

Fonte:
Texto enviado pela autora do aeroporto Eurico Sales, em Vitória, no Espírito Santo, voando logo para São Luiz do Maranhão.