sexta-feira, 16 de abril de 2021

Luís Fernando Veríssimo (Trapezista)

Querida, eu juro que não era eu. Que coisa ridícula! Se você estivesse aqui — Alô? Alô? — olha, se você estivesse aqui ia ver a minha cara, inocente como o Diabo. O quê? Mas como, ironia? "Como o Diabo" é força de expressão, que diabo. Você acha que eu ia brincar numa hora desta? Alô! Eu juro, pelo que há de mais sagrado, pelo túmulo de minha mãe, pela nossa conta no banco, pela cabeça dos nossos filhos que não era eu naquela foto de carnaval no Cascalho que saiu na Folha da Manhã. O quê? Alô! Alô! Como é que eu sei qual é a foto? Mas você não acaba de dizer... Ah, você não chegou a dizer... ah, você não chegou a dizer qual era o jornal. Bom, bem. Você não vai acreditar mas acontece que eu também vi a foto. Não desliga! Eu também vi a foto e tive a mesma reação. Que sujeito parecido comigo, pensei. Podia ser gêmeo. Agora, querida, nunca, em nenhum momento, está ouvindo? Em nenhum momento me passou pela cabeça a idéia de que você fosse pensar — querida, eu estou até começando a achar graça — que você fosse pensar que aquele era eu. Por amor de Deus. Pra começo de conversa você pode me imaginar de pareô vermelho e colar havaiano, pulando no Cascalho com uma bandida em cada braço? Não, faça-me o favor. E a cara das bandidas! Francamente, já que você não confia na minha fidelidade, que confiasse no meu bom gosto, poxa! O quê? Querida, eu não disse "pareô vermelho". Tenho a mais absoluta, a mais tranquila, a mais inabalável certeza que eu disse apenas "pareô". Como é que eu podia saber que era vermelho se a fotografia não era em cores, certo? Alô? Alô? Não desliga! Não... Olha, se você desligar está tudo acabado. Tudo acabado. Você não precisa nem voltar da praia. Fica aí com as crianças e funda uma colônia de pescadores. Não, estou falando sério.

Perdi a paciência. Afinal, se você não confia em mim não adianta nada a gente continuar. Um casamento deve se... se... como é mesmo a palavra?... se alicerçar na confiança mútua. O casamento é como um número de trapézio, um precisa confiar no outro até de olhos fechados. É isso mesmo. E sabe de outra coisa? Eu não precisava ficar na cidade durante o carnaval. Foi tudo mentira. Eu não tinha trabalho acumulado no escritório coisíssima nenhuma. Eu fiquei sabe para quê? Para testar você. Ficar na cidade foi como dar um salto mortal, sem rede, só para saber se você me pegaria no ar. Um teste do nosso amor. E você falhou. Você me decepcionou. Não vou nem gritar por socorro. Não, não me interrompa.

Desculpas não adiantam mais. O próximo som que você ouvir será do meu corpo se estatelando, com o baque surdo da desilusão, no duro chão da realidade. Alô? Eu disse que o próximo som... que... O quê? Você não estava ouvindo nada? Qual foi a última coisa que você ouviu, coração?

Pois sim, eu não falei — tenho certeza absoluta que não falei — em "pareô vermelho". Sei lá que cor era o pareô daquele cretino na foto. Você precisa acreditar em mim, querida. O casamento é como um número de...

Sim. Não. Claro. Como? Não. Certo. Quando você voltar pode perguntar para o... Você quer que eu jure? De novo? Pois eu juro. Passei sábado, domingo, segunda e terça no escritório. Não vi carnaval nem pela janela. Só vim em casa tomar um banho e comer um sanduíche e vou logo voltar para lá. Como? Você telefonou para o escritório. Meu bem, é claro que a telefonista não estava trabalhando, não é, bem. Ha, ha, você é demais. Olha, querida? Alô? Sábado eu estou aí. Beijo nas crianças. Socorro. Eu disse, um beijo.

Fonte:
Luís Fernando Veríssimo. As mentiras que os homens contam. 
Publicado em 2000.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Adega de Versos 12: Olivaldo Júnior

 

Sammis Reachers (Andrezinho e o batismo de fogo)


Nota do blog:

Sammis Reachers, que adotou o pseudônimo de Ron Letta neste livro, conta sobre histórias divertidas da vida dos Rodoviários, profissão que o autor exerceu em Niterói. Veja mais sobre Sammis após a história.

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André foi por muitos anos cobrador na Ingá, linha 21 (Fonseca x Centro). Trabalhou com o velho Godá, de saudosa memória, Godá que por si só daria um livro como este, de tão grande trapalhão que era. Mas nosso herói de hoje é o André.

Com o passar dos anos e o acúmulo de filhos, o pequeno André passou a considerar que o salário de cobrador estava pequeno para alimentar a tropa. Resolveu então seguir o único caminho que lhe parecia viável: partir para a manobra (escolinha) no objetivo de tornar-se um motorista.

Meses se passaram, e André lá, esforçando-se ao máximo. Por fim, chegou o grande dia de André ter sua "estreia" como motorista. Seria no sereno (horário da madrugada), e sem cobrador: naquela época a empresa havia adquirido os primeiros micro-ônibus. André, como seria natural, estava bastante nervoso. Tudo era motivo de preocupação: o primeiro dia ao volante, o fato de estar sozinho, sem a ajuda de um cobrador, e ainda por cima o horário, em que ele nunca trabalhara: a madrugada. Mas não tinha jeito; eram muitas bocas pra alimentar e todos contavam com ele. E lá foi André pro seu batismo.

Mas todos que já foram ou são rodoviários sabem de uma coisa, que aprenderam provavelmente bem rápido: a rua é o lugar da incerteza. Tudo é possível, e o rodoviário logo aprende que "se está na chuva, é pra se molhar".

Logo em sua segunda viagem, linha 23 (Teixeira de Freitas x Terminal), sai André do terminal rodoviário João Goulart, com o ônibus cheio, em lotação de bancos. Chegando defronte à rodoviária de Niterói, algumas centenas de metros após o terminal, o escaldado André nota uma estranha movimentação próxima ao ponto da rodoviária e a entrada da rua Barão de Amazonas, que fica ao lado da mesma. Para quem não conhece Niterói, fique sabendo: aquela região por trás da rodoviária e ruas adjacentes torna-se, durante a madrugada, uma imensa zona de baixo meretrício, de prostituição.

Ao aproximar-se mais daquele imenso furdunço, André não percebeu que o sinal fechara-se, entretido que estava observando o que ele entendeu serem as "primas". Por sinal, eram muitas delas. André freou em cima da faixa, de forma um pouco brusca. Imediatamente, as meninas (e "meninos" também, pois havia travestis naquela manada) avançaram sobre o veículo.

- Abre aí, seu motorista, me dá uma carona aí!

- Ei gostoso, olha pra mim - disse outra, levantando o curto vestido e mostrando suas "partes".

Ao mesmo tempo, outras foram para a frente do ônibus e começaram a dançar e rebolar. André já estava tenso, e tudo piorou quando alguns dos passageiros, nervosos com aquela bagunça na rua, passaram a incitá-lo:

- Como é que é, seu motorista! Eu tô com minha família aqui!

E um outro berrou:

- Avança o sinal, amigo, vamos sair daqui, olha essa bagunça aí!

O falatório era geral e nada do sinal abrir. Do lado de fora, as primas e travecos só faltavam voar de tão fogosas, rebolando e mostrando suas partes, cismadas com a cara do sofrido André. E nosso herói, encurralado entre a zona de fora e a gritaria de dentro, não sabia o que fazer. Não podia avançar o sinal, não no seu primeiro dia ao volante. Se causasse um acidente, por menor que fosse, estaria na rua.

Aquele breve minuto em que o sinal demorou para reabrir foi o minuto mais longo da vida do pequeno André, que suava frio...

Quando finalmente o sinal abriu, foi com imenso alívio que André conseguiu mover o veículo dali. Respirando fundo, acreditou que o pesadelo ficara somente naquilo, mas estava enganado: Um  dos passageiros ainda teve o desfrute de ligar para a garagem e falar que o bom André "estava dando carona para piranhas e zoando com elas num ônibus cheio de famílias".

No dia seguinte André estava "pegado" (suspenso do trabalho), LOGO EM SEU PRIMEIRO DIA DE MOTORISTA, e teve que ir na garagem da empresa prestar esclarecimentos.

É o que chamamos de batismo de fogo!!!
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SOBRE O AUTOR
Sammis Reachers nasceu em 1978, em Niterói, mas desde sempre morador de São Gonçalo, ambos municípios fluminenses. É poeta, escritor e editor. Autor de nove livros de poesia e três de contos/crônicas, organizador de mais de quarenta antologias e professor de Geografia no tempo que lhe resta - ou vice-versa.

Como autor, publicou:
POESIA
Uma Abertura na Noite (2006).
A Blindagem Azul (2007).
CONTÉM: ARMAS PESADAS (2012).
Poemas da Guerra de Inverno (2012, 2021).
Deus Amanhecer (2013).
PULSÁTIL - Poemas canhestros & prosas ambidestras (2014).
GRÃNADAS (2015).
Poemas de Amor em Trânsito (2018).
Cartas & Retornos (2021).
 
CONTOS/CRÔNICAS
O Pequeno Livro dos Mortos (Letras e Versos, 2015).
RODORISOS - Histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários (2017, 2021).
Renato Cascão e Samy Maluco - Uma dupla do balacobaco (2021).

Leia mais textos do autor (e baixe alguns e-books gratuitos) em:
O Poema Sem Fim - www.opoemasemfim.blogspot.com
Azul Caudal - www.azulcaudal.blogspot.com
Jornal Dafa'- www.jornaldaki.com.br/blog/categorÍes/sammis-reachers
Recanto das Letras: www.recantodasletras.com.br/autores/reachers
Diversas,    das    antologias    gratuitas    que    organizou:
www.linktr.ee/sammisreachers


Fonte:
Ron Letta. Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. 
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) V, pantuns

ECLOSÃO DO AMOR


Trova-tema:

Eu vi o amor eclodindo
Na mensagem de um chamado:
o mar, despido, sorrindo...
O Sol se pondo, apressado.
(Mara Melinni)


Na mensagem de um chamado,
vinha um toque de magia:
O Sol se pondo, apressado,
visto que a noite caía.

Vinha um toque de magia
naquele doce arrebol,
visto que a noite caía,
logo após o adeus do Sol.

Naquele doce arrebol,
quase fiquei de alma nua,
logo após o adeus do Sol,
ao primeiro olhar da Lua.

Quase fiquei de alma nua,
e, num êxtase tão lindo,
ao primeiro olhar da Lua,
eu vi o amor eclodindo.
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ESPERANÇA DISFARÇADA

Trova-tema:

– De ilusões eu fui vivendo...
E a esperança, disfarçada,
viu os meus sonhos morrendo,
mas nunca me disse nada.
(Maria Lúcia Daloce)


E a esperança, disfarçada,
viu que meu mundo caía,
mas nunca me disse nada.
Desprezou-me à revelia.

Viu que meu mundo caía,
não deu nenhuma atenção;
desprezou-me à revelia
(Pobre do meu coração!).

Não deu nenhuma atenção,
e eu, sem perder a esperança,
(Pobre do meu coração!)
como faz toda criança.

E eu, sem perder a esperança,
outros sonhos fui tecendo...
Como faz toda criança,
de ilusões eu fui vivendo.

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MULHER FORMOSA

Trova-tema:

Mulher, joia primorosa,
sinal de vida e de amor,
tens o perfume da rosa
e a formosura da flor.
(Djalma Mota)


Sinal de vida e de amor,
tens no ventre feminino,
e a formosura da flor
marca-te o rosto divino.

Tens no ventre feminino
o dom da humana esperança;
Marca-te o rosto divino
um sorriso de criança.

O dom da humana esperança,
em ti, é santo reflexo:
Um sorriso de criança.
És, de fato, o belo sexo.

Em ti, é santo reflexo
essa fragrância de rosa.
És, de fato, o belo sexo,
mulher, joia primorosa!

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PERSISTÊNCIA NO AMOR

Trova-tema:

Não desista sem tentar,
mesmo se você sofrer;
Liberte a alma pra amar,
não deixe esse amor morrer!
(Eva Yanni)


Mesmo se você sofrer,
na estrada longa e dorida,
não deixe esse amor morrer!
Ele faz parte da vida.

Na longa estrada dorida,
só o amor é essencial.
Ele faz parte da vida;
É a luz do bem contra o mal.

Só o amor é essencial
entre os dons que a gente almeja,
é a luz do bem contra o mal,
por mais difícil que seja.

Entre os dons que a gente almeja
ele é, de fato, sem par...
Por mais difícil que seja,
não desista sem tentar!

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VONTADE DE AMAR

Trova-tema:

Gotas de orvalho na mata,
um cheiro de terra no ar,
o branco véu da cascata,
me dá vontade de amar.
(Carmen Pio)


Um cheiro de terra no ar,
depois de uma noite linda,
me dá vontade de amar
como ninguém viu ainda.

Depois de uma noite linda,
a natureza desperta
como ninguém viu ainda...
Nasce o amor na fonte aberta.

A natureza desperta
sob um sol que Deus conduz;
Nasce o amor na fonte aberta,
surge um bordado de luz.

Sob um sol que Deus conduz,
a flor do sonho desata;
Surge um bordado de luz:
Gotas de orvalho na mata.


Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. 
Natal/RN: CJA Ed., 2014

Contos e Lendas do Mundo (A Quiromante e a Centopeia)

Um dia a centopeia foi consultar uma quiromante. A centopeia queria saber se o seu namorado gostava dela. Na verdade, ela queria saber se o namorado casaria com ela, mas achava que se ele gostasse dela, já era meio caminho andado para o casório.

Daí então a centopeia deu um susto na quiromante, porque a quiromante já tinha lido o futuro em muitas mãos, Já havia visto as linhas do coração, da cabeça e da vida, em centenas de palmas. Mas nunca tinha topado antes com tantas mãos para ler de uma só vez. E muito menos tantas mãos em um só ser.

A quiromante arregaçou as mangas e enfrentou o maior desafio de sua carreira de profissional leitora das linhas das mãos, onde está escrito a verdade.

E leu a primeira mão da centopeia. E viu que o namorado dela casaria com ela sim.

E leu a segunda mão da centopeia. E viu que o namorado da centopeia não casaria com ela.

Acontece que a centopeia chega a ter 170 mãos.

E deu empate. 85 mãos diziam que sim, 85 mãos diziam que não.

Mas a centopeia saiu contente. Preferia acreditar que a metade dos sins era mais forte que a metade dos nãos.

E a quiromante também ficou feliz. Tinha acertado na leitura de todas as mãos da centopeia.

Afinal o futuro é isso mesmo: Metade certezas, metade dúvidas.

Moral da Estória:

Você é quem deve decidir em que acreditar. Por isso acredite sempre mais que vai dar certo.

Academia Formiguense de Letras (Inscrição para novas cadeiras)

EDITAL DE SELEÇÃO PARA COMPOSIÇÃO DE CADEIRAS DA ACADEMIA FORMIGUENSE DE LETRAS (AFL)

Pelo presente Edital de Seleção, a Academia Formiguense de Letras (AFL), em consonância com seu Estatuto Social, torna público e convida todos(as) os(as) interessados(as) em candidatar-se a ocupar uma das suas Cadeiras, nos seguintes termos e condições básicas:

A) 05 Vagas para Acadêmico(a) Efetivo(a)
Requisito: ser residente a no mínimo 5 anos na cidade de Formiga/MG;

B) 03 Vagas para Acadêmico(a) Formiguense Ausente
Requisitos: ser formiguense nato e residir fora de Formiga/MG;

C) 03 Vagas para Acadêmico[a) Correspondente Nacional
Requisitos: ser brasileiro nato ou residente a no mínimo 5 anos no Brasil;

D) 02 Vagas para Acadêmico(a) Correspondente Internacional  Requisitos: Ser estrangeiro nato e residir fora do Brasil;

E) A todos é imprescindível, enviar pelos Correios entre 20/03/2021 e 20/05/2021, conforme abaixo (A/C de Dr. Wilson Figueira, Rua Eni Antonia Ferreira, n. 11, bairro Areias Brancas, CEP: 35570-000, Formiga/MG, Brasil), registrado e/ou via sedex:

1 - Currículo completo, contendo dados, RG, CPF, passaporte [se houver], comprovante de endereço atualizado, profissão, e portfólio com certificados, documentos, foto 3x4, foto de meio corpo, livros publicados, cópias de publicações em mídias, etc,;

2 - Carta de apresentação assinada por no mínimo dois Acadêmicos efetivos da AFL (modelo a ser solicitado por email: pajo121@yahoo.com.br ou afl.presidência@yahoo.com);

3 - Aos agraciados com a aprovação, registramos que os mesmos serão convidados e enviarem um texto de sua autoria para compor a nova Antologia da AFL.

IMPORTANTE: A AFL salienta que aos interessados em ocupar as Cadeiras, há uma joia de posse e mensalidades posteriores, conforme o estatuto.

Observação: A Solenidade de Posse dos selecionados será agendada assim que a situação da Pandemia da C0VID19 assim permitir, ou de forma virtual se necessário.

Formiga/MG, 18 de março de 2021
Paulo José de Oliveira - Diretor Presidente

Maiores informações: Cel/zap: 055 XX (37) 99923.3122 - pajo121@yahho.com.br ou afl.presidência@yahoo.com

Conheça os membros e trabalhos na página do Facebook: https://www.facebook.com/academiaformiguensedeletras/

sábado, 10 de abril de 2021

Adega de Versos 11: Geraldo Amâncio

 

Paulo Mendes Campos (Metido em apuros)

O despertar da montanha

Assim como há quem sofra de insônia, sofro eu de despertar. Meu sono é tão nebuloso, tão viscoso, tão atravessado de assombrações e armadilhas, que me custa o indizível ter de me arrastar desse brejo ancestral para as obrigações do mundo urbano. Existe um poema de Henri Michaux que conta o angustioso renascimento do planeta gasoso em que certas pessoas se transformam depois da viagem noturna.

Enquanto pude, filho ou chefe de família, proibi que me fosse feita qualquer pergunta durante a minha primeira hora de vida cada manhã. Você hoje vai cedo para a cidade? Uma questão à toa como essa, em vez de me puxar para a frente, me empurra de novo para trás, para o pântano primevo, onde se conhece apenas o desconhecimento.

Quer um ovo quente? E eis-me outra vez cadáver que não morreu de todo, um morto ainda emaranhado no pesadelo de ter vivido.

Quando os pequenos foram crescendo (são dois, como no Plebiscito, um menino e uma menina), minha interdição começou a ser desmoralizada. Abro os olhos omissos e, como um cão que estranha o dono, tenho vontade de latir para o mundo. Venho de charnecas nevoentas, venho de desencontros e nada quero. Sou só um pedaço de homem, sem forças para galgar os degraus do dia que se oferece. Já inclinado a regressar para sempre ao meu povoado de fantasmas, de horrores e êxtases, ouço uma voz a pronunciar palavras incompreensíveis. Faço um esforço sem direção. Uma faísca sonora articulou a palavra papai, estilhaçando a treva que vedava a face do abismo. Papai era eu. Abro os olhos e vejo uma carinha que não me é de todo estranha.

Depois de sofrida reflexão, admito que pode ser minha filha. Mas terei uma filha? Desisto de saber. Fujo por um túnel, ando, ando, e reapareço do outro lado, onde a mesma carinha me espera com a sua condenação. Papai. Papai sou eu mesmo, digo para tranquilizar-me. Removo destroços, procuro espancar pelo menos o grosso do nevoeiro, agarro-me ao abajur, ao armário, à persiana, e o homem da caverna consegue emitir uma palavra: Hã! A menina, esperançada, repete a sentença ininteligível:

- Como é que eu distribuo 2 400 litros d'água por três reservatórios, de modo que o primeiro tenha 54 litros mais que o segundo, e este 63 litros mais que o terceiro?

Diante desse enigma é melhor voltar à condição de ameba, mas já é tarde: estou grudado a uma zona intermediária, numa terra de ninguém, entre dois mundos absurdos.

Abre-se um pouco mais a réstia do entendimento, mas o impasse continua. Com ressentido orgulho, confesso: Não sei. A carinha não se afasta e compõe outro enigma, como se fosse possível a gente ignorar uma coisa e saber outra, como se os enigmas todos não constituíssem um único e esmagador enigma:

- Uma livraria manda pagar a uma casa editora de Paris uma fatura de 1 500 francos por intermédio do Banco de Londres.

Suspiro de desespero. A esfinge continua:

- Eu quero saber qual a quantia necessária, em moeda brasileira, se 30 francos valem uma libra, e esta, 48 cruzeiros.

Aquela libra a 48 cruzeiros me tonteia:

- Não sei; pergunte à sua mãe que é inglesa.

Fecho os olhos. (Puxa, papai!) Abro os olhos. Reconheço com uma alegria de bicho inferior que a menina impertinente sumiu. Posso regressar aos meus pampas impalpáveis, às minhas campinas eternas. Mas uma pata de urso me agarra pelos cabelos. Papai. Abro os olhos com relutância e vejo uma cara redonda e resolvida de menino.

- Pai, os músculos formam o que chamamos de carne?

- É claro - respondo sem convicção, só para ficar livre daquela cara de maçã.

- Quais são os símbolos da Pátria?

- Que Pátria?

- Da nossa Pátria, ora bolas!

- Não me lembro de todos.

- Como eram constituídas as bandeiras?

- Mesma coisa de sempre: um pedaço de pano e um pedaço de pau.

- Deixa de ser burro, pai; essa até eu sei: as bandeiras eram constituídas de homens, mulheres, moços, velhos, índios amansados, padres, animais domésticos e bestas de carga.

- Se você sabe, por que está perguntando?

- Queria ver se você é mesmo ignorante.

- Vê se não chateia, Daniel.

Recebo uma patada no ombro e reconheço que perdi o combate: vou nascer de novo. A luz me machuca. Usando todos os meus pseudópodos, rastejo até o chuveiro. A água  faz bem aos animais.

Do outro lado da porta as perguntas também chovem:

- Qual é o antônimo de fervor?

- O barulho do chuveiro não me deixa ouvir.

- Que consequências trágicas sofreu o Brasil na Segunda Grande Guerra Mundial por não possuir estradas?

- Hein? Depois eu conto.

- Movimento de translação é assim ou assim?

- Não posso ver pela porta, não é, Gabriela?

- Como Pedro Álvares Cabral podia saber que tinha chegado na baía Cabrália?

- Engraçadinho!...

- Como era mesmo o nome direito do Caramuru?

- João Ramalho, menina.

- Que João Ramalho, pai!

- Uai, não é não?

- João Ramalho é aquele que ajudou Martim Afonso de Sousa na capitania de São Vicente.

- Ah, isso mesmo: o bacharel de Cananéia.

- Mas eu quero saber é o Caramuru.

- O do Caramuru eu não sei não.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. Balé do pato e outras crônicas.

Mario Quintana em Prosa e Verso – 16 –

 
OBSESSÃO DO MAR OCEANO

Vou andando feliz pelas ruas sem nome...
Que vento bom sopra do Mar Oceano!
Meu amor eu nem sei como se chama,
Nem sei se é muito longe o Mar Oceano...
Mas há vasos cobertos de conchinhas
Sobre as mesas... e moças nas janelas
Com brincos e pulseiras de coral...
Búzios calçando portas... caravelas
Sonhando imóveis sobre velhos pianos...
Nisto,
Na vitrina do bric o teu sorriso,
Antínous,
E eu me lembrei do pobre imperador Adriano,
De su'alma perdida e vaga na neblina...
Mas como sopra o vento sobre o Mar Oceano!
Se eu morresse amanhã, só deixaria, só,
Uma caixa de música
Uma bússola
Um mapa figurado
Uns poemas cheios da beleza única
De estarem inconclusos...
Mas como sopra o vento nestas ruas de outono!
E eu nem sei, eu nem sei como te chamas...
Mas nos encontramos sobre o Mar Oceano,
Quando eu também já não tiver mais Nome
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AO LONGO DAS JANELAS MORTAS

Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!...Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos astros!
Vou dar um tiro neste poema horrível!
Vou apitar chamando os guardas, os anjos.
Nosso Senhor, as prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação,
A minha sede insaciável de não sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai. Cobri com a santa
inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de sonho…
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NO SILÊNCIO TERRÍVEL

No silêncio terrível do Cosmos
Há de ficar uma última lâmpada acesa.
Mas tão baça
Tão pobre
Que eu procurarei, às cegas, por entre
os papéis revoltos,
Pelo fundo dos armários,
Pelo assoalho, onde estarão fugindo
imundas ratazanas,
O pequeno crucifixo de prata
O pequenino, o milagroso crucifixo
de prata que tu me deste um dia
Preso a uma fita preta.
E por ele os meus lábios convulsos chorarão
Viciosos do divino contato da prata fria...
Da prata clara, silenciosa,
divinamente fria - morta!
E então a derradeira luz se apagará de
Todo…
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ELEGIA
 
Há coisas que a gente não sabe nunca
o que fazer com elas...
Uma velhinha sozinha numa gare.
Um sapato preto perdido do seu par:
símbolo
Da mais absoluta viuvez.
As recordações das solteironas.
Essas gravatas
De um mau gosto tocante
Que nos dão as velhas tias,
As velhas tias.
Um novo parente que se descobre.
A palavra "quincúncio".
Esses pensamentos que nos chegam
de súbito
nas ocasiões mais impróprias.
Um cachorro anônimo que resolve ir
seguindo a gente pela madrugada na
cidade deserta.
Este poema, este pobre poema
Sem fim…

Fontes:
O aprendiz de feiticeiro. 1950.
Apontamentos de história sobrenatural. 1976.

XLIV Concurso Literário Felippe D'Oliveira Conto, Crônica e Poesia (Prazo: 30 de abril)


 INSCRIÇÃO


A edição de 2021 tem uma novidade: as inscrições são online. Para se inscrever, após ler atentamente o regulamento (disponível abaixo), siga os seguintes passos:

1) No site da Prefeitura de Santa Maria acesse Área do Usuário. Se você já tem usuário, preencha o login e a senha. Caso não tenha, crie em "criar um cadastro novo";

2) Ao clicar em "serviços", caso você seja um novo usuário, precisará preencher um formulário completo com dados como nome, RG, CPF, endereço e telefone. Após completar este cadastro, clique em "enviar". Após, retorne à página inicial;

3)  Clique novamente em "Serviços". Aparecerá uma tela com os Serviços ao Cidadão. Procure "Secretaria de Cultura" e clique no botão "Inscrição Concurso Felippe D'Oliveira";

4) Preencha a ficha de inscrição e anexe o seu texto no arquivo. O comprovante de residência apenas é necessário para inscrições que concorrem na categoria local.

 REGULAMENTO

A Prefeitura Municipal de Santa Maria, através da Secretaria de Município da Cultura (SMC) promove Concurso Literário Felippe D’Oliveira criado pela Lei Municipal nº1916/77, que visa homenagear a memória do poeta santa-mariense que lhe empresta o nome, bem como estimular produções literárias nas categorias: conto, crônica e poesia com objetivo de revelar novos talentos das letras nacionais.

1 - Participação:

1.1 - Poderão participar do Concurso Literário candidatos de nacionalidade, brasileira residentes no país ou no exterior.

1.2 - Cada participante poderá inscrever-se exclusivamente em uma das categorias: conto, crônica e poesia com um único texto.

1.2.1 - O participante deverá ter um número de conta bancária para possível depósito de premiação.

1.2..2 - Os textos inscritos deverão ser rigorosamente INÉDITOS.

1.2.3 - Os textos deverão ser enviados online através do site da Prefeitura Municipal de Santa Maria na área do usuário link: http://www.santamaria.rs.gov.br/secao/usuario se não for usuário do site deverá efetuar o cadastro e a seguir acessar o menu Serviços - Inscrição Concurso Literário Felippe D Oliveira em um arquivo com a ficha de inscrição preenchida.

1.2.4 - Os participantes classificados em primeiro lugar de cada categoria ficarão impedidos de concorrer nessa mesma categoria pelo período de um (1) ano, a contar da data de premiação.

2 - Inscrição:

2.1 - As inscrições deverão ser realizadas online através do site da Prefeitura Municipal de Santa Maria na área do usuário link: http://www.santamaria.rs.gov.br/secao/usuario se não for usuário do site deverá efetuar o cadastro e a seguir acessar o menu Serviços - Inscrição Concurso Literário Felippe D'Oliveira com o preenchimento do formulário e anexar junto a esta o texto com o título e pseudônimo. Informações pelo e-mail: concursofelippedoliveira.sm@gmail.com

2.2 - O preenchimento da ficha de inscrição deve ser completo e o tema dos textos é de livre escolha do autor.

2.3 - No caso da categoria Poesia o texto não possui delimitação de páginas ou caracteres.

2.4- No caso da categoria Crônica, o texto deverá obedecer a extensão máxima de 5.000 caracteres com espaço.

2.5- Na categoria Conto, o texto deverá obedecer a uma extensão máxima de 12.000 caracteres com espaço.

2.6 - Nesses documentos (TEXTOS) NÃO deverá constar o nome do autor. O pseudônimo é obrigatório e deverá ser colocados logo abaixo do título do texto e alinhado à direita.

2.7- Assim que recebido o mail, a comissão organizadora sinalizará o recebimento com uma mensagem automática.

3 - Seleção:

3.1 - A seleção e premiação dos textos será realizada por uma Comissão Julgadora composta de três (3) membros para cada modalidade, residentes ou não em Santa Maria. A Secretaria de Município da Cultura Esporte e Lazer, solicita a indicação de nomes às instituições e entidades ligadas à área de Letras para compor a comissão Julgadora do Concurso a cada edição.

3.2- A identificação dos concorrentes será feita após a decisão da Comissão Julgadora, quando serão conferidos o título e pseudônimo do texto premiado com os dados da ficha de inscrição que acompanha os textos e os premiados serão informados através de seus emails .

3.3 - O não cumprimento, ou violação de qualquer uma das regras deste regulamento resultarão na desclassificação do participante.

Parágrafo Único - Os textos selecionados deverão ser encaminhados para a Comissão Organizadora do Concurso, via email - concursofelippedoliveira.sm@gmail.com após a publicação do resultado final em documento no formato “.doc”, ou compatível com MS Word, em tamanho 12, na fonte Times New Roman, espaço 1,5 (devendo constar: categoria (conto, crônica ou poesia) - título - nome completo do autor - cidade procedente e o texto)

Obs: Os textos selecionados, nesta versão pós divulgação dos resultados, deverão vir corrigidos de acordo com as novas regras ortográfica da Língua Portuguesa. Sendo assim, a correção do texto, para edição do livro, fica sob a responsabilidade do autor. O livro dos premiados será publicado em forma de e-book.

4 - Premiação:

4.1 - O Primeiro colocado em cada categoria receberá um prêmio no valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) e certificado.

4.2 - Aos candidatos que obtiverem 2º e 3º lugares em cada categoria serão conferidos certificados.

4.3 - Será concedido um Prêmio Cidade de Santa Maria em cada categoria, dirigido exclusivamente a candidatos naturais de Santa Maria ou residentes na cidade há mais de dois (02) anos. Essa premiação somente se dará mediante a apresentação de comprovante de residência ou documentação afim, enviada junto ao e-mail de inscrição.

4.4 - O valor do Prêmio de Incentivo Local será de R$ 2.000,00 (dois mil reais) em cada categoria.

4.5 - A critério da Comissão Julgadora, poderão ser atribuídas ATÉ três (3) Menções Honrosas em cada categoria.

5 - Publicação:

5.1- Os três (3) primeiros textos classificados em cada categoria serão publicados, em forma e data a serem posteriormente anunciadas.

5.2 - Os textos distinguidos com Menção Honrosa poderão também ser publicados.

5.3 - Por ocasião das publicações, os selecionados precisarão assinar documento de cedência de direitos autorais.

5.4 - A entrega dos prêmios será feita em agosto, no Mês da Cultura de Santa Maria e durante a semana do aniversário do poeta Felippe D'Oliveira.

6 - Disposições Gerais:

6.1 - No ato das inscrições, o participante aceitará, implicitamente, todas as disposições deste regulamento.

6.2 - As decisões de seleção e premiação das comissões de cada categoria terão caráter irrecorrível.

7 - Cronograma:

7.1 - Inscrições e Envio dos textos: 5 a 30 de abril de 2021

7.2 - Seleção e classificação: 16 a 30 de maio de 2021

7.3 - Análise dos jurados : 1º de junho a 30 julho de 2021

7.3 - Divulgação do resultado: 3 de agosto de 2021

7.4 - Premiação: 26 de agosto de 2021

Carla Rejane Silva (Ela só queria ser feliz, nada mais...)

Ela queria ser feliz. De qualquer maneira. Feliz! Não sabia como, nem quando, qual dia e qual hora. Ficava então, amuada, aperreada, chateada, sem chão, sem cabeça... As coisas boas não sorriam para seu lado, não ligavam para seu rosto carrancudo, tampouco para o seu eterno ar de preocupação.

Ela queria ser feliz, custasse o que custasse, não importava. Queria, apenas ser feliz. Sair fora de seu “apê”, sentar no banco de pedra em frente à portaria do seu prédio e espiar... Espiar longamente para todos os lados, e depois, para o infinito.

O céu haveria de lhe dar um sinal, um toque, dizer alguma coisa em seu ouvido que lhe fizesse ser feliz. Entretanto, entrava dia, saia noite, entrava noite, saia dia e nada. Absolutamente coisa alguma acontecia. Teria esta ausência de coisas novas a  ver com a pandemia? Qual o quê!

A pandemia não estava nem aí para ela. Ela se cuidava. Usava máscaras, passava álcool em gel. Trocava toda hora de roupas, tomava de quatro a cinco banhos por dia. Nessas lavagens todas, asseava a alma, esfregava as manchas do coração, ensaboava as tristezas  e deixava que tudo o que fosse de ruim e danoso se perdesse pelo ralo as suas infelicidades e ‘desalegrias’.  

Então, aconteceu! A Felicidade chegou. Sorrateira, alegre, e febril, ela chegou.  Sem dizer nada. Simplesmente chegou. Bateu na porta. Uma, duas, vezes. Ela abriu. E quando a porta se escancarou, seu pequeno espaço vazio se fez de um encantamento inebriante.

Seu sorriso voltou, seus olhos se contaminaram com um sorriso  perfeito que invadiu toda a sua alma entristecida. Ela, até então, solitária, dentro da sua solidão oca e vazia, se transmudou.

Tudo ao seu entorno se fez de uma paz acolhedora, bonita, cativa... Envolvente...  E ela, ela se abriu inteira, em festa. E a festa foi tão perfeita, tão fenomenal, que seu coração dançou a noite inteira embalada por uma música que vinha diretamente dos olhos maviosos de Deus.    

Fonte:
Texto enviado por Aparecido R. De Souza

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Moacyr Scliar (Uma casa)

Um homem estava chegando ao fim de sua vida sem ter comprado uma casa. Na segunda-feira tivera um ataque de angina; perguntou ao médico se era grave e quanto tempo lhe restava de vida.

— Quem sabe? — disse o doutor secamente. — Talvez uma hora, talvez dez anos.

O homem se impressionou e pôs-se a pensar, o que não fazia há longo tempo. Porque estava aposentado. Levantava-se, lia o matutino, à tarde, o vespertino, e à noite olhava televisão, coisas que embalavam suavemente seu espírito, sem mobilizá-lo em excesso. Órfão e solteiro, não tinha maiores emoções, nem cuidados. Vivia num quarto, de pensão, e a senhoria — boa mulher — velava por tudo.

Mas então, vê o homem sua vida extinguir-se. Lavando-se, ele observa a água escoar pelo ralo e pensava:

“É assim.” Enxuga o rosto, penteia-se com cuidado. “Ao menos uma casa.” Qualquer coisa: um chalé, um apartamento minúsculo, um porão que seja. Mas morrer em casa. No seu lar.

O corretor imobiliário mostra-lhe plantas e fotografias.

O homem olha, impaciente. Não sabe escolher. Ignora se precisa de dois quartos ou de três. Uma tem até ar-condicionado, porém ele não está seguro de viver até o verão.

De repente, encontra: “Esta aqui. Fico com ela.” É um velho bangalô de madeira; um fóssil, com suas beiradas coloniais e a pintura desbotada.

“É longe...” — pondera o corretor. Longe!.. O homem sorri. Assina o cheque, pega as chaves, toma nota do endereço e sai.

A tarde vem caindo e o homem move-se entre pessoas. Caminha ligeiro e contente: vai mudar-se para a sua casa. Na praça estão os carroceiros. Conversa com um deles em voz baixa, acerta a hora e a paga.

O carroceiro ajuda-o a transportar malas e quadros. E já é noite fechada quando eles se põem a caminho. O homem está silencioso; nem sequer se despediu da dona da pensão. Limitou-se a dar o endereço ao carroceiro e não proferiu mais palavra.

A carroça avança rangendo pelas ruas desertas. Embalado pelo movimento, o homem cochila, e tem sonhos, visões ou lembranças. Canções da infância ecoam longínquas, ele ouve a mãe chamá-lo para o café. As estrelas cintilam na quieta noite de inverno.

— É aqui — resmunga o carroceiro. O homem olha: é a mesma casa que viu na fotografia. Levam as coisas para dentro. Num impulso, o homem agarra a mão do carroceiro, deseja-lhe felicidades. Tem vontade de convidá-lo para entrar, para que tomem juntos o chá; em casa.

Mas não há chá; nem luz. O carroceiro recebe o pagamento e parte, tossindo.

O homem fecha a porta e dá duas voltas à chave. Acende uma vela, estende o colchão no assoalho empoeirado e deita, cobrindo-se com o sobretudo.

As tábuas estalam, ele ouve sussurros. Estão todos aqui, pai, mãe, tia Júlia e até o avô, com seu risinho irônico.

O homem não tem medo; seu coração é um pedaço de couro seco, onde o sangue já não penetra. Bate automático no ritmo de sempre. E então a vela se apaga, ele dorme e já é manhã.

É manhã; mas o sol não surgiu. Ele abre a janela; uma luz fria e cinzenta infiltra-se na sala. Nem é luz de sol, nem é luz de lua. Mas clareia e ele pode ver.

Uma rua passa diante da casa. Um pedaço de rua, que surge do nevoeiro e termina nele. Não há casas; pelo menos, ele não consegue vê-las. Diante do bangalô há um terreno baldio, onde descansa, meio coberto pela vegetação, o esqueleto enferrujado de um velho Ford.

De repente, um animal pula do terreno baldio para a estrada. É um bicho estranho: parece um rato, mas tem quase o tamanho de um cavalo. “Que bicho será?” — pergunta-se o homem, irritado. No ginásio, gostara muito de zoologia. Estudara em detalhe o ornitorrinco e a zebra; os roedores também. Quisera ser zoólogo, profissão que, como o bom senso sobejamente demonstra, não existe.

Esquisita emoção tem o homem ao ver o curioso espécime. E nem bem se recuperara, quando ouve alguém assobiando. Da neblina vem saindo um homem. Um homem baixo e moreno, com cara de índio. Caminha devagar, batendo nas pedras com um cajado; e assobiando sempre.

— Bom-dia!

O nativo não responde; para, ficou olhando e sorrindo.

Um tanto desconcertado, o homem insiste:

— Mora por aqui?

O outro continua a sorrir; murmurou algumas palavras em idioma
bizarro e desaparece.

“É um idioma bizarro” — pensa o homem. Então, é outro país. Bem
que o corretor lhe avisara! Mas isso fora há longo tempo.

O homem corre para o bangalô, sobe as escadas velozmente (“E não me dá angina!”), galga os degraus do torreão e abre a janelinha. Já a névoa se dissipava e ele pode ver. Rios brilhando ao longo das planícies, lagos piscosos, florestas imensas, picos nevados, vulcões fumegantes. Nos portos, as caravelas atracadas, os marinheiros subindo pelos mastros e soltando as bujarronas. E o mar; muito longe.

Nem se escuta o bramir das vagas contra os rochedos.

O homem suspira.

“Sim, é outro país” — pensa — “e tenho de começar de novo”.

Seriam dez horas da manhã — se é que o tempo ainda existia — e a
temperatura estava agradável.

O homem começa tirando o sobretudo.

Fonte:
Moacyr Scliar. Melhores contos. 
(Seleção de Regina Zilbermann) Edição digital: Global, 2012.

Alvitres do Professor Renato Alves - 4 -

30.
Escrita num pequeno cartaz, a trova abaixo foi colocada sobre a urna mortuária de João Freire Filho. Segundo uma de suas irmãs, ela foi feita logo após o seu primeiro AVC, pois ele julgava ter chegado sua hora. Enganou-se, para a nossa alegria, que ainda pudemos desfrutar o tesouro de sua companhia por mais quatro anos. Enganou-se também na modéstia de seu autojulgamento, porque, na realidade, foi um excelente poeta e trovador.
    
Fui poeta... trovador...
Mas não fui tão bom assim!
Por isso, peço o favor
De não chorarem por mim!
João Freire Filho
(21/6/08)

3l.
Em criança, para eu poder ver o desfile dos blocos e Escolas de Samba na Avenida (Nos anos quarenta o carnaval carioca ainda era do povo...), meu pai me punha nos ombros. Para mim, aquilo era um deleite!... Vejam, na trova abaixo, como a sensibilidade do trovador conseguiu captar e traduzir esta sensação tão gostosa!
    
Pra ver o mundo de cima
da lembrança não me sai,
torre alguma se aproxima
do cangote do  meu pai!
Moacyr  Sacramento


32.
Depois de um dia inteiro de indisposição, o poeta José Lucas de Barros quis dar a boa notícia da melhora em sua saúde aos apreensivos trovadores que hospedava na casa de Pirangi. Ainda na cama, ao acordar, fez esta trova para recitá-la no café da manhã. Mesmo improvisada, a trova saiu com ótima qualidade e duas expressivas antíteses: ontem/hoje, compra/venda.
    
Nada de dor nem de tédio,
sinto quase a juventude:
Ontem, comprando remédio;
hoje, vendendo saúde!
José Lucas de Barros


33.
Nesta bela trova, vencedora nos  Jogos Florais de Niterói em 2007,  vejam como a sensibilidade do trovador retoma a metáfora de Deus-poeta, que a cada manhã reescreve o “poema da alvorada” para presentear Seus  filhos.

 De exuberância suprema,
que nos encanta e extasia,
cada alvorada é um poema
que Deus compõe todo dia.
João Costa


34.
O SÍMILE (ou comparação) é uma figura de linguagem semelhante à metáfora, porém bem mais direta. Ela exige apenas o uso claro de uma partícula comparativa (como, qual, tal, etc).   Na trova abaixo, por exemplo, o poeta se compara à cana, da qual se extrai o doce caldo com a “dor” do esmagamento. Assim é também o poeta: quanto mais sofre, mais produz doçura em seus versos...

Veja como o uso desta figura tão simples no 1º verso propiciou a preparação para o achado contido no belo  fecho de ouro dos 3º e 4º versos.

Sou como a cana do engenho...
Quem dera que assim não fosse!
Quanto mais dores eu tenho,
o meu cantar sai mais doce!
Luiz Otávio


35.
A língua é o instrumento de expressão da arte literária e, por consequência, da trova, um de seus gêneros poéticos.  Por isso, a correção gramatical é uma preocupação constante dos trovadores e, às vezes, serve até de tema para a criação de algumas trovas.  

Observem que os erros na pronúncia da palavra “poliglota” e na flexão de plural da palavra “degrau” constituem o ponto central dos achados das trovas humorísticas abaixo:

Sempre contando lorota,
diz que fala até chinês,
e, ao dizer-se “poligrota”,
assassina o português.
Maria Nascimento S. Carvalho

"CUIDADO COM OS DEGRAIS!"
- dizia o aviso ao freguês.
E ninguém tropeçou mais...
A não ser no português!
Renato Alves


36.
Calmamente vem o rio deslizando em seu leito... De repente, suas águas agitam-se, tornam-se esbranquiçadas, e ele despenca em queda livre, oferecendo-nos um imponente espetáculo visual como um véu de noiva. Mais adiante, retoma a calma e continua tranquilamente a fluir no seu curso... Esta é a descrição de uma cena linda, mas prosaica, como qualquer pessoa comum a vê.

Observemos, agora, como a sensibilidade de um poeta-trovador recria a mesma imagem  visual, através de bela metáfora no primeiro verso para compor uma linda trova:

Vestem-se as águas de prata,
saltam no espaço vazio.
Findo o show da catarata,
sereno refaz-se o rio...
A. A. de Assis


37.
O importante poeta pré-modernista brasileiro, Augusto dos Anjos,  é conhecido por transmitir em sua poesia uma reflexão amargurada da vida. Tornou-se muito popular principalmente por usar temas  inusitados e bem sombrios. Por isso, passou a ser  chamado de “O poeta da Morte”.  

Reparem que, na trova abaixo, dentro desta mesma linha temática do pessimismo, o poeta cria uma metáfora inusitada onde um “coração-coador” filtra as alegrias da vida e retém todas as tristezas:

Pobre de mim! Por desgraça,
meu coração é um coador...
Nele, o riso escorre... e passa...
E fica tudo que é dor...
Augusto dos Anjos


38.
A metáfora é uma figura de linguagem que consiste numa  espécie de comparação implícita. Por mais simples que seja, a metáfora sempre valoriza o texto poético onde é usada.
 
Vejam, no exemplo abaixo, como as palavras “chegada”, significando nascimento, e “partida”, significando morte, valorizaram o achado da trova  onde são cotejadas a dor da mãe (no nascimento do filho) e a dor do filho (na morte da mãe).

Mãe, se dor fosse julgada,
não sei qual a mais doída:
Se a que te dei na chegada,
se a que me dás na partida.
José Fabiano


Fonte:
Textos/trovas enviadas pelo prof. Renato

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) A versatilidade da crônica como gênero literário

O termo crônica tem origem no latim “chronica” e do grego “Khrónos” (tempo). No início do cristianismo, significava o relato dos fatos em sua ordem cronológica. Com o surgimento da imprensa, no século XIX, a crônica começou a aparecer nos jornais, sendo que a primeira foi publicada no Journal des Débats de Paris, em 1799.

Até hoje, a crônica é um tipo de texto muito comum em jornais e revistas, além dos sites e blogs. São geralmente mais compactos e costumam ser narrados em primeira pessoa, o que dá um ar mais pessoal e próximo do leitor.

A crônica é um dos gêneros literários mais ecléticos e, por essa razão, se apresenta de várias formas:

>> Descritiva: explora a caracterização de seres animados e inanimados em um espaço vivo como uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme publicado;

>> Narrativa: se baseia em uma história, assim como o conto. O que difere é que na crônica existe a opinião do autor embutida. Pode ser narrada em primeira e na terceira pessoa;

>> Dissertativa: opinião explícita, com argumentos mais sentimentalistas do que racionais. Escrita tanto na primeira pessoa do singular quanto na do plural;

>> Narrativo-descritiva: descreve e mostra fatos do dia a dia. Narrada em primeira na terceira pessoa do singular;

>> Humorística: tem linguagem informal e é marcada pela ironia e pela comédia;

>> Lírica: com uma linguagem poética e metafórica, comunica emoções, sentimentos como paixão e saudade, por exemplo;

>> Poética: apresenta versos poéticos em forma de crônica, expressando sentimentos e reações de um determinado assunto;

>> Jornalística: apresenta notícias ou fatos do cotidiano. Pode ser policial, desportiva etc.;

>> Histórica: baseada em fatos reais ou históricos;

>> Crônicas de viagem: narra experiências de viagens vividas pelo autor.

A crônica pode não ser o gênero mais aclamado pela Literatura, mas a verdade é que ela atrai um grande número de fãs pelo mundo. Escritores encontram nela um lugar de conversa com o seu público, em que podem se expressar sem tantas formalidades e regras. Leitores veem na crônica uma oportunidade de estarem mais próximo dos escritores e de saber o que pensam, como se estivessem conversando com eles.

Muitos escritores conseguem se destacar escrevendo este gênero. Um exemplo disso é Mia Couto, um escritor que transita por vários gêneros e que escreve crônicas aclamadas pelo público do mundo todo. Outro escritor conhecido pelas suas crônicas é o Luis Fernando Veríssimo, que usa o humor para tratar de temas do cotidiano com maestria.

Para falar sobre crônicas, entrevistamos o escritor Rubem Penz, professor da Metamorfose e criador da Santa Sede, que ministra cursos e oficinas de crônicas. Confira a entrevista na íntegra:

Na sua opinião, quais as características da crônica que mais atraem o leitor?

A crônica seduz o leitor por diversas razões, e elas estão todas relacionadas com as exigências de seu suporte – a coluna do jornal. A primeira que destaco é a informalidade pois, em função dela, o leitor se vê próximo ao autor. Trocando confidências, até. Isso humaniza a relação, tornando-a equânime, franca, descompromissada. Verdadeira.

A segunda característica que atrai leitores é o estilo: são textos breves, fluidos, sedutores do começo ao final. Como “tomar um cafezinho” com o cronista, alguém bom de papo, é a oportunidade de colocar em dia os assuntos do momento.

A terceira é a promessa. São escritores que marcam dia e hora para o próximo encontro, para quando se comprometem em trazer outra vez pontos de vista surpreendentes e relevantes sobre algo que dialogue com a vida do leitor. Enfim, encanta na crônica a soma de relevância, estilo e informalidade.

Se a crônica pode ser considerada o meio do caminho entre o artigo e o conto, como fazer para reconhecê-la? Quais os elementos que a diferem dos dois gêneros citados?

A crônica é um texto antropofágico por natureza – permite que o autor se alimente de outros gêneros (literários ou não) e, postos em sua coluna, transforme-os em crônica. Porém, com o artigo – ou ensaio – e o conto esse fenômeno é ainda mais profundo, uma vez que carregam duas matrizes diferentes na sua própria gênese.

De um lado, os ensaios dos ingleses (como disse Vinicius de Moraes) se transformaram na crônica artigo. Nela, o escritor apresenta um ponto de vista sobre determinado tema. De outro lado, o flâneur dos franceses inspirou autores como João do Rio a contar histórias colhidas de seu trânsito pela sociedade carioca, em folhetins, retirando das tramas a oportunidade de reflexão – raiz da crônica conto.

Quando comparamos a formalidade do artigo/ensaio (filosófico ou de humanidade) e do conto (literário) com a informalidade da linguagem crônica, somos capazes de perceber com clareza as nuances que os diferenciam. Lembrando sempre: a crônica, antes mesmo de ser um “o quê”, é um “quando” e um “onde”.

Quais os escritores de crônicas que mais te inspiram?

O primeiro de todos, disparado, é Luis Fernando Veríssimo. Dele, sou mais do que leitor: sou discípulo. Sua verve humorística conversa com autores como Woody Allen na arte de criticar a sociedade de modo sutil, ferino e elegante. Além do mais, LFV é o mais criativo do gênero, marca distintiva que persigo em minha produção. Depois, elenco uma tríade formadora da crônica brasileira a partir de meados do século XX: Rubem Braga, Antônio Maria e Paulo Mendes Campos. Outros autores que movem minha inspiração são Drummond, Vinicius, Scliar e Caio F. – este desenhando os contornos da crônica intimista ao lado de Clarice Lispector. Ainda assim, procuro sempre acompanhar todos.

Que dicas você gostaria de dar para quem gosta de crônica e pretende escrever este gênero?

Em primeiro lugar, ler diversos cronistas. Então, perseguir – e encontrar – sua voz própria. Crônica é o autor, um texto com impressão digital em todas as palavras. Ela precisa ser um crime imperfeito: cheio de marcas, modus operandi e rastros para denunciar a autoria. E isso só é possível escrevendo. Muito. Por fim, criar uma rotina e uma periodicidade de produção. Diferentemente do clichê da espera pelas musas, a inspiração jamais virá até o cronista – será dele a iniciativa. E quem ajuda nisso é o prazo. Aliás, eis aí uma das grandes vantagens de cursar uma oficina de crônicas: a imperiosa necessidade de escrever sob demanda. Só isso já ensina muito!

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 15: Safadinha e ordinária

O PACHECO ESTÁ NOIVO de aliança e prestes a se casar com a coisinha mais adorável do bairro. A Puritana da Conceição. Uma moça bonita, de apenas dezessete anos, olhos verdes, alta, esbelta, os cabelos negros, repartidos, sem falar que possui um corpo escultural, de princesa (daqueles saídos dos fantásticos contos de fadas) que parece capaz de pegar fogo na hora e no lugar certos. Pacheco vai para a casa dela, todas as noites, porém, como é um homem evangélico e, acima de tudo respeitoso e consciente, não mantém relações mais íntimas com a jovem. Fica apenas nos abraços e beijos, deixando os finalmentes, para quando estiver devidamente em dia, ou seja, legalmente matrimoniado perante as sagradas leis da sua igreja e as bênçãos de Deus.

Nesta noite, os pombinhos, se acham na varanda do quarto dela, debruçados no parapeito, olhando à rua movimentada, quando cruza, em direção à pracinha da Matriz de Santa Perpétua, a Suzana Pinga Fogo. Pacheco, ao ver a cachopa, chama a atenção de Puritana.

— Amor, veja quem está passando aqui em frente!

Puritana, finge uma distração longe de ser verdadeira, dá uma espiadela breve e reconhece, de pronto, a ex-namorada de seu futuro marido.

— Não é a lambisgoia da Suzana com quem você teve um caso?

— Ela mesma, amor...

— Por quê? Está com saudades?

— Olhando para ela, me lembrei que frequentei a casa de seus pais, por quase um ano e meio...

— E daí?

— Me veio à memória o pensamento de que eu tinha, de fato, vontade me casar com ela, formar uma família, ter filhos...

Puritana, desliza os dedos pelos cabelos que lhe caem, em ondas espetaculares, até à altura da cintura.

— Por que lhe deu na telha remoer isto agora? Acaso está arrependido? Quer pedir arrego para ela?

Pacheco, carinhoso, abraça a garota.

— Não, é nada disto, minha fofa. Eu te amo. De forma alguma... quero pedir arrego ou reatar com a Suzana...

— Então...?

— No começo do nosso relacionamento eu achava ela bastante esperta e inteligente, meio tímida é verdade, mas dava para o gasto. Fiquei em dúvida quando me revelou que contou para a mãe dela —, imagine você, que doideira —, chegou ao ponto de se abrir para dona Pombinha, que sempre que a gente ia para o quarto dela, eu ficava sentado em sua cama até altas horas da noite, e que depois eu ia embora e que rolava somente uns beijinhos...

Toma fôlego e prossegue, muito sério.

— Em razão disto passei a ver nela uma pessoa meio burrinha e sem juízo... Onde já se viu falar destas particularidades logo para a mãe?

— Cá entre nós, vocês ficavam só sentados, ou...?

—... Ora, amor, às vezes eu dava umas deitadinhas. Me espichava... Mas veja bem, sem colocar a carroça diante dos bois. Melhor que ninguém, você sabe como sou e como ajo.

Faz nova pausa e conclui.

— Você tem consciência que jamais abusaria, ou melhor, fosse qual fosse as circunstâncias, euzinho me atreveria a ultrapassar o sinal, tirando algum tipo de proveito. Hoje somos noivos e logo lhe farei a minha esposa. Sua pessoa é a prova viva da minha integridade e de tudo o que estou afirmando...

Puritana se abre num sorriso meio malicioso e completa, com certo desdém na voz:

— Realmente, a sua fulaninha foi mesmo uma idiota. Bem diferente de mim, amor... Não chega nem aos meus pés...

— Por que diz isto, minha princesa?

— Porque eu não sou assim tão vulgar e nunca serei. Tampouco faria o que ela fez. A sua ex deu diploma para ela mesma de bobinha, de tola e sem experiência... O meu vizinho aqui do lado, o Gilberto, tem passado noites inteiras aqui no meu quarto, deitado aqui na minha cama, nós dois estudando para as provas do ENEM, e eu nunca disse nada à mamãe.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

Varal de Trovas 492

 


Mia Couto (Conversas em camponês)


- Estamos aqui sentados debaixo da árvore sagrada do seu quintal. Pode-me dizer qual o nome dessa árvore?

- Porquê?

- Porque gosto de conhecer os nomes das árvores.

- O senhor devia saber é o nome que a árvore lhe dá a si.

- Depois de tanta guerra: como vos sobreviveu a esperança?

- Mastigámo-la.

- E que aconteceu com as casas?

- As casas foram fumadas pela terra. Com tanta maldição só faltava a cobra ser canhota. Agora só me entristece a recordação. A lembrança do cajueiro me faz crescer cheiros nos olhos.

- E estes campos tradicionalmente vossos, foram-vos retirados?

- Sim. Nós ficamos só com o descampado. Agora somos descamponeses.

- E bichos, ainda há aqui bichos?

- Agora, aqui só há inorganismos. Só mais adiante, no mato é que abundam.

- Nós ainda ontem vimos flamingos...

- Esses se inflamam no crepúsculo: são os inflamingos.

- E outras aves da região, pode falar delas?

- Antes de haver deserto, a avestruz voava de galho em flor. Se chamava de arvorestruz. Mas há outras que necessitam de revisão. Exemplo do beija-flor. Beija-flor é nome que aqui deve ser consertado. A flor é que levaria título de beija-pássaro.

- Mas outros animais não há?

A bicharia vai acabando. O mabeco, dito cão-selvagem, vai sofrendo as humanas selvagerias. Acabada a lição, ele saberá não existir.

- Parece desiludido com os homens.

- O vaticínio da toupeira é que tem razão. Um dia, os bichos restantes lhe farão companhia em suas subterraneidades. Eu acredito é na sabedoria do que não existe. Afinal, nem tudo que tem luz é besouro. É o caso do pirilampo. Pirilampo morre? ou funde? Suas réstias mortais aumentam o escuro. Limpo é o pássaro que não evacua no céu.

- Acredita em ensinamento de bichos?

- Todo caranguejo é um engenheiro de buracos. Ele sabe tudo de nada. Há outros, demais. O mais idoso é o escaravelhinho. Mas, de todos, quem anda de janela é o cágado.

- Você não sofre um certo isolamento?

- Sou homem abastecido de solidões. Uns me chamam bicho do mato. Em vez de me diminuir, eu me incho com tal distinção. Como antes disse, a gente aprende do bicho a não desperdiçar. Como a vespa que do cuspe faz a casa.

- Mas a sua mulher lhe faz companhia...

- Ela é a minha patroa. Vez em quando a gente dedilha umas conversas.

– Uma última mensagem.

- Não sei. Feliz é a vaca que não pressente que, um dia, vai ser sapato.

Caldeirão Poético XLIII

Antônio Francisco Pereira
Queluzito/MG

A TRAVESSIA


O meu encontro com a Morte quero
que seja assim: leal e sem receio.
Ela virá me receber, espero,
tão consciente como a Vida veio.

Uma me entregará à outra de frente,
pois entre ambas não deve haver rodeio.
Mas pretendo ouvir, mesmo inconsciente,
a conversa das duas (eu, no meio).

Dirá a Vida: "Cuida bem de sua alma
como cuidei do corpo que se evade".
E a Morte então responderá com calma:

"Fica tranquila, minha irmã rival.
Só não colherá o Bem, na eternidade,
quem antes dela semeou o Mal".
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Eugênia Carra'h
Fortaleza/CE

AS PÉROLAS DA VIDA
(PALAVRA CANTADA)


Numa arca ou concha, bem guardada,
Minúscula joia e, com muito carinho,
Regada com o amor; seiva emprestada,
E aquele abrigo transformado em ninho.

Assim cuidada nessa espera longa,
E embora longa pareça a espera,
Desde que jamais se interrompa,
Chegará sã e salva, forte e bela!

E a arca ou concha agora aberta,
Expõe com júbilo preciosa pérola:
Não só um ser mas, mais uma vida.

Umas "serão jogadas aos porcos",
Com certeza outras serão adornos,
Pelas escolhas que o coração dita.
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José M. M. Pedro
Lisboa/Portugal

ANTES QUE SURJA O AMOR


Longo percurso ainda temos de percorrer
Antes que surja o Amor! Julgamos finda
A nossa missão, antes de estar cumprida
É mais uma das loucuras do nosso viver.

Sim, o percurso é longo, é uma subida
Agreste e íngreme e traz tanto que sofrer!
É necessária toda a coragem pra não correr
O risco de "sair" numa paragem proibida...

Oculta dos outros mundos, então, estas cidades
Em que nós vivemos, e para nela caminhar
É necessário toda a agudeza de uma fera.

De olhos atentos... e com passos leves,
Caminho pé ante pé... quase a arrastar
Na direção dos píncaros das altas auréolas!
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Oswaldo Francisco Martins
Jequié/BA

AMOR E BEM VERDADEIROS


Na visão de gente reta,
Que transborda de carinho,
Que remove todo espinho,
Há a paz maior como meta.

Jaz respeito e tem amor.
Linda estrela-amor cadente
Permanece então ardente
Alegrando-nos feito o humor.

Céu descortinado brilha
E em sua batuta há Deus
Sobre todos filhos Seus

E o bem que se compartilha.
Com acenos para o bem
Há fé e preces sãs, também,
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Oswald Barroso
Cariri/CE

AMOR SEM MEDIDA


Tu me ensinaste a amar sem ter medida
sem ter limite, sem temer o inesperado.
E com teu corpo de paixão nunca contida
eu aprendi que o grande amor é sempre ousado.

Nas fundas águas de um mar desconhecido
ao meu amor, ao meu desejo insaciado,
meu coração é como um barco, que impelido
vai navegando em horizonte ilimitado.
 
Mesmo sabendo que o amor é perecível
e do abismo no meu rumo atravessado,
jogo o meu barco para além do previsível

e corro o risco desse mar encapelado,
pois meu amor fez de possível o impossível
e já não teme mesmo amar sem ser amado.

Fonte:
Luciano Dídimo (org.). 100 sonetos de 100 poetas.
Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Ed., 2019.

Alexandre Herculano (O Castelo de Faria)

(1373)

A breve distância da vila de Barcelos, nas fraldas do Franqueira, alveja ao longe um convento de Franciscanos. Aprazível é o sítio, sombreado de velhas árvores. Sentem-se ali o murmurar das águas e a bafagem suave do vento, harmonia da natureza, que quebra o silêncio daquela
solidão, a qual, para nos servirmos de uma expressão de Fr. Bernardo de Brito, com a saudade de seus horizontes parece encaminhar e chamar o espírito à contemplação das coisas celestes.

O monte que se levanta ao pé do humilde convento é formoso, mas áspero e severo, como quase todos os montes do Minho. Da sua coroa descobre-se ao longe o mar, semelhante a mancha azul entornada na face da terra. O espectador colocado no cimo daquela eminência volta-se para um e outro lado, e as povoações e os rios, os prados e as fragas, os soutos e os pinhais apresentam-lhe o panorama variadíssimo que se descobre de qualquer ponto elevado da província de Entre-Douro-e-Minho.

Este monte, ora ermo, silencioso e esquecido, já se viu regado de sangue: já sobre ele se ouviram gritos de combatentes, ânsias de moribundos, estridor de habitações incendiadas, sibilar de setas e estrondo de máquinas de guerra. Claros sinais de que ali viveram homens: porque é com estas balizas que eles costumam deixar assinalados os sítios que escolheram para habitar na terra.

O castelo de Faria, com suas torres e ameias, com a sua barbacã e fosso, com seus postigos e alçapões ferrados, campeou aí como dominador dos vales vizinhos. Castelo real da Idade Média, a sua origem some-se nas trevas dos tempos que já lá vão há muito: mas a febre lenta que costuma devorar os gigantes de mármore e de granito, o tempo, coou-lhe pelos membros, e o antigo alcácer das eras dos reis de Leão desmoronou-se e caiu. Ainda no século dezessete parte da sua ossada estava dispersa por aquelas encostas: no século seguinte já nenhuns vestígios dele restavam, segundo o testemunho de um historiador nosso.

Um eremitério, fundado pelo célebre Egas Moniz, era o único eco do passado que aí restava. Na ermida servia de altar uma pedra trazida de Ceuta pelo primeiro Duque de Bragança, D. Afonso. Era esta lájea a mesa em que costumava comer Salat-ibn-Salat, último senhor de Ceuta. D. Afonso, que seguira seu pai D. João I na conquista daquela cidade, trouxe esta pedra entre os despojos que lhe pertenceram, levando-a consigo para a vila de Barcelos, cujo conde era. De mesa de banquetes mouriscos converteu-se essa pedra em ara do cristianismo. Se ainda existe, quem sabe qual será o seu futuro destino?

Serviram os fragmentos do castelo de Faria para se construir o convento edificado ao sopé do monte. Assim se converteram em dormitórios as salas de armas, as ameias das torres em bordas de sepulturas, os umbrais das balhesteiras e postigos em janelas claustrais. O ruído dos combates calou no alto do monte, e nas fraldas dele levantaram-se a harmonia dos salmos e o sussurro das orações.

Este antigo castelo tinha recordações de glória. Os nossos maiores, porém, curavam mais de praticar façanhas do que de conservar os monumentos delas. Deixaram, por isso, sem remorsos, sumir nas paredes de um claustro pedras que foram testemunhas de um dos mais heróicos feitos de corações portugueses.

Reinava entre nós D. Fernando. Este príncipe, que tanto degenerava de seus antepassados em valor e prudência, fora obrigado a fazer paz com os castelhanos, depois de uma guerra infeliz, intentada sem justificados motivos, e em que se esgotaram inteiramente os tesouros do Estado. A condição principal, com que se pôs termo a esta luta desastrosa, foi que D. Fernando casasse com a filha Del-Rei de Castela: mas, brevemente, a guerra se acendeu de novo, porque D. Fernando, namorado de D. Leonor Teles, sem lhe importar o contrato de que dependia o repouso dos seus vassalos, a recebeu por mulher, com afronta da princesa castelhana.

Resolveu-se o pai tomar vingança da injúria, ainda que o aconselhavam outros motivos. Entrou em Portugal com um exército e, recusando D. Fernando aceitar-lhe batalha, veio sobre Lisboa e cercou-a.

Não sendo o nosso propósito narrar os sucessos deste sítio, volveremos o fio do discurso para o que sucedeu no Minho.

O Adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento, entrou pela província de Entre-Douro-e-Minho com um grosso corpo de gente de pé e de cavalo, enquanto a maior parte do pequeno exército português trabalhava inutilmente ou por defender ou por descercar Lisboa.

Prendendo, matando e saqueando, veio o Adiantado até as imediações de Barcelos, sem achar quem lhe atalhasse o passo. Aqui, porém, saiu-lhe ao encontro D. Henrique Manuel, conde de Ceia e tio Del-Rei D. Fernando, com a gente que pôde ajuntar. Foi terrível o conflito, mas, por fim, foram desbaratados os portugueses, caindo alguns nas mãos dos adversários.

Entre os prisioneiros encontrava-se o alcaide-mor do castelo de Faria, Nuno Gonçalves. Saíra este com alguns soldados para socorrer o conde de Ceia, vindo, assim, a ser companheiro na comum desgraça. Cativo, o valoroso alcaide pensava em como salvaria o castelo Del-Rei seu senhor das mãos dos inimigos.

Governava-o em sua ausência, um seu filho, e era de crer que, vendo o pai em ferros, de bom grado desse a fortaleza para o libertar, muito mais quando os meios de defesa escasseavam. Estas considerações sugeriram um ardil a Nuno Gonçalves. Pediu ao Adiantado que o mandasse conduzir ao pé dos muros do castelo, porque ele, com as suas exortações, faria com que o filho o entregasse, sem derramamento de sangue.

Uma tropa de besteiros e de homens de armas subiu a encosta do monte da Franqueira, levando no meio de si o bom alcaide Nuno Gonçalves. O Adiantado de Galiza seguia atrás com o grosso da hoste, e a costaneira ou ala direita, capitaneada por João Rodrigues de Viedma, estendia-se, rodeando os muros pelo outro lado. O exército vitorioso ia tomar posse do castelo de Faria, que lhe prometera dar nas mãos o seu cativo alcaide.

De roda da barbacã alvejavam as casinhas da pequena povoação de Faria: mas silenciosas e ermas. Os seus habitantes, apenas enxergaram ao longe as bandeiras castelhanas, que esvoaçavam soltas ao vento, e viram o refulgir cintilante das armas inimigas, abandonando os seus lares, foram acolher-se no terreiro que se estendia entre os muros negros do castelo e a cerca exterior ou barbacã.

Nas torres, os atalaias vigiavam atentamente a campanha, e os almocadens corriam com a rolda pelas quadrelas do muro e subiam aos cubelos colocados nos ângulos das muralhas. O terreiro onde se haviam acolhido os habitantes da povoação estava coberto de choupanas colmadas, nas quais se abrigava a turba dos velhos, das mulheres e das crianças, que ali se julgavam seguros da violência de inimigos desapiedados.

Quando a tropa dos homens de armas que levavam preso Nuno Gonçalves vinha já a pouca distância da barbacã, os besteiros que coroavam as ameias encurvaram as bestas, e os homens dos engenhos prepararam-se para arrojar sobre os contrários as suas quadrelas e virotões, enquanto o clamor e o choro se levantavam no terreiro, onde o povo inerme estava apinhado.

Um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e caminhou para a barbacã, todas as bestas se inclinaram para o chão, e o ranger das máquinas converteu-se num silêncio profundo.

- "Moço alcaide, moço alcaide! - bradou o arauto - teu pai, cativo do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, Adiantado de Galiza pelo mui excelente e temido D. Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu castelo."

Gonçalo Nunes, o filho do velho alcaide, atravessou então o terreiro e, chegando à barbacã, disse ao arauto: - "A Virgem proteja meu pai: dizei-lhe que eu o espero."

O arauto voltou ao grosso de soldados que rodeavam Nuno Gonçalves, e depois de breve demora, o tropel aproximou-se da barbacã. Chegados ao pé dela, o velho guerreiro saiu dentre os seus guardadores, e falou com o filho:

"Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo, que, segundo o regimento de guerra, entreguei à tua guarda quando vim em socorro e ajuda do esforçado conde de Ceia?"

- "É - respondeu Gonçalo Nunes - de nosso rei e senhor D. Fernando de Portugal, a quem por ele fizeste preito e homenagem."

- "Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?"

- "Sei, oh meu pai! - prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. - Mas não vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a resistência?"

Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então: - "Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu cadáver."

- "Morra! - gritou o almocadem castelhano - morra o que nos atraiçoou."

E Nuno Gonçalves caiu no chão atravessado de muitas espadas e lanças.

- "Defende-te, alcaide!" - foram as últimas palavras que ele murmurou.

Gonçalo Nunes corria como louco ao redor da barbacã, clamando vingança. Uma nuvem de flechas partiu do alto dos muros; grande porção dos assassinos de Nuno Gonçalves misturaram o próprio sangue com o sangue do homem leal ao seu juramento.

Os castelhanos acometeram o castelo, no primeiro dia de combate o terreiro da barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos reduzidos a cinzas. Um soldado de Pedro Rodriguez Sarmento tinha sacudido com a ponta da sua longa chuça um colmeiro incendiado para dentro da cerca, o vento suão soprava nesse dia com violência, e em breve os habitantes da povoação, que haviam buscado o amparo do castelo, pereceram juntamente com as suas frágeis moradas.

Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição de seu pai. Lembrava-se de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos os momentos o último grito do bom Nuno Gonçalves - "Defende-te, alcaide!"

O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do castelo de Faria. O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército castelhano foi constrangido a levantar o cerco.

Gonçalo Nunes, acabada a guerra, era altamente louvado pelo seu brioso procedimento e pelas façanhas que obrara na defesa da fortaleza cuja guarda lhe fora encomendada por seu pai no último instante da vida. Mas a lembrança do horrível sucesso estava sempre presente no espírito do moço alcaide. Pedindo a El-Rei que o desonerasse do cargo que tão bem desempenhara, foi depor ao pé dos altares a cervilheira e o saio de cavaleiro, para se cobrir com as vestes pacificas do sacerdócio.

Ministro do santuário, era com lágrimas e preces que ele podia pagar a seu pai o ter coberto de perpétua glória o nome dos alcaides de Faria.

Mas esta glória, não há hoje ai uma única pedra que a ateste. As relações dos historiadores foram mais duradouras que o mármore.