quarta-feira, 2 de junho de 2021

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXV

ALMAS GÊMEAS


MOTE:
Almas gêmeas, enlaçadas,
vivendo um amor profundo,
lá vamos nós de mãos dadas
pelos caminhos do mundo.
Djalda Winter Santos


GLOSA:
Almas gêmeas, enlaçadas,
unidas no mesmo amor!
Mesmas ilusões sonhadas,
com sonhos da mesma cor!

Seguem juntas, vida afora
vivendo um amor profundo,
pois o grande amor de agora,
é, de outras vidas, oriundo!

Somos almas irmanadas
com afeição e amizade;
lá vamos nós de mãos dadas
dizendo adeus à saudade!

Nós nunca nos separamos,
nem mesmo por um segundo...
Segredo? Nós nos amamos
pelos caminhos do mundo.
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MÃE, MEU REFÚGIO

MOTE:
Minha mãe, foram teus braços,
refúgio dos meus segredos,
onde deitei meus cansaços
e adormeceram meus medos!...

Ercy Maria Marques de Faria

GLOSA:
Minha mãe, foram teus braços,
que guiaram minha vida,
foram teus doces abraços
que me aqueceram, querida!

Minha Mãe, tu foste luz,
refúgio dos meus segredos,
abrandaste a minha cruz
com o calor dos teus dedos!

Minha Mãe, os teus regaços,
foram sempre de carinho
onde deitei meus cansaços
e enfrentei o meu caminho!

Minha Mãe, com emoção,
entre beijos e folguedos,
entrei em teu coração
e adormeceram meus medos!…
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TÉDIO

MOTE:
Tédio é o vazio das horas
que parecem nem passar,
no compasso das demoras
de quem nunca vai chegar...

Maria Lua

GLOSA:
Tédio é o vazio das horas,
de uma vida sem amor!
Dias negros, sem auroras
e um sol triste, sem calor!

Essas horas tão vazias
que parecem nem passar...
são cheias de nostalgias,
fazem minha alma chorar!

Descoloridos agoras,
são o tudo que restou,
no compasso das demoras,
que de esperar, se cansou!

Chega a noite e a solidão!
Noite escura, sem luar,
numa espera, com paixão,
de quem nunca vai chegar…
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NOSSAS ALMAS...

MOTE:
No curso de nossas vidas,
por diferentes estradas,
nossas almas distraídas
continuam de mãos dadas!

Sérgio Ferreira da Silva

GLOSA:
No curso de nossas vidas,
trilhamos muitos caminhos,
com chegadas e partidas,
com saudades e carinhos!

Andamos muito, é verdade,
por diferentes estradas,
curtindo o amor e a amizade
em noites enluaradas!

Com nosso amor, sem medidas
enchendo os nossos espaços...
Nossas almas distraídas
trocavam ternos abraços!

Felizes, assim, nós vamos,
como num conto de fadas;
nossas almas – nem notamos,
continuam de mãos dadas!
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BOM HUMOR

MOTE:
Fazer da vida uma festa,
é atitude que fascina,
vamos rir! A hora é esta!
O bom humor contamina!

Vânia Ennes

GLOSA:
Fazer da vida uma festa,
ser feliz a cada instante,
amar o mar e a floresta,
a lua e o sol tão brilhante!

Ter sempre um sorriso aberto
é atitude que fascina,
que conquistará, por certo,
tudo, quebrando a rotina!

Vamos cantar em seresta,
unindo a nossa alegria!
Vamos rir! A hora é esta!
Vamos dar bom-dia, ao dia!

Vivendo, assim, bem contente,
toda a tristeza termina,
pois sabemos, certamente:
o bom humor contamina!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Seu Silvino

Faz tempo isso. Numa calçada da Avenida Getúlio Vargas encontrei por acaso o amigo Orlando Fernandes Dias, em companhia de um senhor bastante parecido com ele. Apresentou-me: “Este é o meu pai, Seu Silvino”. Que legal, eu disse, de nome já o conhecia. Seu Silvino, o poeta. Orlando sorriu, surpreso. Estava acostumado a ver o pai ser saudado como um dos nossos mais valorosos pioneiros. Mas de repente aparecia um que se manifestava admirador de Seu Silvino como poeta. Que aliás ele de fato era, nas raras horas vagas em que podia distrair-se um pouco da labuta na terra.

Imagine você como foi que um homem de tão líricos sentimentos, portador de um coração cheio de poesia, pôde ter tido peito, disposição e coragem para vir aqui em 1938, se embrenhar na mata e iniciar a roçada na qual iria construir a história de sua linda família.

Não havia nada nesta verde e imensa gleba a não ser a cheirosa floresta. Ele, paulista de Taquaritinga, crescido em Quatá, ouviu maravilhas sobre o eldorado que começava a ser descortinado no norte/noroeste do Paraná. Decidiu vir conferir de perto. De Londrina a Mandaguari veio a cavalo. Entrou no escritório da Companhia Melhoramentos, olhou o mapa, pôs o dedo num lugar pertinho de onde viria a nascer a cidade de Maringá. Sem pestanejar, abriu a bolsa, tirou o talão de cheques, disse ao funcionário que o atendeu: “Pode preparar os papéis”. Comprou um pedação de terras: “Vou formar aqui um belíssimo cafezal”, anunciou. Na volta, mandou de Londrina um telegrama para Dona Helena dando a grande notícia.

Seu Silvino tinha apenas 27 e já era pai. A família cresceu rápido: nove filhos homens, todos nascidos em Quatá. Em Maringá nasceu a caçula, a única menina, Terezinha. Todos gente muito querida. Dois se tornaram políticos importantes, nacionalmente conhecidos e admirados, Álvaro e Osmar Dias.

Homem de fé, Seu Silvino pediu as bênçãos de Deus e mandou ver. Abriu espaço na mata, preparou o terreno, deu início à formação da fazenda. Enquanto o café crescia, plantava roças de milho e feijão e criava porcos e galinhas. De noite olhava a lua, cantava e escrevia versos.

Penso que a história de todos os nossos outros pioneiros foi também mais ou menos assim. Uma geração de bravos. Homens e mulheres sem medo. Saíram de algum lugar antigo em busca de uma nova Canaã. Só Deus sabe quantos perigos enfrentaram, quantas dificuldades passaram, quantos desafios tiveram que vencer. Porém venceram.

A eles devemos a poderosa Maringá que hoje nos enche de alegria. Que bom que eles tiveram peito e valentia para vir e ficar. Seu Silvino, o poeta. Seu Silvino, “antes de tudo um forte”. Despediu-se da gente em 2006, com 95 anos.

Aí no céu, Seu Silvino, receba o nosso abraço de gratidão, carinho e respeito.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 15-4-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor

terça-feira, 1 de junho de 2021

Fernando Sabino (Dona Custódia)

De empregada ela não tinha nada: era uma velha mirrada, muito bem arranjadinha, mangas compridas, cabelos em bandó num vago ar de camafeu - e usava mesmo um, fechando-lhe o vestido ao pescoço. Mas via-se que era humilde -  atendera ao anúncio publicado no jornal porque satisfazia às especificações, conforme ela própria fez questão de dizer: sabia cozinhar, arrumar a casa e servir com eficiência a senhor só.

O senhor só fê-la entrar, meio ressabiado. Não era propriamente o que esperava, mas tanto melhor: a velhinha podia muito bem dar conta do recado, por que não? E além do mais impunha dentro de casa certo ar de discrição e respeito, propício ao seu trabalho de escritor. Chamava-se Custódia.

Dona Custódia foi logo botando ordem na casa: varreu a sala, arrumou o quarto, limpou a cozinha, preparou o jantar. Deslizava como uma sombra para lá, para cá – em pouco sobejavam provas de sua eficiência doméstica. Ao fim de alguns dias ele se acostumou à sua silenciosa iniciativa (fazia  de vez em quando uns quitutes) e se deu por satisfeito: chegou mesmo a pensar em aumentar-lhe o ordenado, sob a feliz impressão de que se tratava de uma empregada de categoria.

De tanta categoria que no dia do aniversário do pai, em que almoçaria fora, ele aproveitou-se para dispensar também o jantar, só para lhe proporcionar o dia inteiro de folga. Dona Custódia ficou muito satisfeitinha, disse que assim sendo iria  também passar o dia com uns parentes lá no Rio Comprido.

Mas às quatro horas da tarde ele precisou de dar um pulo no apartamento para apanhar qualquer coisa que não  vem à história. A história se restringe à impressão estranha  que teve, então, ao abrir a porta e entrar na sala: julgou mesmo ter errado de andar e invadido casa alheia. Porque aconteceu que deu com os móveis da sala dispostos de maneira  diferente, tudo muito arranjadinho e limpo, mas cheio de  enfeites mimosos: paninho de renda no consolo, toalha bordada na mesa, dois bibelôs sobre a cristaleira - e em lugar da gravura impressionista na parede, que se via? Um velho  de bigodes o espiava para além do tempo, dentro da moldura oval.

Nem pôde examinar direito tudo isso, porque, espalhadas pela sala, muito formalizadas e de chapéu, oito ou dez  senhoras tomavam chá! Só então reconheceu entre elas dona Custódia, que antes proseava muito à vontade mas ao vê-lo se calou, estatelada. Estupefato, ele ficou parado sem saber o que fazer e já ia dando o fora quando sua empregada se  recompôs do susto e acorreu, pressurosa:

- Entre, não faça cerimônia! - puxou-o pelo braço, voltando-se para as demais velhinhas: - Este é o moço que eu falava, a quem alugo um quarto.

Foi apresentado a uma por uma: viúva do desembargador Fulano de Tal; senhora Assim-Assim; senhora Assim-Assado; viúva de Beltrano, aquele escritor da Academia! Depois de estender a mão a todas elas, sentou-se na ponta de uma cadeira, sem saber o que dizer. Dona Custódia veio em  sua salvação.

- Aceita um chazinho?  

- Não, muito obrigado. Eu...  

- Deixa de cerimônia. Olha aqui, experimenta uma  brevidade, que o senhor gosta tanto. Eu mesma fiz.

Que ela mesma fizera ele sabia - não haveria também  de pretender que ele é que cozinhava. Que diabo ela fizera de seu quadro? E os livros, seus cachimbos, o nude Modigliani junto à porta substituído por uma aquarelinha...

- A senhora vai me dar licença, dona Custódia.

Foi ao quarto - tudo sobre a cama, nas cadeiras, na cômoda. Apanhou o tal objeto que buscava e voltou à sala:

- Muito prazer, muito prazer - despediu-se, balançando a cabeça e caminhando de costas como um chinês.  Ganhou a porta e saiu.

Quando regressou, tarde da noite, encontrou como por encanto o apartamento restituído à arrumação original, que o fazia seu. O velho bigodudo desaparecera, o paninho de renda, tudo - e os objetos familiares haviam retornado ao lugar.

- A senhora... Dona Custódia o aguardava, ereta como uma estátua, plantada no meio da sala. Ao vê-lo, abriu os braços dramaticamente, falou apenas:

- Eu sou a pobreza envergonhada!  

Não precisou dizer mais nada: ao olhá-la, ele reconheceu logo que era ela: a própria Pobreza Envergonhada. E a  tal certeza nem seria preciso acrescentar-se as explicações, a  aflição, as lágrimas com que a pobre se desculpava, envergonhadíssima: perdera o marido, passava necessidade, não tinha outro remédio - escondida das amigas se fizera empregada doméstica! E aquela tinha sido a sua oportunidade de  reaparecer para elas, justificar o sumiço...

Ele balançava a cabeça, concordando: não se afligisse, estava tudo bem. Concordava mesmo que de vez em quando, ele não estando em  casa, evidentemente, voltasse a recebê-las como na véspera,  para um chazinho.

O que passou a acontecer dali por diante, sem mais incidentes. E às vezes se acaso regressava mais cedo detinha-se  na sala para bater um papo com as velhinhas, a quem já se ia afeiçoando.

Não tão velhinhas que um dia não surgisse uma viúva bem mais conservada, a quem acabou também se afeiçoando, mas de maneira especial. Até que dona Custódia soube, descobriu tudo, ficou escandalizada! Não admitia que uma  amiga fizesse aquilo com seu hóspede. E despediu-se, foi-se  embora para nunca mais.

Fonte:
Os melhores contos de Fernando Sabino. RJ: Record, 1986.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) 6

À DERIVA


Quem me deixa à deriva, desconhece
Que meu barco é movido a sentimentos
Pois meus sonhos, toda vez que a maré cresce,
Agradecem ao poder feliz dos  ventos.

Mesmo que a dor me exponha ao relento,
Movimento o meu amor com a  fantasia
E é assim que sobrevivo : eu me alimento
Do momento que alimenta a poesia.

A magia de quem sofre e faz sua parte
Vem da arte que se despe da moldura,
Pois nem mesmo um folhetim é um  encarte
Para a arte que se esculpe com ternura.

Só quem sabe repintar-se com nobreza,
Vê beleza em cada riso que se doa
E se um riso é feliz por natureza,
Num sorriso, a alegria empluma... e voa.

Num rabisco  inusitado,  a parceria
Que há com Deus, mais espontânea se revela...
É  assim que Ele desenha a fantasia
Da poesia a que harmoniza a cor da tela.

Só quem tem dom de amar e transcrevê-lo
Faz quem lê-lo, transportar-se e compreender
Que a linha solitária de um novelo
Só termina, quando quem sabe tecer
Abençoa o terno olhar embevecido
De quem vê, num simples  risco de um bordado,
A ternura que repousa num tecido
Construído  com amor, luz e cuidado.

Quem me deixa à  deriva, não me deixa,
Alimenta minha eterna inspiração,
Porque, quando minha emoção  se queixa,
Ela deixa tão triste meu coração...
Que até mesmo a invenção  de alguma gueixa,
Complementa minha dor de solidão.

Quem me deixa, nunca foi meu par perfeito,
Não me deito com olhares insensíveis...
Conteúdos sempre têm algum defeito
E os defeitos  também são  imprevisíveis...

Meu navio só  precisa de um motor:
É o amor que ainda tens para me dar
E se amar é  recriar um sonhador,
Deixa ao menos, pelo menos, eu te amar.
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QUANDO A NOSSA DOR FAZ POESIAS
 
O amor é  o nosso ponto de partida
em tudo que façamos... a razão
não sabe controlar um coração,
quando nossa emoção  comanda a vida.

Não penses que só tu tens incertezas,
mágoas, medos, raivas...  melancolias,
pois quando a nossa dor faz poesias,
copia simplesmente das tristezas.

Nem sempre o que te dói é o que perfura,
há  pobres sem saber o que é  pobreza
e quem é  infeliz por natureza,
nem sempre compreende a alma pura.

A agua não desgasta a pedra dura...
apenas acomoda-a em seu leito,
assim é o coração: só dói  no peito,
quando não  tem mais jeito, a amargura.

Doutor nenhum conserta a criatura,
poeta, sim, engana até a dor,
e engana-se a si mesmo...ele é doutor
em  conversar com a dor com mais ternura.

Quem diz que é grão-mestre em autoajuda,
mas não pratica nada do que ensina,
semeia um amor que não germina,
retira a  proteína que o acuda.

A vida tem um tempo, o destino
não  manda nos desígnios de Deus,
por isto, aprimora os gestos teus
e ensina-te com cada desatino.

Nós  somos seres únicos, porém
somente somos dignos de nós,
quando passamos ter a mesma voz
daqueles que só querem nosso bem.
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SOMOS BARCOS QUE NAVEGAM SEM PARTIRMOS

A distância nos separa, mas sonhamos...
E nos sonhos, somos muito mais felizes,
Pois nas cores mais sensíveis que criamos,
Inventamos flores de novos matizes.

Nossas rosas são azuis sem as tingirmos,
Nossos mares são tranquilos ou selvagens,
Somos barcos que navegam sem partirmos,
Ninguém pode impedir nossas viagens.

Somos seres que transcendem sentimentos,
Nosso voo vai muito além da eternidade,
Recriamos nossos próprios pensamentos,
Nosso amor só sobrevive em liberdade.

Colorimos  as imagens que queremos,
Encurtamos o espaço que separa
Quem nos ama, com o melhor amor que temos
E é assim que a  solidão nos vira a cara.

Mesmo quando alguma dor nos surpreende,
Porque somos seres frágeis e mortais,
Só a nossa fantasia compreende
Esses nossos sofrimentos tão iguais.

Construímos nossas naus e viajamos
Para onde os sonhos possam nos levar
Pois em cada sonho bom que recriamos
Nós soltamos nossa solidão... no mar.

Sílvio Romero (Maria Borralheira)


(conto do estado do Sergipe)
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Havia um homem viúvo que tinha uma filha chamada Maria. A menina quando ia para a escola, passava pela casa de uma viúva, que tinha duas filhas. A viúva costumava sempre chamar a pequena e agrada-la muito. Depois de algum tempo começou a lhe dizer que falasse e rogasse a seu pai para casar com ela.

A menina pegou e falou ao pai para casar com a viúva, porque “ela era muito boa e agradável.”

O pai respondeu: “Minha filha, ela hoje te dá papinhas, amanhã te dará de fel."

Mas a menina sempre vinha com os mesmos pedidos, até que o pai contraiu o casamento com a viúva. Nos primeiros tempos ainda ela agradava a pequena, e, depois, começou a maltrata-la.

Tudo o que havia de mais aborrecido e trabalhoso no trato da casa era ela que fazia. Depois de mocinha era ela que ia à fonte buscar água, e ao mato buscar lenha. Era quem acendia o fogo, e vivia muito suja no borralho. Daí lhe veio o nome de Maria Borralheira.

Uma vez, para judia-la a madrasta lhe deu uma tarefa muito grande de algodão para fiar e lhe disse que naquele dia devia ficar pronta. Maria tinha uma vaquinha, que sua mãe lhe tinha deixado. Vendo-se assim tão atarefada, correu e foi ter com a vaquinha e lhe contou, chorando, os seus trabalhos.

A vaquinha lhe disse: “Não tem nada; traga o algodão que eu engulo, e quando botar fora é fiado e pronto em novelos.” Assim foi. Enquanto a vaquinha engolia o algodão, Maria estava brincando. Quando foi de tarde, a vaquinha deitou para fora aquela porção de novelos tão alvos e bonitos!... Maria, muito contente, botou-os no cesto e levou-os para casa.

A madrasta ficou muito admirada, e no dia seguinte lhe deu uma tarefa ainda maior. Maria foi ter com a sua vaquinha, e ela fez o mesmo que da outra vez. No outro dia a madrasta deu à mocinha uma grande tarefa de renda para fazer. A vaquinha, como sempre, foi que a salvou, engolindo as linhas e botando para fora a renda pronta e muito alva e bonita. A madrasta ainda mais admirada ficou.

De outra vez mandou ela buscar um cesto cheio de água. Maria Borralheira saiu muito triste para a fonte, e foi ter com a vaquinha que lhe encheu o cesto, que ela levou para casa. Daí por diante a madrasta de Maria começou a desconfiar, e mandou as suas duas filhas espiarem a moça. Elas descobriram que era a vaquinha que fazia tudo para a Borralheira.

Daí a tempos a mulher se fingiu pejada e com antojos e desejou comer a vaquinha de Maria. O marido não quis consentir, mas por fim teve de ceder á vontade da mulher que era uma tarasca desesperada.

Maria Borralheira foi e contou à vaca o que ia acontecer. Ela disse que não tivesse medo, que, quando fosse o dia de a matarem, Maria se oferecesse para ir lavar o fato*, que dentro dele havia de encontrar uma varinha, que lhe havia de dar tudo o que ela pedisse, e que depois de lavado o fato, largasse a gamela pela corrente abaixo e a fosse acompanhando, que mais adiante havia de encontrar um velhinho muito chagado e com fome, lavasse-lhe as feridas e a roupa, e lhe desse de comer, e que mais adiante havia de encontrar uma casinha com uns gatos e cachorrinhos muito magros e com fome, e a casinha muito suja, varresse o cisco e desse de comer aos bichos, e depois de tudo isso voltasse para casa.

Assim mesmo foi.

No dia que a madrasta de Maria quis que se matasse a vaquinha, a moça se ofereceu para ir lavar o fato no rio. A madrasta lhe disse com desprezo: “Oxente! Quem havia de ir se não tu, porca?”

Morta a vaca, a Borralheira seguiu com o fato para o rio. Lá achou nas tripas a varinha de condão, e guardou-a. Depois de lavado o fato botou-o na gamela e largou-a pela correnteza abaixo, e a foi acompanhando. Adiante encontrou um velhinho muito chagado e morto de fome e sujo. Lavou-lhe as feridas, e a roupa, e deu-lhe de comer.

Este velhinho era Nosso Senhor. Seguiu com a gamela. Mais adiante encontrou uma casinha muito suja e desarrumada, e com os cachorros e gatos e galinhas muito magros e mortos de fome. Maria Borralheira deu de comer aos bichos, varreu a casa, arrumou todos os trastes e escondeu-se atrás da porta. Daí a pouco chegaram as donas da casa, que eram três velhas irmãs.

Quando viram aquele benefício, a mais moça disse: “Manas, desejemos; desejemos, manas: permita a Deus que quem tanto bem nos fez lhe apareçam uns chapins (*) de ouro nos pés." A do meio disse: «Manas, desejemos, manas; permita a Deus que quem tanto bem nos fez lhe nasça uma estrela de ouro na testa.". A mais velha disse: «desejemos, manas: permita a Deus que quem tanto bem nos fez, quando falar lhe saiam faíscas de ouro da boca."

Maria, que estava atrás da porta, apareceu já toda formosa com os chapins de ouro nos pés, e estrela de ouro na testa, e quando falava saiam-lhe da boca faíscas de ouro. Amarrou um lenço na cabeça, fingindo doença, para esconder a estrela, e tirou os chapins dos pés, e foi-se embora para casa.

Quando lá chegou, entregou o fato e foi para o seu borralho. Passados alguns dias, as filhas da madrasta lhe viram a estrela e perceberam as faíscas de ouro que lhe saiam da boca, e foram contar à mãe. Ela ficou com muita inveja, e disse às filhas que indagassem da Borralheira o que é que se devia fazer para se ficar assim.

Elas perguntaram e Maria disse: “É muito fácil; vocês peçam para irem também uma vez lavar o fato de uma vaca no rio; depois de lavado botem a gamela com ele pela correnteza abaixo e vão acompanhando; quando encontrarem um velhinho muito ferido, metam-lhe o pão, e deem muito; mais adiante, quando encontrarem uma casa com uns cachorros e gatos muito magros, emporcalhem a casa, desarrumem tudo, deem nos bichos todos, e escondam-se atrás da porta, e deixem estar que, quando vocês saírem, hão de vir com chapins e estrelas de ouro."

Assim foi.

As moças contaram à mãe, e ela lhes deu um fato para irem lavar no rio. As moças fizeram tudo como Maria Borralheira lhes tinha ensinado. Deram muito no velhinho, emporcalharam a casa e deram muito nos bichos das velhas, e se esconderam atrás da porta.

Quando as donas da casa chegaram e viram aquele destroço, a mais moça disse: «Manas, desejemos, manas: permita a Deus que quem tanto mal nos fez lhe apareçam cascos de cavalo nos pés." A do meio disse: «Permita Deus que quem tanto mal nos fez lhe nasça um rabo de cavalo na testa." A terceira disse: «Permita Deus que quem tanto mal nos fez, quando falar lhe saia porqueira de cavalo pela boca."

As duas moças, quando saíram de detrás da porta já vinham preparadas com seus enfeites. Quando falaram ainda mais sujaram a casa das velhinhas.

Largaram-se para casa, e quando a mãe as viu ficou muito triste.
-–

Passou-se. Quando foi depois, houve três dias de festa na cidade, e todos de casa iam à igreja, menos a Borralheira que ficava na casa. Mas, depois de todos saírem, ela logo no primeiro dia pegou na sua varinha de condão e disse: “Minha varinha de condão, pelo condão que Deus vos deu, dai-me um vestido da cor do campo com todas as suas flores.”

De repente apareceu o vestido. Maria pediu também uma linda carruagem. Aprontou-se e seguiu. Quando entrou na igreja, todos ficaram pasmados, e sem saber quem seria aquela moça tão bonita e tão rica. Aí uma das filhas da madrasta disse à mãe: “Olhe, minha mãe, parece a Maria.”

A mãe botou-lhe o lenço na boca por causa da sujidade que estava saindo, mandando que ela se calasse, que as vizinhas já estavam percebendo.

Acabada a festa, quando chegaram em casa, Maria já estava lá, metida no borralho. A mãe lhes disse: “Olhem, minhas filhas, aquela porca ali está, não era ela, não; onde ia ela achar uma roupa tão rica?"

No outro dia foram todas para a festa e Maria ficou; mas quando todas se ausentaram, ela pegou na varinha de condão e disse: “Minha varinha de condão, pelo condão que Deus vos deu, dai-me um vestido de cor do mar com todos os seus peixes, e uma carruagem ainda mais rica e bella, que a primeira.”

Apareceu logo tudo, e ela se aprontou e seguiu. Quando lá chegou, o povo ficou embasbacado por tão linda e rica moça, e o filho do rei ficou doido por ela. Botou-se cerco para a pegar na volta, e nada de a poderem pegar. Quando as outras pessoas chegaram em casa, Maria já lá estava metida no seu borralho.

Aí uma das moças lhe disse: «Hoje vi uma moça na igreja que se parecia comtigo, Maria!"

Ela respondeu : «Eu!... quem sou eu para ir á festa?... Uma pobre cozinheira!"

No terceiro dia, a mesma coisa. Maria então pediu um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas, e uma carruagem ainda mais rica. Assim foi, e apresentou-se na festa.

Na volta o rei tinha mandado por um cerco muito apertado para agarra-la; porém ela escapuliu, e na carreira lhe caiu um chapim do pé, que o príncipe apanhou. Depois o rei mandou correr toda a cidade para ver se achava a dona daquele chapim, e o outro seu companheiro. Experimentou-se o chapim nos pés de todas as moças e nada.

Afinal só faltavam ir á casa de Maria Borralheira. Lá foram. A dona da casa apresentou as filhas que tinha. Elas, com seus cascos de cavalo, quase machucaram o chapim todo, e os guardas gritaram: «Virgem Nossa Senhora! Deixem, deixem!..." Perguntaram se não havia ali mais ninguém.

A dona da casa respondeu: «Não, aí tem somente uma pobre cozinheira, porca, que não vale a pena mandar chamar."

Os encarregados da ordem do rei respondem que a ordem era para todas as moças sem exceção e chamaram pela Borralheira. Ela veio lá de dentro toda pronta como no último dia da festa. Vinha encantando tudo. Foi metendo o pezinho no chapim e mostrando o outro. Houve muita alegria e festas. A madrasta teve um ataque e caiu para trás, e Maria foi para palácio e casou com o filho do rei.
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* Chapim – Antigo calçado de sola alta para mulheres.
* Fato – vísceras de animais; miúdos.


Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. Publicado em 1885.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Adega de Versos 25: Isabel Furini

 

Luiz Damo (As Faces da Trova) I

A chuva desce a galope,
vinda no lombo dos ventos,
sem cabresto, o ralo entope,
causando transbordamentos.
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A noite, tão devagar,
faz despertar a estrelinha,
que guia à luz do luar
os passos de quem caminha.
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Chove, calma e mansamente,
a água corre rumo ao mar,
fazendo toda a semente
em fruto se transformar.
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Como a "terra prometida"
que os ancestrais procuraram,
desde o porto de partida,
…os imigrantes buscaram.
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Dá mais luz à minha estrela,
ó Deus, fonte que a ilumina!
Porém se não merecê-la,
brilhe a minha lamparina.
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Decisões precipitadas,
requintadas e vistosas,
logo são decapitadas
por espadas enganosas.
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Deixe o mundo, ó ser pensante,
melhor do que o conheceu!
Ninguém muda o circundante
sem antes mudar o seu...
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Jamais a inveja assassina
se torne arma de batalha,
porque a justiça divina
pode tardar, mas não falha.
= = = = = = = = = = =

Mal admite alguém chegar,
no desfecho da jornada
e ter que seus bens deixar
partindo daqui com nada.
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Na mesa, se o merecemos,
dai-nos, ó Deus, nosso pão
e às falhas que cometemos
vos pedimos o perdão.
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Não gere a imaturidade
conflitos de gerações
e a divergência de idade
não termine em agressões.
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Não lastimes teu passado
se não foste um vencedor.
() que ontem viste plantado
foi por outro semeador.
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Não pode alguém conquistar
seu sonho, sem atitudes,
tampouco, deve faltar
a ação dentro das virtudes.
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Não tem densa escuridão,
nem treva que se mantém,
quando a luz da gratidão
brilhar junto à fé que tem.
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No horizonte, um vasto véu,
abre à aurora, um palco lindo,
como se os portais do céu
também ficassem se abrindo.
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Nunca erige a paz na terra
quem difunde a luta insana,
transforma o lar numa guerra
e o mundo num mar de lama.
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O canto dos passarinhos
encanta as verdes florestas
e na sombra dos seus ninhos
os grilos fazem serestas.
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O homem, conspurcado, mente,
num mergulho à perversão,
porém tendo Deus presente,
nele encontra a conversão.
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O homem só escuta o que quer
pois, mal sabe ele escutar,
ouve demais e sequer
para um pouco a meditar.
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O tempo não corre, voa,
não posso seu fim prever,
se a vida não fosse boa
ninguém ousava viver.
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O tempo, um algoz horrendo,
cometendo atrocidades,
assusta ao vermos morrendo
entes com tenras idades.
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Para que ao sucesso flua
de uma forma natural,
é mister que contribua
com o esforço laboral.
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Pra que a veste fulgurante,
num Natal tão reluzente?
Se o próprio Aniversariante
do encontro estiver ausente!
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São tantas as soluções
existentes e possíveis,
mas, nenhuma, sem ações,
traz medidas previsíveis.
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Se as dores do corpo agridem,
a alma sofre a punição,
dois entes que se dividem
frente à mesma condição.
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Sendo opacos os sorrisos,
tende em pranto, a dor verter,
que em luz, rostos indecisos,
não conseguem reverter.
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Tal fogo que arde ligeiro,
às vezes, a dor não passa,
restam cinzas do braseiro
e das chamas a fumaça.
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Temos, no mundo dos vivos,
mortos, que vivem na mente,
uns por laços afetivos
e outros, lembrados, somente.
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Toda a barreira encontrada
o homem possa superar,
pondo na pedra da estrada
uma flor em seu lugar.
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Toda a criança de outrora,
com menos, se divertia,
tendo mais, hoje, ela implora,
por um pouco de harmonia.
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Toda a lágrima que escorre
de um rosto leve ou cansado,
lava o sinal que decorre
de algo alegre ou fracassado.
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Todos plantem esperanças
nos campos da humanidade,
para colher, das andanças,
bons frutos na eternidade.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 30 de maio de 2021

Varal de Trovas 504

 


Milton Sebastião Souza (O Canto da Sereia)

Contam as lendas antigas que os marinheiros que escutavam o canto das sereias ficavam enfeitiçados pela maravilhosa melodia e terminavam perdendo os seus rumos e até colidindo os seus navios contra as ilhas onde moravam estas adoráveis criaturas. Estes belos seres, metade mulher e metade peixe, causavam as desgraças de tantos, que afundavam as suas embarcações e morriam nas armadilhas escondidas por trás daquele enfeitiçante canto. Verdadeiras ou não, as histórias das sereias aterrorizavam muitos homens do mar, que procuravam desviar das rotas onde, segundo as lendas, moravam as sereias.

No meio do oceano não deve ser difícil desviar de uma ilha onde tememos nos defrontar com perigos desconhecidos. Basta remar para outro lado, mudar a posição das velas ou, simplesmente, virar a roda do leme para outra direção. Acontece, porém, que ninguém consegue desviar do “canto da sereia moderno” dos nossos dias: a publicidade. E, por causa disso, tantas vidas naufragam no mar profundo do consumismo desenfreado. São poucas as pessoas que escapam dos apelos publicitários que invadem nossos olhos e nossos ouvidos desde o nascer do dia até o momento em que vamos dormir para refazer as energias. Antigamente, nossos filhos e netos rezavam: “Com Deus me deito e com Deus me levanto...”. Hoje a oração é outra: “Com a publicidade me deito e com a publicidade me levanto...”. A publicidade – sereia moderna – canta e encanta com suas “melodias” que prometem fama, beleza, riqueza e tantas outras “maravilhas” que todos nós sonhamos sempre conquistar.

As antigas sereias seduziam homens feitos e experimentados. A “sereias” atuais enfeitiçam seres humanos de todas as idades, desde o bebê que está apenas começando a caminhar e falar até o ancião que vegeta numa cama ou cadeiras de rodas. “Compre o talco tal, que perfuma melhor o seu bebê”; “Só o sabonete xis deixa a pele macia e sedosa”; “O melhor celular do mundo tira fotos, acessa a internet e ainda toca as suas músicas preferidas”; “Empréstimos para aposentados: basta apresentar a carteira de identidade e já sai com o dinheiro na mão”; “Crédito fácil para você comprar o que quiser...”. E por aí se vão os cantos das “sereias” que invadem as nossas vidas e nos fazem perder os rumos traçados pelo nosso orçamento pessoal.

Quem precisa de um talco que perfume melhor? Quem garante que o sabonete deixa a pele sedosa? Celular é para promover a comunicação ou para servir de máquina fotográfica? E será que a maioria dos empréstimos concedidos para os aposentados servem para melhorar as suas vidas ou apenas para livrar parentes espertos de dívidas que os próprios aposentados terão que pagar com o sacrifício do desconto em folha? Não é nada fácil escapar deste “canto das sereias” moderno. Compramos o que não precisamos. Gastamos fácil o dinheiro que ganhamos com tanta dificuldade. Afundamos em contas e prestações que só conseguiremos pagar através de novos empréstimos e de mais dívidas. Afundamos o nosso barco no seco, sem possibilidade de jogar qualquer âncora que possibilite a nossa salvação. O verbo “gastar” já está gasto de tanto ser usado nos dias atuais. E o pior é que, depois dele, teremos que conjugar o verbo “pagar”, bem mais difícil de ser conjugado no tempo certo...

Luciano Dídimo (Poemas Avulsos) – 2 –

A LUZ

A luz da Estrela Azul, que é tão brilhante
Adoça a roxa fé como um licor,
Abrindo os nossos olhos para a cor
Que apaga o tempo cinza já distante:

Do tão avermelhado Sol do Amor,
Do verde da esperança ali adiante.
A luz que resplandece radiante
Nos mostra um novo mundo e seu primor.

As águas cor de prata descem rio,
Varrendo a negra cor da noite escura
E dissipando a dor com cortesia.

A luz clareia tudo o que é sombrio,
Fazendo a paz mostrar sua brancura
E rebrilhar o ouro da poesia!
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A TEMPESTADE

Densas trevas cobriram nossas vidas
Enchendo-as de um silêncio que ensurdece
As almas temerosas e perdidas
Na tempestade elevam sua prece

As virtudes então adormecidas
Se mostram ao irmão que reconhece
Que as mãos no mesmo barco estão unidas
E a força da remada se engrandece

Ponhamos no farol a confiança
Na cruz também está nossa esperança
Sozinhos não podemos nos salvar

Precisamos seguir a mesma rota
Cada um contribui com a sua cota
Um dia as águas hão de se acalmar
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BELEZA FEMININA

Tudo começa com a depilação
Que lhes arranca os pelos com a cera
Depois descarnam unhas: pé e mão
E a pinça lhes arranca a sobrancelha

Progressiva com química agressiva
E que espicha o cabelo em ferro quente
É breve o efeito da definitiva
E ainda acham a escova inteligente

Chegou agora a vez da maquiagem
Base, blush, batom nessa caveira
E corretivo para a camuflagem

Acessórios no fim dessa jornada:
Salto, brinco, colar, anel, pulseira
E a bolsa que não cabe quase nada
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CASA DOS CONTOS

Nesta casa que o conto nasce e cresce
A arte vem pelo aroma das panelas
A narrativa sai pelas janelas
E a criatividade é o alicerce

As palavras se juntam no telhado
E as técnicas de escrita são paredes
Personagens dormindo em suas redes
Aguardam que o escritor use o teclado

Toda vez que um autor acende a brasa
A trama passa pela encanação
E aquece do leitor seu coração

Mas a imaginação: louca da casa
Não deixa ficar nada no lugar
Para que o texto possa se inovar
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RAMOS E ESPINHOS

Vou entrar na cidade, abram caminho
Vou armado com flores para a guerra
Vou em busca de paz para esta terra
Eu vou chegar montando um jumentinho

Derramo as minhas lágrimas sozinho
Pois eu sei muito bem o que me espera
Os ramos que me jogam em fé sincera
Trançarão a coroa com os espinhos

Recebo humilde os ramos e o chicote
Sou aclamado Rei, depois bandido
E por fim condenado à pior sorte

No amor todo o pecado é redimido
Pois na ressurreição eu venço a morte
Renovo em cada vida seu sentido
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VIDA NOVA

Vamos arar a terra para o plantio
Às vezes é nas trevas que se semeia
O amor na noite escura melhor permeia
Faz brotar a semente em cada vazio

O perdão sempre acaba com todo estio
Multiplicando paz como grão de areia
Já que a misericórdia desencandeia
Fazendo que o doente fique sadio

Do escuro se distingue melhor a luz
É preciso que a água seja fervida
É preciso que a prata seja fundida

O alívio é privilégio de quem tem cruz
Na fé a nossa dor será arrefecida
Da semente que morre é que nasce a vida

Jérson Brito (A Última estação)

Outro dia, numa estação de trem, deparei-me com um senhor absorto, reflexivo, provavelmente ruminando algumas mal-sucedidas empreitadas.

Com uma passagem na mão, ele não se dava conta de que várias composições ferroviárias já tinham passado. A última se aproximava.

Também não percebeu que, devido ao exíguo tempo, deveria desembarcar na próxima estação. Dezenas havia depois dela e ele tinha direito de conhecê-las caso embarcasse antes. A validade do bilhete só alcançava a seguinte, entretanto.

Ao consultar o relógio e perceber o céu escurecido, seus olhos marejaram.

Possivelmente, imaginou quantas aventuras e amores diferentes poderia ter vivido em cada parada.

Quantas paisagens e pessoas interessantes poderia ter conhecido.

Quantas conquistas poderia ter obtido.

Enfim, o que poderia ter feito se não ficasse ali, inerte, pensativo.

Nada disso era mais possível. O cenário que viu durante o dia inteiro foi o movimento daquele local. Passageiros que tocavam a vida em frente. Gente que ia, gente que chegava, despedidas, reencontros, coisas do gênero...

A ele, o que restava era uma estação. Apenas uma estação.

Trem derradeiro. Desembarque derradeiro.

Apito final. Fim de jornada.

* Qualquer semelhança com a nossa vida não é mera coincidência.

Estante de Livros (Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago)

Ensaio sobre a Cegueira é um romance publicado pela primeira vez em 1995, do escritor português José Saramago.

O romance é a mais famosa obra do português e três anos depois da publicação ganhou o Nobel de Literatura, em 1998.

Narra a história de uma epidemia de cegueira branca que se espalha por uma cidade e vai acometendo um por um, trazendo o caos e abalando as estruturas de uma sociedade civilizada.

É um romance que não apela pelo engraçado, não há alivio cômico. É uma obra que, mesmo sendo uma ficção, é bem detalhista e realista. Isto é, a amostra de uma possível realidade através da ficção.

De acordo com o próprio autor, é um livro terrível e com o intuito de fazer o leitor sofrer. Em uma apresentação pública sobre o romance, José Saramago disse:

Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.

PERSONAGENS PRINCIPAIS

Em Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago não identifica os personagens através de nomes, mas sim pelas características físicas, deficiências ou profissões que sejam consideradas marcantes.

O Primeiro Cego: o primeiro indivíduo que é acometido pela cegueira branca enquanto estava no trânsito.

O médico: é o oftalmologista, que é infectado após o contato com o Primeiro Cego.

A Mulher do Médico: a personagem mais relevante do romance e a única que consegue enxergar. Desta forma, é a orientadora e protetora dos infectados.

A mulher do Primeiro Cego: que vai reencontrar o marido no hospício.

O Cego Ladrão: morto pelos soldados ainda no manicômio.

O Velho da Venda Preta: era cego de um olho e paciente do Médico. A cegueira branca infectou o olho são.

Rapariga dos óculos escuros: prostituta, foi ao consultório do Médico devido a uma conjuntivite. No manicômio teve relações sexuais com ele.

O Rapazinho Estrábico: sem a mãe foi levado para o manicômio, e a Rapariga dos Óculos Escuros assume o papel materno.

O Cachorro das Lágrimas: animal de estimação adotado pela Mulher do Médico.

O cego da Pistola: comandante do grupo de cegos que causava terror dentro do manicômio.

O Cego da Contabilidade: o único que não foi infectado, pois já era cego antes da epidemia. Tinha vantagens sobre os outros, pois já sabia o alfabeto em braille e práticas de contabilidade.

Escritor: passa a morar no apartamento do Primeiro Cego, após ser expulso do seu. Mesmo com a cegueira branca não parou de escrever.

Resumo


Ensaio sobre a Cegueira começa com a narração de um homem em um sinal de trânsito, enquanto espera o sinal verde da sinaleira, e de repente uma nuvem branca começa a cobrir toda a sua visão. É o Primeiro Cego.

Contudo, não é uma cegueira tradicional, é uma cegueira branca, como se a visão tivesse sido acometida por um mar de leite. A sua mulher também contamina-se.

Tentando desvendar o problema da cegueira repentina, o Primeiro Cego vai a um oftalmologista buscar uma solução. Depois da consulta, o Médico também é acometido pela cegueira branca. Assim, a epidemia começa a se alastrar por toda a cidade.

Um Farmacêutico, uma Criança, um Ladrão, um Velho, um Médico. A cegueira se espalha como um vírus descontrolado que atinge qualquer pessoa, jovens e velhas, brancas e negras, pobre e ricas. A única que ficou isenta foi a Mulher do Médico.

Diante da epidemia, o governo decide colocar em quarentena, em um prédio que era um antigo manicômio, todas as pessoas que ficaram cegas .

Com recursos escassos e limitados, os instintos animais de sobrevivência começam à florar nas pessoas infectadas. A cada dia que passa mais pessoas vão sendo colocadas nesse ambiente, causando um caos cada vez maior.

Evitando o completo transtorno,  o Primeiro Cego, A mulher do Primeiro Cego, o Médico, a Mulher do Médico, o Velho e a Rapariga se juntam para tentar manter a organização e sobreviver em um ambiente em que as pessoas estavam se tornando irracionais.

Dentro do antigo hospício os infectados assumem um comportamento irracional de sobrevivência, exacerbando o instinto sexual, animal, social, ético, etc.

Isto é, fazem suas necessidades em qualquer lugar, matam sem motivo, estupram apenas pelo prazer de poder sobre o outro, comem a carne daqueles que estão mortos, etc. Enquanto isso, a epidemia atinge cada vez mais pessoas.

Os infectados ficaram presos em quarentena até que após um incêndio a Mulher do Médico, a única que não fora contaminada, percebe que não há mais guardas e que a epidemia tomou conta da cidade.

A Mulher do Médico descreve uma cena terrível do que se tornou a cidade. Corpos putrificados no meio da rua, cidade suja com fezes, ratos, lixos e urinas. Tudo junto, inclusive pessoas que ainda estavam vivas.

A partir de então, o desafio não é lutar por emprego, dinheiro ou sucesso, pois a cidade está toda destruída, mas sim conseguir abrigo, comida e sobrevida fora do manicômio.

Análise da obra

Ensaio sobre a Cegueira é contado em terceira pessoa, com narrador onisciente. O tipo de escrita é uma descrição fluida, com discurso direto mesclado com o indireto.

A escrita é típica do autor, sem recursos característicos do discurso direto, como parágrafo, travessão e aspas.

Além de não apresentar ponto de interrogação e exclamação, com os diálogos sendo identificados pelas letras maiúsculas para que o leitor não se confunda. Isto é, uma leitura marcada pela ausência de sinais de pontuação.

Ensaio sobre a Cegueira apresenta famosos ditados populares, como “Pior cego é aquele que não quer ver” e “Em terra de cego quem tem um olho é rei”.

O foco é fazer com que as pessoas passem a olhar para as outras, mas não com um olhar físico, mas olhar o interior, a essência do ser humano.

José Saramago foi muito resistente sobre a adaptação da obra para o cinema, mas, em 2008, um filme baseado no  foi lançado.

“Blindness” foi dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, que recebeu elogios de José Saramago sobre o longa-metragem.

“Estar tão feliz de ter visto o filme como estava quando acabou de escrever o livro. Agora conhecia a cara de suas personagens”.

TRECHOS DA OBRA

    “Por que foi que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.

    O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.

    Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam”.


sexta-feira, 28 de maio de 2021

Carolina Ramos (Zéco)

Num sô Zeca porcaria nenhuma! Meu nome é Zéco! Zé... co! Tábom?!


Estrilava feio, cada vez que o chamavam de Zeca, E explicava:

- Zeca é nome prá muié! - conheço inté uma dona Zequinha, lá da loja da esquina, santa mãe do Serafim... garoto que de anjo... só tem o nome!

- Meu nome intêrinho é José Corifeu. - Zéco descia às minúcias:

- Zé de José, Pai do Minino e Esposo da Virge. E Co... de Corifeu... chefe de coisa nenhuma! - Zécooo!

Zéco sabia que corifeu queria dizer chefe disto ou daquilo, como lhe dissera o seu Pepe da farmácia, homem de "munto " estudo e "i munta curtura tamém!" E Zéco terminava o discurso com advertência inflamada:

- Quem me chamá de Zeca, vai tê di se havê cumigo! Vai tê mêmo!...

Contudo, quem menos ligava para tais ameaças era a molecada do bairro, irreverente... doidinha por fazer ferver a chaleira da paciência do Zéco:

- Zeca!... Zeca!... Lá vem o Zeca... boboca e careca... jogando peteca!

A melodia improvisada, a abusar da rima proibida, deixava em ebulição os brios do pivô da questão, que, indignado, apanhava um punhado de terra... Não raro, voavam mesmo algumas pedras em direção à corja atrevida. E era aquele atropelo! Pernas pra todo o lado!

- Eu sô Zéco, seus marditos! Zé - de José. Co - de Corifeu! — e as pedras choviam!

Raro o dia em que a porta do casebre, na qual vivia o pobre, não aparecia garatujada a giz! O nome escrito soava como palavrão, dispensando qualquer esforço para ser reconhecido. E enquanto as letras brancas gritavam ZECA, a chaleira da "reiva " apitava e Zéco esbravejava furioso, a esfregar a porta com pano encardido, molhado nas águas do ribeirão que corria próximo. E, então, ele apertava os olhos, fechava o punho e sibilava entre os dentes:

Ah! Se eu pego um desses marvados de jeito...eu mato! Ah, se mato!! Mato, sim, pra todo do mundo sabê di veiz quem é Zeca e quem é o Zéco! - Os olhos fuzilavam e o punho fechava-se ainda mais à altura do nariz. - Molecadinha sem-vergonha! Dêxa... quarqué dia pego um! Ah... si pego!...

Zeco sabia haver muito homem de verdade, macho mesmo, chamado Zeca, mas não queria nem saber! Sabia, isto sim, que ele era o Zéco... e de Zéco queria ser chamado! Era o dono do nome e pronto!... Ninguém tinha o direito de chamá-lo como bem entendesse... sem se havê com ele!

Naquele dia, Zéco não saíra para trabalhar na roça. Amanhecera de cabeça tinindo, a latejar como se o coração houvesse mudado para lá. A dor crescera, acabando em "pingação " de nariz. Gripe! Gripe daquelas de criar ninhada de gatos no peito! Nem precisava ser médico para fazer o diagnóstico! O corpo doía... Moído como se um trator tivesse passado por cima dele!

Sem ninguém para mimá-lo, sem mulher nem filhos - que sua Candinha se fora, sem deixar prole - Zéco arrastou-se até a garrafa de aguardente, como se a carcaça lhe pesasse uma tonelada. Gole generoso afogueou-lhe o rosto, ao descer como lixa pela garganta irritada.

A esperar pelo efeito, sentou-se no catre, cotovelos fincados nas coxas... testa aninhada nas mãos...

Não demorou para que o suor brotasse, farto, a lhe escorrer pelas costas.

De repente... aguçou o ouvido: - Ruído na porta. Alguém a arranhava, por fora. Ao espiar pela fresta da fechadura... Olho no olho! Surpresa dos dois lados!... E consequente fuga do garoto, apavorado... enquanto Zéco rugia, escancarando a porta com fúria:...

- Então é tu, coisa ruim! Anjinho de meia tigela! Péra aí que eu te pego!

Irmão do Serafim, Rafael, o caçula temporão de dona Zequinha, lívido de medo... não tinha asas para alçar voo, apesar do nome... mas provou ter boas pernas para enfrentar uma corrida!

Sorteado, daquela vez, para garatujar a porta do Zéco, passou de volta como um pé de vento, gritando à turma que o aguardava:

- Foge, gente! O home tá em casa!...

Debandada geral!

Zéco... mais febril que nunca, olhava a porta com desgosto, alheio à aragem fria que começara a soprar... e esquecido das próprias dores e mazelas.

Mais uma vez, lá estava o estigma! Incompleto, sim... apenas três letras. Faltava a principal - aquele A, no final - pivô de toda discórdia! O maroto não tivera tempo de completar o acinte, apenas – ZEC... é o que se lia. Mas... o acinte estava lá! Ah, se estava!... E as provas, também! - O giz jogado no chão, pisado pelos pés do susto... naquela fuga estabanada, bastava como prova indiscutível! - "Quem não deve... não teme!"

O intuito de provocação era explícito e sem deixar qualquer dúvida! Absorto pelas evidências e cego pela raiva, nem mesmo assim, Zéco deixou de ouvir a gritaria da meninada em alvoroço, à beira do rio de águas revoltas! Entendeu de pronto que alguém se afogava!

Sem perda de um minuto, Zéco sacudiu o peso da gripe, esquecido dela e da birra, correndo para a margem do ribeirão.

Era Rafael! O rosto do garoto estampava terror ao tentar agarrar-se à fragilidade da vegetação beira-rio. Perigo de todos os lados! Avolumada pelas chuvas, a correnteza que o arrastara após o resvalo do pé, na fuga às mãos justiceira, por cruel ironia o colocava, agora, ao alcance daquelas mesmas mãos ávidas de justiça!

O garoto, contudo, não hesitou. Entre ver-se tragado pelas águas turbulentas e o risco de ter o pescoço espremido pela ira do Zéco, não teve dúvidas: - atirou-se por inteiro à mão salvadora, que da margem lhe era estendida.

Os dedos do homem e os da criança tocaram-se de leve, antes que Zéco se lançasse às águas geladas que, implacáveis, arrastavam o menino para o meio do rio.

Rafael debatia-se em desespero, até ser alcançado, agarrado pela roupa e entregue à margem, entanguido... mas salvo!

A surpresa tomara conta da molecada, pasma, que a tudo presenciava com olhos de espanto. O homem durão, antes desacatado e temido, num segundo transformara-se em herói!

Naquela mesma noite, Zéco foi internado. Pneumonia dupla. Delirava! O dilema que o atormentava subia à tona, fortalecido pela febre:

- Eu sô Zéco!... ZÉ-CO! Zé – de José. Co – de Corifeu! Mato quem me chamá de ôtro jeito! Pode inté tê nome de anjo, que eu mato! E mato mêmo!

Ao pé da modesta sepultura, uma cruz agasalha nos braços um nome inexpressivo: - JOSÉ CORIFEU.

A complementação vem logo abaixo, desenhada a giz, por mão infantil, em letra irregular, mas bastante clara: - ZÉCO – definitiva autenticação do nome de um homem que o defendera, com unhas e dentes, até o final de sua vida!

E isto porque... na verdade, tal nome era tudo o que de realmente seu, aquele homem possuíra, ao longo de toda sua insignificante existência.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica 
Petroni Mathias, 2021. 
Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Luiz Damo (Poemas Escolhidos) VII

ALMA SEDENTA


Nas profundezas duma alma sedenta
dormem inquietos os sonhos feridos,
porém das alturas, quem a sustenta,
são forças ocultas ou dons nutridos.

Frente às intempéries da convulsão
surgem desejos tão controvertidos,
que exigem proezas e precaução
numa seleção dos mais preferidos.

Pensas que fazes da vida uma flor?
Não peça um favor sem se consultar,
porque pode estar, em si, seu valor.

Jardins floridos, não deixem faltar,
o aroma que faz nascer terno amor
e nos campos da dor, vidas brotar.
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CAPELA

O velho sino na torre anuncia
e conclama o povo a se congregar,
em torno da prece que em harmonia
a todos permite assim celebrar.

A capela há tanto tempo não via
tanta gente ao mesmo tempo a rezar,
ser fonte de paz, embora vazia,
ficando aberta a quem quiser entrar.

Nunca haja na fé, seres rejeitados,
num mundo que poucos querem mandar
e muitos talvez, são desrespeitados.

Juntos no rumo que sonham trilhar,
todos os dons sejam manifestados
e os ocultos também possam brilhar.
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CELEIROS

Dos bons momentos outrora vividos
sempre nos restam as recordações,
restos de passos, quiçá interrompidos,
por tantos motivos ou frustrações.

Fartos celeiros tão bem protegidos
guardaram os frutos das plantações,
pra ser amanhã, talvez consumidos,
em outras mesas, distantes prisões,

Muitos passam pela vida encolhidos
no próprio casulo das ilusões,
sem nunca provar os dons recolhidos.

Ninguém sinta acabar as pretensões,
nem fique chorando os sonhos perdidos
nas longas noites das lamentações.
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GALOPEIOS

Às rédeas da xucra imaginação
no lombo do tempo vai cavalgar,
pelo horizonte sempre a repontar
nobres valores num outro galpão.

A galope descreve o entardecer
à sombra viril da noite serena,
reflete os matizes da bruma amena
que voltam a brilhar no amanhecer.

Cortando os campos do conhecimento
rasga as cortinas da sua existência,
para recobrá-la a todo momento.

Com brio frente à vida em reverência
traduz em canto o seu contentamento
nas longas jornadas com persistência.
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HOMENAGEM I
(Homenagem ao poeta e trovador Raul Poli)

Diversas vezes falaste da lua
e em muitas outras, paraste pra vê-la.
Mas hoje, Deus quis a presença tua,
para que sejas uma nova estrela.

Longos momentos passados na rua
à luz que tanto lutaste pra tê-la,
tendo às mãos o fruto que o perpetua
nesta vida, no dom de descrevê-la.

Que na cadeira pra ti reservada
possas de novo, poemas compor,
ou se o quiser outra trova rimada.

Pelo Supremo Patrono do amor
junto dos Anjos venha ser julgada,
tenha o seleto voto de louvor.
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HOMENAGEM II
(Homenagem ao poeta e trovador Raul Poli)

A natureza, seus campos e flores,
aves e tudo o que nela contém,
serviram de foco a tantos clamores
grafados em prosa e em versos também.

Os vastos campos repletos de cores
foram pedestais que a vida mantém,
muito mais que meros mantenedores
foram precursores da paz de alguém.

Cantos, cantigas, formaram um hino,
no alto dos ramos, deveras gentis,
transformando em grande o ser pequenino.

Canários, tico-ticos, bem-te-vis,
despertavam os olhos do menino
que o deixavam plenamente feliz.

Fonte:
Luiz Damo. Pétalas do Quotidiano. Caxias do Sul/RS: Lorigraf, 2012.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Walter, o gramático

Se me pedirem o nome de um grande gramático, é bem provável que o primeiro a brotar das minhas boas lembranças seja o do professor Walter Pelegrini, um dos mais respeitados pioneiros do ensino em Maringá. Tive a graça de conviver com vários outros notáveis conhecedores do nosso idioma, tais como Expedito Neme, Agostinho Baldin, Juliano Tamanini, Maria Céli Pazini, Leônidas Avelino. Porém Walter era realmente especial.

Nascido paulista em Gália (26-5-1940), formado em Letras e em Direito, veio bem jovem para Maringá. Poderia ter feito carreira brilhante como advogado, mas gostava mesmo era de ser professor, e como tal foi um dos mais competentes e admirados que a cidade já conheceu. Primeiro no Gastão e no Santa Cruz, depois como um dos primeiros docentes da UEM.

No dia em que ele precocemente faleceu (15-11-2003), senti um abalo muito forte. Fiquei pensando: puxa, que desperdício de talento e cultura. Um homem tão inteligente e que passou a vida inteira estudando e ensinando os mistérios e encantos da língua portuguesa... De repente... pufff... lá se foi o nosso Walter para a eternidade, levando uma riquíssima bagagem que poderia ter continuado a partilhar por muitos anos com milhares de alunos.

Certa vez ele enviou para a revista “”Aqui” um texto no qual usou a palavra “seriíssimo”. O revisor estranhou e amputou um “i”, reduzindo o elegante superlativo à sua variante informal: “seríssimo”. Walter telefonou explicando que a forma “seríssimo” também era aceita, porém ele preferia “seriíssimo”. Propuseram publicar novamente o texto na edição seguinte, dessa vez com os dois “ii” no devido lugar e com os respectivos pingos. Ele agradeceu, mas dispensou.

Dias após o querido mestre apareceu ao vivo na redação da “Aqui”. Pensaram que estava bravo. Não estava. Ria até. Mas a conversa com a rapaziada acabou virando uma “seriíssima” e proveitosa aula.

– Os adjetivos terminados em “io” – disse ele – formam o superlativo perdendo a vogal final e dobrando o ‘i’: precário–precariíssimo, sumário-sumariíssimo, sóbrio-sobriíssimo, macio-maciíssimo. Mas existem alguns casos interessantes: sábio, por exemplo, poderia ser “sabiíssimo”, no entanto superlativou-se como “sapientíssimo” (do latim sapiens, sapientis)... Quem sabe porque os sábios, em geral, sejam chegadões em línguas clássicas. E há o caso de “feiíssimo”, que, por ser difícil de pronunciar, no fim ficou sendo “feíssimo” mesmo...

Porém a paixão maior do professor Walter foi sempre o estudo da sintaxe. Relia com frequência longos trechos do bom Camões, só pelo prazer de caçar sujeitos, objetos e adjuntos em labirintos sintáticos geniais como este: “As armas e os barões assinalados que da ocidental praia lusitana por mares nunca dantes navegados passaram ainda além da Taprobana...

Grande Walter Pelegrini, um personagem inesquecível, sapientíssimo e seriíssimo professor de todos nós que tivemos a bênção de receber suas preciosas aulas. Até um dia.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 20-5-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Adega de Versos 24: Miguel Russowsky

 


Júlia Lopes de Almeida (E os cisnes?)

A Batista Coelho

Procurando emoções, ou por uma curiosidade extravagante, a viscondessa de S. Roque lembrou-se um dia de ir ver o hospital de alienados do Dr. Aguilar.

Descendo do seu coupé* dentro do pátio do edifício, perguntou ao porteiro pelo diretor.

Não estava; mas como não devesse tardar, conduziram-na a um escritório ao rés do chão, cheio de armários e de aparelhos elétricos.

A viscondessa sentou-se e olhava para o chão reluzente, quando percebeu uma sombra a deslizar a seu lado. Voltou-se e viu junto a si uma mulher de uns trinta anos, baixa, clara e delgada, de rosto longo como o dos carneiros e olhos pardos, de expressão dulcíssima. Tinha o andar macio como o das freiras, as mãos delicadas, pequeninas e pálidas, e um sorriso que lhe iluminava a fisionomia triste e vaga...

– Deseja alguma coisa?

– Sim... vim pedir permissão ao Dr. Aguilar para ver o seu estabelecimento. Disseram-me que ele não tarda e mandaram-me esperar aqui...

– Se é só isso, não vale a pena cansar-se; ele virá... ou não virá. Em todo caso, prontifico-me a acompanhá-la.

– É enfermeira?

– Sim, minha senhora. O que lhe peço é que escreva aqui o seu nome.

A enfermeira apresentou, sobre a grande secretária de nogueira, o livro em que se inscreviam os visitantes.

A viscondessa tirou rapidamente a luva e, mesmo sem se sentar, apoiou o cotovelo na mesa e escreveu. Por trás dela a outra esticou muito o pescoço e leu-lhe o nome. Depois, com um sorriso:

– Podemos ir.

Saíram ambas, atravessaram corredores e subiram escadas. A enfermeira ia adiante, roçando sem bulha nos degraus o vestido mole, de riscadinho azul e branco, coberto na frente por um largo avental de linho pardo. As sedas da viscondessa farfalhavam.

– Por aqui... veja, esta é a sala dos doidos pacíficos, dizia a enfermeira. Passemos agora à escola das crianças. A senhora não receia impressionar-se?

– Não... respondeu a visitante, depois de uma pequena hesitação.

– É muito triste. Enfim, é bom ver tudo! concluiu a enfermeira.

– A senhora... – E a viscondessa interrompeu-se para perguntar: – Como hei de chamá-la?

A outra não respondeu logo e ficou pensativa, como se fizesse um esforço para se lembrar do seu nome; depois disse com um sorriso:

– Chame-me... irmã Serafina; não sou freira, mas fui educada num convento, e os meus irmãos, em casa, por brincadeira, davam--me esse nome. Acostumei-me.

– A irmã Serafina, voltou a viscondessa, prendendo o fio do seu pensamento partido, não tem medo de viver aqui?

– Às vezes... certamente que os doidos fazem-nos passar bocados perigosos!... mas tenho compaixão, dediquei-me a isto e já agora hei de envelhecer ao lado deles. Pobre gente!

Havia no olhar de irmã Serafina uma tamanha expressão de piedade e doçura, que a viscondessa sentiu-se comovida e murmurou:

– Que anjo!

Entraram na escola. Umas dez crianças, espalhadas por meia dúzia de bancos, levantaram os narizinhos curiosamente para a visitante. O mestre tinha sentado nos joelhos um pequenito, que se encaracolou todo, fazendo-se num novelo. Ao mesmo tempo surgiam da aula gritos e guinchos estranhos; um rapaz de dez anos quis fazer discurso, outro arremedou o miar dos gatos, de uma maneira tão justa e com uma careta tão dolorosa, que a viscondessa, arrepiada, voltou depressa para o corredor.

A irmã Serafina deixou-se ficar para trás e, curvando-se, beijou uma menina que, encostada à parede, contava os dedinhos incessantemente: um, dois, três...

Quando voltou para junto da visitante, ela disse com uma voz magoada:

– Não a avisei de que se havia de impressionar na escola das crianças? Pobres anjos! Eu ainda não me habituei a olhar sem lágrimas para aqueles entezinhos condenados, por uns pais sem consciência, a uma vida de agonias!

– Condenados pelos pais? murmurou com estranheza a visitante.

– Certamente. Quem pode dar uma herança tão desgraçada aos filhos, não se casa. Sabe que são vítimas da hereditariedade.

– Todos?!

– A maior parte. Que pecado! Deveria haver leis que proibissem certas uniões... O que estas crianças me têm feito chorar, só de pena! Algumas são más, mordem, batem, causam estragos de toda a ordem.
 
Umas ferazinhas inconscientes. Quanto piores elas são, mais as lamento. É preciso que haja alguém que as ame. Eu sou mais carinhosa para aquelas a quem ninguém quer bem... Afinal, boas e más correm para mim. Sabe que todas as crianças gostam das aves.

– Das aves?!

– Sim, que tenham asas que as agasalhem.

– Ah...

A voz da irmã Serafina era melíflua, escorregadia e branda; uma dessas vozes cantantes e claras, que uma vez ouvidas nunca mais se esquecem. Não há por certo mulher cuja harmonia seja tão completa no seu todo. Deveriam antes chamá-la irmã Suavíssima!

Atravessaram todo o edifício sem que uma palavra, um gesto da guia alterasse a sua expressão de candura. Todos os doentes lhe sorriam, e ela sorria a todos os doentes. Ia passando como uma bênção, branda como o perfume de um lírio. No chão encerado dos largos corredores só se ouviam os passos da viscondessa batendo o metal dos tacões num tic-tac sonoro. Aquele som regular caía-lhe no ouvido como um barulho profano. Envergonhava-se e temia atrair a atenção dos doidos. Repelia o desejo de descalçar-se para deslizar como a irmã Serafina pelo parquet**.

– Quer ver uma louca feliz?

– Sim... respondeu a viscondessa.

Impelindo a porta de um quarto, entraram. Ao pé de uma janela, aberta para o azul do espaço, e ao lado de um leito todo feito de branco, uma velhinha risonha cantarolava num delgado fio de voz, fazendo tricô. Os novelos bailavam-lhe no colo, sobre o zuarte limpo do vestido, e as mãos enrugadas e secas moviam as longas agulhas, ligeiras, ligeiras.

Sempre a cantar uma cantiga risonha, a doida cumprimentou a visita, com um movimento airoso de cabeça.

A enfermeira murmurou indicando-a: – É sempre assim.

Tornaram a sair e desceram uma escada larga de corrimão envernizado. Embaixo atravessaram um pátio cimentado, onde numa ordem simétrica se alinhavam grandes tinas verdes plantadas de azaleias. Os arbustos carregados pareciam buquês, mais flores do que folhas. Uns vermelhos, escuros como sangue pisado, outros róseos como o céu na aurora, e outros brancos como a neve casta. A viscondessa roçava por eles o vestido de seda que ia gemendo, no seu farfalhar, pela pressão nervosa com que ela o arregaçava.

A irmã Serafina colheu um galho das azaleias brancas, soprou delicadamente uma formiguinha que passeava numa das flores e entregou-o à viscondessa, murmurando:

– As brancas são as mais bonitas, as mais ingênuas; não acha?

A outra sorriu. Entraram num corredor que conduzia, direito e amplo, a uma alta porta de vidro azul.

Chegadas aí pararam; era a porta da saída. Através do vidro grosso da porta via-se o vestíbulo de ladrilho, aberto sobre o jardim.

O sol estava forte, de um ouro intenso; o azul acinzentado do vidro quebrava-o numa luz de crepúsculo outonal. Mármore da escada, areia do jardim, maciços de verdura, grupos de palmas de roseiras ou de crótons variados, tinha tudo o mesmo tom enfumado, uniforme e brando.

Ao centro do jardim, entre um relvado côncavo, um pequeno lago tinha a cor e a placidez de um espelho; e à beira dele, sobre a grama bem aparada, uma cegonha parecia de aço, não só pela cor, como pela imobilidade da atitude.

A viscondessa estendeu a mão à irmã Serafina, mas esta não lhe prestou atenção: tinha o rosto colado ao vidro da porta.

– Adeus... repetiu a viscondessa.

A outra então voltou-se e, suspendendo o busto para chegar a boca ao ouvido da viscondessa, disse com voz mal firme:

– E os cisnes?...

– Que cisnes? ia perguntar a viscondessa. Mas conteve-se. A irmã Serafina tinha o olhar branco de cólera, uma transformação súbita quebrara-lhe o encanto. Ela movia-se abrindo os cotovelos e esticando
o pescoço.

A viscondessa compreendeu a verdade e tateou a porta, sem poder abri-la; quis gritar – teve medo; e a outra, entretanto, volteava, volteava, repetindo cada vez com mais força:

– E os cisnes? E os cisnes?!
* *

Minutos depois a viscondessa ouvia do diretor do hospital que a loucura daquela mulher provinha de ter perdido uma filha afogada por causa de uns cisnes. A criança, debruçada no lago, quis agarrar as aves; as aves partiram e a pequenina mergulhou. Desde então a mãe finge-se de cisne, asseverou ele.

– Compreendo agora... Ela disse-me que tinha asas! Com quem eu andei!

– Andou com uma inofensiva que, mesmo quando grita, não faz mal a ninguém. Para mim, ela só tem uma curiosidade: a mania de se ter encarnado no inimigo. Foi um cisne que lhe motivou a loucura, ela quer ser cisne... Enfim, também acontece lá fora adorarmos às vezes a própria causa do nosso mal... As suas azaleias, minha senhora!

E o médico apanhou as flores que a viscondessa deixara cair ao entrar para o coupé, enquanto os gritos continuavam lá dentro, repetidos e chorosos:

– E os cisnes? e os cisnes?!
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* Coupé – Carruagem fechada.
** Parquet – Assoalho de placas de madeira assentadas em forma de mosaico.


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Laurindo Rabello (Poemas Escolhidos) VI

LEANDRO E HERO
SONETO I


Hei de, mártir de amor, morrer te amando.

O facho do Helesponto apaga o dia,
Sem que aos olhos de Hero o sono traga,
Que dentro de sua alma não se apaga
O fogo com que o facho se acendia.

Aflita o seu Leandro ao mar pedia,
Que abrandado por ela, a prece afaga,
E traz-lhe o morto amante numa vaga,
(Talvez vaga de amor, inda que fria).

Ao vê-lo pasma, e clama num transporte —
“Leandro!... és morto?!... Que destino infando
“Te conduz aos meus braços desta sorte?!!

“Morreste!... mas... (e às ondas se arrojando
Assim termina já sorvendo a morte)
“Hei de, mártir de amor, morrer te amando.”
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A UMA INCONSTANTE
SONETO II


É carpir, delirar, morrer por ela!
BOCAGE


De uma ingrata em troféu despedaçado
Meu coração devora amor cruento,
Trocando em fero e bárbaro tormento
Quantos prazeres concedeu-me o fado.

No seio d’alma, já dilacerado,
Negras fúrias do báratro apascento!
Filtra-me o delirante pensamento
De zelos negro fel envenenado.

Desprezo, ingratidão, fria esquivança
Da cruel por quem morro, em tal procela
Apagaram-me a estrela da esperança.

E eu (ao confessá-lo a dor me gela)
Humilhado a seus pés, minha vingança
É carpir, delirar, morrer por ela.
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A UM INFELIZ
SONETO III


Geme, geme, mortal infortunado,
É fado teu gemer continuamente:
Perante as leis do Fado és delinquente,
Sempre tirano algoz terás no Fado.

Mas para não ser mais envenenado
O fel que essa alma bebe, e o mal que sente,
Não te iluda o falaz riso aparente
De um futuro de rosas coroado.

Só males o presente te afiança:
Incrustado de vermes charco imundo
Se te volve o passado na lembrança.

Busca, pois, o da morte ermo profundo:
Despedaça a grinalda da esperança:
Crava os olhos na campa, e deixa o mundo.
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A UMA SENHORA
SONETO IV


Dos meus lares, dos meus que choro ausente,
Me vieste acordar saudade ímpia,
Tu, amada do Anjo d’Harmonia,
Que te fazes ouvir tão docemente.

Do piano o teclado obediente
Ao teu tocar encheu-se de magia,
E lá dos mortos na soidão* sombria
Operou-se um milagre de repente.

A morte sobre a foice, entristecida,
Amarguradas lágrimas verteu,
Talvez do fero ofício arrependida!

Bellini do sepulcro a pedra ergueu;
E, cheio de alegria desmedida,
C’um sorriso de glória um — bravo — deu.
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*Soidão – forma arcaica de solidão.
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À SRA. MARIETA LANDA
SONETO V
  
Por ocasião de cantar no teatro de S. João
da cidade da Bahia


Disseste a nota amena d’alegria,
E, arrebatado então nesse momento
De um doce, divinal contentamento,
Eu senti que minh’alma aos céus subia.

Disseste a nota da melancolia,
Negra nuvem toldou-me o pensamento;
Senti que agudo espinho virulento
Do coração as fibras me rompia.

És anjo ou nume, tu que desta sorte
Trazes o peito humano arrebatado
Em sucessivo e rápido transporte?!

Anjo ou nume não és; mas, se te é dado
No canto dar a vida, ou dar a morte,
Tens nas mãos teu Porvir, teu bem, teu fado.
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À MESMA SENHORA
SONETO VI


Tão doce como o som da doce avena
Modulada na clave da saudade;
Como a brisa a voar na soledade,
Branda, singela, límpida e serena;

Ora em notas de gozo, ora de pena,
Já cheia de solene majestade,
Já lânguida exprimindo piedade,
Sempre essa voz é bela, sempre amena.

Mulher, do canto teu no dom supremo
A dádiva descubro mais subida
Que de um Deus pode dar o amor paterno.

E minh’alma, num êxtase embebida,
Aos teus lábios deseja um canto eterno,
E, só para gozá-lo, eterna a vida.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.