Num sô Zeca porcaria nenhuma! Meu nome é Zéco! Zé... co! Tábom?!
Estrilava feio, cada vez que o chamavam de Zeca, E explicava:
- Zeca é nome prá muié! - conheço inté uma dona Zequinha, lá da loja da esquina, santa mãe do Serafim... garoto que de anjo... só tem o nome!
- Meu nome intêrinho é José Corifeu. - Zéco descia às minúcias:
- Zé de José, Pai do Minino e Esposo da Virge. E Co... de Corifeu... chefe de coisa nenhuma! - Zécooo!
Zéco sabia que corifeu queria dizer chefe disto ou daquilo, como lhe dissera o seu Pepe da farmácia, homem de "munto " estudo e "i munta curtura tamém!" E Zéco terminava o discurso com advertência inflamada:
- Quem me chamá de Zeca, vai tê di se havê cumigo! Vai tê mêmo!...
Contudo, quem menos ligava para tais ameaças era a molecada do bairro, irreverente... doidinha por fazer ferver a chaleira da paciência do Zéco:
- Zeca!... Zeca!... Lá vem o Zeca... boboca e careca... jogando peteca!
A melodia improvisada, a abusar da rima proibida, deixava em ebulição os brios do pivô da questão, que, indignado, apanhava um punhado de terra... Não raro, voavam mesmo algumas pedras em direção à corja atrevida. E era aquele atropelo! Pernas pra todo o lado!
- Eu sô Zéco, seus marditos! Zé - de José. Co - de Corifeu! — e as pedras choviam!
Raro o dia em que a porta do casebre, na qual vivia o pobre, não aparecia garatujada a giz! O nome escrito soava como palavrão, dispensando qualquer esforço para ser reconhecido. E enquanto as letras brancas gritavam ZECA, a chaleira da "reiva " apitava e Zéco esbravejava furioso, a esfregar a porta com pano encardido, molhado nas águas do ribeirão que corria próximo. E, então, ele apertava os olhos, fechava o punho e sibilava entre os dentes:
– Ah! Se eu pego um desses marvados de jeito...eu mato! Ah, se mato!! Mato, sim, pra todo do mundo sabê di veiz quem é Zeca e quem é o Zéco! - Os olhos fuzilavam e o punho fechava-se ainda mais à altura do nariz. - Molecadinha sem-vergonha! Dêxa... quarqué dia pego um! Ah... si pego!...
Zeco sabia haver muito homem de verdade, macho mesmo, chamado Zeca, mas não queria nem saber! Sabia, isto sim, que ele era o Zéco... e de Zéco queria ser chamado! Era o dono do nome e pronto!... Ninguém tinha o direito de chamá-lo como bem entendesse... sem se havê com ele!
Naquele dia, Zéco não saíra para trabalhar na roça. Amanhecera de cabeça tinindo, a latejar como se o coração houvesse mudado para lá. A dor crescera, acabando em "pingação " de nariz. Gripe! Gripe daquelas de criar ninhada de gatos no peito! Nem precisava ser médico para fazer o diagnóstico! O corpo doía... Moído como se um trator tivesse passado por cima dele!
Sem ninguém para mimá-lo, sem mulher nem filhos - que sua Candinha se fora, sem deixar prole - Zéco arrastou-se até a garrafa de aguardente, como se a carcaça lhe pesasse uma tonelada. Gole generoso afogueou-lhe o rosto, ao descer como lixa pela garganta irritada.
A esperar pelo efeito, sentou-se no catre, cotovelos fincados nas coxas... testa aninhada nas mãos...
Não demorou para que o suor brotasse, farto, a lhe escorrer pelas costas.
De repente... aguçou o ouvido: - Ruído na porta. Alguém a arranhava, por fora. Ao espiar pela fresta da fechadura... Olho no olho! Surpresa dos dois lados!... E consequente fuga do garoto, apavorado... enquanto Zéco rugia, escancarando a porta com fúria:...
- Então é tu, coisa ruim! Anjinho de meia tigela! Péra aí que eu te pego!
Irmão do Serafim, Rafael, o caçula temporão de dona Zequinha, lívido de medo... não tinha asas para alçar voo, apesar do nome... mas provou ter boas pernas para enfrentar uma corrida!
Sorteado, daquela vez, para garatujar a porta do Zéco, passou de volta como um pé de vento, gritando à turma que o aguardava:
- Foge, gente! O home tá em casa!...
Debandada geral!
Zéco... mais febril que nunca, olhava a porta com desgosto, alheio à aragem fria que começara a soprar... e esquecido das próprias dores e mazelas.
Mais uma vez, lá estava o estigma! Incompleto, sim... apenas três letras. Faltava a principal - aquele A, no final - pivô de toda discórdia! O maroto não tivera tempo de completar o acinte, apenas – ZEC... é o que se lia. Mas... o acinte estava lá! Ah, se estava!... E as provas, também! - O giz jogado no chão, pisado pelos pés do susto... naquela fuga estabanada, bastava como prova indiscutível! - "Quem não deve... não teme!"
O intuito de provocação era explícito e sem deixar qualquer dúvida! Absorto pelas evidências e cego pela raiva, nem mesmo assim, Zéco deixou de ouvir a gritaria da meninada em alvoroço, à beira do rio de águas revoltas! Entendeu de pronto que alguém se afogava!
Sem perda de um minuto, Zéco sacudiu o peso da gripe, esquecido dela e da birra, correndo para a margem do ribeirão.
Era Rafael! O rosto do garoto estampava terror ao tentar agarrar-se à fragilidade da vegetação beira-rio. Perigo de todos os lados! Avolumada pelas chuvas, a correnteza que o arrastara após o resvalo do pé, na fuga às mãos justiceira, por cruel ironia o colocava, agora, ao alcance daquelas mesmas mãos ávidas de justiça!
O garoto, contudo, não hesitou. Entre ver-se tragado pelas águas turbulentas e o risco de ter o pescoço espremido pela ira do Zéco, não teve dúvidas: - atirou-se por inteiro à mão salvadora, que da margem lhe era estendida.
Os dedos do homem e os da criança tocaram-se de leve, antes que Zéco se lançasse às águas geladas que, implacáveis, arrastavam o menino para o meio do rio.
Rafael debatia-se em desespero, até ser alcançado, agarrado pela roupa e entregue à margem, entanguido... mas salvo!
A surpresa tomara conta da molecada, pasma, que a tudo presenciava com olhos de espanto. O homem durão, antes desacatado e temido, num segundo transformara-se em herói!
Naquela mesma noite, Zéco foi internado. Pneumonia dupla. Delirava! O dilema que o atormentava subia à tona, fortalecido pela febre:
- Eu sô Zéco!... ZÉ-CO! Zé – de José. Co – de Corifeu! Mato quem me chamá de ôtro jeito! Pode inté tê nome de anjo, que eu mato! E mato mêmo!
Ao pé da modesta sepultura, uma cruz agasalha nos braços um nome inexpressivo: - JOSÉ CORIFEU.
A complementação vem logo abaixo, desenhada a giz, por mão infantil, em letra irregular, mas bastante clara: - ZÉCO – definitiva autenticação do nome de um homem que o defendera, com unhas e dentes, até o final de sua vida!
E isto porque... na verdade, tal nome era tudo o que de realmente seu, aquele homem possuíra, ao longo de toda sua insignificante existência.
Estrilava feio, cada vez que o chamavam de Zeca, E explicava:
- Zeca é nome prá muié! - conheço inté uma dona Zequinha, lá da loja da esquina, santa mãe do Serafim... garoto que de anjo... só tem o nome!
- Meu nome intêrinho é José Corifeu. - Zéco descia às minúcias:
- Zé de José, Pai do Minino e Esposo da Virge. E Co... de Corifeu... chefe de coisa nenhuma! - Zécooo!
Zéco sabia que corifeu queria dizer chefe disto ou daquilo, como lhe dissera o seu Pepe da farmácia, homem de "munto " estudo e "i munta curtura tamém!" E Zéco terminava o discurso com advertência inflamada:
- Quem me chamá de Zeca, vai tê di se havê cumigo! Vai tê mêmo!...
Contudo, quem menos ligava para tais ameaças era a molecada do bairro, irreverente... doidinha por fazer ferver a chaleira da paciência do Zéco:
- Zeca!... Zeca!... Lá vem o Zeca... boboca e careca... jogando peteca!
A melodia improvisada, a abusar da rima proibida, deixava em ebulição os brios do pivô da questão, que, indignado, apanhava um punhado de terra... Não raro, voavam mesmo algumas pedras em direção à corja atrevida. E era aquele atropelo! Pernas pra todo o lado!
- Eu sô Zéco, seus marditos! Zé - de José. Co - de Corifeu! — e as pedras choviam!
Raro o dia em que a porta do casebre, na qual vivia o pobre, não aparecia garatujada a giz! O nome escrito soava como palavrão, dispensando qualquer esforço para ser reconhecido. E enquanto as letras brancas gritavam ZECA, a chaleira da "reiva " apitava e Zéco esbravejava furioso, a esfregar a porta com pano encardido, molhado nas águas do ribeirão que corria próximo. E, então, ele apertava os olhos, fechava o punho e sibilava entre os dentes:
– Ah! Se eu pego um desses marvados de jeito...eu mato! Ah, se mato!! Mato, sim, pra todo do mundo sabê di veiz quem é Zeca e quem é o Zéco! - Os olhos fuzilavam e o punho fechava-se ainda mais à altura do nariz. - Molecadinha sem-vergonha! Dêxa... quarqué dia pego um! Ah... si pego!...
Zeco sabia haver muito homem de verdade, macho mesmo, chamado Zeca, mas não queria nem saber! Sabia, isto sim, que ele era o Zéco... e de Zéco queria ser chamado! Era o dono do nome e pronto!... Ninguém tinha o direito de chamá-lo como bem entendesse... sem se havê com ele!
Naquele dia, Zéco não saíra para trabalhar na roça. Amanhecera de cabeça tinindo, a latejar como se o coração houvesse mudado para lá. A dor crescera, acabando em "pingação " de nariz. Gripe! Gripe daquelas de criar ninhada de gatos no peito! Nem precisava ser médico para fazer o diagnóstico! O corpo doía... Moído como se um trator tivesse passado por cima dele!
Sem ninguém para mimá-lo, sem mulher nem filhos - que sua Candinha se fora, sem deixar prole - Zéco arrastou-se até a garrafa de aguardente, como se a carcaça lhe pesasse uma tonelada. Gole generoso afogueou-lhe o rosto, ao descer como lixa pela garganta irritada.
A esperar pelo efeito, sentou-se no catre, cotovelos fincados nas coxas... testa aninhada nas mãos...
Não demorou para que o suor brotasse, farto, a lhe escorrer pelas costas.
De repente... aguçou o ouvido: - Ruído na porta. Alguém a arranhava, por fora. Ao espiar pela fresta da fechadura... Olho no olho! Surpresa dos dois lados!... E consequente fuga do garoto, apavorado... enquanto Zéco rugia, escancarando a porta com fúria:...
- Então é tu, coisa ruim! Anjinho de meia tigela! Péra aí que eu te pego!
Irmão do Serafim, Rafael, o caçula temporão de dona Zequinha, lívido de medo... não tinha asas para alçar voo, apesar do nome... mas provou ter boas pernas para enfrentar uma corrida!
Sorteado, daquela vez, para garatujar a porta do Zéco, passou de volta como um pé de vento, gritando à turma que o aguardava:
- Foge, gente! O home tá em casa!...
Debandada geral!
Zéco... mais febril que nunca, olhava a porta com desgosto, alheio à aragem fria que começara a soprar... e esquecido das próprias dores e mazelas.
Mais uma vez, lá estava o estigma! Incompleto, sim... apenas três letras. Faltava a principal - aquele A, no final - pivô de toda discórdia! O maroto não tivera tempo de completar o acinte, apenas – ZEC... é o que se lia. Mas... o acinte estava lá! Ah, se estava!... E as provas, também! - O giz jogado no chão, pisado pelos pés do susto... naquela fuga estabanada, bastava como prova indiscutível! - "Quem não deve... não teme!"
O intuito de provocação era explícito e sem deixar qualquer dúvida! Absorto pelas evidências e cego pela raiva, nem mesmo assim, Zéco deixou de ouvir a gritaria da meninada em alvoroço, à beira do rio de águas revoltas! Entendeu de pronto que alguém se afogava!
Sem perda de um minuto, Zéco sacudiu o peso da gripe, esquecido dela e da birra, correndo para a margem do ribeirão.
Era Rafael! O rosto do garoto estampava terror ao tentar agarrar-se à fragilidade da vegetação beira-rio. Perigo de todos os lados! Avolumada pelas chuvas, a correnteza que o arrastara após o resvalo do pé, na fuga às mãos justiceira, por cruel ironia o colocava, agora, ao alcance daquelas mesmas mãos ávidas de justiça!
O garoto, contudo, não hesitou. Entre ver-se tragado pelas águas turbulentas e o risco de ter o pescoço espremido pela ira do Zéco, não teve dúvidas: - atirou-se por inteiro à mão salvadora, que da margem lhe era estendida.
Os dedos do homem e os da criança tocaram-se de leve, antes que Zéco se lançasse às águas geladas que, implacáveis, arrastavam o menino para o meio do rio.
Rafael debatia-se em desespero, até ser alcançado, agarrado pela roupa e entregue à margem, entanguido... mas salvo!
A surpresa tomara conta da molecada, pasma, que a tudo presenciava com olhos de espanto. O homem durão, antes desacatado e temido, num segundo transformara-se em herói!
Naquela mesma noite, Zéco foi internado. Pneumonia dupla. Delirava! O dilema que o atormentava subia à tona, fortalecido pela febre:
- Eu sô Zéco!... ZÉ-CO! Zé – de José. Co – de Corifeu! Mato quem me chamá de ôtro jeito! Pode inté tê nome de anjo, que eu mato! E mato mêmo!
Ao pé da modesta sepultura, uma cruz agasalha nos braços um nome inexpressivo: - JOSÉ CORIFEU.
A complementação vem logo abaixo, desenhada a giz, por mão infantil, em letra irregular, mas bastante clara: - ZÉCO – definitiva autenticação do nome de um homem que o defendera, com unhas e dentes, até o final de sua vida!
E isto porque... na verdade, tal nome era tudo o que de realmente seu, aquele homem possuíra, ao longo de toda sua insignificante existência.
Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica
Petroni Mathias, 2021.
Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.
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