quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Baú de Trovas XXXIII


Mesmo soltas e espalhadas,
as pétalas são formosas;
porém somente abraçadas
é que elas se tomam rosas!
A. A. de Assis
Maringá/PR

= = = = = = = = = = =

Se as armas vencem a guerra.
os livros têm mais valor.
pois espalham sobre a terra
o saber, a paz e o amor.
Alba Helena Corrêa
Niterói/RJ

= = = = = = = = = = =

A queimada, tão nociva,
para a terra é uma agressão;
vai-se a floresta nativa,
fica só desolação…
Angélica Villela Santos  
Guaratinguetá/SP, 1935 – 2017, Taubaté/SP

= = = = = = = = = = =

As paredes que sustentam
meus sonhos, meus ideais,
são tão sólidas que aguentam
os mais fortes vendavais!
Antonio Síécola Moreira
Santa Rita do Sapucaí/MG

= = = = = = = = = = =

Olhando ao longe o horizonte
contemplo a rara beleza
e bendigo a meiga ponte
que me liga à natureza!
Augusto Gasparini Filho
Salto/SP

= = = = = = = = = = =

Esse mesmo pai que um dia
Deus me ofertou, ao nascer,
é o pai que eu escolheria,
caso pudesse escolher!
Carolina Ramos
Santos/SP

= = = = = = = = = = =

Meu pai, a sua lembrança,
toda ternura e bondade...
Velhos tempos de criança,
tempo integral de saudade.
Conceição Parreiras Abritta
Crucilândia/MG, 1934 - 2015, Belo Horizonte/MG

= = = = = = = = = = =

Além, no horizonte, à borda
de um infinito sem véu,
o lindo arco-íris é a corda,
que os anjos pulam, no céu!
Domitila Borges Beltrame
São Paulo/SP

= = = = = = = = = = =

Entre as mofadas estantes
do museu de minha vida,
choram fantasmas errantes.
buscando a ilusão perdida.
Dorothy Jansson Moretti
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

= = = = = = = = = = =

Adeus meu chão, vou risonho
pela tarde azul e mansa,
levando a roupa do sonho
na mochila da esperança!
Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre/MG

= = = = = = = = = = =

Vem, palhaço, sem tardança,
com teus trejeitos, teus chistes,
e acorda a alegre criança
que dorme nos homens tristes...
Elton Carvalho
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1994

= = = = = = = = = = =

Minha jangada tristonha,
abandonada no cais,
vela içada, ainda sonha
com ventos do nunca mais!
Fernando Câncio Araújo
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

= = = = = = = = = = =

Poesia, vida, beleza,
bem-aventurança, dor,
felicidade, tristeza.,.
É isso e bem mais o amor.
João Costa
Saquarema/RJ

= = = = = = = = = = =

Canta o galo na porteira,
trina alegre a passarada,
alegra-se a roça inteira
ao rubor da madrugada!
José A. de Freitas
Pitangui/MG

= = = = = = = = = = =

Pai, tua voz precavida
já não ouço, infelizmente —
Mas teu exemplo de vida
no que eu faço, está presente!
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

= = = = = = = = = = =

Este manto que carregas,
como bandeira estendida,
é vitória das refregas
que enfrentaste nesta vida!
Loris Turrini
Tremembé/SP

= = = = = = = = = = =

A tristeza que me invade
e que nunca chega ao fim.
é fruto de uma saudade
que nasceu dentro de mim.
Maria Granzoto da Silva
Arapongas/PR

= = = = = = = = = = =

Volte agora com vontade,
ser o amor que me encantou,
traga consigo a saudade,
que ao partir, você deixou!
Maria Luiza Walendowsky
Brusque/SC

= = = = = = = = = = =

Incutindo no arvoredo
os mais sutis movimentos,
a brisa compõe o enredo -
da sinfonia dos ventos!
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

= = = = = = = = = = =

Protegendo os inocentes
é que Deus, sábio demais,
põe cenários diferentes
nas impressões digitais!...
Maria Nascimento S. Carvalho
Rio de Janeiro/RJ

= = = = = = = = = = =

Num relógio, vendo a hora,
no outono de minha lida.
vejo que não há demora
no ocaso de minha vida!
Mauricio Norberto Friedrich
Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR

= = = = = = = = = = =

A memória trabalhando,
na velhice encontrou -
a alegria se espalhando
pela vida que guardou.
Mifori
São José dos Campos/SP

= = = = = = = = = = =

Pai, você está presente
dentro do meu coração;
sua presença é constante
sempre em minha oração,
Neiva Fernandes
Campo dos Goytacazes/RJ

= = = = = = = = = = =

Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!
Professor Garcia
Caicó/RN

= = = = = = = = = = =

O sol, sublime benesse,
dá sua luz purpurina
independente da prece:
- é pura oferta divina.
Yedda Ramos Patrício
São Paulo/SP

= = = = = = = = = = =

Poeta, que aos homens seduz
pela força do seu verso;
com sementeiras de luz,
enche de brilho o universo!
Zeni de Barros Lana
Belo Horizonte/MG


Fonte:
Informativos da UBT Seção São Paulo.

Nilto Maciel (Porta Fechada)

Carlos acordou sobressaltado. Os pais falavam alto, discutiam. Do lado de fora, uma pessoa esmurrava a porta. Por que discutiam àquela hora? O medo tomou conta do menino. Ou sonhava? Sonho feito de palavras sem sentido, sons confusos, tumulto indistinto, quase remoto.

Na verdade, Josias batia na tábua porque queria entrar em casa e o pai teimava em não abrir a porta. Dormisse na rua, com os cachorros. Mais gritos e fragor de pancadas. Carlos acordou de vez, o coração a bater em descontrole. A mãe exigia a abertura da porta. Josias não poderia dormir na rua. O homem bradava negativas, vociferava. Aquilo não eram horas de chegar. Fechada a porta, por ela ninguém mais entrava. Somente no outro dia. Dormisse na rua o vagabundo. A mulher chorava, implorava. Deixasse o filho entrar para dormir. O pai teimava. Havia determinado o horário de os filhos estarem em casa: dez horas da noite. Inconformado, o rapaz gritava, chutava e esmurrava a madeira. E ameaçava: se não abrissem a porta, ele a abriria à força.

Em dado momento, a porta pareceu ter sido derrubada. Talvez a tranca tivesse ruído ou os ferrolhos se deslocaram, à custa dos sopapos. Ou terá sido aberta pelas mãos do pai, para evitar o arrombamento? Iniciou-se uma correria dentro de casa. Cinto à mão, o homem se pôs a perseguir o filho sem-vergonha. Corriam, resfolegantes, a gritar. A mãe chorava, pedia calma. Assustados, os meninos se encolhiam nas redes. Pai, mãe e filho corriam pela casa, em fila, cansados, passavam de um cômodo a outro. Apavorado, Carlos se encolhia na rede. Josias passava e o jogava ao léu da noite. O pai o empurrava para mais longe. A mãe o socorria, mas também passava, aos prantos.

Aos poucos foram sossegando. Carlos não soube quando aquilo acabou e de novo dormiu. Talvez quando o pai e filho não mais tiveram forças para correr e falar.

Dias depois, Josias saiu de casa e Carlos nunca mais o viu.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Arquivo Spina 43: Angela Maria dos Santos Pereira

 

Carolina Ramos (O conto contado)

A ideia fermentava em seu cérebro há bastante tempo. Daria um conto. Na certa, um bom conto, caso soubesse aproveitá-la bem!

Sempre assim! As ideias tomam de assalto o autor, com bote felino a saltar sobre a presa!

Desta vez, a presa era aquele jovem iniciante que, ao abrir a janela numa certa manhã, não escapara do bote! A própria natureza servira de cúmplice.

Pelo retângulo da janela, os olhos daquele moço, vocacionado a escritor, passearam pelo céu azul esgarçado de nuvens alinhavadas pelos bicos finos das aves em pleno voo,

Mirou o jardim. Uma rosa entreaberta embalsamava a brisa. Fitou o beiral. Um casal de pombos arrulhava, enamorado. Estendeu mais o olhar - tudo verde à sua frente! Redundantemente verde a esplender em tufos, a perder-se de vista, a unir-se, lá longe, à carapinha viçosa do cafezal - verde rio a mergulhar no verde mar das esperanças!

Que esplêndida a vida de uma fazenda! Só alguém desprovido de visão poderia ficar indiferente àquela multiplicidade de encantos!

Fora justamente aí que a ideia saltara e se apossara dele, a fecundar-lhe a mente fértil e irrequieta de escritor iniciante!

Fechou a janela, sentindo-se plena e poeticamente "grávido" daquela ideia, que reputava genial!

Tudo lhe parecia mais belo porque se erguera do leito com a poesia dentro da alma, propenso a sorver a vida, em plenitude, através do vão daquela janela. Ah! Pudesse ser sempre assim!...

Logo mais, os compromissos o levariam de volta à cidade, às lides rotineiras, sem tempo disponível para a percepção das coisas realmente belas, submisso aos horários e ansiedades castradoras de sonhos e daquela capacidade maravilhosa de ver a beleza da vida palpitar em cada canto à sua volta. Que maravilha, caso possível olhar a vida através dos olhos de um poeta, de um pintor... de um artista, enfim! - Gente capaz de enxergar a beleza interior das coisas. Gente capaz de descobrir encantos não pressentidos pela maioria e que seus olhos viam em plenitude!

Como seria bom se a humanidade, tão fria em certas circunstâncias, e, às vezes tão impermeável ao belo, pudesse receber os olhos privilegiados dos seus poetas mortos!

Nada mais que um transplante perfeito! Um providencial transplante de córneas! Genial, se essas córneas trouxessem consigo a sensibilidade e a empolgação da alma daquele artista doador!

Gostou da ideia! Deixou-se embalar por ela, embora reconhecendo não passar de pura fantasia! Um sonho, apenas!

Mesmo assim... não a descartou!

Como a vida poderia ser mais bonita! A flor, mais flor! A luz, mais luz! O amor, mais amor...Coisas que os artistas veem em profundidade porque seus olhos têm alma! E essa alma lhes permite abraçar e sentir com maior amplitude, as minúcias e os encantos despercebidos pela maioria dos viventes, presos ao prosaísmo, sem tempo disponível para captar o belo!...

Com uma coisa concordava plenamente: - tinha ao seu dispor ótimo argumento para urdir novo conto! Não perdeu tempo.

"Gestação" iniciada no ato! O "parto", só questão de amadurecimento! Quem escreve sabe que é assim. Após a ideia fecundada, o "embrião" começa a desenvolver-se, gradativamente, até vir à luz em ação espontânea, depois de gestado com minucioso carinho.

Assim aprendera, ao iniciar-se na escrita, com ajuda de muitos mestres, alguns empilhados ainda à sua cabeceira, à mercê de folheios.

Em breve, aquele conto, totalmente estruturado em sua cabeça, contava a história de um homem frio, calculista, ligado à matéria até os ossos, e que, de repente, recebe, por implante, as córneas de um poeta recém-falecido.

A partir daquele instante, o mundo passa a ser, para aquele homem, um mundo completamente diferente de tudo o quanto vira até ali! Suas ações e reações tornam-se completamente diversas! Nasce um novo indivíduo - mais humano, mais espiritualizado, imune aos prosaicos chamados da matéria, alma sensível, romântica, escancarada às belezas da vida! De pleno acordo com a emotividade do doador!

Contudo, apesar do bom argumento, aquele conto, já praticamente aderido aos escaninhos da mente do autor, por lá foi ficando... em "gravidez" prolongada, à espera de um bom fecho, que o induzisse a vir à luz.

- Até que...

Na verdade... depois deste preâmbulo, é justamente agora que esta história começa:

- Até que... numa tarde reveladora, aquele jovem escritor, cansado de folhear revistas na sala de espera de um oculista, deixa-se, indiscretamente, envolver pela conversa de duas moças, tal como ele, candidatas a lentes de contato.

- Dizia uma: - Não vai ser fácil aceitar esse tipo de lentes, mas... só o fato de me livrar dos óculos, vale o sacrifício!

A outra concordara... sem deixar de sonhar: - O que eu queria mesmo é ter olhos de poeta para ver o mundo através de lentes naturais... lentes cor de rosa... Exatamente como num conto que eu li, num dia destes...

O jovem escritor ligou as antenas, vivamente interessado. A pergunta saltou sem freio, espontânea, levando à garupa sua ansiedade:

- Perdoem a intromissão, mas... posso saber que conto é esse? - Quem, o escreveu?!

A moça, sorriso largo e olhos sonhadores, titubeou reticente, quase a desculpar-se:

- Sinto muito... Sabe que eu não sei?! Li o conto e achei-o lindo, mas... francamente, não me lembro do nome do autor.

O moço perdeu o sossego. A impaciência e a ansiedade coladas a ele... não mais o abandonaram. Inconformado, ponderava:

- Se tivesse revelado a alguém o argumento daquele seu conto, vá lá! Poderia admitir até a possibilidade de um plágio, mas... tinha certeza - de que sequer dividira a ideia com o papel! Tudo estava em sua cabeça, arrumadinho e impecável- apenas à espera do fecho que sugerisse um título!

Nunca abrira a boca a respeito! —Nunca!...

- Nunca, mesmo?! A dúvida assaltou-o! Guardava leve lembrança de ter deixado escapar algum comentário em conversa com um amigo. Mas... o Túlio não seria capaz de uma coisa dessas! Gostava também de escrever mas, daí a lançar mão de obra alheia, o espaço era grande!... Será?!


Soprou para longe os maus pensamentos. De uma coisa estava certo: – A ideia era sua! Hesitou novamente: - Ou... seria óbvia e boa demais para ser apenas sua?!

Inconformado, tomou-se leitor voraz, insaciável devorador de antologias e coletâneas em busca do "autor fantasma" daquele "SEU" texto... idealizado e burilado com tanto carinho!

E... como "quem procura acha..." Afinal, também achou! O nome do autor deixou-o desolado - Afonso Schmidt!

A quase agressividade com que buscara descobrir quem plagiara o "seu" conto escorregou-lhe pelos pés. Logo às primeiras linhas, identificou o argumento citado pela moça no consultório do oculista!

Apesar da frustração, reagiu conformado, chegando até mesmo a abençoar aquelas palavras providenciais que o haviam livrado do risco de, sem a menor culpa, ser taxado de plagiador, caso a obra tivesse chegado a termo. Graças ao acaso, não caíra naquela armadilha que todo autor teme - o plágio, mesmo que involuntário e coincidente.

Conhecia o nome do autor, mas nunca havia lido qualquer obra sua!

Resignado, abortou a "ideia", enterrando o "feto", sem vestígios e sem registros, numa cova do subconsciente, como se ocultasse um crime – embora não concretizado e concebido sem premeditação.

No íntimo, penitenciou-se, bastante contrito, ante a lembrança daquela farpa envenenada direcionada ao amigo Túlio, num triste momento de desconfiança. Fraqueza da natureza humana, que sempre procura um culpado para atenuar as próprias faltas.

Guardou para si a dor da paternidade frustrada - Seu "conto" já fora contado por outro... e muito bem contado! Já tinha um pai... e que pai! Consolava-o saber que alguém bastante ilustre tivera a mesma ideia que ele. De certa forma, não deixava de ser um honroso consolo!

Fechou com estalo o livro de Schmidt. E foi justamente nesse instante que sentiu o bote de uma nova ideia apossar-se dele:

- Por que não fazer, dessa incrível coincidência, um novo conto?! – Ideia aprovada no ato, sem qualquer hesitação!

- Claro! E porque não?!!

Olhos fechados, entregue por inteiro à evolução do novo argumento, aquele jovem amigo das letras teve absoluta certeza de estar, de novo, literalmente "grávido"!

Sem mais preâmbulos, sentou-se ao computador e começou pelo título;

- "O Conto contado".

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica 
Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos) - 2 -

AO POR-DO-SOL

(Por do Sol no Guaíba)

O por-do-sol agora está magnífico,
Parece do Senhor uma pintura,
E por isto o momento é beatífico,
Como se unisse Deus à criatura...

A noite vai descendo... colorífico
O céu em tons diversos se mistura,
E mesmo pelos ares odorífico
Vem a ser o ambiente de verdura...

Então, eu me recolho e penso em ti,
Com serena tristeza e nostalgia,
Lembrando nosso amor de frenesi...

Se agora já vai longe a mocidade,
Não esqueço os momentos de alegria,
Embora hoje só reste esta saudade !
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NÔMADE

Eu sou o desgarrado involuntário
e qual um nômade, meu coração
não tem fixa paragem, ao contrário
vive sempre mudando de paixão...
 
Ama deveras, em qualquer horário,
a alimentar, quem sabe, uma ilusão,
buscando conseguir outro cenário
onde experimentar nova emoção.
 
Não é fácil seguir este caminho
em que me encontro muita vez sozinho
a percorrê-lo sem saber por quê...
 
E neste meu vagar confuso... incerto...
eu me sinto perdido no deserto
procurando um oásis... que é você !
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

“PERCO-ME EM TEU SORRISO E ME REENCONTRO”

Perco-me em teu sorriso e me reencontro
Nos minutos ardentes que antecedem
O feliz e romântico confronto
De nossas emoções que não se perdem.

Cantar em versos o prazer do encontro
E a embriaguez que os beijos nos concedem,
Talvez então já tudo esteja pronto
Para saciar o que os desejos pedem.

Vamos amar assim perdidamente
Para que todos saibam deste afã
A nos unir nos momentos de ardor.

E viveremos sempre tão-somente
Celebrando as venturas do amanhã,
Sem nada atrapalhar o nosso amor...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SOLIDÃO E SEGREDO

Rosto de mulher sentimental
que me aparece em sonhos, bruscamente.
Não sei se é a deusa do bem ou o anjo do mal,
que pode me curar ou me arruinar totalmente.

Traz no olhar serenamente
qualquer coisa de sobrenatural,
quando a vejo se me torno contente
ao mesmo tempo sinto uma dor infernal.

Desejo tê-la comigo em todos os momentos,
mas receio não agradá-la como quer,
pelas minhas tristezas e sofrimentos.

E assim permaneço em meu degredo,
vivendo por essa mulher
mergulhado na solidão e no segredo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SONETO A CAMÕES

Majestoso Camões, o teu engenho
aliado ao teu amor e à tua arte,
há de ficar cantando em toda parte
onde ao luso idioma houver empenho !

Eu que versejo humildemente, tenho
em teus sonetos, mágico estandarte,
representando o nobre baluarte
que consagrou o teu excelso gênio.

Hoje o verso sem métrica e sem rima
já não levanta da epopeia o mastro,
nem pela forma e suavidade prima;

mas “Os Lusíadas” canta heroico e forte,
o episódio fatal de Inês de Castro:
- a Rainha coroada após a morte!

Renato Benvindo Frata (Madrugada)

Insônia e cansaço fazem-me vítima na insensatez do meio sono, em vigília entrecortada entre dormitar e despertar concomitantes e constantes. E produzem pensamentos lerdos que perambulam pela cachola quais mandarovás* sobre o lençol, agora transformado em toalha de mesa que o estado de letargia concebe.

São fantasmas roliços e pegajosos que saem à procura de algo enquanto o sono não vem. Tudo corre na lerdeza dos passos de suas minipernas nos vai-e-vem sem rumo definido, até que surge do nada, posta ali bem no meio sobre o pano branco estendido, uma taça de vinho. Está cheia até a metade e tem na borda marca de batom. Belo pedaço de lábio impresso em carmim.

Pela mostra a boca deve ser linda, marca em vermelho vivo o poder, a vitalidade e a ambição, a atração, o amor, a paixão, o desejo, a confiança e a coragem; vermelho também de irritação, impaciência e inconformismo e tudo mais que essa linda cor pode representar.

Está ali na boca impressa e consigo neste meio sono perscrutar. Ondulantes, os mandarovás nem se preocupam em resguardar intimidades: amontoam-se na base e se empurram para ganhar caminho, e sobem pelo cristal sem se importar comigo. Acho que estão desejosos pelo vinho do amor que permanece sereno, aguardando talvez um segundo gole do lábio que deixou a marca.

Por enquanto foco apenas o cálice que agora é rodeado e inteiramente tomado por eles que se arrastam da base ao bojo para cheirar, na borda, o buquê, artificial que dali emana. Como pode o vinho atrair tantos pensamentos-mandarovás? Como estarão ligados os tais que enredados disputam espaço naquele objeto com a toalha, o cálice, o vinho e a marca de batom? Não sei. Isso é coisa de sonho, ou do desejo, ou da aspiração, ou a falta do que fazer enquanto o sono não chega.

Nessa corrida perigosa das lagartas, uma e outra caem pelo lado de dentro. Tentam voltar, esperneiam, batem-se, mas acabam por boiarem, paralisadas, na superfície não mais serena, em remoinho de volúpia na falta de precaução. Teriam escorregado ou simplesmente pulado para a morte etílica?

Apenas espio, porque nesses pensamentos rastejo com elas até que fiquem adultas, transformem-se em crisálidas, ganhem asas e sejam atraídos pela luz da promessa que a falsa felicidade faz. E me deixem com a minha insônia.

Perambulo o espaço que expõe a imagem vã do meio sonho e da meia consciência e consigo atingir uma distância curta e sem medida que os vários pares de patas alcançam no perímetro do retângulo branco. E crédulo, boquiaberto e na espera do sono inteiro de algumas horas, fixo-me na marca de batom. Não adormeço.

Nessa angústia o tempo passa e consome a noite, o sol se intromete pela fresta, desfaz o cálice e afugenta as caminhantes de vez; e, num esgar de susto ponho-me em prumo para enfrentar a realidade de mais um dia.

Enquanto aliso de leve os olhos vermelhos e empapuçados, fico a matutar sobre o batom vermelho envolvido por mandarovás. A boca, pelo seu formato, deve ser linda, carnuda, sensual; e gostosa ao ser sorvida como se suga polpa de fruta madura, ou quando o vinho é sorvido a dois, aos poucos.…
= = = = = = = = = = =
* Mandarová = espécie de lagarta, que é uma das pragas de plantações.

Fonte:
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Adega de Versos 38: Solange Colombara

 
Fonte do poema: Solange Colombara. Meus momentos de hiato.
SP: Areia Dourada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Os sons da madrugada

Que bom que a esperança é infinda / e mantém viva a alegria... / Os galos cantam ainda / na aurora de cada dia. – Esses versinhos foram escritos há mais de 30 anos. Pena que perderam quase totalmente a validade. O último galo famoso foi aquele de Ivaiporã, que recentemente virou manchete após ter sido preso em razão de aborrecer os ouvidos da vizinhança.

O tal evento me fez lembrar um caso parecido. Eram meados dos anos 1960 e eu fazia na Rádio Cultura um programa chamado “Reportagem do Cotidiano”. Comentava notícias publicadas pelos jornais do dia e cartas enviadas pelos ouvintes. Um dia chegou uma carta cujo remetente se queixava do “incomodante barulho” de um galo que cantava de madrugada no quintal ao lado, roubando-lhe o precioso sono.

Sempre imaginei o canto do galo como uma das maravilhas da natureza, poesia pura, melodioso despertador jamais superado pela tecnologia. Aí surgiu um zangado insone a desqualificar o milenar kurukuku, rebaixando-o ao humilhante grau de “incomodante barulho”...

Puxa vida. Incomodante é barulho de moto com escapamento aberto. Canto de galo é música.

Outrora havia tantos. Meu avô, que era poeta e maestro de banda, tinha um de raça, peito estufado, pescoço esticado, pedigree de raiz suíça. O bacanudo cantava tão bonito que o vô pôs nele o nome de “Vicente Celestino”.

Passei a infância e uma parte da juventude numa pequena cidade do interior fluminense, São Fidélis, plantada por dois fradinhos capuchinhos à beira do rio Paraíba do Sul. Um lugarzinho sereno e lírico, justa e adequadamente apelidado “Cidade Poema”.

Lá a gente curtia as madrugadas como as horas mais gostosamente sonoras do dia. Além do coro dos galos em cada quintal cantantes, havia outros sons inesquecíveis: a buzina da carrocinha do homem que trazia pão e leite e ia deixando nas portas das casas; a cantiga dos carros de bois vindos bem cedinho dos sítios trazendo cana para a antiga usina; o apito do guarda noturno; o pregão dos vendedores de peixes, frangos, frutas, verduras, doces da roça...

Também a orquestra da passarinhada nos pés de manga, sapoti, jabuticaba: sabiás, azulões, papa-capins... E a melodia das manhãs molhadas: a chuva mansa no telhado, o pinga-pinga das goteiras, o assobio do vento...

Porém insuperáveis mesmo eram as serenatas dos sábados. Um saxofone gorjeando o “Chão de estrelas”; um cavaquinho trinando o “Carinhoso”; um dueto de flautas soprando valsas; um seresteiro caprichando na imitação do Orlando Silva: “Tu és / divina e graciosa, / estátua majestosa / do amor / por Deus esculturada...

Mas é isso, Bilac... Nem todos os ouvidos têm o fino dom de “ouvir e de entender estrelas”, menos ainda a graça de fruir e haurir os sons da madrugada. Tem gente que chega a chamar de “barulho” a nobre sinfonia matinal dos galos. Que pena...
=====================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 29.7.2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Argentina de Mello e Silva (Jardim de Trovas) 5


A fé é um fruto tão doce
que se Deus não existira,
se só mentira Ele fosse
seria o mundo mentira!
= = = = = = = = = = =

A honra não é vaidade
nem mera conveniência.
É a nossa dignidade
num drama de consciência.
= = = = = = = = = = =

Alma sedenta que peca
sem nada ao céu implorar,
é água turva que seca
e nem chega, nunca, ao mar.
= = = = = = = = = = =

Aos moços já não importa
a nossa compreensão,
que da sua à nossa porta
há léguas de solidão.
= = = = = = = = = = =

A renúncia é a droga exata
para um amor que tortura.
Ela é o remédio que mata,
ela é o veneno que cura.
= = = = = = = = = = =

Duas palavras no fundo
têm sempre o mesmo endereço;
se o amor é a vida do mundo
é o ódio o amor pelo avesso.
= = = = = = = = = = =

Esperar o amor é triste.
Viver sem ele é sofrer.
Mas a dor maior que existe
é achá-lo e depois perder!
= = = = = = = = = = =

Esperei-te tanto, tanto
felicidade — e nem vi
que o tempo passava, e enquanto
te esperava — envelheci!
= = = = = = = = = = =

Há um abismo intransponível
entre a ambição desmedida,
e a medida do possível
na limitação da vida.
= = = = = = = = = = =

Mistér na vida se faz
que a paz se anteponha à guerra.
Se o mundo tivesse paz
o céu seria na terra.
= = = = = = = = = = =

Na grande metamorfose
dos atuais tempos seus,
o homem é uma simbiose;
serve ao diabo e ama a Deus!
= = = = = = = = = = =

Na morte o sábio sorri
sorvendo a gota de fel;
deixando aos outros, de si,
a taça cheia de mel!
= = = = = = = = = = =

Não herdei ouro ou brasão,
nem ambiciono jamais
a não ser a tradição
de vossa honra, meus Pais !
= = = = = = = = = = =

Nesta existência fugace,
águas do rio em descida
em cada folha que nasce
há uma vitória da vida.
= = = = = = = = = = =

Ninguém foge, por mais forte,
de uma angústia dolorida,
ou pelo pavor da morte
ou medo da própria vida!
= = = = = = = = = = =

O homem sofisma e erra
chamando a outro de "cão".
O cão não fomenta guerra
nem mata por ambição.
= = = = = = = = = = =

Olho a luz do sol e o mar,
vejo a flor no chão nascer.
Que mais podes, Deus, me dar
pela glória de viver?
= = = = = = = = = = =

Ó tu, rosa presumida,
que te alteias, ouve bem:
– A raiz vive escondida
e é dela que a flor provém!
= = = = = = = = = = =

Por feliz eu tenho alguém,
que sem ter maior cuidado,
nunca invejando ninguém
por ninguém foi invejado!
= = = = = = = = = = =

Por mais que o mundo te aclame
e glórias te oferte a esmo...
Não há ninguém que te ame
mais, no mundo, que tu mesmo!
= = = = = = = = = = =

Quando a vida enfim se embebe
de uma paz bem merecida,
é que a gente se apercebe
que já está no fim da vida.
= = = = = = = = = = =

Quando a vida me é pesada
e o céu um manto tristonho,
da triste angústia do nada
eu faço o tudo de um sonho
= = = = = = = = = = =

Quando me acode à lembrança
a morte no seu segredo,
eu faço como a criança
que canta pra não ter medo.
= = = = = = = = = = =

Quantas verdades o sábio,
— sendo sábio, não alcança.
E as põe Deus à flor do lábio
de uma inocente criança!
= = = = = = = = = = =

Se a velhice é um desencanto
uma angústia, uma saudade...
por que se deplora tanto
quem morre na mocidade ?
= = = = = = = = = = =

Se razão não tens contigo
teu inimigo te diz;
que o coração de um amigo
é sempre o pior juiz!
= = = = = = = = = = =

Trovas de amor eu não faço;
não sei fazê-las, não sei.
O amor é o mundo que abraço,
é a vida a quem tudo eu dei!

Fonte:
Argentina de Mello e Silva. Trovas dispersas. Curitiba/PR: Centro Paranaense Feminino de Cultura, 1984.

Contos e Lendas do Paraná - 3 (Pinhal de São Bento: A lenda do pinheiro em forma de cruz)


A região de Pinhal de São Bento foi ocupada em meados da década de 1940, por ocasião do surgimento da Colônia Agrícola General Osório, CANGO, criada pelo Decreto 12.417 do presidente Getúlio Vargas. O responsável pela distribuição de terras da Cango, na região de Pinhal, era Marciano de Sá. Ele fazia viagens pela região no lombo de um burro, “o burro do Cango”, como era conhecido. Quando o senhor Marciano chegou, na localidade já residia Luiziano Rozário Borba e os Rutes.

Os Rutes eram uma comunidade religiosa que tinha como líder o senhor João Rute, uma espécie de curandeiro. Nesta comunidade havia mais ou menos setenta famílias e todas seguiam os princípios ensinados pelo senhor João Rute. Na época o local era chamado de Pinhal dos Rutes.

Com a chegada de novos moradores, principalmente o senhor Marciano de Sá e o senhor Alzemiro Motta, e devido ao conflito por causa da seita, os Rutes sentiram-se incomodados, pois não se adequavam aos costumes de outras comunidades. Eles viviam de caça, pesca, ervas e algumas produções de subsistência. Não eram permitidas criações de animais com casco partido, não vendiam seus produtos por dinheiro, realizavam escambo por objetos ou animais.

Os novos moradores queriam efetivamente criar um núcleo urbano, com igreja e escola. Então, os Rutes tomaram outro rumo e foram para o interior do município de Barracão por volta de 1954.

Eles, porém, cultivavam um pinheiro singular, que havia no local e possuía galhos formando uma cruz. Dizem que foi descoberto por Bento Monteiro, seguidor dos Rutes.

O senhor João Rute disse ao deixar a localidade, que aquele pinheiro não poderia ser derrubado e se alguém o fizesse iria ser amaldiçoado, assim como toda sua família.

E o lugar nunca mais iria se desenvolver. O pinheiro foi derrubado pelo senhor Algemiro Geittenes, depois que os Rutes abandonaram o local.

Depois de derrubado o pinheiro, o medo tomou conta da família do senhor Algemiro, a sensação de que coisas sobrenaturais rondavam a propriedade era frequente. A  situação foi se tornando insuportável, até que resolveram mudar-se do local.

Coincidência ou não, depois de alguns anos Algemiro foi morto numa briga em uma festa.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos 
Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Estante de Livros (Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa)

Artigo “As Veredas do Grande Sertão”, por Jaqueline Machado

“Só se pode viver perto de outro e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Diadorim, meu amor! Como posso explicar o poder do amor que eu criei, minha vida o diga: Diadorim tomou conta de mim. E, eu o abracei com as asas de todos os pássaros.”

Com esse belíssimo trecho do célebre livro: Grande Sertão: Veredas, de 1956, do escritor mineiro, João Guimarães Rosa, dou início a um breve desabafo, o qual retiro agora de minhas entranhas, para falar desta obra. Grande Sertão não foi escrito para ser apenas lido, mas sentido ... Caso contrário, quase nada será compreendido.

Não tive tantas dificuldades em me familiarizar com a sua mensagem, já que se trata de certos assuntos comuns à minha pessoa. Quem me conhece sabe o quanto me dedico a tentar desvendar as questões sobre o Bem e o Mal que circundam o nosso mundo externo e interior.

“- Nonada”, com essa palavra, que equivale a algo como: “: Que nada” ou “Nada disso” que dá início à narrativa do protagonista, um senhor de idade avançada, que literalmente do nada, passa a contar suas aventuras a um forasteiro, começo o meu relato sobre o livro:

Aos 14 anos, Riobaldo ficou doente e sua mãe fez promessas para o filho ficar bom. Quando o menino voltou a se sentir saudável, foi avisado por sua mãezinha de que precisaria ficar no porto do Rio de Janeiro, esmolando. Um pouco do dinheiro que conseguisse seria para pagar uma missa, e a outra parte que sobrasse deveria ser colocada numa cabaça para descer o rio São Francisco abaixo até chegar a um santuário.

No decorrer da missão, ele avista um jovem de expressão suave e olhos verdes, sentado debaixo de uma árvore, pitando um cigarro. Os dois ficam amigos. O menino de expressão doce, compra queijo e rapadura e o convida a um passeio pelo rio. Em certo momento, Riobaldo começa a temer as fortes correntezas. É quando o amigo diz: “Tem que atravessar. É preciso ter coragem”. Durante o trajeto, essa frase é repetida três vezes como se fosse uma prece ou um mantra de proteção.

Ao completarem a travessia, sentam em um matagal cheio de bambuzais. E, ali comem o queijo e a rapadura, aspirando uma certa solenidade divina. Aquela refeição nos remete a uma espécie de festim sagrado, que celebra a “travessia da vida”. Riobaldo queria cruzar o caminho por uma margem mais simples, mas o novo amigo o fez entender que é preciso exercitar a coragem para estar preparado, pois quando a vida inventa de exigir que se faça um sacrifício, não costuma amenizar o problema.

Os rios possuem três margens: a da embarcação, a da chegada e a do fundo que estrutura as águas. Assim é com nossas vidas, entre o nascimento e a morte: há o meio. O transcorrer de nossas vontades. E o cumprimento, em si, da missão que nascemos para cumprir.

No entanto, por falta de coragem, nós, seres humanos, em sua maioria, nascemos, crescemos, procriamos e morremos sem passar pelas grandes aventuras ou pelos grandes sertões, veredas da vida. Isso acontece, porque fazer escolhas e superar os medos é difícil. É como diz outra frase famosa do livro: “Viver é muito perigoso”...

O protagonista da história bem sabia de tudo isso. Cresceu, virou jagunço, viu coisa que até o “demo” duvida. Ele próprio já fizera coisas erradas e até um pacto com o “coisa ruim”, que na verdade, ninguém sabe ao certo se foi efetuado ou não. E hoje, envelhecido, vive a filosofar sobre a existência.

Na busca pela compreensão da vida, observa a natureza e se utiliza de todas as religiões. Eis aí, vestígios de culpa... O velho protagonista sempre foi homem matuto, mas o tempo a sobrar em sua velhice lhe despertou imensa curiosidade e profunda sabedoria.

Sobre as existências ele diz:
Se o diabo existe? Se existe é nos crespos do homem. (no interior). Pois, como pode o homem ser bom e ao mesmo tempo capaz das maiores atrocidades?...
Ainda refletindo sobre o que existe ou não existe. Cachoeira, é barranco de chão e água caindo, por ele retumbando. Consumindo a água ou desfazendo o barranco, sobra cachoeira alguma. Então, cachoeira existe ou não existe? “Viver é um negócio muito perigoso
”.

Continua ele no transcorrer dos assuntos: “Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é muito provisório. Eu queria rezar o tempo todo”. E para encerrar, a frase na qual reconheci a mim mesma e que me fez chorar ... “ Por toda minha vida pensei por mim. Forro! Sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo mundo. Eu quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa..."

Nesse diálogo de infinitas sapienciais, pude apenas escolher alguns trechos para dizer: João Guimarães Rosa, ao sentar para escrever este livro, tinha como missão despertar nossas almas para sermos o que realmente somos. Sem temores...Não fazendo como o próprio Riobaldo, que apesar de se considerar forro, passou a vida relutando contra o amor que sentia pelo amigo, também jagunço, que futuramente veio a se chamar Diadorim.

Há, mas Diadorim era mulher vestida de homem... No entanto, apenas sua alma sabia disso. Por temer a travessia, só pode abraçá-la com as asas de todos os pássaros quando os olhos de seu amor haviam se fechado para a vida. E o seu tempo para amar havia se encerrado.

Fonte:
Texto enviado por Jaqueline Machado.

domingo, 1 de agosto de 2021

Varal de Trovas n. 517

 

Lourenço Diaféria (As aventuras de um ciclista urbano)

Sensível ao apelo do governo para economizar gasolina e, no íntimo, coagido pela insuficiência da verba para combustível (nesta altura do orçamento já plenamente comprometida), não lhe restou outro recurso senão adotar a bicicleta.

Chamou a mulher de lado, confidenciou: - Prepara minha sunga esportiva; amanhã vou trabalhar de selim e guidão.

Estava um pouco destreinado. Faltava-lhe o equilíbrio dos velhos tempos e, para evitar o fiasco diante dos vizinhos, saiu de casa às 5 da matina.

Cruzou com o leiteiro. Quis fingir que não viu, mas sem resultado:

- Força, doutor. No começo a gente padece mesmo. No fim é moleza.

Ficou em dúvida se pegava a Avenida Heitor Penteado ou se descia pela Água Branca. Lembrou-se da subida da Pompéia, não ia aguentar o repuxo. Melhor não arriscar.

Escolheu as ruas mais planas, no sexto quarteirão já bufava. Respirou fundo, enchendo os peitos. Desembocou a custo nas Perdizes em frente ao Elevado Costa e Silva - o tal de Minhocão. Mentalmente mediu o percurso, nem lhe passou pela ideia que é proibido o trânsito de ciclistas no elevado.

Quando deu fé, já estava nele. Atrás de si, a fila de carros. Por cautela, conservava a direita, mas a providência não lhe poupou o dissabor de algumas diatribes. Um sujeito barbudo,  dirigindo um fusca, chamou-o de molenga. Outro lhe mostrou a língua, em atitude altamente obscena. E até uma mulher se julgou no direito de desacatá-lo: - Folgado, hein, cara!

Por um momento sentiu a tentação de saltar lá de cima, com bicicleta e tudo, mas o senso do dever, o espírito cívico e o apelo governamental estimularam-no a prosseguir pedalando.

Na altura da Praça Marechal Deodoro encarou a estátua de Pereira Barreto, e a copa verde das árvores onde os pardais pareciam acompanhar seu esforço hercúleo. Pouco a pouco suas pernas amoleciam. Uma dor aguda percorria-Ihe  o cangote, descia até o tendão-de-aquiles, e ele teve a impressão de que ia fazer xixi.

Só quem passou por essa experiência sabe o que é isso. Lembrou-se dos filhos, da família, de seus antepassados. E súbito, ocorreu-lhe a ideia: pôs-se a assobiar o Hino Nacional.

Esse expediente trouxe-lhe algum conforto, mas os pedais - certamente mal lubrificados - opunham crescente resistência ao movimento de suas juntas.

- Vai, ciclista das arábias!

O berro ecoou no Minhocão como uma afronta. Era demais. Mesmo considerando sua fina educação, forçoso responder à altura:

- Das arábias é a mãe!

Aliviado, percebeu o desvio à direita. Tomou o rumo do Arouche, pegou a Vieira de Carvalho - onde há aquele índio de cócoras - e saiu triunfalmente na Praça da República.

Olhares intrigados fixavam-no. Crianças acenavam  os lenços. O semáforo estava vermelho; ele aproveitou para descansar o pé direito no asfalto e adivinhou que estava prestes a desmaiar. Iria cair ali mesmo, como um pedaço de chumbo. E não o arrancariam dali nem amarrado. Uma velhinha de preto chegou-se delicadamente, indagando onde ficavam os Correios e Telégrafos: queria pôr uma carta para Botucatu, urgente.

Ele tentou explicar, mas as palavras engrolavam como um bolo na garganta. Tentou cuspir, mas não havia saliva. Do nariz escorria lama grossa, dessas que os barbeiros usam para massagear o rosto dos fregueses e evitar rugas. Seu coração palpitava. Ardiam-lhe os pulmões. Suas nádegas estavam adormecidas.

A velhinha percebeu seus olhos vidrados, condoeu-se, ofereceu-lhe uma balinha de hortelã-pimenta.

Quando o semáforo abriu, ele tentou arrancar na bicicleta, mas o ar escureceu. Relâmpagos cruzavam o espaço, explodiram trovões em sua cabeça, ele rodopiou, caiu sentado perto do bueiro. Um rato saltou de banda, lépido.

Ninguém se aproximou, pensando tratar-se de um caso comum de morte natural. O guarda de trânsito trilou o apito, ordenando que se levantasse, estava atrapalhando o livre escoamento dos veículos. Ofegante, garganta áspera, sentia-se um perfeito miserável entregue às baratas. Só emergiu da névoa quando recebeu das mãos do homem-da-lei a notificação de multa por estacionamento em local proibido. Em vão procurou explicar que não tinha estacionado: tinha pifado.

Com a lei não se argumenta.

Montou novamente na bicicleta, trôpego, sonado, à deriva: desguiou pela direita, entrou na São Luís, bateu num ônibus, atropelou uma galinha, subiu na ilha, derrapou na calçada, trombou com um poste, rasgou a saia de uma garota, tirou uma fina no carro-tanque do corpo-de-bombeiros, atrapalhou uma ambulância, desacatou um guarda-rodoviário que estava largando o serviço, e entrou num bar da Praça João Mendes. Tudo sem desmontar da bicicleta.

Foi posto para fora a pescoções, caiu no buraco da estação do metrô da Praça Clóvis, um fiscal autuou-o por poluir a cidade com o suor que escorria pelas pernas - mas felizmente conseguiu chegar a seu destino na Rangel Pestana,  a tempo de assinar o ponto na repartição competente.

Como, porém, estivesse com a camisa rasgada, o paletó sem a manga direita, ligeiras escoriações por todo o corpo e de sunga, recebeu ordem superior para retirar-se, sob pena de abertura de inquérito administrativo de acordo com os estatutos em vigor.

Desagradável, sem dúvida. Mas um ciclista não se faz num dia. De qualquer forma, solicita aos cidadãos desta cidade que, se algum encontrar suas calças (que devem ter ficado no trajeto entre a Rua das Palmeiras e o Edifício da Fazenda), queira por obséquio entregá-las na Rua da Alegria.

Dependendo do estado das calças, estuda-se módica gratificação.

Fonte:
Lourenço Diaféria. Um Gato na Terra do Tamborim. 
SP: Símbolo, 1977.

Fabiano Wanderley (Glosas) – 2

ENTRE ESPINHOS, NASCEM FLORES,
DAS FLORES, NASCEM, FRAGÂNCIAS.


Entre ódios, nascem amores,
nos surpreende, acontece,
O inesperado, aparece,
entre espinhos, nascem flores.

Para sanar suas dores
e atender às suas ânsias,
lute, não meça distâncias,
as rosas, dão seu recado;
— Mesmo tendo, o espinho ao lado,
das flores, nascem, fragrâncias.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

JUVANKLIM DO PEITO EXTRAI,
ACORDES DO CORAÇÃO.


Quando a música, o abstrai,
ele expõe seu sentimento
e a essência do seu talento,
Juvanklim do peito extrai.

Seu esmero, sobressai,
quando enfim, a inspiração
trás, na bela execução
das mãos de seda, do autor,
suaves toques de amor,
acordes do coração.

(Ao grande amigo, este excepcional médico, instrumentista e compositor, Doutor João Juvanklim, minha sincera homenagem.)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MINHA LENINHA É DEMAIS!
CADA CANTO É UMA VASSOURA


Ninguém faz, como ela faz,
seu trabalho é uma oração;
o seu termo é a perfeição,
minha Leninha é demais...

Toda limpeza lhe apraz,
no jardim, usa a tesoura,
a casa inteira ela doura,
varre e limpa, todo o chão
e pra aguentar seu rojão,
cada canto é uma vassoura!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SE A CASA É DE MULHER FEIA,
LÁ NÃO HÁ DESCONFIANÇA.


O ciúme não campeia,
não se fala em mexerico,
nem traição, nem fuxico,
se a casa é de mulher feia.

E se alguém, a enlameia,
o faz por simples vingança,
pois, com toda vizinhança,
não há estremecimento,
ninguém faz enxerimento,
lá não há desconfiança.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SE TODO MUNDO, CANTASSE,
QUE BOM SERIA O VIVER.


Sanaria todo o impasse
desta gente, tão sofrida,
se amaria mais a vida,
se todo mundo cantasse.

Se este povo se irmanasse,
procurando se entender,
desfrutando, com prazer,
de tudo, que o canto traz,
alegria, amor e paz,
que bom seria, o viver.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. 
Natal/RN, 2014.

Sammis Reachers (Jaú “Liquid-Paper”)

O cidadão conhecido por Jaú era antigo motorista da empresa Fortaleza, de Niterói.

Certa feita, enquanto o hoje também motorista Nildo era ainda manobreiro na mesma Fortaleza, lá chegou Jaú, à noite, recolhendo o carro após sua última viagem. Sempre tranquilo e conversador, naquele dia Jaú estacionou o veículo no meio do pátio e saiu apressado. Assim que ele desceu do veículo, um dos manobradores logo assumiu o volante, pois aquele carro estava na escala para ser lavado (a cada noite eram lavados alguns veículos). Enquanto ele manobrava o carro para posicioná-lo no lavador, Nildo observava e ajudava, de fora do veículo, na manobra.

Porém, logo que os primeiros jatos de água bateram na lataria do ônibus, Nildo notou algo estranho: como num passe de mágica, uma extensa linha começou a surgir na lateral do veículo, em sua parte branca (naquela época os veículos da empresa eram bicolores; branco e marrom). Mas aquela linha não estava ali, Nildo tinha certeza. Ao se aproximar, mesmo molhando-se, nosso amigo percebeu que se tratava na verdade de um enorme arranhão, e que em algumas partes quase rasgara a lataria.

Se você já foi manobreiro, sabe que em muitas empresas o veículo deve ser observado quando retorna à garagem, para verificar se há alguma avaria; caso exista, o motorista é notificado e em geral deve pagar pelo prejuízo. Por outro lado, se o motorista coloca o carro na garagem e ninguém nota nada na hora, depois fica difícil arrumar alguém para assumir a culpa; o motorista pode alegar que não foi ele, que foi o parceiro do outro turno, que já estava assim, ou pior: que a avaria fora feita pelos manobradores, pelo que eles então deveriam pagar.

Isso tudo passou rápido pela cabeça de Nildo, ao perceber aquela enorme linha surgir milagrosamente no veículo. Havia um tipo de tinta sobre o arranhado, mas a tal "tinta" não aguentou a água! Ao olhar lá para a frente, Nildo ainda pôde divisar o velho Jaú, passo apressado, saindo da garagem.

Nosso amigo não perdeu tempo: disparando como um Usain Bolt, Nildo conseguiu alcançar Jaú, a quem segurou pelo braço.

- Peraí, malandro! Tem alguma coisa errada lá no seu carro! Tá com uma enorme avaria lá na lateral! E tinha um tipo de tinta fresca cobrindo!

– Avaria? Tá doido? - tentou desconversar Jaú.

Nisso um dos chefes, que observava a situação, se aproximou e encostou Jaú na parede:

- Como é, seu Jaú? O carro está arranhado e tinha tinta sobre ele?

Jaú tentou se desvencilhar da acusação e gaguejava dando desculpas, nitidamente nervoso, quando o chefe o cortou:

- Olha, você está gaguejando muito, e nem quero saber o que houve: é melhor o senhor admitir agora e pagar o pequeno prejuízo numa boa, uma merreca, do que tomar uma justa causa no dia de amanhã. Vai tomar uma justa causa, hein! Você que sabe. E aí, o que você fez afinal?

Pego de calças arriadas, não teve jeito. O pilantra do Jaú confessou:

- Sabe o que é, chefia... Eu levei uma fechada de um parceiro da (empresa de ônibus) Pendotiba, um barbeiro do #$%&*@, e acabei arranhando a lateral numa caçamba de entulho. Poxa, esse mês eu estou durinho, e pago duas pensões... Aí eu comprei um vidrinho de Toque Mágico, sabe, esses Liquid Paper que usam no colégio, e pintei o arranhado...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 31 de julho de 2021

Versejando 69

 

Humberto de Campos (Pavores de enfermo)

Não obstante a sua aparência de homem grave, circunspecto, ponderado, que lhe assegurara aquele emprego de confiança, o coronel Bonifácio Coutinho, diretor do Asilo de Senhoras Arrependidas era, intimamente, um dos temperamentos menos compatíveis com as responsabilidades daquelas funções. Lutando, disputando-se o domínio da sua vontade, defrontavam-se nele, o desejo e o interesse. E não era sem custo, sem violência, que este se sobrepunha à brutalidade dos seus nervos, tornando-lhe possível a manutenção daquela sinecura amável, que lhe amenizava as infinitas asperezas da vida. Assim constituído, o coronel resolveu, um dia, quebrar a sua couraça e, chamando em particular o médico do estabelecimento, pediu-lhe um conselho:

- Diga-me cá, doutor, diga-me, com reserva: o senhor acha que me fica mal conquistar uma ou outra das nossas asiladas?

- Absolutamente, não! - acudiu o facultativo. - Desde que elas queiram, não há mal nenhum. Eu próprio tenho me prevalecido dessa faculdade, procurando apenas não investir contra aquelas que, de antemão, parecem rigidamente sérias.

- E que faz o doutor para diferenciar umas das outras? - objetou o velho - Como que o senhor as distingue?

O galeno tomou-o pelo braço, arrastou-o para o silêncio de uma janela deitando sobre jardim, e revelou-lhe o seu segredo:

- Olhe: o senhor, quando se quiser aventurar a uma destas conquistas, faça o seguinte: chegue perto da asilada que houver escolhido, pergunte-lhe a idade; se ela lhe disser uma idade visivelmente inferior àquela que tem, faça-lhe a sua declaração, que será por força bem sucedido.

E apertando-lhe a mão.

- Experimente.

Um mês depois foi o médico chamado para ver o diretor do Asilo, cujas condições de saúde preocupavam seriamente os seus subordinados. O estado de depressão era visível. O pulso, irregular, incerto, descompassado, denunciava um profundo abalo orgânico, que os seus cinquenta e cinco anos haviam tornado perigoso. À vista do enfermo, o médico compreendeu a sua missão e, pedindo que os enfermeiros se retirassem, começou:

- Meu caro coronel, é preciso que o senhor mude de vida.

- Eu?

- Sim, senhor. O senhor abusou do meu conselho, e deve lembrar-se que não é mais uma criança, um moço, um rapaz no vigor dos anos.

E interrompendo-se:

- Que idade o senhor tem?

- Como? - atalhou o doente, alarmado.

- Eu estou perguntando que idade tem o senhor.

A essa confirmação da consulta, passou pelo cérebro do enfermo um pensamento sinistro. Com que ideia lhe fazia o médico aquela pergunta? E foi com o pavor nos olhos que se sentou, de repente, no leito, bradando, horrorizado, com os olhos fora das órbitas:

- Cento e cinquenta anos, doutor! Duzentos! Duzentos e cinquenta anos, doutor!

E disparou, escada abaixo.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) XI

COBRANÇA


Voltei no tempo para ver amigos
dos tempos idos, sonhos de rapaz.
Lembrei de amores novos e de antigos;
- alguns se foram, já estão em paz.

O tempo traz lembranças e castigos,
a tal felicidade é tão fugaz,
quase sempre nos faz pobres mendigos
a implorar um amor que nunca traz.

Não sei se cometi um erro crasso,
não posso reclamar do meu fracasso,
foi alto o preço que paguei, talvez.

Porquanto a vida cedo ou tarde, cobra
erros, deslizes ou qualquer manobra
sem explicar porque é nossa vez.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

JULGAMENTO

Não me passou jamais pela cabeça
julgar e condenar qualquer pessoa.
Quem não tiver pecado, que apareça,
- jogue a pedra que fere e que magoa,

"Não julgueis". Que este mundo não esqueça
da mensagem do Mestre, que ressoa
para que a Luz divina resplandeça
sobre os homens que têm vontade boa.

Minha vida eu guiei pela Esperança,
pela decência do viver honesto,
- quantas vezes paguei um alto preço?

Não me fascina a glória da abastança,
prefiro o meu viver sempre modesto,
e tenho, com certeza, o que mereço!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

LEMBRANDO RUI

Não me seduz o fausto da riqueza,
nem o brilho da glória e do poder.
Exemplos já são muitos da esperteza
que alguns humanos imaginam ter.

São nocivos à própria Natureza,
a ganância é maior e dá prazer.
Só o lucro interessa com certeza,
o pobre que se dane em seu viver.

Dizem que o Mundo está globalizado,
pois tudo é permitido no mercado,
foi-se a decência que o poeta sonha...

A corrupção cada vez é mais danosa,
tinha razão o grande Rui Barbosa:
ser honesto é motivo de vergonha!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MARCAS

Vou procurando pelo mundo afora
buscando aqui e ali um novo abraço,
que a vida sem amor não tem aurora
e se transforma no maior fracasso.

É triste ver a mágoa de quem chora,
- o verdadeiro amor não é devasso.
A vida se desfaz e vai embora
e o sentimento acaba em descompasso.

Ainda assim recordo aquele sonho,
quando vivi o amor feliz, risonho,
que o destino, invejoso, me levou.

E quando olho no espelho do meu rosto
vejo as marcas da dor e do desgosto
lembrando o amor que um dia me deixou.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MELANCOLIA

A tarde começou chuvosa e triste,
no coração bateu uma saudade,
parece que a tristeza ainda insiste
em ditar moda após a mocidade.

A noite surge bela e não resiste
à luz da lua bailando na cidade,
meu coração é forte e não desiste
desse amor sensual que o peito invade.

Meu sonho já não é tão colorido,
por isso, às vezes, fico comovido
sentindo a dor de quem nunca viveu,

E vou levando a minha desventura
cantando um salmo alegre de Ternura
para esquecer que a vida me esqueceu!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração.
São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Sabino (O Diamante)

EM 1933 Jovelino, garimpeiro no interior da Bahia, concluiu que ali não havia mais nada a garimpar. Os filhos viviam da mão pra boca, Jovelino já não via jeito de conseguir com que prover o sustento da família. E resolveu se mandar para Goiás, onde Anápolis, a nova terra da promissão, atraía a cobiça dos garimpeiros de tudo quanto era parte, com seus diamantes reluzindo à flor da terra.

Jovelino reuniu a filharada, e com a mulher, o genro, dois cunhados, meteu o pé na estrada. Longa era a estrada que levava ao Eldorado de Jovelino: quase um ano consumiu ele em andança com a sua tribo, pernoitando em paióis de fazendas, em ranchos de beira caminho, em chiqueiros e currais, onde quer que lhe dessem pasto e pousada.

Vai daí Jovelino chegou aos arredores de Anápolis depois de muitas luas e ali se estabeleceu, firme no cabo da enxada, cavando a terra e encontrando pedras que não eram diamantes. Daqui para ali, dali para lá, ano vai, ano vem, Jovelino existia de nômade com seu povinho cada vez mais minguando de fome. Comia como podia — e não podia. Vivia ao deus-dará — e Deus não dava. Quem me conta é o filho do fazendeiro de quem Jovelino se tornou empregado:

— Ao fim de dez anos ele concluiu que não encontraria diamante nenhum, e resolveu voltar com sua família para a Bahia onde a vida, segundo diziam, agora era melhorzinha. Não dava diamante não, mas o governo prometia emprego seguro a quem quisesse trabalhar.

Jovelino reuniu a família e botou pé na estrada, de volta à terra de nascença, onde haveria de morrer. Mais um ano palmilhado palmo a palmo em terra batida, vivendo de favor, Jovelino e sua obrigação, de vez em quando perdendo um, que isso de filho é criação que morre muito. Foi nos idos de 43:

— Chegou lá e se instalou no mesmo lugar de onde havia saído. Governo deu emprego não. Plantou sua rocinha e foi se aguentando. Até que um dia...

Até que um dia de noite Jovelino teve um sonho. Sonhou que amanhava a terra e de repente, numa enxadada certeira, a terra escorreu... A terra escorreu e aos seus olhos brilhou, reluziu, faiscou, resplandeceu um diamante soberbo, deslumbrante como uma imensa estrela no céu — como uma estrela no céu? Como o próprio olho de Deus!

Jovelino olhou ao redor de seu sonho e viu que estava em Anápolis, no mesmo sítio em que tinha desenterrado a sua desilusão.

E para lá partiu, dia seguinte mesmo, arrastando sua cambada. Levou nisso um entreano, repetindo pernoites revividos, tome estrada! Deu por si em terra de novo goiana. Quem me conta é o filho do fazendeiro:

— Você precisava de ver o furor com que Jovelino procurou o diamante de seu sonho. A terra de Goiás ficou para sempre revolvida, graças à enxada dele. De vez em quando desmoronava, Jovelino ia ver, não era um diamante, era um calhau. Até que um dia...

— Encontrou? — perguntei, já aflito.

— Encontrou nada! Empregou-se na fazenda de meu pai, o tempo passou, os filhos crescidos lhe deram netos, a mulher já morta e enterrada, livre dos cunhados, os genros bem arranjados na vida. Um deles é coletor em Goiânia. O próprio Jovelino, entrado em anos, era agora um velho sacudido e bem disposto, que tinha mais o que fazer do que cuidar de garimpagens. Mas um dia não resistiu: passou a mão na sua enxada, e sem avisar ninguém, o olhar reluzente de esperança, partiu à procura do impossível, do irreal, do inexistente diamante de seu sonho.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Arquivo Spina 42: Beth Iacomini

 

Rachel de Queiroz (O Menino e o Caravelle)

Os OLHOS DO MENINO pareciam duas estrelas; ‘‘Caravelle!’’ Para ele é uma palavra mágica, a era do jato depois da era da hélice, Do jeito que ele fala, parece que avião a hélice é coisa tão obsoleta como carro de boi. Nos tipos obsoletos ele já viajou outrora — precisamente no ano passado. Agora sobe a escada, penetra na nave com emoção inaugural — ele que só estava acostumado a lhe seguir com a vista as linhas paralelas de fumaça, riscando o céu.

Exigiu que nos sentássemos logo no primeiro par de poltronas; era talvez para se sentir mais perto do próprio coração da nave (coração ou cabeça?), o santuário misterioso dos pilotos. Afivelou cuidadosa e lentamente o cinto de segurança, como um ritual. Defronte a nós a aeromoça se sentou no seu banquinho e ela também afivelou o seu próprio cinto. Vestia uniforme vermelho de bolero e o menino, com o olho estendido que lhe dá a TV para esses assuntos, perguntou baixinho: — Isso é roupa de desfilar? 

Não, esqueço. Antes de apertar o seu cinto para a decolagem, a aeromoça veio oferecer ao jovem passageiro a cestinha das balas. E precisamente esse episódio marcou o início de uma bela amizade, porque ele, indeciso, tocava as balas com as pontas dos dedos, sem saber qual seria a melhor naquela variedade e a moça lhe murmurou:

— As azuis.

E no que ele, cerimonioso, tirava só uma bala, a moça catou rapidamente no cesto uma meia dúzia — todas azuis — enchendo-lhe a mão.

Depois, como já contei, ela sentou-se defronte, no banquinho que lhe é reservado, prendeu o cinto e o menino reajustou o seu, copiando-lhe os gestos.

E aí foi a emoção da decolagem: o avião corria na pista e a todo momento o menino indagava:

— Já está voando? Já está voando?

A aeromoça lhe ensinou um segredo:

— Quando voar você sente que fica mais leve, despregado do chão.

Mas, na concentração para sentir-se mais leve, ele fechou os olhos e, quando os abriu, já voava alto, as casas lá embaixo começavam a ficar pequeninas. E ele a reclamar por não ter sentido nada, quando de repente veio um choque novo:

— Uma nuvem, vamos bater numa nuvem!

Ele prendia a respiração enquanto o avião penetrava nuvem adentro e se envolvia em névoas esgarçadas. O menino soltou o fôlego numa surpresa deslumbrada:

— Pensei que nuvem era gelo puro, durinho, e que o avião ia rebentar tudo. Mas nuvem parece mesmo algodão de açúcar!

Aí se escutou uma voz no alto-falante. Prevenia que voávamos a 12 mil metros de altitude, em velocidade de cruzeiro de 850 quilômetros por hora, e que a temperatura lá fora era de uns vinte graus abaixo de zero ... Esses miraculosos dados técnicos quase esgotam a capacidade admirativa do menino. Qualquer daquelas informações, vindo isoladas, já seria pretexto para profundas cogitações e infinitas perguntas. Vindas assim em massa só um cérebro eletrônico para destrinçar tudo! Bem, botando os dados em ordem:

— 12 mil metros eu sei, são 12 quilômetros ... Quer dizer que estamos mais ou menos na distância que vai da cidade a Ipanema ... quantas léguas são 12 quilômetros? Ah, duas? Imagine, estamos a duas léguas de altura! E a velocidade — 850 quilômetros por hora ... vamos ver ... o carrinho lá de casa quando corre feito um doido, não passa do cem ... 850 é quantas vezes cem? Oito vezes e meia? Então eu neste jato estou correndo como se fossem oito carros e meio de uma vez na velocidade de cem quilômetros por hora... Puxa vida! Agora a temperatura? Com quantos graus vira gelo? Zero grau? Então vinte graus abaixo — uai, porque é que não está tudo aqui virado gelo, como no congelador da geladeira? Ah, aquecimento ... Eles soltam umas baforadas quentes do motor dos jatos ... que pena, eu gostava de ver era tudo gelado!

Mesinha para o lanche.

— Por que é que lá em casa não se compra uma mesinha destas de enfiar na poltrona? Assim não dava trabalho de arrumar a mesa grande e a gente comia feito em avião — e para ver televisão era bárbaro!

Aperitivo? Tem grapete? Sanduichinho de presunto com palito prateado — legal às pampas!

E aí chegou a Bahia. O dia é de sol, o asfalto do aeroporto é um convite. E depois o alto-falante chama e de novo se terá que subir por aquela escada de rodas, e receber os cumprimentos dos comissários e apertar os cintos, e decolar, e desta vez ele vai sentir mesmo quando o avião despegar do chão.

E novamente as mesinhas e agora o almoço, O avião desliza sobre um colchão de nuvens tão acamadas e branquinhas que parecem um ninho. Mas um ninho do tamanho do mundo! Bandeja de almoço, comida de gente grande e comida de criança — e o que é para ser quente vem quente e o que é para ser frio vem gelado mesmo! Entre as coisas que o menino mais aprecia estão os dois canudinhos de sal e pimenta e o estojinho do palito. E ele explica, muito grave, que o palito vem escondido porque palito não é elegante.

À descida no Recife se renovam os prazeres da Bahia, com o acréscimo dos murais de Lula Cardoso Ayres que exigem acurado estudo e inesgotáveis perguntas. Felizmente interrompidas pelo chamado de embarque — e a escada, o cinto, o apito fino do jato, a decolagem, o discursinho do comandante, música e mais lanche!

— Acho que dão tanta comida é para distrair as pessoas mais velhas que ainda têm medo de voar...

Por fim o alto-falante anuncia que estamos sobrevoando a cidade de Fortaleza. O avião trepida (naquele deslizar de cisne a gente já esquecera que avião antigamente trepidava) mas lá vem a voz do comandante a explicar que a trepidação é devida ao emprego dos freios aerodinâmicos. O vocabulário do menino entesoura a nova aquisição: freio aerodinâmico. E ele fica rolando a palavra na boca como um doce.

Afinal o avião toca o solo ... uma vez, outra ... como andorinha que pousa e levanta os pés, experimentando.

Já se pode desafivelar o cinto. Já se pode apanhar a frasqueira debaixo do banco, os casacos na rede.

O comissário realiza aquela fascinante manobra de abrir a porta — igualzinha a uma porta de astronave. A luz do sol invade o avião. A aeromoça calçou as luvas e o menino a cumprimenta solenemente. Suspira:

     — Nunca mais vou me esquecer deste avião!

     E se encaminha para a escada, o primeiro passageiro a descer, a enfrentar a aventura nova que será a descoberta da cidade.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. 
RJ: J. Olympio, 1976.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 4 –

A afeição nunca envelhece
nem perece no caminho,
transforma a dor numa prece
e em flores qualquer espinho.
= = = = = = = = = = =

A brisa mansa revela
o frescor do orvalho intenso,
tornando a noite mais bela
e o despertar menos denso.
= = = = = = = = = = =

Alguém que só fica olhando
quem comete a atrocidade,
pode estar compartilhando
da mesma cumplicidade.
= = = = = = = = = = =

As dores das caminhadas
que nos fazem padecer,
são flores despetaladas
colhidas no entardecer.
= = = = = = = = = = =

De toda a caça de pena
o caçador se deleita,
sempre pretere a pequena
tendo a grande à sua espreita.
= = = = = = = = = = =

Fazei que andemos nos trilhos
do amor, ó Deus, que sois Pai!
Sobre nós, os vossos filhos,
bênçãos de paz, derramai!
= = = = = = = = = = =

Grita o rebelde e se abala,
debalde chora e se agita,
só descansa quando cala
ou deixar de ser quem grita.
= = = = = = = = = = =

Há traços do ser, gravados,
nos telões da sociedade,
riso e pranto, misturados,
refletindo a identidade.
= = = = = = = = = = =

Jamais aprendemos tanto
quanto a escola da existência,
seja no riso ou no pranto,
cem por cento de frequência.
= = = = = = = = = = =

Já vai longe, aquele dia,
que a NASA ao mundo avisou,
mesmo a alguns sendo utopia:
"o homem, na lua, pisou".
= = = = = = = = = = =

Mesmo que o tempo não fosse
veloz, tal fera bravia,
com paz tudo era mais doce
e a vida menos vazia.
= = = = = = = = = = =

Não podem amar, sem antes,
revelarem quais as fontes,
que conduzem dois amantes
a unirem seus horizontes.
= = = = = = = = = = =

Nas estradas do porvir
saiba aonde sonha chegar,
ninguém volta sem partir
e há quem parta sem voltar.
= = = = = = = = = = =

Na vida posso sonhar
e no sonho me manter,
porém jamais alcançar
a vida que sonho ter.
= = = = = = = = = = =

Ninguém vê ao seu derredor
senão com o olho que tem,
verá mais longe e melhor
se com a alma, olhar também.
= = = = = = = = = = =

No leito, à dor condenado,
inane, ninguém perdure,
diz o doente, acamado:
"Ó Deus, me leve ou me cure"!
= = = = = = = = = = =


Nos campos do cotidiano
cresce todo o experimento,
fruto do trabalho humano
e do seu comportamento.
= = = = = = = = = = =

O amor nunca gera atrito,
para amar não tem idade,
para ser amplo e irrestrito,
deve haver maturidade.
= = = = = = = = = = =

O homem faz a própria lei,
por si só, se julga um bravo,
mas ninguém se sinta um 'rei',
para tornar o outro, escravo.
= = = = = = = = = = =

Os percalços se sustentam
no infortúnio ou no desdém,
dos que pela vida ostentam
a aparência e nada além.
= = = = = = = = = = =

Pedras, para quem caminha,
nunca sirvam de tropeço,
as conheço, uma foi minha,
pois tinha o mesmo endereço.
= = = = = = = = = = =

Quando a tudo me rebelo
e em nada vejo harmonia,
pode estar no cerebelo
a razão da rebeldia.
= = = = = = = = = = =

Que a chama da fé não ceda
às trevas da prepotência.
Luz e paz, Deus nos conceda,
por sua benevolência.
= = = = = = = = = = =

Quem de amar só faz de conta
cai na senda temerária,
olvida o que à vida aponta,
só lembra a 'conta bancária'.
= = = = = = = = = = =

Se algo  queres alcançar
nunca deves confundir,
a esperança de chegar
com o temor de partir.
= = = = = = = = = = =

Se alguém obstar por sorrir
e chorar lhe for preciso,
jamais deixe sucumbir
a vibração de um sorriso.
= = = = = = = = = = =

Sobre águas desconhecidas,
teu barco corta altos mares
e às ondas embravecidas
vencerás, se em paz remares!
= = = = = = = = = = =

Sobre o mar, num barco à vela,
ninguém anda, mas navega.
De automóvel, na ruela,
ninguém rema, mas trafega.
= = = = = = = = = = =

Surge o sol nos horizontes
e abre as cortinas dos céus,
lança a luz e faz dos montes
pedestais dos seus troféus.
= = = = = = = = = = =

Tudo o que à vida assumirmos
nos leve ao seu cumprimento,
mesmo se ao pranto cairmos,
sempre haja um reerguimento!

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (A velhinha e o porco)

Era uma vez uma pobre velha que vivia sozinha. Um dia, estava varrendo o quintal e encontrou uma moeda.

"Que farei com esse dinheirinho?" - pensou ela - "ah, já sei, irei ao mercado e comprarei um porquinho para me fazer companhia."

E assim fez. Quando voltava do mercado, teve que passar por uma pinguela. Mas o porquinho não quis atravessá-la.

A velhinha foi mais adiante e encontrou um cão.

- Cachorrinho, por favor, morde o porco que não quer atravessar a pinguela e, por isso, eu não posso voltar para casa.

O cão não lhe deu atenção.

Ela foi mais adiante e encontrou uma vara. Pediu-lhe, então:

- Varinha, bate no cão, ele não quer morder o porco, que não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

A vara não lhe deu importância.

A velhinha andou um pouco mais e encontrou um fogo.

- Foguinho, queima a vara; ela não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O fogo nada fez.

Ela continuou andando e encontrou a água. Pediu-lhe:

- Água, apaga o fogo; ele não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

A água não a atendeu.

A velhinha foi andando e encontrou um boi. Disse-lhe:

- Boizinho, bebe a água; ela não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O boi não a ouviu.

Mais adiante, ela encontrou um açougueiro e lhe falou:

- Açougueiro, mata o boi; ele não quer beber a água; a água não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O açougueiro não lhe respondeu.

A velhinha andou mais um pouco e encontrou uma corda.

- Corda, enforca o açougueiro; ele não quer matar o boi; o boi não quer beber a água; a água não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

Mas a corda não ouviu.

Mais adiante, ela encontrou um ratinho e lhe pediu:

- Ratinho, rói a corda; ela não quer enforcar o açougueiro; o açougueiro não quer matar o boi; o boi não quer beber a água; a água não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O rato nada fez.

A pobre velhinha andou mais um pouquinho e encontrou um gato. E assim lhe falou já desanimada:

- Gatinho, por favor, caça o rato; ele não quer roer a corda; a corda não quer enforcar o açougueiro; o açougueiro não quer matar o boi; o boi não quer beber a água; a água não quer apagar o fogo; o fogo não quer queimar a vara; a vara não quer bater no cão; o cão não quer morder o porco; o porco não quer atravessar a pinguela e eu não posso voltar para casa.

O gato então lhe respondeu:

- Se a senhora for até aquela vaca e me trouxer um pires de leite, eu caçarei o rato.

A velha foi até a vaca e esta lhe disse:

- Se a senhora for até aquele monte de feno e me trouxer uma porção dele, eu lhe darei o leite.

Ela foi até o monte de feno e trouxe uma porção para a vaca.

Assim que a vaca comeu o feno, deu o leite à velhinha. Ela levou o leite, num pires, ao gato. O gato bebeu o leite e pôs-se a caçar o rato. O rato começou a roer a corda. A corda começou a enforcar o açougueiro. O açougueiro começou a matar o boi. O boi pôs-se a beber a água. A água começou a apagar o fogo. O fogo pegou na vara. A vara bateu no cão. O cão mordeu o porco. O porco atravessou a pinguela e a velhinha voltou para casa.