terça-feira, 5 de outubro de 2021

Flávio Roberto Stefani (Querência de Trovas) = 5

A gatinha, de bom tom,
só quer mesmo, no seu ninho,
em vez de um baita edredom
um musculoso gatinho...
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A gatinha, na balada,
viu seu gato, com um "cacho",
e partiu para a "porrada",
mostrando quem era o macho...
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Ah. se eu pudesse, faria,
tudo de novo outra vez,
estudava economia,
pro salário dar pro mês...
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Á noite, a velha se atiça
e, nesse embalo, se deita,
mas o velho, com preguiça,
dele nada se aproveita...
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Chuta o balde a Dona Mima
porque o marido, Vavá,
em vez de partir pra cima,
vai pra baixo do sofá…
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Da cana vem a caninha
e isso me basta, Senhor;
depois de uma cachacinha,
passa toda e qualquer dor!…
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Deixei o relógio em casa
para ver se a bruxa espanta,
pois ele sempre se atrasa,
e se atrasa, não adianta…
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Desesperado, o ladrão,
vendo que vítima orava,
roubou-lhe a própria oração
só pra dizer que roubava…
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É político de escol,
sabe tudo, até no escuro,
faça chuva ou tenha sol,
não sai de cima do muro...
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Esse inverno tudo arrasa
e a gente agora aconselha
ter sempre guardado em casa
um bom cobertor de orelha...
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Minha herança foi “pobrinha”
pois meu pai, vivendo em rios,
deixou tudo pra vizinha,
e eu fiquei a ver navios…
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Morre a sogra... e no velório,
aparece, no cantinho,
o genro com o foguetório
já prontinho... já prontinho...
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Na jogada de furor,
a galera aperta o passo,
quando o urso driblador
faz o gol e sai pro abraço...
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No desespero, o casal
vestiu a roupa ao contrário,
e o flagrante foi fatal:
"Casal mal vestido e otário..."
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O jogo foi traiçoeiro,
e foi expulso o infeliz,
porque o chute foi certeiro
bem nas partes do juiz...
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O pijama de bolinha,
não anima nada, nada...
e o coronel perde a linha,
a vontade, o jeito, a espada...
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O soldado trapaceiro
vai pra banda, e, como tal,
“tá” treinando o dia inteiro
para ser o general...
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Põe pijama, baixa o som...
E o meu compadre, na cama,
bem na hora do "bem bom"
só quer mostrar o pijama...
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Pra sogra que mora ao lado,
tem um remédio chinfrim:
fazer um muro elevado,
igualzinho ao de Berlim...
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Toda vez que o time afunda,
deixando a torcida à míngua,
a rima, rica e profunda,
está na ponta da língua...

Fontes:
Flávio Roberto Stefani. Novas andanças e outros poemas.
Cachoeirinha/RS: AgênciaTexto Certo, 2013.

UBT Porto Alegre – Planeta Trovador, 2017.

Minha Estante de Livros (Livros de Arthur C. Clarke)


A CIDADE E AS ESTRELAS


Em um futuro muito distante, toda a humanidade está confinada a uma única cidade, totalmente fechada. Ninguém pode sair da cidade, que funciona como o último reduto da raça humana. Todas as necessidades humanas são atendidas por um sofisticado sistema de computadores e a vida é virtualmente eterna. Os seres humanos, após uma existência muito prolongada, são armazenados em bancos de memória dos computadores para depois ressuscitarem, evitando o tédio da vida eterna. Mas nem todos se conformam com esta situação: um jovem quer saber o que há lá fora. Esse inconformismo dá origem a uma das mais belas histórias da ficção científica.
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TERRA IMPERIAL

O livro conta a história de Duncan MacKenzie (jovem herdeiro da terceira geração da linhagem clônica do autocrata de Titã (ou Saturno VI) - o maior satélite natural de Saturno e o corpo celeste mais parecido com a Terra no Sistema Solar). Nascido na Terra, na era interplanetária, Duncan vive em Titã com a família (Pai e Avô). A ação se passa no século XXIII e decorre em ambiente cheio de enigmas, mistérios. A intercessão imaginária dos vários planetas (habitados ou não) junto a Titã dá lugar às cenas mais desconcertantes, embora não totalmente imprevisíveis... Mas o centro de decisões ainda permanece na Terra, que continua a ser, nessa época, um Estado controlado por homens e não por máquinas. O romance leva da primeira base marciana a Saturno e a outros mundos ainda hoje desconhecidos. Toda a narrativa se passa ao mesmo tempo num plano de exatidão científica e, evidentemente, de fantasia, talvez profética.
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MUNDOS PERDIDOS DE 2001

Aqui estão as histórias inéditas que Arthur C. Clarke construiu a partir de toda essa experiência - novas histórias, ainda mais fantásticas e ousadas. Trata-se de uma esplêndida revelação. Não só para admiradores de Arthur C. Clarke, sempre ansiosos por conhecer tudo que ele produz, nem tampouco, para os apaixonados da ficção científica, no qual Clarke é estrela de primeira grandeza, mas também para todas as pessoas que apreciam histórias - pouco importa se passadas em nosso planeta ou em mundo estranhos - transformadas, pela força da inteligência, o poder da imaginação criativa e presciente e o perfeito, brilhante domínio do ofício de escrever, naquilo que chamam de uma obra de arte.

Aparecido Raimundo de Souza (parte 48) Pivô


RODRIGO COMPLETARIA seis anos de casado. Para comemorar o evento, programou uma festinha íntima: só parentes e amigos mais chegados. O encontro aconteceria no domingo, na casa dos sogros, os  pais de Laura, a esposa, com quem tinha dois filhos: Thiago, o caçula, de três anos, e Luciana, de cinco. Durante a semana, a dupla ficou por conta dos preparativos. Carne para o churrasco, carvão, bebidas, convites, refrigerantes, além dos docinhos e salgadinhos, o que seria servido no almoço, na sobremesa... enfim, tudo precisava estar nos conformes, nos mínimos detalhes. E, assim, foram vistos, revistos e repassados, cada etapa, para dar certo e a comemoração se tornar inesquecível e marcar o momento, para sempre. E, de fato, marcou.

De fato, no domingo, a casa se apinhou de encômios e júbilos exultantes. Tinha gente saindo pelo ladrão. O Rodrigo e a Laura  não contavam com um número tão expressivo de amigos e amigas que pintaram, de última hora, tanto da sua parte como das relações da esposa. Até um tio que residia nos cafundós do interior de Minas Gerais resolveu dar os ares da graça, trazendo, a tiracolo, a família. Telefonou confirmando a presença. Não deu para trás. Viajou mais de oito horas e chegou logo depois das cinco da tarde. Quando a buzina do seu carro soou forte e, em seguida a campainha, Rodrigo pediu licença à turba animada e se dirigiu à porta principal para receber os ilustres convidados.

— Tio Léo, quanto tempo?

Em meio a desenfreada aglomeração dos tresloucados, tio e sobrinho trocaram fortes e fraternos abraços.

— Espera ai, cadê a tia?

— Ficou para traz tirando os seus presentes do carro.

— Presentes, tio?

— Claro, trouxemos três. O nosso e o de sua prima Keylla. Acaso você se esqueceu dela?

— Meu Deus, tio, faz tanto tempo que não nos vemos...

— Exatamente meu caro sobrinho. Dezoito anos. Na derradeira vez, a Keylla contava apenas doze e, você, quinze!

Mal acabara de pronunciar estas palavras, surgiu, na varanda, à tia Helena, cheia de bolsas e, atrás dela, Keylla, a prima.

Rodrigo se abriu num sorriso grandioso e correu para saudar a velha tia.

— Tia Helena! Que prazer em revê-la.

— Você continua um gato. Aliás mais bonito até que da última vez em que te dei a bênção. Lembra da Keylla?

Rodrigo então desviou os olhos para a prima. Neste momento o céu desabou sobre a sua cabeça. Literalmente. Ele se deparou com uma figura fascinante e inimitável. Uma menina ingênua que se tornou mais bela, à medida em que os seus pensamentos e lembranças iam despindo cada centímetro do seu corpo escultural. Rodrigo pensou, de repente, estar diante de uma fada madrinha, caída de algum lugar do espaço. Nossa! Aquele mulherão que estava ali, bem diante do seu nariz, carregava uma formosura estonteante. Keylla, a prima distante, agora aos trinta, destoava de tudo o que estava acostumado a ver em reuniões daquela natureza. A moça, por seu turno, parecia, na verdade, um diamante brilhando entre cascalhos e pedregulhos.

Seus olhos de um azul muito forte, vistos de perto, se tornaram fascinantes: uma tonalidade suave de azul-esverdeado, circundava por um halo mais escuro. Lembrava safiras, com incríveis dourados no meio. Para completar a magia, os cílios longos e espessos, as sobrancelhas delicadamente arqueadas. Havia uma pintinha minúscula, quase imperceptível, pouco acima do lábio superior  esquerdo, tornando a boca sensual ainda mais provocante. Apesar do símbolo de pureza e inocência que o vestido longo e branco insinuava, fazia emanar, de dentro de si, uma sensualidade sutil e natural, capaz de despertar o interesse mais básico de qualquer homem menos atento para as delícias do amor.

Mesmo passo, parecia que ela não tinha consciência do efeito  que passou a exercer a partir daqueles segundos sobre o primo Ricardo. Nenhum dos dois, verdade seja dita, fez absolutamente alguma coisa ou gesto, para se mostrar. Nenhum deles provocou, nem flertou para atrair a atenção. Também não precisava. Não carecia. A mãe natureza abençoara, de pronto, aquele longo interregno e se sentia feliz por vê-los, de novo, na mesma sintonia. Keylla possuía uma  performance perfeita, incontestável, além de uma vibração muito forte que se irradiava naturalmente por todo o seu entorno.

— Puxa! Como você está linda!...

— E como você se transformou num pedaço de mau caminho...!

— É você  mesma, prima, ou os meus sentidos estão me enganando?

— Veja por você mesmo. Venha cá...

Do nada, Ricardo foi. Se sentiu ridículo por não saber o que responder à bela.  Como um felizardo que houvesse descoberto um tesouro escondido, em uma ilha deserta e tivesse medo de contar o segredo à alguém, não pensou duas vezes. Obedeceu sem esperar segunda ordem. Pulou no pescoço da graciosa e a envolveu com uma ternura antiga, uma afeição adormecida, uma brandura repletada de uma maviosidade que não precisava de palavras. Laura, a esposa, neste exato momento, surgiu do nada, entremeada entre o furdunço de cabeças da galera que gritava e algazarriava atabalhoadamente. Ao lado dela, os filhos Thiago e Luciana. No amplexo demorado e aderente que trocaram, nas carícias que permutaram, frente aos demais, um impasse criou vida e forma.

Laura se sentiu pequena, diminuída, vazia, traída, humilhada e, pior, amedrontada pelo negror de um passado que, bem sabia, sempre estivera vivo e pulsante. Sabia da antiga paixão de seu marido pela prima. Um “primeiro amor” como um flagelo que nenhum dos dois conseguira arrancar de dentro da alma. Tomou uma decisão extrema e merencória. Sem que ninguém percebesse (e, de fato, ninguém se deu conta) se afastou dos filhos, e sem dizer uma palavra, caminhou ligeira, para à saída, o peito arfando em grito silente, todavia esbagaçado e aflito. De lá, sem que vivalma desse por sua ausência, ganhou a calçada da rua e, desde este ocorrido, nunca mais foi vista.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. Integrante da série Comédias da Vida na Privada.

domingo, 3 de outubro de 2021

Varal de Trovas n. 527

 

Olivaldo Júnior (Prosa sobre o vento)

É, ainda é agosto...

Estamos no mês de agosto. E, desde o tempo em que eu era um grão de gente, um filhotinho, escuto que o mês de agosto é o mês dos ventos. Não por acaso, é neste mês em que soltamos pipa, para ver se ela consegue o que ainda não conseguimos: voar com as nossas próprias asas. Saiba que é isso o que eu mais queria ter, um par de asas. Sei que estão em falta hoje em dia. Acho que gente não foi feita para voar. Mas que eu queria, ah, eu queria!

Comecei a fazer hidroginástica há dois meses. Sabia que a sensação que se experimenta é comparada à que sentiríamos se pudéssemos voar? O corpo fica leve e, dizem, até oitenta por cento mais leve, embaixo d’água. É muito bom! Não sei nadar, nem voar. Faltam-me as asas! Soube que o pobre Ícaro fez as dele com cera, mas elas não aguentam o sol, que está cada vez mais quente sobre a Terra. A Terra... Dizem que viemos do pó.

O pó da vida é o vento que traz. Dizem que é lá das estrelas o pó que nós somos. Você acredita nisso? Eu acredito. Acredito em tudo. Talvez, por isso, não possa me tornar pesquisador, nem cientista, nem mesmo um empírico de nome. Acredito nas possibilidades do vento, na (in)certeza das dunas, no segredo das órbitas gravitacionais de um saco plástico que, ao sabor do vento, vai de lá para cá, na rua ausente. Lembra-se de Beleza Americana?

Santa Bárbara e Iansã, com os ventos do norte e da África, valham-me na rota dos que voltam pela mesma estrada em que vieram! Dizem que viemos do pó. Acho que gente não foi feita para voar. Mas o vento me despenteia os cabelos, já curtinhos, meio finos, e me fazem sentir o que as folhas pequeninas desse fim de inverno sentem quando são levadas para longe das árvores mães. Árvores que balançam ao vento. Vento que me leva aos sete céus.

Os céus me fazem caminhar como as formigas, que não sofrem com o vento, porque são minúsculas partículas de vida. Vida que é o vento em fúria, como diria o Super-Homem, “para o alto e avante!”. Falando nisso, é do alto que vem o vento, o ar que nos leva adiante, avante. Avanço é mais que pôr um pé depois do outro. Nem sempre é assim que acontece, haja vista que o vento da vida nos empurra sem nenhuma piedade. É, ainda é agosto...

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXI

PACOTE DE PRESENTE...

MOTE:
Deus fez a terra... e, ao fazê-la,
deu-lhe o toque comovente:
Fez o céu para envolvê-la
num pacote de presente!

A. A. de Assis
(Maringá/PR)


GLOSA:
Deus fez a terra... e, ao fazê-la,
usou todo o seu amor,
e essa alegria de tê-la,
eu agradeço ao Senhor!

E na sua criação,
deu-lhe o toque comovente:
criou em nós, a emoção,
que nos faz muito mais gente!

Deus criou também, a estrela
dando-lhe luz especial,
fez o céu para envolvê-la
numa obra divinal.

Tanta beleza se encerra
num universo esplendente,
e, pôs nele, então, a terra,
num pacote de presente!
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NASCE UM SONHO

MOTE:
É bem feliz, eu suponho,
a vida que Deus me deu,
porque sempre nasce um sonho
no lugar do que morreu!

Adalberto Dutra Resende
(Cataguazes/MG, 1913 – 1999, Bandeirantes/PR)

GLOSA:

É bem feliz, eu suponho,
quem sabe sempre sonhar.
Um sonho, mesmo tardonho,
vem nossa vida alegrar!

Agradeço comovido,
a vida que Deus me deu,
pois o sonho dá sentido
a tudo que aconteceu!

Eu vivo a vida entressonho
e sou bem feliz, assim,
porque sempre nasce um sonho
novinho dentro de mim!

Esse meu novo sonhar
que brilhando, em mim nasceu,
vem sempre para ficar
no lugar do que morreu.
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DE ONDE? PARA ONDE?

MOTE:
Nunca soube de onde venho,
onde estou, nem o que sou:
Por isso não faço empenho
de saber para onde vou...

Antonio Juraci Siqueira
(Belém/PA)

GLOSA:
Nunca soube de onde venho,

porque vivo nesse mundo,
nem dos direitos que eu tenho...
De dúvidas, eu me inundo!

Não consegui descobrir
onde estou, nem o que sou:
Por que chorar ou sorrir,
se nem sei aonde estou?

Um lugar feliz, desenho,
para, por ele, seguir,
por isso não faço empenho
de saber aonde ir!

Soluça meu coração!
Sinto que ninguém me amou...
por isso, qual a razão,
de saber para onde vou…
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RESTOS DE ESPERANÇA

MOTE:
Dos meus tempos de criança,
quase tudo se acabou;
restam restos de esperança
da esperança que restou!...

Arlindo Tadeu Hagen
(Juiz de Fora/MG)

GLOSA:
Dos meus sonhos de criança,

não sinto mais o calor,
nem a mais leve lembrança
de algum carinho ou amor!

O tempo nada perdoa!
quase tudo se acabou,
a saudade até caçoa
do pouquinho que ficou!

O tempo cruel, avança,
tirano, qual vendaval...
Restam restos de esperança
depois desse temporal !

Eu tento, ainda, sonhar,
sem crer que tudo acabou,
mas só restos, posso achar,
da esperança que restou!…
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O ARTISTA...

MOTE:
Com poemas, sons ou telas
e inspiração desmedida,
o artista torna mais belas
as belas coisas da vida!

Carolina Ramos
(Santos/SP)

GLOSA:

Com poemas, sons ou telas
mil belezas retratamos
com palavras... aquarelas...
ou com a música que amamos!

Tendo amor no coração
e inspiração desmedida,
vivendo grande afeição,
teremos boa acolhida!

Em emoções paralelas,
vivenciando intenso amor,
o artista torna mais belas
as coisas, as quais dá cor!

Essa ação, quase magia,
será, jamais esquecida,
pois pintará de alegria
as belas coisas da vida!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

Rubem Braga (Homenagem ao sr. Bezerra)

O incorporador é um Sr. Bezerra. Não chega a ser um bonito nome, é verdade, mas para mim é simpático, pois conheci vários cidadãos agradáveis com esse nome, quase todos do Nordeste, especialmente do Rio Grande do Norte — os Bezerra Dantas, por exemplo. A ideia fundamental do Sr. Bezerra parece ter sido esta: tirar a minha vista do mar. Imagino que o Sr. Bezerra seja meu leitor e notou que muitas vezes começo minhas crônicas falando do mar que vejo de minha varanda; é verde aqui, azul ali, nordeste semeando espumas, o raivoso e frio sudoeste, e barcos passando, e o farol da ilha e não sei mais o que — e o Sr. Bezerra se encheu. Imaginou então construir um edifício bastante largo e alto para me tapar a paisagem e o assunto. Deve ter gasto um bom dinheiro para prestar esse grande serviço às letras nacionais, pois na esquina da praia havia uma sólida casa revestida de pedras e rodeada de um parque. Uma grande equipe de trabalhadores desmantelou a casa e cortou as árvores, inclusive um belo pé de magnólia e um casal de pinheiros que há muitos anos faziam parte de minha paisagem. Sim, era alguma coisa minha que eles estavam derrubando — mas o advogado me disse que a lei não reconhece esse direito de propriedade visual e sentimental.

Erguido um grande tapume — onde seu nome brilha em uma tabuleta na qualidade de incorporador —, o Sr. Bezerra mandou fazer um imenso buraco, cavando a terra e a areia, para as fundações. Depois não sei o que aconteceu, com certeza alguma dificuldade de financiamento; sei que os operários se foram, ficando apenas um melancólico vigia, cuja função é olhar com tristeza aquele buraco.

Toda manhã, quando vou à praia, vejo o nome do Sr. Bezerra na tabuleta — e fico a imaginar com certa delícia que deve ser um senhor de meia-idade, muito bem falante e de sotaque potiguar, que prometeu entregar o edifício prontinho em tantos meses e agora coça a cabeça e dá desculpas, falando em Banco, na Caixa, no Instituto, que faltam certas formalidades, houve dificuldades imprevisíveis, de qualquer modo ele deseja evitar um reajustamento, aliás acredita que no mês próximo as obras poderão ser reiniciadas, o senhor compreende a culpa é dessa política do governo, etc., etc.

Dois outros edifícios iniciados muito antes já estão quase prontos, mas o prédio do Sr. Bezerra é apenas um sonho pairando sobre um buraco. À medida que as outras obras progridem, o Sr. Bezerra deve coçar a cabeça com mais raiva, o que estimo sinceramente. Há casos de obras que ficam paradas anos e anos, e esse pensamento me parece encantador. É verdade que no caso do Sr. Bezerra ainda não se pode falar propriamente em obras, mas em desobras, pois ele não fez nada, só desfez. Talvez o Sr. Bezerra passe à história como um emérito construtor de buracos, título a que vários estadistas nossos fazem jus.

Enfim, enquanto o Sr. Bezerra estiver mal, tudo irá bem. Ele me roubou as árvores, mas me deixou um pedaço de mar com brisa e ondas. Os cavalheiros que entraram com dinheiro adiantado para ter um apartamento devem estar com raiva do Sr. Bezerra; eu, entretanto, desejo de todo o coração ao Sr. Bezerra uma excelente saúde, muitas alegrias, bons vinhos e boas mulheres — e um encalacramento financeiro prolongado e sutil, que entretenha com fúteis esperanças, anos a fio, o coração dos ex-futuros condôminos.

Um encalacramento que se prolongue através dos tempos e se torne tão crônico e dramático que acabará comovendo a todos, e só terminará no dia em que o Sr. Bezerra for enterrado (homenagem especial) no buraco enorme que ele abriu ali na esquina.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Crônica publicada em 1958.

Minha Estante de Livros (Uma Breve História da Literatura, de Johm Sutherland)


De Homero ao e-book
A literatura – formada pela tríade narrativa, lírica e drama – é a um só tempo forma de expressão e arte; fruto de sua época e de gênios individuais; testemunho de momentos históricos e devaneio fantástico.

Na literatura, tudo é possível: sereias, vampiros, um narrador morto ou um personagem que rejuvenesce à medida que o tempo passa. É, em última análise, a mente humana no auge de seu talento para expressar e interpretar o mundo ao nosso redor.

Neste livro genial, o britânico John Sutherland aceitou o quase insano desafio de abordar, num volume curto e acessível, todo o espectro temporal da literatura, desde os tempos da mitologia transmitida de forma oral até os dias de hoje. E – sorte nossa! – a tarefa é desempenhada primorosamente. 
 
O autor segue (mais ou menos) cronologicamente não só os principais nomes e acontecimentos da literatura de língua inglesa, mas também da literatura universal. Assim, saímos das epopeias para em seguida passar pela tragédia na Grécia antiga, as formas literárias medievais, o advento da imprensa com Gutenberg, o teatro elisabetano e Shakespeare, por obras que prenunciavam o romance (Decameron, Gargântua e Pantagruel, Dom Quixote), a formação de um público leitor feminino que revolucionaria o mercado; a invenção dos direitos autorais; a literatura do século XX, com a experiência radical de duas guerras mundiais e seus reflexos (Woolf, Joyce, Kafka, Eliot; Beckett e o teatro do absurdo); o realismo mágico; as histórias em quadrinhos e a graphic novel. Sutherland não larga a pena ao chegar no século XX; trata de autores contemporâneos experimentais, do mercado editorial de hoje e suas premiações, de gêneros surgidos via internet, como a fanfiction, e dos caminhos que a literatura ainda poderá trilhar.

Ao contrário do que se poderia esperar, Uma breve história da literatura é isento de dogmatismos: o autor não decreta o que o leitor deve ler; antes, mostra-se um entusiasta de que a literatura, esta multifacetada criação do gênio humano, seguirá – na forma, no gênero e no suporte que for – enriquecendo nossas breves existências.
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John Sutherland é professor emérito de Literatura de Língua Inglesa Moderna na University College London, colaborador do The Guardian e especialista em literatura vitoriana e do século XX e na história do mercado editorial. Já lecionou para estudantes de todas as faixas etárias, e é autor e editor de mais de vinte livros.
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Trechos do Livro

Toda obra de literatura, por mais humilde que seja, em Aguin nível está perguntando: "Qual é o sentido disso tudo? Por que estamos aqui?". Filósofos e ministros da religião e cientistas respondem a essas perguntas a seu próprio modo. Na literatura, é a "imaginação" que encara essas perguntas básicas.

[…] Uma grande obra de literatura nunca deixa de nos dar algo, qualquer que seja o momento de sua vida em que você a leia, e seja lá de que fonte ela venha.

[…] A literatura nos distrai da tarefa real de viver. (p. 13)

[…] Por que ler literatura? Porque ela enriquece a vida de maneiras que não encontramos em nada mais. Ela nos torna mais humanos. E quanto melhor aprendermos a lê-la, tanto melhor ela fará isso. (p. 14)

[…] Criar mitos faz parte da nossa natureza. Diz respeito a quem somos enquanto seres humanos.

[…] Um modo, então, de pensar sobre o mito é que ele extrai um sentido da falta de sentido na qual, enquanto seres humanos, nós todos nos encontramos. Por que estamos aqui, e estamos aqui "para" quê? Normalmente, o mito fornece uma explicação através de histórias (a espinha dorsal da literatura) e símbolos (a essência da poesia). (...) Mas você precisa, de alguma maneira, "dar sentido" ao fenômeno. (p. 16)

A palavra "épico" é usada hoje em dia para tudo, mas com bas­tante indefinição. […] Ela descreve um conjunto de textos muito seleto, muito antigo, que carrega valores cujo tom é "heroico" ("heroico" sendo outra palavra que tendemos a usar com indefinição excessiva). Ela mostra o gênero humano, podemos dizer, em seu aspecto mais másculo. (O preconceito de gênero é, infelizmente, apropriado: uma "heroína épica" é quase sempre uma contradição em termos.)

[…] Quando pensamos a sério sobre epopeias, somos defrontados por uma pergunta intrigante. Se essa é uma literatura tão fantástica, por que hoje não a escrevemos mais? Por que não a escrevemos (com êxito, pelo menos) há vários séculos? A palavra ainda está conosco; a literatura, por algum motivo, não está. (p. 22)


sábado, 2 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfolio de Spinas) 2

 


A. A. de Assis (Santo o que é?)

Estamos próximos do dia de São Francisco de Assis (4 de outubro). A propósito, li no Google que a Igreja Católica, ao longo de toda a sua história, já canonizou, ou seja, reconheceu oficialmente como santos, cerca de vinte mil homens e mulheres. Mas o que é exatamente um santo? E por que é que um é chamado “santo” (santo Antônio), outro “são” (são José)?

Primeiro o mais fácil: por mera questão de eufonia, nomes que têm consoante como inicial recebem “são” (são João, são Paulo, são Pedro); nomes iniciados com vogal ou “h” ficam com “santo” (santo Agostinho, santo André, santo Henrique). As exceções são poucas: Santo Cristo, Santo Tirso, Santo Tomás. No feminino a forma é sempre “santa”. E há um caso curioso: são Tiago, que originalmente era santo Iago, e no final ficou Santiago.

Agora o mais importante: o que é de fato um santo? Habitualmente a palavra “santidade” vem associada à ideia de sagrado, que por sua vez se associa à ideia de perfeição etc.

Assim, quando alguém é intitulado “santo”, entende-se que seja uma pessoa sem mácula, alguém que não comete nenhum dos pecados capitais – gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça, soberba. Ou, mais bonitamente, alguém que se enquadra nas bem-aventuranças – os humildes, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, porque deles é o Reino dos Céus.

Santo é, sim, tudo isso e muito mais. Mas por que se chama “santo”? Gosto de lembrar que em francês “santé” significa saúde. Dois parisienses, antes de beber o vinho, levantam as taças e fazem o brinde: “Santé”. Isso aí: santidade é saúde, sanidade. No caso, saúde espiritual.

Ser santo é ser uma pessoa espiritualmente sã – alma serena, consciência limpa, coração puro. Irmã Dulce passou a ser chamada santa por ser espiritualmente sã (sana, sadia). Francisco de Assis passou a ser chamado santo por ser espiritualmente são (sano, sadio).

Aliás, é o bom Francisco, na sua simplicidade de poeta, quem nos ensina um dos modos mais fáceis de entender o que é ser santo: é ser no mundo um instrumento de Deus – alguém que onde houver ódio leva o amor, onde houver ofensa leva o perdão, onde houver discórdia leva a união, onde houver dúvida leva a fé, onde houver erro leva a verdade, onde houver desespero leva a esperança, onde houver tristeza leva a alegria, onde houver trevas leva a luz.

Santo é alguém que semeia paz e bem onde quer que esteja, e na eternidade segue cuidando de nós com o mesmo carinho, a mesma paciência, o mesmo inesgotável amor.

Mas será que santidade é uma condição exclusiva dos canonizados? Penso que não. Há neste mundo milhões de homens e mulheres anonimamente santos, muitos deles e muitas delas bem pertinho de nós. Deus conhece cada um e cada uma.

Que sirvam de modelo para todos nós. Amém.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 30-9-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Magnus Kelly (Florilégio de Trovas)


A madrugada eu transpunha
tendo a calçada por guia
e singular testemunha
da história que eu construía…
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Ante o costume danado
d’eu te querer tanto assim,
devia, sim, ser pecado
o teu desprezo por mim!
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Com sua bela pureza,
dos seus vinte e oito sons,
a Trova, traz a beleza
retratada em vários tons.
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Dê-me um pedaço de chão,
ó, governante mesquinho,
para que eu possa ter pão
e construir o meu ninho.
= = = = = = = = = = =

É nas orações que faço
que agradeço, a cada dia,
guiar-me ao Pai, cada passo
desta minha travessia…
= = = = = = = = = = =

Mané quis cantar de galo...
fez um funaré na festa:
armou-se com um gargalo;
findou com galo na testa!
= = = = = = = = = = =

Na poeira... adormecidos...
retratos já desbotados
relembram sonhos vividos;
e, outros, apenas sonhados…
= = = = = = = = = = =

Na poeira das lembranças,
cenas de dias risonhos;
de tristezas; de esperanças;
de amores; cantares; sonhos…
= = = = = = = = = = =

Na rota dos seus carinhos,
meu coração clandestino,
se perdeu pelos caminhos,
sem alcançar seu destino.
= = = = = = = = = = =

No Dia dos Namorados,
juras de eternos amantes,
apagam passos errados;
reacendem traços marcantes…
= = = = = = = = = = =

Noite escura traz o brilho
do manto estelar distante,
mostrando ao velho andarilho
o que, de fato, é importante...!
= = = = = = = = = = =

Outrora, afoito e bonito,
laçava toda potranca;
agora, somente as fito,
sou só moleza e pelanca!…
= = = = = = = = = = =

Qual peça de atos tristonhos,
que o tempo escreve, um a um,
a vida nos ceifa os sonhos,
sem mandar recado algum.
= = = = = = = = = = =

Quando papai fez partida,
eu tive, então, que ter punho
para dar sequência à vida,
baseado em seu rascunho.
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Quatro pessoas na cama
(dois filhos em nós grudados)...
e a gente sorri e se ama,
no Dia dos Namorados…
= = = = = = = = = = =

Sob a Lua, um Trovador,
em frente ao velho sobrado,
é o signo do terno amor
e das paixões do passado.
= = = = = = = = = = =

Supermercado... que espanto!
Será que, agora, emagreço,
com a metade do tanto
custando o dobro do preço?!

Hans Christian Anderssen (A Arca Voadora)


Era uma vez um comerciante que era tão rico que poderia asfaltar uma rua inteira com ouro, e mesmo assim sobraria o suficiente para mais uma ruazinha. No entanto, ele não fez isso, pois conhecia o valor do dinheiro e não o desperdiçaria dessa forma. Ele era tão inteligente que de cada centavo fazia uma cédula, e assim foi enquanto viveu.

O filho herdou sua fortuna e tratou de aproveitar. Ia a bailes todas as noites, construía pipas com notas de cinco e, em vez de jogar pedrinhas no mar, atirava moedas de ouro. Era um esbanjador.

Assim, logo perdeu todo o dinheiro, até não lhe restar nada, a não ser um par de chinelos, um camisolão de dormir e quatro centavos. Os antigos amigos o abandonaram, não queriam mais ser vistos andando na rua em sua companhia; porém um deles, que tinha bom coração, certo dia lhe mandou uma velha arca de presente, com o seguinte bilhete: “Faça as malas!”.

– É um bom conselho dizer “faça as malas” – ele falou. Mas nada restava para colocar na arca e, assim, ele mesmo se sentou nela. A arca era especial, pois quando alguém pressionar o fecho, ela levantava voo. Ele assim fez e a arca saiu voando pela chaminé, carregando o homem até as nuvens do céu.

Cada vez que o fundo da arca rangia, ele ficava com muito medo, pois, se as tábuas se soltassem, ele levaria tombos até cair nas árvores. Mas nada disso aconteceu, e ele chegou em segurança à Turquia. Ele escondeu a arca em um bosque, debaixo de umas folhas secas, e partiu para a cidade. Depois, se misturou perfeitamente à população, pois entre os turcos é normal as pessoas passearem por aí usando camisolões e pantufas, assim como ele estava.

Cruzando por acaso com uma senhora e uma criancinha, ele perguntou:

– Diga-me, cara senhora turca, que castelo é aquele perto da cidade, com janelas tão altas do chão?

– Lá vive a filha do sultão – a moça respondeu. – Segundo a profecia, ela vai sofrer muito por causa de um amor, e por isso ninguém tem permissão para visitá-la a menos que o rei e a rainha estejam presentes.

– Obrigado.

Em seguida, o filho do mercador voltou ao bosque, entrou na arca, voou até o telhado do castelo e entrou, pela janela, no quarto onde a princesa estava dormindo.

Ela acordou e ficou muito assustada, mas o rapaz lhe disse que era um anjo turco que tinha descido do céu para visitá-la. Isso agradou bastante a princesa. Ele se sentou ao lado dela e começou a conversar. Disse que seus olhos eram como dois lindos lagos escuros, nos quais os pensamentos nadavam como pequenas sereias, e que sua testa era uma montanha nevada que continha admiráveis salões repletos de quadros. Contou a ela a lenda da cegonha, que traz os bebês do rio e entrega aos pais.

A princesa ficou encantada com a história e quando ele perguntou se ela se casaria com ele, a moça concordou imediatamente.

– Mas você precisa voltar no sábado, quando meus pais vêm tomar chá comigo. – ela disse – Eles vão ficar muito orgulhosos quando souberem que vou me casar com um anjo turco. Mas você precisa pensar no que vai contar, pois eles gostam de ouvir histórias mais do que qualquer outra coisa. Minha mãe prefere as que são instrutivas e tenham uma moral ao fim, mas meu pai gosta mais das engraçadas, das que o fazem rir.

– Muito bem, eu voltarei trazendo como presente somente histórias – respondeu ele.

E assim se despediram, mas, antes, a princesa deu ao rapaz um sabre cravejado de moedas de ouro, e elas poderiam ser muito úteis para ele.

O filho do comerciante voou até a cidade, comprou um camisolão novo e depois foi para o bosque, onde escreveu a história que seria lida no sábado seguinte. Não foi nada fácil, mas ficou pronta quando foi visitar a princesa no dia marcado.

O rei, a rainha e toda a corte estavam no chá com a princesa, e ele foi recebido com grandes honras.

– Conte-nos uma história – a rainha pediu. – Uma que seja instrutiva e cheia de ensinamentos.

– Sim! – acrescentou o rei – Mas que também seja um engraçada.

– Certamente – ele respondeu.

Logo começou, pedindo que todos ouvissem com atenção:

“– Era uma vez um pacote de palitos de fósforo que tinha muito orgulho de sua origem nobre. A árvore genealógica deles, isto é, o grande pinheiro de onde tinham sido cortados, havia sido, em sua época, uma árvore importante no bosque. Os palitos de fósforo estavam agora entre um isqueiro e uma velha panela de ferro, e conversavam sobre a juventude de cada um. Os fósforos começaram: “Ah, naqueles dias, nós crescíamos em galhos verdinhos, e toda manhã e toda tarde matávamos a sede com gotas de orvalho. Sempre que o Sol brilhava, sentíamos o calor de seus raios, e passarinhos nos contavam histórias cantando. Nós sabíamos que éramos ricos, pois as outras árvores só vestiam roupas verdes no verão, enquanto nossa família podia se exibir em lindos trajes verdejantes tanto no verão quanto no inverno. Mas um dia veio o lenhador e foi uma tragédia: nossa família tombou sob o machado. O chefe da casa conseguiu um posto de mastro principal em um barco muito elegante e navega pelo mundo. Outros galhos da família foram levados para diferentes locais, e nosso ofício, agora, é fazer fogo para pessoas comuns. É assim que pessoas distintas como nós acabam seus dias em uma cozinha”.

“– A próxima a falar foi a panela de ferro que estava ao lado dos fósforos.

“Meu destino foi muito diferente”, ela disse. “Desde minha chegada ao mundo, venho sendo usada para cozinhar e ser limpa depois. Sempre pensam primeiro em mim quando precisam de uma coisa sólida ou útil. Meu prazer é ser esfregada e areada após o jantar, e depois ficar no meu canto conversando com meus vizinhos. Todos nós, exceto o balde de água, que às vezes é levado ao pátio, vivemos juntos aqui entre as quatro paredes desta cozinha. Recebemos notícias por meio da sacola de compras, que vai ao mercado, mas ela às vezes nos conta coisas muito ruins sobre o povo e o governo. Sim, tanto que outro dia um pote velho ficou tão alarmado que caiu e se quebrou.”

“Mas o isqueiro a repreendeu: “Você fala demais”, e começou a raspar a pedra no metal até que faíscas começaram a voar. “Afinal, queremos uma noite agradável, não queremos?” “Sim, claro”, responderam os fósforos, “vamos falar sobre os que nasceram em berço esplêndido”.

“Mas a panela discordou: “Não, eu não gosto de sempre conversar sobre o que somos. Vamos pensar em outra diversão. Eu começo. Cada um vai contar algo que aconteceu; isso vai ser fácil e interessante também. No Mar Báltico, perto da costa da Dinamarca...”.

“Os pratos se aliaram à panela e comentaram: “Oh, que belo começo! Vamos gostar desta história, com certeza”. A panela de ferro então começou: “Sim. Bem, na minha juventude, eu morava com uma família muito tranquila, em uma casa onde, a cada quinze dias, os móveis eram lustrados, o chão era esfregado e as cortinas eram lavadas”.

“A vassoura comentou: “Que modo interessante você tem de contar uma história! Bem se vê que circulou nas altas rodas da sociedade, pois o que você diz transmite muita pureza”.

“Sim, é verdade”, acrescentou o balde de água, e soltou uns borrifos que molharam o chão. E assim a panela continuou a história, e o fim foi tão bom quanto o começo. “Os pratos tremiam de prazer; a vassoura recolheu um pouco da salsinha varrida e com ela coroou a panela, sabendo que isso ia irritar os outros e pensando: ‘Se eu a coroar hoje, amanhã será ela a me coroar’.”

“Em seguida, falaram as pinças de remexer as brasas: “Vamos dançar”, e começaram a esticar uma das pernas para o alto, de um jeito que até a poltrona no canto explodiu em uma gargalhada. “Vamos ganhar uma coroa também?”, perguntaram as pinças, e a vassoura foi buscar mais salsinha para fazer uma coroa. “No fim, são só povinho”, pensaram os fósforos.”

O rei, a rainha, a princesa e todos os nobres da corte continuavam prestando atenção à história.

“– Pediram que a chaleira cantasse, mas ela disse que estava resfriada e não conseguiria cantar a menos que houvesse algo fervendo dentro dela. Todos pensaram que aquilo era uma grande afetação, assim como julgavam uma afetação que ela nunca quisesse cantar, a não ser na sala de visitas, quando estava na mesa diante de gente fina. Perto da janela ficava uma velha caneta com bico de pena com a qual a menina escrevia. Não havia nada de especial na caneta, a não ser o fato de ter sido mergulhada muito fundo na tinta, mas ela tinha orgulho disso. “Se a chaleira não quer cantar, não precisa”, disse a caneta. “Tem um rouxinol em uma gaiola aqui do lado de fora, e ele canta. Não é um canto maravilhoso, mas por esta noite é suficiente.”

“Porém o bule, que era o cantor da cozinha e meio-irmão da chaleira, discordou: “Acho altamente impróprio que um pássaro estrangeiro seja ouvido aqui. Não me parece patriótico, o que acham? Vamos deixar que a sacola de compras decida o que é certo”. E a sacola falou: “Estou irritada, muito irritada por dentro, mais do que qualquer um pode imaginar. Estamos passando a noite do melhor jeito? Não seria mais sensato arrumar a casa? Se cada um fosse para seu devido lugar, eu proporia um jogo, e aí sim, como seria diferente!”.

“Vamos encenar uma peça!”, disseram todos, e bem nessa hora a porta se abriu e a menina da casa entrou. Ninguém mais se mexeu, ficaram todos calados e imóveis, apesar de não haver entre eles um único pote que não tivesse uma opinião boa de si mesmo e do que conseguiria fazer, se quisesse. Estavam todos pensando: “Sim, se tivéssemos decidido bem, poderíamos ter passado uma noite muito agradável”.

A história estava se aproximando do fim.

“– A menina riscou os fósforos; com que clarão eles acenderam e com que força pegaram fogo! Então eles pensaram: “Muito bem, agora todos vão ver que somos os maiorais, como brilhamos e iluminamos”, porém, enquanto pensavam nisso, a chama se apagou.”

– Que história ótima! – exclamou a rainha. – Sinto-me como se estivesse na cozinha e pudesse enxergar os fósforos. Sim, você deve se casar com a nossa filha.

– Certamente tu receberás a mão da princesa – completou o rei usando “tu” porque em breve o rapaz seria da família.

O dia da cerimônia foi marcado, e, na noite anterior, a cidade toda foi iluminada. Bolos e outras guloseimas foram distribuídos para os súditos. Pelas ruas, meninos andavam nas pontas dos pés gritando “Urra!” e assobiando. Em resumo, preparativos esplêndidos.

– Vou distribuir mais uns agrados – decidiu o filho do comerciante.

Então ele comprou rojões e biribas e todos os tipos de fogos de artifício que se pode imaginar, enfiou tudo na arca voadora e subiu com ela até o céu. Os estouros e zumbidos que fizeram! Os turcos, diante daquela cena, deram pulos tão altos que os chinelos saíram voando na altura das orelhas. Depois disso, ficou fácil acreditarem que a princesa iria se casar com um anjo turco de verdade.

Logo que desceu dos céus de volta para o bosque, após a queima de fogos, ele pensou: “Agora vou de novo para a cidade ouvir o que acharam da diversão”. Era muito natural que ele quisesse saber. E que coisas estranhas as pessoas diziam! Todo mundo a quem ele perguntou ofereceu uma história diferente, apesar de todos acharem que o espetáculo havia sido belíssimo.

– Eu vi o anjo turco – disse um. – Os olhos dele cintilavam como estrelas e a cabeça era como espuma de água.

– Ele voava em um manto de fogo, – disse outro – e querubins adoráveis saíam das dobras.

Ele ouviu muitos outros relatos sobre si mesmo e sobre o casamento ser no dia seguinte. Depois disso, voltou à floresta para descansar na arca. Mas ela havia desaparecido! Uma faísca dos fogos de artifício que haviam ficado dentro dela tinha botado fogo na arca, que ficou queimada até restarem apenas as cinzas, de forma que o filho do comerciante não tinha mais como voar nem como ir ao encontro da noiva!

Ela ficou o dia seguinte inteiro no telhado, esperando por ele, e provavelmente está lá até agora, enquanto ele vaga pelo bosque contando contos de fadas, mas certamente nenhum tão divertido quanto o que ele escreveu sobre os fósforos.

Fonte:

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Versejando 79

 


Mia Couto (O peixe e o homem)


Pois que fez Santo António? Mudou somente o púlpito e o auditório [. .]. Deixa as praças, vai às praias; deixa a terra, vai ao mar e começa a dizer a altas vozes: já que não me querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh, maravilhas do Altíssimo! Oh, poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam, a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos na sua ordem com as cabeças de fora da água. António pregava e eles ouviam.
(EXTRATO DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO, PADRE ANTÓNIO VIEIRA)


Um dia destes, quando saía de casa, deparei com meu vizinho, Jossinaldo. Estava no patamar, como que me esperando. Dos braços cruzados, espreitava uma trela. Me arrepiei.

Sempre eu o tinha evitado, por causa dos ditos e desditos. O homem era conhecido pelo que fazia no parque: levava um peixe a passear pela trela. Caminhava na margem do lago, segurando a trela. No extremo da fita de couro estava amarrado, pela cauda, um gordo peixe. Jossinaldo era, nos gerais, tido por enjeitado: a cabeça do coitado, diziam, cabia toda num chapéu. E acrescente-se que o temiam, sem outro fundamento que essa estranheza do seu fazer.

E agora lá estava ele, a tira pendente como uma língua que lhe emergia do corpo. Já eu remastigava uns apressados bons dias quando o vizinho se me interpôs e esticou o braço na minha direção.

– Peço-lhe este favor! – Estremeci, receoso. Que favor? E era esse mesmo obséquio: o de ir eu substituí-lo no passeio ao peixe. Esquivei-me. O homem não desistiu: que ele estava-se sentindo doente, desvanecente e o peixe do lago não podia ficar órfão, sem ninguém para o conduzir, na fluência das águas.

– Por amor, não recuse!

Fiquei vacilando enquanto, dentro de mim, ecoavam os rumores que descontavam em Jossinaldo e seus descostumes. No bairro todos acreditavam compreender o comportamento do exótico morador.

Meu tio, por exemplo, deitava o seguinte entendimento: que o vizinho havia sido um pescador e, agora, arrependido, aplicava graças nesse peixe doméstico. A culpa de tanto anzol lhe espetava a alma e ele se redimia, penitente. Meu avô discordava. Aquilo, para ele, tinha outras, mais fundas explicações. Não ouvíramos falar do sermão de Santo António aos peixes? Recordávamos o que fizera o Santo António que deixara o auditório das praças e se deslocara para o mar, lançando palavra sobre os seres de guelra e escama. Pois, Jossinaldo descobrira que havia sido o inverso: um certo peixe havia pregado aos homens e lhes espalhara a moral sem lições. Os homens atribuíam aos peixes as indecorosas ganâncias que eram da exclusiva competência humana.

Adjetivavam a peixada: os mandantes do crime são chamados de “tubarões”. Os poderosos da indecência são “peixe graúdo”. Os pobres executantes são o “peixe miúdo”.

E afinal, onde não há crime é lá dentro das águas, lá é que há a tal de propalada transparência. Pois, quem pregava o sermão, o Santo António aquático era o próprio peixe do lago. Era ele o sermãonista.

Minha sabedoria é ignorar as minhas originais certezas. O que interessa não é a língua materna, mas aquela que falamos mesmo antes de nascer. Por isso, me dei licença de escutar Jossinaldo. E fui saindo de casa, caminhando ao mesmo passo do afamado vizinho, lado com lado. Na rua me olhavam, surpresos. Então eu autorizava a companhia do proscrito, no pleno da via pública?

Debaixo dos olhares, nos dirigimos ao parque e parámos junto ao lago.

– Veja como ele vem a correr.

E era a maior verdade. O peixão, na vista do vizinho, se aproximou da berma.

Jossinaldo debruçou-se e enlaçou a trela à volta da cauda do animal.

– Vá, pegue na trela para ele lhe ganhar familiaridades.

Com o coração de fora, lá segurei na corda. O bicho veio à superfície da água e me olhou com olhos, até me custa escrever, com olhos de gente. E remergulhando me conduziu pela margem. Contornei por inteiro a lagoa para me reencontrar com Jossinaldo.

– Deixe-me despedir dele! Ajoelhado sobre as águas, o vizinho falou palavras que não eram de língua nenhuma conhecida. Ficou, tenho medo de dizer, conversando com o peixe. Ergueu-se Jossinaldo, lágrima escorrendo, e me apertou as mãos, as duas em duplicado. Não falou, retirou-se em silêncio.

Sou eu agora quem, pela luz das tardes, passeia o peixe do lago. À mesma hora, uma misteriosa força me impele para cumprir aquela missão, para além da razão, por cima de toda a vergonha. E me chegam as palavras do vizinho Jossinaldo, ciciadas no leito em que desfalecia: – Não existe terra, existem mares que estão vazios.

Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro.

Fonte:
Mia Couto. O fio das missangas. Publicado em 2004.

Jorge Wanderley (Poemas Diversos)

ADERIR

Amo o que neles já vi com desprezo,
O uso das mãos, a música, o inexato
Poder de seus mistérios e seu vezo
De amar sem conta contra a estrela e o fato;

Desprezo e amo: acaso mimetizo
Os que a tal plano vim para negar?
Perco na gaia terra garbo e siso
E adiro ao solo que era de deixar?

Amo e não amo e tudo em mim questiona
Missão e crença, ardil e decisão.
Mas se me sabem, sofro; e se me atrevo

No além-mudez, sossego me abandona:
Daí, silêncio erijo e solidão,
E em solidão me deixo, erijo, escrevo.
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CORPO ANTERIOR

Que faço aqui, neste meu corpo, amando,
Outro corpo, doado — e estranho a mim?
Dois corpos desiguais e no comando
O que eu decido. E quem decide assim?

Estranho todos os departamentos
E eu sou um outro, que não pousa aqui.
Cada nervura, poro, o tegumento
— Desconheço de todo, nunca vi.

Altura que não quero, mãos esquerdas,
O que está velho e não forjou memórias,
O gesto alheio, o olhar sobre tropeços,

São crônicas já pálidas, a perda
Do nunca possuído: alguma história
Que espera no futuro o seu começo.
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MÁQUINA

Deram-lhes máquina curiosa, essa
que é dos seus corpos. Não interligados,
encontram pares, mas um dia cessam;
passam por um percurso que, somado,

chamam de História e no correr do tempo
vão registrando como em seus poemas
(— que uns poucos querem frio como um templo
sem música e sem alma, todo esquema

de pétrea arquitetura no vazio).
Do que não sabem, amam perguntar,
magicar, intuir, ver pelo escuro,

tocando às vezes certo fugidio
não-saber, com escamas de voar,
e asas de peixe e jornais do futuro.
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NADA VEEM

Pois se entre todos vou desconhecido,
No além de minha condição negado,
Eis que por duas vezes vou servido
De recusa e cegueira, e acostumado.

Melhor: a quem recusa, recusado
Faço que fique no seu mal vencido,
E a quem não vê, pobre desentendido,
Engano, enquanto vim assinalado.

Tudo o que dizem, tenho conhecido,
Sei quando calam tudo que hão calado.
Vá lá que ceguem, já que entorpecido

Têm seu sentido, em si tão limitado;
Mas que neguem quem seja, tem nutrido
Minha vingança e meu poder chamado.
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SOU CRUZADO

Sou cruzado, mas esqueci meu rei,
Da nave em que cheguei, mal vou lembrado;
Quero guardar comigo o que ora sei
E de antes não sabia, descuidado.

Amar, perder, a ventania, a lei
Desordenada e injusta — este reinado
De amoráveis desastres que encontrei,
Deles cativo quero estar, atado.

Assim, longe de nave e de equipagem,
Fico; não deixo mais esses rigores,
Fico: não me acrescento mais àqueles

Que perdem quanto acharam na viagem,
Pois se retornam os navegadores,
As descobertas deixam de ser deles.
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Jorge Eduardo Figueiredo de Oliveira Wanderley nasceu no Recife (PE), no dia 21 de janeiro de 1938, e morreu na mesma cidade, em 12 de dezembro de 1999. Formado em Medicina, com especialidade em Neurocirurgia, abandonou a carreira em 1981 para se dedicar integralmente à literatura. Em 1976, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez mestrado e doutorado em Letras na PUC (RJ). Em seguida, passou a dar aulas na UERJ. Tornou-se exímio tradutor, o que lhe rendeu um Prêmio Jabuti e “ofuscou a sua produção poética pessoal”. Em quatro décadas, escreveu os seguintes livros de poemas: Gesta e outros poemas (1960), Adiamentos (1974), A casa navega (1975), Coração à parte (1979), Mesa/musa (1980), A foto fatal (1986), Anjo novo (1987), Homenagem: Dez sonetos (1992), Manias de agora (1995), O agente infiltrado (1999). Escreveu ainda Arquivo/ensaio (1993), que reúne artigos de critica literária.

Fonte:
Ermira

Aparecido Raimundo de Souza (Rapídinhas) 3


VIA EXPRESSA

- Do que morreu o motorista?

- De volante...

- Como assim?

- Perdeu a direção.
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GIBI

- Você acredita que o capeta se assustou com Capeto?

- Quem é esse Capeto?

- O cachorro do Fantasma.
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AULA PRÁTICA DE PORTUGUÊS II

A aluna encontra seu professor a caminho do refeitório e não perde a oportunidade de demonstrar o que sente por ele. Ataca:

- Vou prender o senhor com o meu laço. Até hoje ninguém escapou nem resistiu ao meu charme.

O professor, seguro de si e sem deixar de lado seu melhor sorriso, rebate de imediato. Dá o troco:

- Asseguro que a senhorita não conseguirá, ainda que leve em consideração o fato de ter sido a única da sala a ganhar nota máxima na redação...

- E por que o meu amado mestre acha que eu não terei sucesso em meu empreendimento?

- Porque desde que entrei para esta escola eu fiquei lasso.
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O VISTO IMAGINADO

- Uma menina nova, lá da escola, na hora do recreio, me encarou de cima embaixo com uma cara muito engraçada. Parecia uma lâmpada.

- E você, o que fez?

- O que queria que eu fizesse? Tive a ligeira impressão de que se tocasse nela, acenderia!...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O vulto da sombra estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book enviado pelo autor.

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 8: Ademar Macedo

 


Júlia Lopes de Almeida (Ondas de ouro)

Palavras com *, vocabulário no final do texto.
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Sim, era preciso acabar a tarefa antes da noite... o caixeiro já lhe dissera três vezes da parte do patrão: – Olhe, Sr. Mendonça, as tranças foram encomendadas para hoje às seis horas, sem falta, e daqui a nada estão por aí a buscá-las...

Ele, o Sr. Mendonça, levantava os olhos, abanava afirmativamente a cabeça calva e, sempre calado, baixava de novo os olhos pequeninos e secos para o trabalho. O caixeiro descia rápido a escada de caracol, para a loja, e o oficial lá ficava no primeiro andar, separando com os dedos, engelhados* pela velhice e amarelecidos pelo fumo, umas madeixas muito loiras, muito sedosas, muito flexíveis, que lhe caíam sobre o peito e os joelhos numa cascata luminosa e ondeante. Aquele ouro fulvo* tocado pela réstia do sol da janela, aquela massa de cabelos finos, agitados pela viração, entoava num grande reverbero metálico a sinfonia triunfal da luz.

O velho, mal vestido, com o colarinho amarrotado e o casaco luzente nas costuras, parecia um nababo avarento, sumindo os dedos gostosamente naquele tesouro opulento e flácido. Não quisera que o auxiliassem; irritou-se contra um aprendiz por se ter oferecido com insistência. Nada! aquilo era coisa sagrada; nenhuma pessoa lhe tocaria sem profanação. E os companheiros sorriam atônitos, vendo o Sr. Mendonça, geralmente desleixado, escovar muito e polir as unhas, perfumando as mãos, antes de começar o seu querido trabalho.

A pouco e pouco foram-no deixando; vendo-se só, o velho beijou repetidas vezes a trança loira, assim como um crente beija uma relíquia santa. Negara-se a trabalhar na oficina, e pedira um recanto isolado, onde não levasse sumiço um único fio do precioso cabelo...

Fora-lhe concedida, sem exemplo, a permissão de ir para a pequena sala da frente, alcatifada* e com cortinas. Ali estava só. Nos armários de vidro, em roda, como únicas testemunhas, cofres de perfumarias, estojos para unhas, tondeuses*, pompons de arminho, escovas de luxo, pattes de lièvre*, esponjas, águas de toilette* enfrascadas, caixas completas de maquillage*, cosméticos, elixires, óleos e sabonetes arrumados em caixinhas de três, com rótulos coloridos e brilhantes, ou separados e envoltos em papéis prateados, azuis, ou cor de gravanço*.

Entre aquela variedade infinita de aromas e de tons, aqui e ali, rumas* de pentes de todos os feitios, da mais fina tartaruga ao mais negro búfalo, do melhor marfim ao mais grosseiro osso. Pendentes e cuidadosamente alisadas, tranças negras, castanhas, loiras, grisalhas, restos de uma multidão incógnita, destroçada, perdida na noite escura da miséria, na podridão da vala comum, nas enfermarias dos hospitais, ou nas células das penitenciárias.

De espaço a espaço, sobre cabeças de pau, um chinó* preto, reluzente, e caricatamente garrido, ou umas cuias de arame muito fino, cobertas de caracóis alvos, jeitosos e macios.

A envolver tudo isto, o enervante cheiro do heliotropo branco, ou os suavíssimos e esquisitos aromas do Musc* ou do Psidium*.

No relógio de metal bronzeado, sobre o dunquerque*, em frente ao espelho, os ponteiros giravam, giravam implacavelmente para o pobre Mendonça, que supunha, talvez, ter entre os dedos não uma pobre cabeleira loira, desfeita, mas o próprio sol, eternamente irradiante e puro.

Antes que subisse o quarto recado do patrão, beijou o velho muitas vezes aqueles fios de ouro; e, acabado o trabalho, fingia ainda ocupar-se dele, temendo a angústia da separação.

Era o único vestígio da sua adorada Angelina, morta havia um mês, um anjo de docilidade e de meiguice, que suportara sorrindo a cruz da sua pobreza, sempre consoladora, sempre resignada. Levara-a a tísica, a mesma moléstia que arrebatara a mulher e os outros dois filhos mais velhos! Tinha-lhe ficado aquela só, e nela concentrara todo o seu carinho; e um dia, que triste dia de verão fora esse! o médico da Policlínica dissera-lhe: “A sua menina está mal... alivie-a do peso dos cabelos, mande-a tomar ares num arrabalde... leve-a imediatamente para fora.”

E ele, estrangulado de angústia, empenhara tudo, relógio de prata, corrente, joiazinhas de família, uma cômoda antiga. Apurado o dinheiro, transportou para Santa Teresa a sua doentinha; mas Angelina piorou de tal sorte, que no fim de um mês teve de torná-la à cidade; aí durou pouco. E o velho, acariciando os cabelos loiros, lembrava-se daquelas horas negras: a pequena, muito desfigurada, estendida no leitozinho estreito, enquanto ele piedosamente enxotava com o lenço branco as moscas que a assaltavam. Foi então, horrorizado com a ideia de entregar à vala aquele corpo idealmente puro, sonhando como uma felicidade comprar para o seu branco lírio um canteiro separado de todos mais, que ele se lembrou, como único recurso, de ir vender as tranças loiras da filha, guardadas havia muitos dias, desde a consulta da Policlínica.

Antes isso... separar-se-ia desse amado despojo, mas a sua casta, a sua angélica, a sua imaculada filha teria um canteirinho condigno!

E, como um negociante banal, foi fazer o preço, propor o negócio e ao mesmo tempo contratar a obra! Tudo assentado, fizeram-se as cerimônias do ritual, e ele acompanhou serenamente a filha ao cemitério...

Eram cinco horas. Subira o quinto recado do patrão. A réstia de sol já não entrava pela janela. Embaixo, nas calçadas da rua, muita bulha de passos e um rumor alto de vozes. Mendonça tinha concluído a obra. Pela escada de caracol ouviu uns passos de homem e outros leves, rápidos, evidentemente de mulher; depois um ruge-ruge de vestido do seda, e umas gargalhadinhas em falsete.

– Pronta a encomenda, Sr. Mendonça? perguntou, num acentuado sotaque francês, o dono da casa.

O velho quis responder ao patrão, mas não pôde; ergueu a trança, e delicadamente pôs-a sobre a alcatifa do balcão.

Tirando às pressas as luvas altas, num gesto petulante, a recém-chegada estendeu as mãos alvas, carregadas dos anéis caros, para o cabelo tão carinhosamente tratado pelo velho, e pôs-se a examiná-lo, separando com força as três madeixas da trança, cheirando-a, olhando-a de perto, de longe, e deixando-a por fim cair sem caridade sobre o veludo escuro de um sofá.

Mendonça estremeceu; imaginara ingenuamente que os cabelos da filha iriam adornar a cabeça de uma virgem, que se engrinaldasse de rosas frescas, e tivesse com eles todo o desvelo de uma menina educada. Vendo em frente aquela mulher arrogante e brutal atirá-los sem cuidado sobre o traste mais próximo, mordeu os beiços e amparou-se ao balcão. O suor corria-lhe pela calva, as mãos crispavam--se-lhe com ódio.

Diante do alto espelho, a freguesa tirava o chapéu de abas reviradas, com bouquets de flores. Ele via refletido no cristal o seu vestido de seda escarlate, a jaquette* cor de café com leite, aberta na frente, com uma grande rosa vermelha na lapela; a descomunal aranha de pérola e brilhantes a luzir-lhe no peito, os pulsos cheios de braceletes; as bichas de brilhantes nas orelhas, o rosto coberto de veloutine rose* sobre pastas de cold-cream*; os beiços tintos a carmim, os olhos engrandecidos, o cabelo sujo por tintas cor de cenoura, com louros claros e escuros, em manchas desiguais. Colocava no penteado a trança, que o dono da casa, muito solícito, erguera do sofá; via-se de frente, de perfil, desvanecidamente; depois, voltando-se para o francês:

– Fica-me bem esta cor, não acha?

– Oh! perfeitamente, é de um tom belíssimo, ravissant*!

– Sim?... Vou fazer com ela esta noite um papel de fada, no Sant’Anna... Que diz, farei sensação?

E em uns requebros amaneirados, prolongou o diálogo, diante do velho Mendonça, dizendo muitas coisas fúteis, em gíria de bastidores.

O desgraçado homem olhava, olhava para os cabelos da sua pura, da sua casta, da sua imaculada filha, com os olhos rasos de lágrimas, numa grande mágoa que o abatia.

No fim de meia hora, a atriz, arranjados os frisados da testa e abotoadas as luvas, segurava o grande leque pintado, a sombrinha de cabo extravagante e alto, e descia a escada de caracol, calcando os degraus com os pés calçados em meias de seda e sapatinhos estreitos.

Mendonça ficou colado ao mesmo sítio, com os olhos fixos no mesmo ponto e o pensamento preso à mesma ideia... Nunca mais veria os cabelos da sua Angelina, aquelas opulentas ondas de ouro, aquele precioso espólio! Que sol o aqueceria então?

Não tornar a vê-los! a isso não se resignava o desgraçado pai, mas... e lembrou-se do que a atriz dissera:

– Esta noite no Sant’Anna vou fazer um papel de fada...

Às oito horas lá estava à porta do teatro o oficial de cabeleireiro. Era cedo e ele já tinha na algibeira o seu bilhete de galeria. Foi o primeiro a subir, e sentou-se num bom lugar, à frente. O gás muito amortecido, os camarotes e a plateia vazios davam um aspecto taciturno ao teatro. Ah! no tempo da filha não fora nunca a um espetáculo; a pequena morrera sem ter visto isso... E sentia remorsos, o Mendonça, como se ele tivesse ido agora com o propósito de se divertir! E lá, na galeria, sozinho, limpava as lágrimas, que lhe corriam em fio, embebendo-se nas suas barbas brancas.

Principiava a aparecer gente, em pontos desgarrados da sala, até que uma onda grossa veio enchê-la quase de repente; o gás abriu em grandes leques a sua luz forte e a orquestra rompeu num tango alegre, vibrando no ar uns estalidos de castanholas e os sons metálicos dos pistons.

Erguido o pano, o velho Mendonça abriu muito os olhos, debruçando-se avidamente. Agitava-se em cena um bando de coristas, pintadas e quase nuas, esganiçando-se num coro alegre; depois, vinham as damas principais, os atores; e a plateia ria, e os aplausos ecoavam sem que o Mendonça tomasse parte em nada. Todo o primeiro ato rolou indiferentemente para ele. Durante o intervalo não se levantou; temia perder o lugar, e não ver depois bem os cabelos da filha; mas no segundo ato não entrou a fada, nem tampouco no terceiro! Mendonça sentia-se fatigado e desiludido ao começar o quarto e último ato, em que os quadros se sucediam animados e com brilhantes cenários.

Ia ele quase em meio quando, de entre umas nuvens de gaze azul celeste, salpicadas de estrelas luminosas, apareceu, em maillot* e cetim branco, com diadema, varinha de condão e o manto de cabelos loiros espalhado nas costas, a fada protetora da desventurada ingênua.

Era ela! Mendonça levantou-se, pôs toda a atenção naquela grande cabeleira solta, sedosa, fulgurante, resplendendo, numa prodigiosa magnificência, centelhas de ouro, refrangível*, ondeante e vivo! Tantas vezes vira a sua Angelina coberta por aquelas madeixas longas!

E à luz da ribalta, os virginais cabelos da filha pareciam-lhe mais formosos e mais ofuscadores ainda! Não via mais nada; nem o corpo esbelto da atriz, nem as transfigurações que ela ia produzindo com a sua magia; todo o seu espetáculo era aquela trança desatada, que lhe mandava, da falsidade do palco, num perfume de saudades, uma piedosa ilusão da vida!

Sim! Revivia um pouco a sua adorada morta, e ele batia as palmas, chorava como um doido e, em um delírio frenético, pedia bis, em altos gritos, vendo sumir-se a Fada entre nuvens de gaze azul celeste, salpicadas de estrelas luminosas.

Mandaram-no calar-se; ele continuou sempre, até que a polícia interveio. O velho Mendonça foi tirado à força do teatro; alguns espectadores riram; e lá dentro, a atriz, muito orgulhosa, convenceu-se de que realmente fizera sensação.
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* VOCABULÁRIO EM ORDEM ALFABÉTICA
Alcatifada = atapetada.
Chinó = cabeleira postiça para o alto da cabeça.
Cold-cream =“Creme frio”: creme refrescante para a pele.
Dunquerque = armário constituído de prateleiras e geralmente de portas envidraçadas de modo a permitir a exposição de objetos de valor material e/ou afetivo.
Engelhado = Enrugado, encarquilhado.
Fulvo = De cor amarelo-tostada; alourado.
Gravanço = grão de bico.
Jaquette = Jaqueta, terninho.
Lièuvres = Pata-de-lebre; isto é, objeto feito de pata de lebre (esponja de pó, pente ou escova).
Maillot = Maiô.
Maquillage = Maquiagem.
Musc = Almíscar.
Psidium = Gênero de plantas do qual faz parte a goiabeira.
Ravissant = Encantador.
Refrangível = suscetível de sofrer refração.
Rumas = pilhas, montão.
Toilette = Banho; no caso, água de banho, colônia.
Tondeses = Cortadores.
Veloutine rose = Marca de pó de arroz, um tipo de talco utilizado para maquiagem.


Fontes:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Dicionário Houaiss Eletrônico – junho de 2009.

Ronnaldo de Andrade (Album de Spinas) 2

À ESPERA

Anseio, sem receio,
pela doce presença:
sentença de paixão!

Vejo o coração sendo coração,
o amor desabrochar qual rosa
deixando de ser sublime botão.
Quando a amada chega muda
o ambiente. Amo-a com razão!
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A SAUDADE VIROU TATUAGEM NA MEMÓRIA

Sentado no alpendre
do casebre solitário,
cheio de lembrança,

volto outra vezes ser criança.
Vejo-me a brincar no terreiro,
um beija-flor com sua dança
beijocando as flores (logo ali).
Ah, bom tempo! Que mudança!
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EM QUESTIONAMENTO

Aumento meus vícios
destruo meus sonhos,
produzo meus versos

áridos, ásperos, azedos qual limão,
causas da estrada infinita amoroso!
A cabeça pesada, passos dispersos,
sinto-me alucinado, em um labirinto
de dúvidas; gostos vis, contraversos.
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SEM VOCÊ SOU UM LIVRO
À ESPERA DO PREFÁCIO


Desabo em felicidade,
em sonhos profundos;
em desejos afogo-me.

Jogo-me para fora de mim,
assim eu enxergo meu riso,
o seu, você perto. Jogo-me
calmo nos seus braços; faço
o que nunca fiz. Prologo-me!
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SOLILÓQUIO REFLEXIVO

Divago nas ruas
cheio dos sonhos
que sempre trago,

vagos, na memória do pretérito.
Observo que minha nova história
está me cometendo seu estrago.
Amargo: o amanhã nunca chega;
meu presente: Cigarro que trago.
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5x9

Aceitar a morte,
viver nosso luto,
avançar em paz

mesmo com as feridas abertas
expelindo pus, com forte cheiro,
faz-se essencial. Quem é capaz?
Morrem vida, os amores, paixões;
lembranças a morte não desfaz!

Fonte:
Versos enviados pelo autor.

Fernando Bonassi (Corações vagabundos)

O carro dobrou na Cesário Mota Jr., e Cibele logo percebeu que era o homem esquisito. Já passava de seis meses agora. Toda semana. Toda sexta-feira à noite. Nove horas em ponto o sujeito aparecia. Banho tomado, roupa passada. Ele vinha escorregando com o carro pro lado dela. Parava, mas deixava o motor ligado. Destravava a porta. Às vezes dizia alguma coisa.

— Boa noite.

— Boa.

Às vezes, nem isso... Mas sempre aquele cheiro de água de colônia. Enjoativo. Cibele sentia falta de ar. Procurava pelo botão do vidro. Não achava. Não tinha coragem de perguntar onde ficava. Contava até dez. Passava.

— Aposto que eu sei onde a gente vai...

O homem fez que sim com a cabeça. Ele a levava pra comer frango à passarinho com caipirinha em Pinheiros. Bebiam e comiam em silêncio aquelas irresistíveis desgraças cheias de gordura até perderem o juízo. Ela não conseguia se controlar. Depois pediam sobremesa. Ela simplesmente não conseguia se controlar! E ainda tomavam cafezinho:

— Sem açúcar, por favor...

Ele pagava e a deixava no mesmo lugar. Pagava o preço mais caro. Perguntou na primeira vez:

— Quanto é pra fazer tudo?

Ela caprichou. Ele tirou o dinheiro do bolso. Não tinha muito mais do que ela pedira, mas fez questão de acertar antes. De lá pra cá era sempre igual. Uma vez perguntou:

— Teve aumento?

Cibele não teve coragem. Pediu o de sempre.

Portanto ele podia fazer tudo o que quisesse, mas sempre a devolvia na mesma esquina. "Sem um arranhão!", como costumava dizer às amigas. Toda semana. Toda sexta-feira, entre 11 e 11 e meia estava de volta ao ponto. Menos mal, pensava a mulher, que ainda contava com todo o movimento da madrugada pra aproveitar. Aproveitava mesmo, que Cibele não fazia questão de prestar e tinha muitos planos; mas aquele homem... Não sabia se tinha vergonha... Ou pena. O coração dela ficava espremido. Ruminava as razões dele. Passava a semana com esse troço por dentro. Não chegava a lugar nenhum.

Até esse dia tinha ficado quieta, mas, no restaurante, quando ele perguntou o que ela queria, Cibele pôs a língua pra fora e disse:

— Você.

O garçom se fez de morto. Era um bom garçom. Ficou brincando de estátua com a caneta e o bloquinho. Passou um bom tempo assim, porque o homem deu uma risada comprida e só então virou pra pedir:

— Duas caipirinhas de pinga e um frango à passarinho.

O garçom se afastou e a mulher continuou provocando:

— Você gosta de beber, né?

— É bom, fica tudo mais fácil...

— Devia comer de vez em quando.

Dessa vez o homem não riu.

— Você é casado?

— Hum-hum.

— Mentira. Se fosse casado a tua mulher ia desconfiar da rotina.

— Não é uma questão de confiança.

— Ela é doente?

O homem voltou a rir.

— Você é doente?

— Não.

— Gay?

Chegou o pedido. Cibele ficou desacorçoada. Costumava dizer que se um dia fosse executada, frango à passarinho seria sua última refeição. Tentou escolher um pedaço bem sequinho. Difícil. Ficou mordiscando. Depois pegou mais. E foi pegando, querendo morrer. Seus lábios brilhavam quando perguntou:

— Eu não sou boa pra você?

O homem teve a coragem de fazer Cibele esperar que pegasse um cigarro do maço, tirasse caixa de fósforos do bolso da calça, um palito de dentro dela, acendesse esse maldito cigarro e só então se dignasse a responder:

— Você é a melhor coisa da minha semana.

— "Coisa"?!

O homem bufou diante da mulher, levantou a palma da mão pro garçom e fez que escrevia nela com um dedo. Cibele ficou pescando os restinhos de alho da bandeja.

— Você me engorda.

Cibele fechou a cara. De cara fechada esperou que o homem pagasse a conta e a levasse de volta à esquina de sempre. Nessa noite Cibele não sentiu o enjoo da água de colônia quando ele se debruçou nela pra destravar a porta. Desceu e ficou de costas. O homem baixou o vidro. "Aqueles botões...”

— Até sexta-feira...

Cibele pensou em ofender, mas quando virou, aquele homem esquisito estava bem ali... Ela sem saber se era vergonha ou pena... O coração espremido...

— Tá bom, te espero aqui.
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Fernando Bonassi é paulistano, nascido em 1962. Escritor, roteirista e cineasta, tem inúmeros livros lançados, dentre os quais: A incrível história de Naldinho, um bandidão o bandidinho?, O céu e o fundo do mar, 100 coisas, Declaração universal do moleque invocado (indicado para o Prêmio Jabuti em 2002), O amor é uma dor feliz, Tá louco! e Passaporte. Tem contos e livros publicados na França, Alemanha e EUA. É formado em Cinema pela ECA-USP, tendo participado como diretor/roteirista dos filmes Castelo Rá Tim Bum e O trabalho dos homens.