quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Figueiredo Pimentel (O Príncipe Querido)

Ubaldo VI, rei do país de Karkom, foi um soberano tão bom, tão carinhoso e tão amante dos vassalos, que, depois de sua morte, e mesmo em vida, o povo o cognominou: o Bom Rei.

Estando um dia a caçar um coelho, que cães perseguiam, pulou em seus braços.

O rei acariciou o coelhinho e disse-lhe:

– Já que te colocaste sob minha proteção, não consentirei que te façam mal. E levou o bichinho para o palácio.

À noite, quando já estava em seus aposentos, pronto para se deitar, apareceu-lhe uma moça formosíssima, vestida de branco, com os deslumbrantes e opulentíssimos trajes de uma princesa real, tendo, porém, cingida à fronte, em vez de uma coroa, uma grinalda de rosas brancas.

Sua majestade ficou admirada de vê-la no quarto, porque a porta estava fechada, não sabendo como podia ter ela entrado.

– Eu me chamo Cândida e sou uma fada, disse ela. Estava no bosque, enquanto caçavas, e quis ver se eras bom como todo o mundo diz. Por isso encantei-me no coelhinho, e saltei em teus braços. Queria ver se eras bom para os animais, porque sei que quem tem piedade deles, ainda tem mais pelos homens, seus semelhantes. Se me tivesses recusado socorro, acreditaria que eras mau. Vim agradecer o serviço que me fizeste, e garantir-te a minha proteção. Pede o que quiseres, que te prometo fazer.

– Linda fada, disse o bom rei, deves saber o que desejo. Tenho um único filho que muito estimo, e por isso lhe chamo Querido. Se quereis conceder-me alguma graça, sede sua protetora.

– De boa vontade, tornou a fada, “posso fazê-lo o mais rico, o mais belo e o mais poderoso dos príncipes. Escolhe o que queres para ele.

– Nada disso desejo para meu filho, respondeu Ubaldo. Ficarei muito agradecido se fizerdes dele o melhor de todos os príncipes. De que lhe servirá ser belo, rico, poderoso, se for um malvado? Sabeis perfeitamente que seria infeliz, e que só a virtude fará dele um homem venturoso.

– Tens muita razão, mas não tenho poder para tanto. É preciso que ele trabalhe para ser um homem virtuoso. O mais que posso prometer é dar-lhe bons conselhos, protegê-lo, repreendê-lo e castigá-lo pelas suas faltas, se não se corrigir ou não se punir por suas próprias mãos.

O soberano ficou satisfeito com essa promessa da fada Cândida, e morreu pouco tempo depois.

O príncipe Querido chorou bastante a perda de seu velho pai, e daria todos os seus reinos, toda a sua fortuna para salvá-lo.
***

Dois dias após a morte do rei, estando Querido deitado, apareceu-lhe Cândida, que lhe disse:

– Prometi a teu falecido pai ser tua protetora, e vim cumprir minha palavra fazendo-te um presente.

E no mesmo instante colocou um anel de ouro no dedo do moço, dizendo-lhe:

– Guarda com muito cuidado este anel, que vale mais que todos os tesouros da terra. Todas as vezes que fizeres uma ação má, ele espetará teu dedo. Mas, se apesar disso, persistires, perderás a minha amizade e tornar-me-ei tua maior inimiga.

Dizendo tais palavras Cândida desapareceu, deixando o príncipe admirado. Querido conservou-se sensato por muito tempo, a ponto de não sentir o anel espetá-lo nenhuma vez.

Tempos depois, indo à caça, sentiu que o anel o incomodava, mas não fez caso; e, como não encontrasse pássaro algum para matar, voltou para casa de mau humor.

Entrando em seu quarto, uma cadelinha que possuía, chamada Mimosa, começou a saltar-lhe em frente, festejando-o, latindo alegremente.

– Passa fora! gritou. Hoje não estou disposto a receber festas.

A cadelinha, não entendendo o que lhe dizia o príncipe, puxou-lhe a aba do paletó, para obrigá-lo ao menos a olhar par ela.

Isto impacientou o príncipe, que lhe deu um pontapé. Nesse momento o anel deu-lhe uma ferroada tão forte que parecia alfinete.

Querido ficou muito admirado, e foi sentar-se a um canto do quarto, envergonhado da sua ação. E dizia consigo mesmo: "– Afinal de contas, está me parecendo que a fada brinca comigo. Que grande mal fiz em dar um pontapé num animal que me importuna? De que me serve ser senhor de um grande império, se não tenho liberdade de castigar o meu cão?"

– Eu não brinco contigo, disse uma voz que respondia ao pensamento do príncipe. Cometeste três faltas em vez de uma. Estavas de mau humor, porque não gostas de ser contrariado, e pensas que os animais e os homens foram feitos para te obedecer. Ficaste zangado, o que é malfeito, e demais, foste cruel para um animalzinho que não merecia ser maltratado. Sei que vales mais que o cão; mas, se é uma coisa razoável e permitida que os grandes possam maltratar os pequenos e os fracos, agora mesmo eu, que sou fada, podia castigar-te, e até te matar, porque sou mais forte que tu. A vantagem de ser senhor de um grande império não consiste em poder fazer o mal que se quer, mas sim todo o bem que se pode.

O jovem confessou a sua falta, e prometeu corrigir-se, mas depressa faltou à palavra. Em pequenino fora criado por uma velha ama que lhe fazia todas as vontades. Se acaso desejava alguma coisa, fazia manha, gritava, batia com o pé, esperneava a ponto de, para se calar lhe darem o que pedia. Ficou por isso com um gênio muito irascível. E demais, a ama lhe dizia sempre que ele um dia havia de ser rei e governar o povo, de sorte que todos teriam que lhe obedecer.

Mais tarde, quando moço, o príncipe compreendeu o seu mau gênio, mas não pôde emendar-se dos defeitos que na meninice adquirira. Dizia, então, consigo mesmo: “– Sou bem desgraçado em ter de combater todos os dias a minha cólera e o meu orgulho. Se me tivessem corrigido quando pequeno, hoje não sofreria tantos dissabores.”  

O anel ferroava-o muitas vezes. Em várias ocasiões, ele se detinha em alguma ação má; mas em outras continuava, e o que havia de singular era o anel que o picava pouco por uma falta ligeira; mas quando fazia alguma maldade, o sangue saía do dedo. Por fim aquilo o impacientou, e querendo ser livre, jogou o anel fora, livrando-se dessa maneira das constantes ferroadas.

Julgou-se desde então o homem mais feliz do mundo, e começou a praticar toda a sorte de loucuras, de modo que se tornou um homem mau e perverso, que ninguém podia aturar.

Meses depois, percorrendo a passeio as ruas da capital, avistou à janela de uma casa de modesta aparência, uma formosíssima jovem, por quem imediatamente se apaixonou.

Essa moça, embora fosse de família paupérrima, não era ambiciosa, e fora criada com muito recato e honradez por seus pais. O príncipe, porém, julgando-a facilmente, imaginou que ela ficaria satisfeitíssima se lhe desse a mão de esposo. Assim dirigiu-se sem mais demora à casinha, e perguntou-lhe o nome. A rapariga respondeu que se chamava Zélia, e que era pastora. Então Querido propôs-lhe o casamento.

Espantada com tão brusca proposta, e não gostando do príncipe, a quem raríssimas vezes via, a formosa jovem recusou a honra que lhe fazia o filho do falecido rei.

– Por quê? perguntou Querido. Acaso te desagrado eu? ou me achas muito feio?

– Não, príncipe, sei que sois belo, porque agora mesmo estou olhando para vossa alteza. Mas a que me serviriam vossa beleza, vossa riqueza, lindos vestidos, carros magníficos que me dês, se as más ações que vos visse praticar todos os dias, me forçariam a vos desprezar e odiar? respondeu ela com a máxima franqueza.

Querido encolerizou-se muitíssimo com aquela recusa e mandou que os seus soldados a trouxessem ao palácio. Passou todo o dia agitado e, como estava verdadeiramente apaixonado, não teve coragem de lhe fazer mal.

Entre os seus favoritos havia um, chamado Xerim, seu irmão de leite, em quem ele depositava toda a confiança. Esse homem, que tinha inclinações baixas, próprias de um mau-caráter, lisonjeava as paixões do seu amo, e dava-lhe péssimos conselhos. Assim que viu o príncipe triste, tratou de indagar o motivo. Respondeu-lhe o jovem que não podia suportar o desprezo de Zélia, e que estava disposto a corrigir-se de seus defeitos, já que era preciso ser virtuoso para agradar à moça.

O perverso Xerim aconselhou-o, então:

– Príncipe, sois muito criança em vos incomodares com uma pastora. Se eu fosse vossa real majestade, obrigá-la-ia a obedecer-me. Lembrai-vos de que sois rei, e que é ridículo a tão alto personagem sujeitar-se aos caprichos de uma plebeia, que ficaria muito contente em ser vossa escrava. Prendei-a a pão e água, e vereis se ela consente ou não em se casar convosco. Ficareis desonrado, se souberem que uma moça do povo resiste aos vossos desejos.

– Mas não ficarei desonrado se fizer morrer uma inocente, porque Zélia não é culpada de nenhum crime? – replicou Querido, que ainda tinha uns restos de bons sentimentos.

– Uma pessoa não é inocente, quando não cumpre as vontades de seu rei. - retorquiu o infame - Contudo, é preferível que vos acusem de uma injustiça, do que de se estabelecer o princípio de desrespeito a um rei tão ilustre.

O favorito tocou o ponto fraco do rei que, receoso de ver a sua autoridade desprestigiada, abafou a vontade de se corrigir, e partiu para o quarto onde estava a moça, disposto a fazê-la consentir no casamento, ou então vendê-la como escrava no dia seguinte.

Quando o príncipe abriu a porta do quarto em que prendera a jovem, com a chave que sempre trazia no bolso, ficou como doido por não encontrá-la. Zélia havia fugido.

Existia nesse tempo um cortesão que estimava muito o príncipe, e que havia sido seu preceptor. Esse pobre homem, chamado Salomão, mais de uma vez o aconselhara a reprimir as suas loucuras. Querido, as primeiras vezes, ouvira-o de bom modo; mas, por fim impacientando-se, já não queria saber mais do velho, nem dos seus conselhos tendo retirado todas as regalias que o preceptor tinha no palácio.

Salomão, sendo muito sensato, os moços da corte não o estimavam, e por isso procuravam todos os meios de o molestar. Assim que o rei deu por falta de Zélia, não faltaram intrigantes que dissessem ter sido Salomão quem havia facilitado a fuga da moça, e até contaram que alguns criados ouviram a conversa em que ele promovia a fuga.

Possuiu-se o jovem soberano de grande raiva, e mandou que trouxessem o velho Salomão preso. Depois de dar essas ordens, retirou-se para o quarto. Apenas, porém, acabava de entrar, a terra toda tremeu, ouviu-se um grande trovão, e Cândida apareceu-lhe, dizendo:

– Prometi a teu pai dar-te bons conselhos, e punir-te se recusasses segui-los: desprezaste-os; não conservaste do homem senão a figura, e os teus crimes te mudaram em um monstro de terror para o céu e para a terra. Já é tempo que eu termine a minha promessa, castigando-te. Condeno-te a ficares semelhante aos animais quadrúpedes. Faço-te semelhante ao leão pela cólera, ao lobo pela gulodice, à serpente pela ingratidão, pois maltrataste o velho Salomão, aquele que foi teu segundo pai, e ao touro pela brutalidade. Traze em tua figura o caráter desses animais.

Apenas, a fada acabava de pronunciar tais palavras, viu-se o príncipe, com horror, tal como ela dissera: um monstro com cabeça de leão, chifres de touro, patas de lobo, e cauda de serpente. No mesmo instante achou-se em uma grande floresta, à beira de uma fonte, onde se refletia a sua horrível figura, e ouviu uma voz, que lhe disse:

– Olha o estado a que te reduziram teus crimes! Tua alma é mil vezes mais feia que a tua figura.

Reconheceu Querido a voz da fada, e possuído de furor, quis investir contra ela.

– Zombo da tua fraqueza e da tua raiva. Vou confundir o teu orgulho, colocando-te sob o domínio dos teus súditos.

A fera foi andando pela floresta quando de repente caiu num buraco muito fundo. Era um laço que caçadores de animais ferozes armavam para fazê-los cair. Os caçadores, que estavam à espreita, desceram, foram prender a fera e levaram-na acorrentada para a cidade, onde estava o seu palácio. Quando lá chegaram, viram toda a população em festas, e perguntaram o que significava aquela alegria.

Respondeu-lhes um homem do povo:

– O príncipe Querido só gostava de atormentar os seus súditos, e por isso fora fulminado em seu quarto por um raio. Deus não pudera suportar tanta crueldade, e livrara a terra de tão mau rei. Quatro homens cúmplices de seus crimes, quiseram partilhar o reino entre si, mas o povo que sabia terem sido os seus maus conselhos que prejudicaram o príncipe, expulsou-os do país e ofereceu a Salomão, a quem o príncipe Querido queria mandar matar, a coroa de rei. Esse digno cidadão acaba de ser coroado, e nós celebramos o dia de hoje como de nossa liberdade, porque Salomão é virtuoso, e vai trazer a seu povo a paz e a abundância.

A fera mordia de raiva a corrente em que estava presa, ao ouvir esse discurso, porém mais raivosa ainda ficou quando chegou à praça onde estava o palácio, e viu o velho sentado no trono, e. todo o povo a lhe desejar longa vida.

Salomão fez um sinal com a mão, pedindo silêncio, e disse:

– Aceitei a coroa que me oferecestes, para conservá-la ao príncipe Querido. Ele não morreu, como suponham. Uma fada me revelou; e talvez, um dia, vós o vejais virtuoso como era nos seus primeiros anos. Coitado! continuou ele derramando lágrimas, os aduladores o seduziram. Eu conhecia o seu coração, que era feito para a virtude e se não fossem os maus conselhos, ele era o nosso pai. Abominai os vossos vícios, mas lastimai o pobre príncipe, e roguemos a Deus que nos devolva o nosso rei, bom como fora seu pai. Eu me consideraria muito feliz, se soubesse que meu sangue derramado fá-lo-ia digno de um povo bom como sois.

As palavras de Salomão foram diretas ao coração do príncipe, que desde esse dia começou a ser dócil, não mais querendo partir a jaula em que estava.

O homem que tomava conta das feras, no jardim zoológico, era um bruto que a toda a hora castigava os animais. Querido sofria todos os castigos, manso como um cordeiro, não querendo nunca reagir contra o seu domador.

Aconteceu que um dia a jaula do tigre ficou aberta por descuido, e o desgraçado domador teria morrido, se não viesse à sua frente a curiosa fera, que lutando com a outra, a matou, salvando-lhe assim a vida.

O pobre homem não sabia como acariciar a fera que o tinha salvo, quando ouviu uma voz que disse:

– Não há uma boa ação sem recompensa.

Nisso, o príncipe foi de súbito transformado num lindo cão. O domador, vendo aquele espantoso caso, foi contar ao rei o sucedido, e este mandou vir para o palácio o cão, que se viu feliz na sua nova transformação. Mas aí não lhe davam o alimento necessário, porque diziam que quanto mais comida lhe dessem, mais ele cresceria, de sorte que o príncipe passou novas provações e, às vezes, até fome.

Certa vez, recebeu ele o seu pedaço de pão e ia devorá-lo, quando viu uma pobrezinha a arrancar ervas para comer. Teve pena da pobre mendiga, e deu-lhe o pedaço de pão, dizendo consigo mesmo que ele poderia esperar pela sua ração até o dia seguinte, e a pobre parecia estar com tanta fome que era bem capaz de morrer.

Estava pensando na miséria da desgraçada, quando ouviu grandes gritos. Eram quatro homens que empurravam Zélia pelo meio da rua, forçando-a entrar numa casa.

O cão sentiu não ser a fera que tinha sido, para poder livrar a moça que tanto amava. Contentou-se, porém, em latir, até ver se chegava alguém que a defendesse dos malfeitores. Não aparecendo quem viesse em socorro da vítima, o cão começou a esperar por Zélia para ver se ela aparecia.

Nisso viu uma janela abrir-se e imediatamente jogarem uma porção de carne assada perto do lugar onde ele estava. O cão, que não comia desde a véspera, estava já disposto a comer aquela carne, vinda tão a propósito, quando a pobre, vendo-o, gritou:

– Não comas desta carne, meu cãozinho que está envenenada.

No mesmo instante o príncipe ouviu uma voz que dizia:

– Vês tu que uma boa ação não fica sem recompensa?

E imediatamente viu-se mudado num belo pássaro azul. Começou a voar até a casa onde vira Zélia entrar, e, depois de percorrer todos os quartos, voou em direção a um bosque perto.

Qual não foi o seu espanto quando viu a moça sentada à sombra de uma árvore ao lado de um ermitão!

Assim que a viu, voou ao seu ombro, e começou a festejá-la. Zélia encantada pela mansidão do pássaro, correspondeu às carícias e disse que havia de o amar para sempre. Então o pássaro se transformou no príncipe Querido, tal como a moça o tinha visto da primeira vez.

O ermitão, vendo aquilo, transformou-se também na fada Cândida, e disse:

– Está quebrado o encanto, príncipe. Só voltarias à tua forma humana no dia em que Zélia gostasse de ti. Ela acabou de o confessar. Vou conduzir-te ao teu reino, onde está à tua espera o mais leal dos vassalos, o velho Salomão. Confia nele, que é o teu segundo pai. Segue-lhe sempre os conselhos, que te não arrependerás.

Mal a fada acabou de proferir estas palavras, o príncipe Querido viu-se no seu palácio, em companhia de Zélia. O velho Salomão, quando o viu, chorou de alegria. Querido tomou conta do reino, e casou-se com a pastora Zélia, vivendo desde então na mais completa felicidade.

Salomão escreveu a história do príncipe Querido, tal como acabamos de narrá-la, para ensinamento de todos, grandes e pequenos, ricos e pobres, fidalgos, e plebeus, reis e vassalos, a fim de que toda a gente se convença que a felicidade, neste mundo, consiste unicamente em vivermos em paz com a nossa consciência, fazendo sempre o bem, mesmo à custa dos maiores sacrifícios e nunca praticando o mal.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

Minha Estante de Livros (Série O Mistério das Palavras Cruzadas , de Nero Blanc)


A série "O Mistério das Palavras Cruzadas" foi escrita por Nero Blanc – pseudônimo do casal americano Setev Zettler e Cordelia Frances Briddle, em uma alusão às tradicionais cores das palavras cruzadas.

Pacto Sinistro
Em Pacto Sinistro, a editora de palavras cruzadas Belle Graham e o detetive particular Rosco Polycrates estão no centro de uma trama hollywoodiana. Uma famosa atriz sai para velejar com uma amiga e as duas não regressam. Quando o bote salva-vidas surge inesperadamente em uma praia distante, torna-se provável que um crime tenha sido cometido. O detetive Rosco Polycrates e sua querida Belle Graham, editora de palavras cruzadas, afinam a ponta do lápis e aguçam o cérebro para solucionar mais este intrincado caso.

Tudo começa quando Belle encontra à sua porta um jogo de palavras cruzadas com algumas pistas intrigantes, deixadas por um desconhecido. Mas a verdade não surge com tanta facilidade e vai exigir muita habilidade para preencher os quadrados em branco…
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Até que a Morte os Separe
Os amantes de palavras cruzadas, Belle e Rosco, finalmente decidiram se casar. Mas a morte misteriosa de dois moradores de rua, cujos corpos foram encontrados sobre a seção de palavras cruzadas de jornais, conspira para adiar seus planos. Principalmente porque Rosco desaparece sem deixar pistas. Abandonada à própria sorte, Belle tem de resolver uma série de palavras cruzadas anônimas deixada na porta de casa. Se conseguir matar a charada, poderá elucidar os crimes, encontrar Rosco... e se casar. Se você gosta de desvendar mistérios, Até que a morte os separe, mais um livro da série Nero Blanc, é para você. Com uma leitura envolvente, esta nova modalidade de romance policial com palavras cruzadas dá a você a chance de participar da elucidação da trama.
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Conexão Caribe
De leitura agradável e envolvente, Conexão Caribe da origem a uma nova modalidade de romance policial. O pai de Belle Graham morre de ataque cardíaco durante uma viagem de trem. Mas Belle e o detetive Rosco Polycrates desconfiam de que essa não é a verdadeira causa de sua morte. E, assim, começam as investigações. Enigmáticas palavras cruzadas que chegam de Belize, na América Central, podem ser as únicas pistas que faltam para desvendar o mistério. Qual é a verdade que existe por trás da morte do professor Theodore Graham? Solucione as palavras cruzadas.. e o caso!

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Adega de Versos 49: Olivaldo Júnior

 

JB Xavier (A Praia)

Por alguma razão com a qual eu não conseguia atinar, as coisas começaram a dar errado em minha vida. Meu casamento vacilava, diante de diálogos ríspidos e incompreensões várias entre eu e minha esposa.

Meus filhos, submetidos a um ambiente tenso, estavam arredios e inseguros, temendo por uma possível separação, que nunca era citada em nossas discussões, mas que parecia mais palpável a cada dia.

Esta tensão em meu lar – se é que eu poderia ainda chamá-lo assim – foi afastando os já poucos amigos que eu possuía, até que um dia me encontrei só!

Notei isso num dia especialmente negro em minha vida, apesar de ser um dos mais bonitos dos que a natureza já havia me brindado. As 8:30 da manhã, meu diretor me chamou em sua sala e, com aquela conversa mole que eu já conhecia, por tanto tê-a utilizado, demitiu-me sumariamente. Diante de minha perplexidade, ele tentou fazer-me escutar as razões de minha demissão, dizendo-me que eu me transformara num elemento desagregador dentro da companhia, e que eram muitas as críticas de colegas que trabalhavam comigo.

De certa altura da conversa em diante, eu só via seus lábios se mexendo, mas já não o ouvia mais, porque o impacto de saber-me sem emprego causou uma revolta em meu estômago me fazendo sentir uma vontade terrível de vomitar.

Olhei através da janela, por trás de meu chefe, e vi uma palmeira balançando ao vento, e ao lado dela, o carro zero que eu havia acabado de comprar, e com cujas prestações do financiamento eu havia comprometido boa parte do meu salário. “E agora? Pensei eu. O que faço da vida?” Beirando os cinquenta anos não é exatamente uma idade fácil para se conseguir um emprego.

Pedi licença e saí rapidamente, indo até o banheiro, onde devolvi todo o café da manhã. Uma tremedeira incontrolável e uma tontura apossou-se de mim, e tive que encostar-me na parede para não cair.

Então desabei! Chorei copiosamente tudo o que já deveria ter chorado há muito. Chorei o fato de estar perdendo minha esposa, a quem eu amava desesperadamente; chorei por meus filhos, que aos poucos se afastavam de mim, tornando-se a cada dia mais distantes, e chorei por não haver um único amigo a quem eu pudesse recorrer naquele momento.

Um turbilhão desalinhava meus pensamentos, e eu não conseguia estabilizar uma linha coerente de raciocínio que me permitisse racionalizar a situação e estabelecer uma estratégia de ação. Eu só via o desespero do fantasma do desemprego, das dívidas se acumulando, da desagregação final da família e de meu nome sujo na praça.

Não sei por quanto tempo fiquei naquele banheiro, mas o que vi no grande espelho enquanto lavava o rosto para tentar me recompor e voltar à minha sala, me causou profundo desânimo. Vi um homem de rosto inchado, olhos injetados, semblante desesperado, bochechas trêmulas, desgrenhado e absolutamente perdido.

Meu amor próprio fora-se! Jamais pensei que passaria por isso um dia. Quando atravessei a sala em direção à minha mesa de trabalho para apanhar minhas coisas, senti os olhares postos em mim. Nenhum dos meus subordinados ou pares saiu de seus lugares e veio me oferecer apoio. Compreendi que estava sozinho! A possibilidade de eu ser odiado nunca me ocorrera. Como chefe de meu departamento, eu era enérgico, admito, mas não acreditava ser uma pessoa injusta. Entretanto, eu podia sentir um certo alívio no semblante das pessoas ao meu redor.

O turbilhão que me envolvia não me permitiu ver muito mais. Quando cheguei ao meu carro, estacionado sob a palmeira, notei que meu diretor me observava sorrateiramente através das persianas. Levantei o polegar fazendo-lhe um sinal de positivo – único blefe que consegui pensar como última vingança para desmascarar sua presença – fazendo-o afastar-se da janela.

Quando eu ia entrar no carro, Arnaldo, o jovem e brilhante engenheiro indígena que eu admitira há poucos dias, aproximou-se.

“Má hora” – pensei eu – “Não quero conversar com ninguém!”

- Desejo lhe agradecer por minha admissão – disse ele – minha origem estava me causando problemas para me integrar ao mercado de trabalho. Se não fosse o senhor...

- Arnaldo – respondi, interrompendo-o – Eu ...

- Se não se importar, chame-me de Nhuamã. É o meu nome de batismo...

- Ora! Que nome sonoro! Ele não constava em seu currículo...

- Bom, sou obrigado a esconder o que posso de minhas origens indígenas, porque ela só me causa problemas no mundo dos brancos – disse ele sorrindo...

- Bom, Nhuamã – acabei de ser demitido, e para falar a verdade, acabei de demitir também minha vontade, e talvez mesmo, minha auto estima... isso nunca tinha me acontecido – disse eu, tentando fazer graça, mas mal contendo a emoção.

- Preciso voltar ao trabalho. Almoce comigo hoje! Se puder, encontre-me no shopping da praia, na lanchonete de sempre...

- Ok! - Disse eu forçando um sorriso – estarei lá. Não tenho mesmo para onde ir...

O jovem despediu-se com um aceno e eu entrei no meu carro novinho, decidido a curti-lo o mais que podia, porque certamente dentro em pouco teria que devolve-lo à financeira!

Decidido a não ir para casa, porque eu sabia que a briga seria grande tão logo eu desse à minha esposa a notícia de minha demissão, fui a um cinema próximo, e fiquei aguardando a primeira sessão que começava às dez horas.
 
Eram 12:15 quando Arnaldo – ou Nhuamã, como queria ele - chegou. Eu estava encostado na pequena mureta de pedra que limitava a praia, quando sua mão tocou em meu ombro.

- Achei que o senhor não viria – disse ele.

- Qual foi a repercussão de minha demissão lá no escritório? – perguntei tentando sorrir.

Ao invés de responder, Nhuamã tirou os sapatos, enrolou as calças nas pernas e foi até a água, onde o mar ficou a lamber-lhe os pés.

- Minha vida foi toda passada junto ao mar – disse ele voltando até onde eu estava - tire seus sapatos e vamos dar uma caminhada pela praia para abrir o apetite.

- De que tribo você é? Perguntei enquanto descalçava meus sapatos.

- Tupinambá.

Lentamente fomos caminhando pela praia, em direção ao rochedo onde ela terminava, uns 300 metros adiante.

Enquanto caminhávamos, fui relatando minha vida, surpreso pela confiança que eu estava depositando em um quase desconhecido! Há muito tempo eu não fazia confidências. Meus últimos anos foram todos passados enclausurados dentro de mim mesmo. Não sei se isso aconteceu por falta de amigos, ou se os amigos se foram por eu ser assim.

Nhuamã parecia não estar muito interessado em meu desabafo. Enquanto eu falava e falava, ele parava a todo instante para juntar conchas. Na verdade eu não esperava que um jovem rapaz recém formado tivesse alguma coisa a me dizer. Se vim a esse encontro, foi principalmente porque não tinha o que fazer, e também para satisfazer minha curiosidade sobre como teria repercutido minha demissão lá na empresa.

Assim, caminhamos calmamente, como se tivéssemos o resto do dia ao nosso dispor. Eu, relatando coisas sobre minha vida que há muito não falava a ninguém, e ele, divertindo-se feito uma criança com as conchinhas coloridas que apanhava.

Confesso que comecei a me sentir meio idiota ao notar a situação ridícula de esperar que um jovem apenas alguns anos mais velho que meu filho, pudesse me incentivar ou tivesse algo a me dizer.

Quando chegamos ao extremo da praia, Nhuamã subiu por uma pequena trilha até o alto do rochedo, convidando-me a acompanhá-lo. Arfando, parei de falar até chegarmos ao topo, de onde se descortinava um lindo cenário.

Ficamos observando o oceano e a enseada, com o shopping no outro extremo da praia. Então Nhuamã falou:

- O senhor percebe agora onde está a causa dos seus problemas?

Eu o olhei intrigado, sem saber se sorria ou se o levava a sério. Ele ficou me olhando diretamente nos olhos, sem nenhuma expressão no rosto, num silêncio perturbador. Finalmente desisti de sustentar seu olhar.

- O que há para perceber? – perguntei um pouco envergonhado pela falta de perspicácia...Eu apenas lhe falava de alguns aspectos de minha vida...que aliás penso ser pouco interessante...

- Na cidadezinha onde me criei - disse Nhuamã - há uma praia muito parecida com esta, e, no dia em que me despedi da minha família para ir estudar na capital, meu pai levou-me por um passeio pela praia, como fiz com o senhor...

Fiquei em silêncio, sem ousar interrompe-lo.

- Tal como o senhor, eu lhe falei dos meus planos, enquanto passeávamos pela areia...contei-lhe de minhas intenções, do que eu pretendia ser um dia, e de tudo o que pudesse vir à mente de um jovem que iria partir para a sua jornada pelo mundo.

“Caminhando ao meu lado com as mãos às costas, meu pai ouviu pacientemente, tudo o que eu tinha a dizer. Quando chegamos ao outro lado da praia, ele falou pela primeira vez, e disse-me coisas que levei anos para compreender o verdadeiro sentido:

“- Meu filho querido – disse ele – tu serás infeliz se atravessares a vida como atravessaste esta praia...

“Eu quis dizer algo, mas ele levantou a mão, fazendo-me silenciar...

“- Há momentos para falar, e há momentos para ouvir – continuou ele - Usa menos a fala do que o ouvido. Faze da fala uma delicada harpa, que não fere os ouvidos de quem ouve, e faze do ouvido uma fonte de prazer. Não escuta, apenas. Ouve! Não olha, apenas. Vê! Se tivesses caminhado em silêncio, terias ouvido o murmurejar da água acariciando a areia...ou o carinho que o vento faz às copas das árvores...Se tivesses pensado menos em ti próprio, terias prestado atenção às belas conchas que adornam a praia, e que enfeitaram teu caminho por todo o percurso, embora delas não tenhas te dado conta.

“Depois de um instante, meu pai finalizou:

“- Amanhã caminharás num novo mundo. Ele será a tua praia. Tal como essa que acabamos de atravessar, ela também terá muitos escolhos, mas sempre haverá as lindas conchas para serem descobertas, se decidires prestar atenção a elas. Essas conchas poderão ser pessoas, situações ou coisas. Isso não importa. O importante é que elas estarão lá, à espera de que as descubras, e que com elas enfeite teu caminho...portanto, não pises nas conchas apenas porque elas não estão à altura da tua vista...Serás uma pessoa completa apenas no dia em que souberes reconhecer o brilho e a beleza das pessoas ao teu redor, não importa quão humildes ou nobres elas sejam."
 
Nhuamã parou de falar, mas eu continuei sob o efeito de suas palavras...

Enquanto ele falava pude ver com que descuido atravessei a praia de minha vida! Naqueles poucos instantes, tomei consciência do quão pouco ouvi o vento saudando as manhãs, do quão mais falei do que ouvi e de quantas pessoas interessantes passaram por minha vida sem que eu lhes tivesse dado atenção...

Então Nhuamã aproximou-se e ofereceu-me as lindas conchas que apanhara.

- Elas estavam lá o tempo todo...mas o senhor não as viu, e pisou em muitas delas...

Apanhei as conchas e fui até a beirada do rochedo, de onde pude ver a esteira magnífica do sol refletido na água. Até há poucos instantes eles eram apenas reflexos incômodos. Atrás de mim, a voz de Nhuamã soou calma:

- A caminhada abriu-me o apetite...vamos almoçar? Disse ele sorrindo.

Flávio Roberto Stefani (Querência de Trovas) = 5

A gatinha, de bom tom,
só quer mesmo, no seu ninho,
em vez de um baita edredom
um musculoso gatinho...
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A gatinha, na balada,
viu seu gato, com um "cacho",
e partiu para a "porrada",
mostrando quem era o macho...
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Ah. se eu pudesse, faria,
tudo de novo outra vez,
estudava economia,
pro salário dar pro mês...
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Á noite, a velha se atiça
e, nesse embalo, se deita,
mas o velho, com preguiça,
dele nada se aproveita...
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Chuta o balde a Dona Mima
porque o marido, Vavá,
em vez de partir pra cima,
vai pra baixo do sofá…
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Da cana vem a caninha
e isso me basta, Senhor;
depois de uma cachacinha,
passa toda e qualquer dor!…
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Deixei o relógio em casa
para ver se a bruxa espanta,
pois ele sempre se atrasa,
e se atrasa, não adianta…
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Desesperado, o ladrão,
vendo que vítima orava,
roubou-lhe a própria oração
só pra dizer que roubava…
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É político de escol,
sabe tudo, até no escuro,
faça chuva ou tenha sol,
não sai de cima do muro...
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Esse inverno tudo arrasa
e a gente agora aconselha
ter sempre guardado em casa
um bom cobertor de orelha...
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Minha herança foi “pobrinha”
pois meu pai, vivendo em rios,
deixou tudo pra vizinha,
e eu fiquei a ver navios…
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Morre a sogra... e no velório,
aparece, no cantinho,
o genro com o foguetório
já prontinho... já prontinho...
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Na jogada de furor,
a galera aperta o passo,
quando o urso driblador
faz o gol e sai pro abraço...
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No desespero, o casal
vestiu a roupa ao contrário,
e o flagrante foi fatal:
"Casal mal vestido e otário..."
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O jogo foi traiçoeiro,
e foi expulso o infeliz,
porque o chute foi certeiro
bem nas partes do juiz...
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O pijama de bolinha,
não anima nada, nada...
e o coronel perde a linha,
a vontade, o jeito, a espada...
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O soldado trapaceiro
vai pra banda, e, como tal,
“tá” treinando o dia inteiro
para ser o general...
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Põe pijama, baixa o som...
E o meu compadre, na cama,
bem na hora do "bem bom"
só quer mostrar o pijama...
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Pra sogra que mora ao lado,
tem um remédio chinfrim:
fazer um muro elevado,
igualzinho ao de Berlim...
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Toda vez que o time afunda,
deixando a torcida à míngua,
a rima, rica e profunda,
está na ponta da língua...

Fontes:
Flávio Roberto Stefani. Novas andanças e outros poemas.
Cachoeirinha/RS: AgênciaTexto Certo, 2013.

UBT Porto Alegre – Planeta Trovador, 2017.

Minha Estante de Livros (Livros de Arthur C. Clarke)


A CIDADE E AS ESTRELAS


Em um futuro muito distante, toda a humanidade está confinada a uma única cidade, totalmente fechada. Ninguém pode sair da cidade, que funciona como o último reduto da raça humana. Todas as necessidades humanas são atendidas por um sofisticado sistema de computadores e a vida é virtualmente eterna. Os seres humanos, após uma existência muito prolongada, são armazenados em bancos de memória dos computadores para depois ressuscitarem, evitando o tédio da vida eterna. Mas nem todos se conformam com esta situação: um jovem quer saber o que há lá fora. Esse inconformismo dá origem a uma das mais belas histórias da ficção científica.
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TERRA IMPERIAL

O livro conta a história de Duncan MacKenzie (jovem herdeiro da terceira geração da linhagem clônica do autocrata de Titã (ou Saturno VI) - o maior satélite natural de Saturno e o corpo celeste mais parecido com a Terra no Sistema Solar). Nascido na Terra, na era interplanetária, Duncan vive em Titã com a família (Pai e Avô). A ação se passa no século XXIII e decorre em ambiente cheio de enigmas, mistérios. A intercessão imaginária dos vários planetas (habitados ou não) junto a Titã dá lugar às cenas mais desconcertantes, embora não totalmente imprevisíveis... Mas o centro de decisões ainda permanece na Terra, que continua a ser, nessa época, um Estado controlado por homens e não por máquinas. O romance leva da primeira base marciana a Saturno e a outros mundos ainda hoje desconhecidos. Toda a narrativa se passa ao mesmo tempo num plano de exatidão científica e, evidentemente, de fantasia, talvez profética.
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MUNDOS PERDIDOS DE 2001

Aqui estão as histórias inéditas que Arthur C. Clarke construiu a partir de toda essa experiência - novas histórias, ainda mais fantásticas e ousadas. Trata-se de uma esplêndida revelação. Não só para admiradores de Arthur C. Clarke, sempre ansiosos por conhecer tudo que ele produz, nem tampouco, para os apaixonados da ficção científica, no qual Clarke é estrela de primeira grandeza, mas também para todas as pessoas que apreciam histórias - pouco importa se passadas em nosso planeta ou em mundo estranhos - transformadas, pela força da inteligência, o poder da imaginação criativa e presciente e o perfeito, brilhante domínio do ofício de escrever, naquilo que chamam de uma obra de arte.

Aparecido Raimundo de Souza (parte 48) Pivô


RODRIGO COMPLETARIA seis anos de casado. Para comemorar o evento, programou uma festinha íntima: só parentes e amigos mais chegados. O encontro aconteceria no domingo, na casa dos sogros, os  pais de Laura, a esposa, com quem tinha dois filhos: Thiago, o caçula, de três anos, e Luciana, de cinco. Durante a semana, a dupla ficou por conta dos preparativos. Carne para o churrasco, carvão, bebidas, convites, refrigerantes, além dos docinhos e salgadinhos, o que seria servido no almoço, na sobremesa... enfim, tudo precisava estar nos conformes, nos mínimos detalhes. E, assim, foram vistos, revistos e repassados, cada etapa, para dar certo e a comemoração se tornar inesquecível e marcar o momento, para sempre. E, de fato, marcou.

De fato, no domingo, a casa se apinhou de encômios e júbilos exultantes. Tinha gente saindo pelo ladrão. O Rodrigo e a Laura  não contavam com um número tão expressivo de amigos e amigas que pintaram, de última hora, tanto da sua parte como das relações da esposa. Até um tio que residia nos cafundós do interior de Minas Gerais resolveu dar os ares da graça, trazendo, a tiracolo, a família. Telefonou confirmando a presença. Não deu para trás. Viajou mais de oito horas e chegou logo depois das cinco da tarde. Quando a buzina do seu carro soou forte e, em seguida a campainha, Rodrigo pediu licença à turba animada e se dirigiu à porta principal para receber os ilustres convidados.

— Tio Léo, quanto tempo?

Em meio a desenfreada aglomeração dos tresloucados, tio e sobrinho trocaram fortes e fraternos abraços.

— Espera ai, cadê a tia?

— Ficou para traz tirando os seus presentes do carro.

— Presentes, tio?

— Claro, trouxemos três. O nosso e o de sua prima Keylla. Acaso você se esqueceu dela?

— Meu Deus, tio, faz tanto tempo que não nos vemos...

— Exatamente meu caro sobrinho. Dezoito anos. Na derradeira vez, a Keylla contava apenas doze e, você, quinze!

Mal acabara de pronunciar estas palavras, surgiu, na varanda, à tia Helena, cheia de bolsas e, atrás dela, Keylla, a prima.

Rodrigo se abriu num sorriso grandioso e correu para saudar a velha tia.

— Tia Helena! Que prazer em revê-la.

— Você continua um gato. Aliás mais bonito até que da última vez em que te dei a bênção. Lembra da Keylla?

Rodrigo então desviou os olhos para a prima. Neste momento o céu desabou sobre a sua cabeça. Literalmente. Ele se deparou com uma figura fascinante e inimitável. Uma menina ingênua que se tornou mais bela, à medida em que os seus pensamentos e lembranças iam despindo cada centímetro do seu corpo escultural. Rodrigo pensou, de repente, estar diante de uma fada madrinha, caída de algum lugar do espaço. Nossa! Aquele mulherão que estava ali, bem diante do seu nariz, carregava uma formosura estonteante. Keylla, a prima distante, agora aos trinta, destoava de tudo o que estava acostumado a ver em reuniões daquela natureza. A moça, por seu turno, parecia, na verdade, um diamante brilhando entre cascalhos e pedregulhos.

Seus olhos de um azul muito forte, vistos de perto, se tornaram fascinantes: uma tonalidade suave de azul-esverdeado, circundava por um halo mais escuro. Lembrava safiras, com incríveis dourados no meio. Para completar a magia, os cílios longos e espessos, as sobrancelhas delicadamente arqueadas. Havia uma pintinha minúscula, quase imperceptível, pouco acima do lábio superior  esquerdo, tornando a boca sensual ainda mais provocante. Apesar do símbolo de pureza e inocência que o vestido longo e branco insinuava, fazia emanar, de dentro de si, uma sensualidade sutil e natural, capaz de despertar o interesse mais básico de qualquer homem menos atento para as delícias do amor.

Mesmo passo, parecia que ela não tinha consciência do efeito  que passou a exercer a partir daqueles segundos sobre o primo Ricardo. Nenhum dos dois, verdade seja dita, fez absolutamente alguma coisa ou gesto, para se mostrar. Nenhum deles provocou, nem flertou para atrair a atenção. Também não precisava. Não carecia. A mãe natureza abençoara, de pronto, aquele longo interregno e se sentia feliz por vê-los, de novo, na mesma sintonia. Keylla possuía uma  performance perfeita, incontestável, além de uma vibração muito forte que se irradiava naturalmente por todo o seu entorno.

— Puxa! Como você está linda!...

— E como você se transformou num pedaço de mau caminho...!

— É você  mesma, prima, ou os meus sentidos estão me enganando?

— Veja por você mesmo. Venha cá...

Do nada, Ricardo foi. Se sentiu ridículo por não saber o que responder à bela.  Como um felizardo que houvesse descoberto um tesouro escondido, em uma ilha deserta e tivesse medo de contar o segredo à alguém, não pensou duas vezes. Obedeceu sem esperar segunda ordem. Pulou no pescoço da graciosa e a envolveu com uma ternura antiga, uma afeição adormecida, uma brandura repletada de uma maviosidade que não precisava de palavras. Laura, a esposa, neste exato momento, surgiu do nada, entremeada entre o furdunço de cabeças da galera que gritava e algazarriava atabalhoadamente. Ao lado dela, os filhos Thiago e Luciana. No amplexo demorado e aderente que trocaram, nas carícias que permutaram, frente aos demais, um impasse criou vida e forma.

Laura se sentiu pequena, diminuída, vazia, traída, humilhada e, pior, amedrontada pelo negror de um passado que, bem sabia, sempre estivera vivo e pulsante. Sabia da antiga paixão de seu marido pela prima. Um “primeiro amor” como um flagelo que nenhum dos dois conseguira arrancar de dentro da alma. Tomou uma decisão extrema e merencória. Sem que ninguém percebesse (e, de fato, ninguém se deu conta) se afastou dos filhos, e sem dizer uma palavra, caminhou ligeira, para à saída, o peito arfando em grito silente, todavia esbagaçado e aflito. De lá, sem que vivalma desse por sua ausência, ganhou a calçada da rua e, desde este ocorrido, nunca mais foi vista.

Fonte:
Texto enviado pelo autor. Integrante da série Comédias da Vida na Privada.

domingo, 3 de outubro de 2021

Varal de Trovas n. 527

 

Olivaldo Júnior (Prosa sobre o vento)

É, ainda é agosto...

Estamos no mês de agosto. E, desde o tempo em que eu era um grão de gente, um filhotinho, escuto que o mês de agosto é o mês dos ventos. Não por acaso, é neste mês em que soltamos pipa, para ver se ela consegue o que ainda não conseguimos: voar com as nossas próprias asas. Saiba que é isso o que eu mais queria ter, um par de asas. Sei que estão em falta hoje em dia. Acho que gente não foi feita para voar. Mas que eu queria, ah, eu queria!

Comecei a fazer hidroginástica há dois meses. Sabia que a sensação que se experimenta é comparada à que sentiríamos se pudéssemos voar? O corpo fica leve e, dizem, até oitenta por cento mais leve, embaixo d’água. É muito bom! Não sei nadar, nem voar. Faltam-me as asas! Soube que o pobre Ícaro fez as dele com cera, mas elas não aguentam o sol, que está cada vez mais quente sobre a Terra. A Terra... Dizem que viemos do pó.

O pó da vida é o vento que traz. Dizem que é lá das estrelas o pó que nós somos. Você acredita nisso? Eu acredito. Acredito em tudo. Talvez, por isso, não possa me tornar pesquisador, nem cientista, nem mesmo um empírico de nome. Acredito nas possibilidades do vento, na (in)certeza das dunas, no segredo das órbitas gravitacionais de um saco plástico que, ao sabor do vento, vai de lá para cá, na rua ausente. Lembra-se de Beleza Americana?

Santa Bárbara e Iansã, com os ventos do norte e da África, valham-me na rota dos que voltam pela mesma estrada em que vieram! Dizem que viemos do pó. Acho que gente não foi feita para voar. Mas o vento me despenteia os cabelos, já curtinhos, meio finos, e me fazem sentir o que as folhas pequeninas desse fim de inverno sentem quando são levadas para longe das árvores mães. Árvores que balançam ao vento. Vento que me leva aos sete céus.

Os céus me fazem caminhar como as formigas, que não sofrem com o vento, porque são minúsculas partículas de vida. Vida que é o vento em fúria, como diria o Super-Homem, “para o alto e avante!”. Falando nisso, é do alto que vem o vento, o ar que nos leva adiante, avante. Avanço é mais que pôr um pé depois do outro. Nem sempre é assim que acontece, haja vista que o vento da vida nos empurra sem nenhuma piedade. É, ainda é agosto...

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXI

PACOTE DE PRESENTE...

MOTE:
Deus fez a terra... e, ao fazê-la,
deu-lhe o toque comovente:
Fez o céu para envolvê-la
num pacote de presente!

A. A. de Assis
(Maringá/PR)


GLOSA:
Deus fez a terra... e, ao fazê-la,
usou todo o seu amor,
e essa alegria de tê-la,
eu agradeço ao Senhor!

E na sua criação,
deu-lhe o toque comovente:
criou em nós, a emoção,
que nos faz muito mais gente!

Deus criou também, a estrela
dando-lhe luz especial,
fez o céu para envolvê-la
numa obra divinal.

Tanta beleza se encerra
num universo esplendente,
e, pôs nele, então, a terra,
num pacote de presente!
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NASCE UM SONHO

MOTE:
É bem feliz, eu suponho,
a vida que Deus me deu,
porque sempre nasce um sonho
no lugar do que morreu!

Adalberto Dutra Resende
(Cataguazes/MG, 1913 – 1999, Bandeirantes/PR)

GLOSA:

É bem feliz, eu suponho,
quem sabe sempre sonhar.
Um sonho, mesmo tardonho,
vem nossa vida alegrar!

Agradeço comovido,
a vida que Deus me deu,
pois o sonho dá sentido
a tudo que aconteceu!

Eu vivo a vida entressonho
e sou bem feliz, assim,
porque sempre nasce um sonho
novinho dentro de mim!

Esse meu novo sonhar
que brilhando, em mim nasceu,
vem sempre para ficar
no lugar do que morreu.
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DE ONDE? PARA ONDE?

MOTE:
Nunca soube de onde venho,
onde estou, nem o que sou:
Por isso não faço empenho
de saber para onde vou...

Antonio Juraci Siqueira
(Belém/PA)

GLOSA:
Nunca soube de onde venho,

porque vivo nesse mundo,
nem dos direitos que eu tenho...
De dúvidas, eu me inundo!

Não consegui descobrir
onde estou, nem o que sou:
Por que chorar ou sorrir,
se nem sei aonde estou?

Um lugar feliz, desenho,
para, por ele, seguir,
por isso não faço empenho
de saber aonde ir!

Soluça meu coração!
Sinto que ninguém me amou...
por isso, qual a razão,
de saber para onde vou…
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RESTOS DE ESPERANÇA

MOTE:
Dos meus tempos de criança,
quase tudo se acabou;
restam restos de esperança
da esperança que restou!...

Arlindo Tadeu Hagen
(Juiz de Fora/MG)

GLOSA:
Dos meus sonhos de criança,

não sinto mais o calor,
nem a mais leve lembrança
de algum carinho ou amor!

O tempo nada perdoa!
quase tudo se acabou,
a saudade até caçoa
do pouquinho que ficou!

O tempo cruel, avança,
tirano, qual vendaval...
Restam restos de esperança
depois desse temporal !

Eu tento, ainda, sonhar,
sem crer que tudo acabou,
mas só restos, posso achar,
da esperança que restou!…
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O ARTISTA...

MOTE:
Com poemas, sons ou telas
e inspiração desmedida,
o artista torna mais belas
as belas coisas da vida!

Carolina Ramos
(Santos/SP)

GLOSA:

Com poemas, sons ou telas
mil belezas retratamos
com palavras... aquarelas...
ou com a música que amamos!

Tendo amor no coração
e inspiração desmedida,
vivendo grande afeição,
teremos boa acolhida!

Em emoções paralelas,
vivenciando intenso amor,
o artista torna mais belas
as coisas, as quais dá cor!

Essa ação, quase magia,
será, jamais esquecida,
pois pintará de alegria
as belas coisas da vida!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

Rubem Braga (Homenagem ao sr. Bezerra)

O incorporador é um Sr. Bezerra. Não chega a ser um bonito nome, é verdade, mas para mim é simpático, pois conheci vários cidadãos agradáveis com esse nome, quase todos do Nordeste, especialmente do Rio Grande do Norte — os Bezerra Dantas, por exemplo. A ideia fundamental do Sr. Bezerra parece ter sido esta: tirar a minha vista do mar. Imagino que o Sr. Bezerra seja meu leitor e notou que muitas vezes começo minhas crônicas falando do mar que vejo de minha varanda; é verde aqui, azul ali, nordeste semeando espumas, o raivoso e frio sudoeste, e barcos passando, e o farol da ilha e não sei mais o que — e o Sr. Bezerra se encheu. Imaginou então construir um edifício bastante largo e alto para me tapar a paisagem e o assunto. Deve ter gasto um bom dinheiro para prestar esse grande serviço às letras nacionais, pois na esquina da praia havia uma sólida casa revestida de pedras e rodeada de um parque. Uma grande equipe de trabalhadores desmantelou a casa e cortou as árvores, inclusive um belo pé de magnólia e um casal de pinheiros que há muitos anos faziam parte de minha paisagem. Sim, era alguma coisa minha que eles estavam derrubando — mas o advogado me disse que a lei não reconhece esse direito de propriedade visual e sentimental.

Erguido um grande tapume — onde seu nome brilha em uma tabuleta na qualidade de incorporador —, o Sr. Bezerra mandou fazer um imenso buraco, cavando a terra e a areia, para as fundações. Depois não sei o que aconteceu, com certeza alguma dificuldade de financiamento; sei que os operários se foram, ficando apenas um melancólico vigia, cuja função é olhar com tristeza aquele buraco.

Toda manhã, quando vou à praia, vejo o nome do Sr. Bezerra na tabuleta — e fico a imaginar com certa delícia que deve ser um senhor de meia-idade, muito bem falante e de sotaque potiguar, que prometeu entregar o edifício prontinho em tantos meses e agora coça a cabeça e dá desculpas, falando em Banco, na Caixa, no Instituto, que faltam certas formalidades, houve dificuldades imprevisíveis, de qualquer modo ele deseja evitar um reajustamento, aliás acredita que no mês próximo as obras poderão ser reiniciadas, o senhor compreende a culpa é dessa política do governo, etc., etc.

Dois outros edifícios iniciados muito antes já estão quase prontos, mas o prédio do Sr. Bezerra é apenas um sonho pairando sobre um buraco. À medida que as outras obras progridem, o Sr. Bezerra deve coçar a cabeça com mais raiva, o que estimo sinceramente. Há casos de obras que ficam paradas anos e anos, e esse pensamento me parece encantador. É verdade que no caso do Sr. Bezerra ainda não se pode falar propriamente em obras, mas em desobras, pois ele não fez nada, só desfez. Talvez o Sr. Bezerra passe à história como um emérito construtor de buracos, título a que vários estadistas nossos fazem jus.

Enfim, enquanto o Sr. Bezerra estiver mal, tudo irá bem. Ele me roubou as árvores, mas me deixou um pedaço de mar com brisa e ondas. Os cavalheiros que entraram com dinheiro adiantado para ter um apartamento devem estar com raiva do Sr. Bezerra; eu, entretanto, desejo de todo o coração ao Sr. Bezerra uma excelente saúde, muitas alegrias, bons vinhos e boas mulheres — e um encalacramento financeiro prolongado e sutil, que entretenha com fúteis esperanças, anos a fio, o coração dos ex-futuros condôminos.

Um encalacramento que se prolongue através dos tempos e se torne tão crônico e dramático que acabará comovendo a todos, e só terminará no dia em que o Sr. Bezerra for enterrado (homenagem especial) no buraco enorme que ele abriu ali na esquina.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Crônica publicada em 1958.

Minha Estante de Livros (Uma Breve História da Literatura, de Johm Sutherland)


De Homero ao e-book
A literatura – formada pela tríade narrativa, lírica e drama – é a um só tempo forma de expressão e arte; fruto de sua época e de gênios individuais; testemunho de momentos históricos e devaneio fantástico.

Na literatura, tudo é possível: sereias, vampiros, um narrador morto ou um personagem que rejuvenesce à medida que o tempo passa. É, em última análise, a mente humana no auge de seu talento para expressar e interpretar o mundo ao nosso redor.

Neste livro genial, o britânico John Sutherland aceitou o quase insano desafio de abordar, num volume curto e acessível, todo o espectro temporal da literatura, desde os tempos da mitologia transmitida de forma oral até os dias de hoje. E – sorte nossa! – a tarefa é desempenhada primorosamente. 
 
O autor segue (mais ou menos) cronologicamente não só os principais nomes e acontecimentos da literatura de língua inglesa, mas também da literatura universal. Assim, saímos das epopeias para em seguida passar pela tragédia na Grécia antiga, as formas literárias medievais, o advento da imprensa com Gutenberg, o teatro elisabetano e Shakespeare, por obras que prenunciavam o romance (Decameron, Gargântua e Pantagruel, Dom Quixote), a formação de um público leitor feminino que revolucionaria o mercado; a invenção dos direitos autorais; a literatura do século XX, com a experiência radical de duas guerras mundiais e seus reflexos (Woolf, Joyce, Kafka, Eliot; Beckett e o teatro do absurdo); o realismo mágico; as histórias em quadrinhos e a graphic novel. Sutherland não larga a pena ao chegar no século XX; trata de autores contemporâneos experimentais, do mercado editorial de hoje e suas premiações, de gêneros surgidos via internet, como a fanfiction, e dos caminhos que a literatura ainda poderá trilhar.

Ao contrário do que se poderia esperar, Uma breve história da literatura é isento de dogmatismos: o autor não decreta o que o leitor deve ler; antes, mostra-se um entusiasta de que a literatura, esta multifacetada criação do gênio humano, seguirá – na forma, no gênero e no suporte que for – enriquecendo nossas breves existências.
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John Sutherland é professor emérito de Literatura de Língua Inglesa Moderna na University College London, colaborador do The Guardian e especialista em literatura vitoriana e do século XX e na história do mercado editorial. Já lecionou para estudantes de todas as faixas etárias, e é autor e editor de mais de vinte livros.
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Trechos do Livro

Toda obra de literatura, por mais humilde que seja, em Aguin nível está perguntando: "Qual é o sentido disso tudo? Por que estamos aqui?". Filósofos e ministros da religião e cientistas respondem a essas perguntas a seu próprio modo. Na literatura, é a "imaginação" que encara essas perguntas básicas.

[…] Uma grande obra de literatura nunca deixa de nos dar algo, qualquer que seja o momento de sua vida em que você a leia, e seja lá de que fonte ela venha.

[…] A literatura nos distrai da tarefa real de viver. (p. 13)

[…] Por que ler literatura? Porque ela enriquece a vida de maneiras que não encontramos em nada mais. Ela nos torna mais humanos. E quanto melhor aprendermos a lê-la, tanto melhor ela fará isso. (p. 14)

[…] Criar mitos faz parte da nossa natureza. Diz respeito a quem somos enquanto seres humanos.

[…] Um modo, então, de pensar sobre o mito é que ele extrai um sentido da falta de sentido na qual, enquanto seres humanos, nós todos nos encontramos. Por que estamos aqui, e estamos aqui "para" quê? Normalmente, o mito fornece uma explicação através de histórias (a espinha dorsal da literatura) e símbolos (a essência da poesia). (...) Mas você precisa, de alguma maneira, "dar sentido" ao fenômeno. (p. 16)

A palavra "épico" é usada hoje em dia para tudo, mas com bas­tante indefinição. […] Ela descreve um conjunto de textos muito seleto, muito antigo, que carrega valores cujo tom é "heroico" ("heroico" sendo outra palavra que tendemos a usar com indefinição excessiva). Ela mostra o gênero humano, podemos dizer, em seu aspecto mais másculo. (O preconceito de gênero é, infelizmente, apropriado: uma "heroína épica" é quase sempre uma contradição em termos.)

[…] Quando pensamos a sério sobre epopeias, somos defrontados por uma pergunta intrigante. Se essa é uma literatura tão fantástica, por que hoje não a escrevemos mais? Por que não a escrevemos (com êxito, pelo menos) há vários séculos? A palavra ainda está conosco; a literatura, por algum motivo, não está. (p. 22)


sábado, 2 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfolio de Spinas) 2

 


A. A. de Assis (Santo o que é?)

Estamos próximos do dia de São Francisco de Assis (4 de outubro). A propósito, li no Google que a Igreja Católica, ao longo de toda a sua história, já canonizou, ou seja, reconheceu oficialmente como santos, cerca de vinte mil homens e mulheres. Mas o que é exatamente um santo? E por que é que um é chamado “santo” (santo Antônio), outro “são” (são José)?

Primeiro o mais fácil: por mera questão de eufonia, nomes que têm consoante como inicial recebem “são” (são João, são Paulo, são Pedro); nomes iniciados com vogal ou “h” ficam com “santo” (santo Agostinho, santo André, santo Henrique). As exceções são poucas: Santo Cristo, Santo Tirso, Santo Tomás. No feminino a forma é sempre “santa”. E há um caso curioso: são Tiago, que originalmente era santo Iago, e no final ficou Santiago.

Agora o mais importante: o que é de fato um santo? Habitualmente a palavra “santidade” vem associada à ideia de sagrado, que por sua vez se associa à ideia de perfeição etc.

Assim, quando alguém é intitulado “santo”, entende-se que seja uma pessoa sem mácula, alguém que não comete nenhum dos pecados capitais – gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça, soberba. Ou, mais bonitamente, alguém que se enquadra nas bem-aventuranças – os humildes, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os pacificadores, porque deles é o Reino dos Céus.

Santo é, sim, tudo isso e muito mais. Mas por que se chama “santo”? Gosto de lembrar que em francês “santé” significa saúde. Dois parisienses, antes de beber o vinho, levantam as taças e fazem o brinde: “Santé”. Isso aí: santidade é saúde, sanidade. No caso, saúde espiritual.

Ser santo é ser uma pessoa espiritualmente sã – alma serena, consciência limpa, coração puro. Irmã Dulce passou a ser chamada santa por ser espiritualmente sã (sana, sadia). Francisco de Assis passou a ser chamado santo por ser espiritualmente são (sano, sadio).

Aliás, é o bom Francisco, na sua simplicidade de poeta, quem nos ensina um dos modos mais fáceis de entender o que é ser santo: é ser no mundo um instrumento de Deus – alguém que onde houver ódio leva o amor, onde houver ofensa leva o perdão, onde houver discórdia leva a união, onde houver dúvida leva a fé, onde houver erro leva a verdade, onde houver desespero leva a esperança, onde houver tristeza leva a alegria, onde houver trevas leva a luz.

Santo é alguém que semeia paz e bem onde quer que esteja, e na eternidade segue cuidando de nós com o mesmo carinho, a mesma paciência, o mesmo inesgotável amor.

Mas será que santidade é uma condição exclusiva dos canonizados? Penso que não. Há neste mundo milhões de homens e mulheres anonimamente santos, muitos deles e muitas delas bem pertinho de nós. Deus conhece cada um e cada uma.

Que sirvam de modelo para todos nós. Amém.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 30-9-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Magnus Kelly (Florilégio de Trovas)


A madrugada eu transpunha
tendo a calçada por guia
e singular testemunha
da história que eu construía…
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Ante o costume danado
d’eu te querer tanto assim,
devia, sim, ser pecado
o teu desprezo por mim!
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Com sua bela pureza,
dos seus vinte e oito sons,
a Trova, traz a beleza
retratada em vários tons.
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Dê-me um pedaço de chão,
ó, governante mesquinho,
para que eu possa ter pão
e construir o meu ninho.
= = = = = = = = = = =

É nas orações que faço
que agradeço, a cada dia,
guiar-me ao Pai, cada passo
desta minha travessia…
= = = = = = = = = = =

Mané quis cantar de galo...
fez um funaré na festa:
armou-se com um gargalo;
findou com galo na testa!
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Na poeira... adormecidos...
retratos já desbotados
relembram sonhos vividos;
e, outros, apenas sonhados…
= = = = = = = = = = =

Na poeira das lembranças,
cenas de dias risonhos;
de tristezas; de esperanças;
de amores; cantares; sonhos…
= = = = = = = = = = =

Na rota dos seus carinhos,
meu coração clandestino,
se perdeu pelos caminhos,
sem alcançar seu destino.
= = = = = = = = = = =

No Dia dos Namorados,
juras de eternos amantes,
apagam passos errados;
reacendem traços marcantes…
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Noite escura traz o brilho
do manto estelar distante,
mostrando ao velho andarilho
o que, de fato, é importante...!
= = = = = = = = = = =

Outrora, afoito e bonito,
laçava toda potranca;
agora, somente as fito,
sou só moleza e pelanca!…
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Qual peça de atos tristonhos,
que o tempo escreve, um a um,
a vida nos ceifa os sonhos,
sem mandar recado algum.
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Quando papai fez partida,
eu tive, então, que ter punho
para dar sequência à vida,
baseado em seu rascunho.
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Quatro pessoas na cama
(dois filhos em nós grudados)...
e a gente sorri e se ama,
no Dia dos Namorados…
= = = = = = = = = = =

Sob a Lua, um Trovador,
em frente ao velho sobrado,
é o signo do terno amor
e das paixões do passado.
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Supermercado... que espanto!
Será que, agora, emagreço,
com a metade do tanto
custando o dobro do preço?!

Hans Christian Anderssen (A Arca Voadora)


Era uma vez um comerciante que era tão rico que poderia asfaltar uma rua inteira com ouro, e mesmo assim sobraria o suficiente para mais uma ruazinha. No entanto, ele não fez isso, pois conhecia o valor do dinheiro e não o desperdiçaria dessa forma. Ele era tão inteligente que de cada centavo fazia uma cédula, e assim foi enquanto viveu.

O filho herdou sua fortuna e tratou de aproveitar. Ia a bailes todas as noites, construía pipas com notas de cinco e, em vez de jogar pedrinhas no mar, atirava moedas de ouro. Era um esbanjador.

Assim, logo perdeu todo o dinheiro, até não lhe restar nada, a não ser um par de chinelos, um camisolão de dormir e quatro centavos. Os antigos amigos o abandonaram, não queriam mais ser vistos andando na rua em sua companhia; porém um deles, que tinha bom coração, certo dia lhe mandou uma velha arca de presente, com o seguinte bilhete: “Faça as malas!”.

– É um bom conselho dizer “faça as malas” – ele falou. Mas nada restava para colocar na arca e, assim, ele mesmo se sentou nela. A arca era especial, pois quando alguém pressionar o fecho, ela levantava voo. Ele assim fez e a arca saiu voando pela chaminé, carregando o homem até as nuvens do céu.

Cada vez que o fundo da arca rangia, ele ficava com muito medo, pois, se as tábuas se soltassem, ele levaria tombos até cair nas árvores. Mas nada disso aconteceu, e ele chegou em segurança à Turquia. Ele escondeu a arca em um bosque, debaixo de umas folhas secas, e partiu para a cidade. Depois, se misturou perfeitamente à população, pois entre os turcos é normal as pessoas passearem por aí usando camisolões e pantufas, assim como ele estava.

Cruzando por acaso com uma senhora e uma criancinha, ele perguntou:

– Diga-me, cara senhora turca, que castelo é aquele perto da cidade, com janelas tão altas do chão?

– Lá vive a filha do sultão – a moça respondeu. – Segundo a profecia, ela vai sofrer muito por causa de um amor, e por isso ninguém tem permissão para visitá-la a menos que o rei e a rainha estejam presentes.

– Obrigado.

Em seguida, o filho do mercador voltou ao bosque, entrou na arca, voou até o telhado do castelo e entrou, pela janela, no quarto onde a princesa estava dormindo.

Ela acordou e ficou muito assustada, mas o rapaz lhe disse que era um anjo turco que tinha descido do céu para visitá-la. Isso agradou bastante a princesa. Ele se sentou ao lado dela e começou a conversar. Disse que seus olhos eram como dois lindos lagos escuros, nos quais os pensamentos nadavam como pequenas sereias, e que sua testa era uma montanha nevada que continha admiráveis salões repletos de quadros. Contou a ela a lenda da cegonha, que traz os bebês do rio e entrega aos pais.

A princesa ficou encantada com a história e quando ele perguntou se ela se casaria com ele, a moça concordou imediatamente.

– Mas você precisa voltar no sábado, quando meus pais vêm tomar chá comigo. – ela disse – Eles vão ficar muito orgulhosos quando souberem que vou me casar com um anjo turco. Mas você precisa pensar no que vai contar, pois eles gostam de ouvir histórias mais do que qualquer outra coisa. Minha mãe prefere as que são instrutivas e tenham uma moral ao fim, mas meu pai gosta mais das engraçadas, das que o fazem rir.

– Muito bem, eu voltarei trazendo como presente somente histórias – respondeu ele.

E assim se despediram, mas, antes, a princesa deu ao rapaz um sabre cravejado de moedas de ouro, e elas poderiam ser muito úteis para ele.

O filho do comerciante voou até a cidade, comprou um camisolão novo e depois foi para o bosque, onde escreveu a história que seria lida no sábado seguinte. Não foi nada fácil, mas ficou pronta quando foi visitar a princesa no dia marcado.

O rei, a rainha e toda a corte estavam no chá com a princesa, e ele foi recebido com grandes honras.

– Conte-nos uma história – a rainha pediu. – Uma que seja instrutiva e cheia de ensinamentos.

– Sim! – acrescentou o rei – Mas que também seja um engraçada.

– Certamente – ele respondeu.

Logo começou, pedindo que todos ouvissem com atenção:

“– Era uma vez um pacote de palitos de fósforo que tinha muito orgulho de sua origem nobre. A árvore genealógica deles, isto é, o grande pinheiro de onde tinham sido cortados, havia sido, em sua época, uma árvore importante no bosque. Os palitos de fósforo estavam agora entre um isqueiro e uma velha panela de ferro, e conversavam sobre a juventude de cada um. Os fósforos começaram: “Ah, naqueles dias, nós crescíamos em galhos verdinhos, e toda manhã e toda tarde matávamos a sede com gotas de orvalho. Sempre que o Sol brilhava, sentíamos o calor de seus raios, e passarinhos nos contavam histórias cantando. Nós sabíamos que éramos ricos, pois as outras árvores só vestiam roupas verdes no verão, enquanto nossa família podia se exibir em lindos trajes verdejantes tanto no verão quanto no inverno. Mas um dia veio o lenhador e foi uma tragédia: nossa família tombou sob o machado. O chefe da casa conseguiu um posto de mastro principal em um barco muito elegante e navega pelo mundo. Outros galhos da família foram levados para diferentes locais, e nosso ofício, agora, é fazer fogo para pessoas comuns. É assim que pessoas distintas como nós acabam seus dias em uma cozinha”.

“– A próxima a falar foi a panela de ferro que estava ao lado dos fósforos.

“Meu destino foi muito diferente”, ela disse. “Desde minha chegada ao mundo, venho sendo usada para cozinhar e ser limpa depois. Sempre pensam primeiro em mim quando precisam de uma coisa sólida ou útil. Meu prazer é ser esfregada e areada após o jantar, e depois ficar no meu canto conversando com meus vizinhos. Todos nós, exceto o balde de água, que às vezes é levado ao pátio, vivemos juntos aqui entre as quatro paredes desta cozinha. Recebemos notícias por meio da sacola de compras, que vai ao mercado, mas ela às vezes nos conta coisas muito ruins sobre o povo e o governo. Sim, tanto que outro dia um pote velho ficou tão alarmado que caiu e se quebrou.”

“Mas o isqueiro a repreendeu: “Você fala demais”, e começou a raspar a pedra no metal até que faíscas começaram a voar. “Afinal, queremos uma noite agradável, não queremos?” “Sim, claro”, responderam os fósforos, “vamos falar sobre os que nasceram em berço esplêndido”.

“Mas a panela discordou: “Não, eu não gosto de sempre conversar sobre o que somos. Vamos pensar em outra diversão. Eu começo. Cada um vai contar algo que aconteceu; isso vai ser fácil e interessante também. No Mar Báltico, perto da costa da Dinamarca...”.

“Os pratos se aliaram à panela e comentaram: “Oh, que belo começo! Vamos gostar desta história, com certeza”. A panela de ferro então começou: “Sim. Bem, na minha juventude, eu morava com uma família muito tranquila, em uma casa onde, a cada quinze dias, os móveis eram lustrados, o chão era esfregado e as cortinas eram lavadas”.

“A vassoura comentou: “Que modo interessante você tem de contar uma história! Bem se vê que circulou nas altas rodas da sociedade, pois o que você diz transmite muita pureza”.

“Sim, é verdade”, acrescentou o balde de água, e soltou uns borrifos que molharam o chão. E assim a panela continuou a história, e o fim foi tão bom quanto o começo. “Os pratos tremiam de prazer; a vassoura recolheu um pouco da salsinha varrida e com ela coroou a panela, sabendo que isso ia irritar os outros e pensando: ‘Se eu a coroar hoje, amanhã será ela a me coroar’.”

“Em seguida, falaram as pinças de remexer as brasas: “Vamos dançar”, e começaram a esticar uma das pernas para o alto, de um jeito que até a poltrona no canto explodiu em uma gargalhada. “Vamos ganhar uma coroa também?”, perguntaram as pinças, e a vassoura foi buscar mais salsinha para fazer uma coroa. “No fim, são só povinho”, pensaram os fósforos.”

O rei, a rainha, a princesa e todos os nobres da corte continuavam prestando atenção à história.

“– Pediram que a chaleira cantasse, mas ela disse que estava resfriada e não conseguiria cantar a menos que houvesse algo fervendo dentro dela. Todos pensaram que aquilo era uma grande afetação, assim como julgavam uma afetação que ela nunca quisesse cantar, a não ser na sala de visitas, quando estava na mesa diante de gente fina. Perto da janela ficava uma velha caneta com bico de pena com a qual a menina escrevia. Não havia nada de especial na caneta, a não ser o fato de ter sido mergulhada muito fundo na tinta, mas ela tinha orgulho disso. “Se a chaleira não quer cantar, não precisa”, disse a caneta. “Tem um rouxinol em uma gaiola aqui do lado de fora, e ele canta. Não é um canto maravilhoso, mas por esta noite é suficiente.”

“Porém o bule, que era o cantor da cozinha e meio-irmão da chaleira, discordou: “Acho altamente impróprio que um pássaro estrangeiro seja ouvido aqui. Não me parece patriótico, o que acham? Vamos deixar que a sacola de compras decida o que é certo”. E a sacola falou: “Estou irritada, muito irritada por dentro, mais do que qualquer um pode imaginar. Estamos passando a noite do melhor jeito? Não seria mais sensato arrumar a casa? Se cada um fosse para seu devido lugar, eu proporia um jogo, e aí sim, como seria diferente!”.

“Vamos encenar uma peça!”, disseram todos, e bem nessa hora a porta se abriu e a menina da casa entrou. Ninguém mais se mexeu, ficaram todos calados e imóveis, apesar de não haver entre eles um único pote que não tivesse uma opinião boa de si mesmo e do que conseguiria fazer, se quisesse. Estavam todos pensando: “Sim, se tivéssemos decidido bem, poderíamos ter passado uma noite muito agradável”.

A história estava se aproximando do fim.

“– A menina riscou os fósforos; com que clarão eles acenderam e com que força pegaram fogo! Então eles pensaram: “Muito bem, agora todos vão ver que somos os maiorais, como brilhamos e iluminamos”, porém, enquanto pensavam nisso, a chama se apagou.”

– Que história ótima! – exclamou a rainha. – Sinto-me como se estivesse na cozinha e pudesse enxergar os fósforos. Sim, você deve se casar com a nossa filha.

– Certamente tu receberás a mão da princesa – completou o rei usando “tu” porque em breve o rapaz seria da família.

O dia da cerimônia foi marcado, e, na noite anterior, a cidade toda foi iluminada. Bolos e outras guloseimas foram distribuídos para os súditos. Pelas ruas, meninos andavam nas pontas dos pés gritando “Urra!” e assobiando. Em resumo, preparativos esplêndidos.

– Vou distribuir mais uns agrados – decidiu o filho do comerciante.

Então ele comprou rojões e biribas e todos os tipos de fogos de artifício que se pode imaginar, enfiou tudo na arca voadora e subiu com ela até o céu. Os estouros e zumbidos que fizeram! Os turcos, diante daquela cena, deram pulos tão altos que os chinelos saíram voando na altura das orelhas. Depois disso, ficou fácil acreditarem que a princesa iria se casar com um anjo turco de verdade.

Logo que desceu dos céus de volta para o bosque, após a queima de fogos, ele pensou: “Agora vou de novo para a cidade ouvir o que acharam da diversão”. Era muito natural que ele quisesse saber. E que coisas estranhas as pessoas diziam! Todo mundo a quem ele perguntou ofereceu uma história diferente, apesar de todos acharem que o espetáculo havia sido belíssimo.

– Eu vi o anjo turco – disse um. – Os olhos dele cintilavam como estrelas e a cabeça era como espuma de água.

– Ele voava em um manto de fogo, – disse outro – e querubins adoráveis saíam das dobras.

Ele ouviu muitos outros relatos sobre si mesmo e sobre o casamento ser no dia seguinte. Depois disso, voltou à floresta para descansar na arca. Mas ela havia desaparecido! Uma faísca dos fogos de artifício que haviam ficado dentro dela tinha botado fogo na arca, que ficou queimada até restarem apenas as cinzas, de forma que o filho do comerciante não tinha mais como voar nem como ir ao encontro da noiva!

Ela ficou o dia seguinte inteiro no telhado, esperando por ele, e provavelmente está lá até agora, enquanto ele vaga pelo bosque contando contos de fadas, mas certamente nenhum tão divertido quanto o que ele escreveu sobre os fósforos.

Fonte:

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Versejando 79

 


Mia Couto (O peixe e o homem)


Pois que fez Santo António? Mudou somente o púlpito e o auditório [. .]. Deixa as praças, vai às praias; deixa a terra, vai ao mar e começa a dizer a altas vozes: já que não me querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh, maravilhas do Altíssimo! Oh, poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam, a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos na sua ordem com as cabeças de fora da água. António pregava e eles ouviam.
(EXTRATO DO SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO, PADRE ANTÓNIO VIEIRA)


Um dia destes, quando saía de casa, deparei com meu vizinho, Jossinaldo. Estava no patamar, como que me esperando. Dos braços cruzados, espreitava uma trela. Me arrepiei.

Sempre eu o tinha evitado, por causa dos ditos e desditos. O homem era conhecido pelo que fazia no parque: levava um peixe a passear pela trela. Caminhava na margem do lago, segurando a trela. No extremo da fita de couro estava amarrado, pela cauda, um gordo peixe. Jossinaldo era, nos gerais, tido por enjeitado: a cabeça do coitado, diziam, cabia toda num chapéu. E acrescente-se que o temiam, sem outro fundamento que essa estranheza do seu fazer.

E agora lá estava ele, a tira pendente como uma língua que lhe emergia do corpo. Já eu remastigava uns apressados bons dias quando o vizinho se me interpôs e esticou o braço na minha direção.

– Peço-lhe este favor! – Estremeci, receoso. Que favor? E era esse mesmo obséquio: o de ir eu substituí-lo no passeio ao peixe. Esquivei-me. O homem não desistiu: que ele estava-se sentindo doente, desvanecente e o peixe do lago não podia ficar órfão, sem ninguém para o conduzir, na fluência das águas.

– Por amor, não recuse!

Fiquei vacilando enquanto, dentro de mim, ecoavam os rumores que descontavam em Jossinaldo e seus descostumes. No bairro todos acreditavam compreender o comportamento do exótico morador.

Meu tio, por exemplo, deitava o seguinte entendimento: que o vizinho havia sido um pescador e, agora, arrependido, aplicava graças nesse peixe doméstico. A culpa de tanto anzol lhe espetava a alma e ele se redimia, penitente. Meu avô discordava. Aquilo, para ele, tinha outras, mais fundas explicações. Não ouvíramos falar do sermão de Santo António aos peixes? Recordávamos o que fizera o Santo António que deixara o auditório das praças e se deslocara para o mar, lançando palavra sobre os seres de guelra e escama. Pois, Jossinaldo descobrira que havia sido o inverso: um certo peixe havia pregado aos homens e lhes espalhara a moral sem lições. Os homens atribuíam aos peixes as indecorosas ganâncias que eram da exclusiva competência humana.

Adjetivavam a peixada: os mandantes do crime são chamados de “tubarões”. Os poderosos da indecência são “peixe graúdo”. Os pobres executantes são o “peixe miúdo”.

E afinal, onde não há crime é lá dentro das águas, lá é que há a tal de propalada transparência. Pois, quem pregava o sermão, o Santo António aquático era o próprio peixe do lago. Era ele o sermãonista.

Minha sabedoria é ignorar as minhas originais certezas. O que interessa não é a língua materna, mas aquela que falamos mesmo antes de nascer. Por isso, me dei licença de escutar Jossinaldo. E fui saindo de casa, caminhando ao mesmo passo do afamado vizinho, lado com lado. Na rua me olhavam, surpresos. Então eu autorizava a companhia do proscrito, no pleno da via pública?

Debaixo dos olhares, nos dirigimos ao parque e parámos junto ao lago.

– Veja como ele vem a correr.

E era a maior verdade. O peixão, na vista do vizinho, se aproximou da berma.

Jossinaldo debruçou-se e enlaçou a trela à volta da cauda do animal.

– Vá, pegue na trela para ele lhe ganhar familiaridades.

Com o coração de fora, lá segurei na corda. O bicho veio à superfície da água e me olhou com olhos, até me custa escrever, com olhos de gente. E remergulhando me conduziu pela margem. Contornei por inteiro a lagoa para me reencontrar com Jossinaldo.

– Deixe-me despedir dele! Ajoelhado sobre as águas, o vizinho falou palavras que não eram de língua nenhuma conhecida. Ficou, tenho medo de dizer, conversando com o peixe. Ergueu-se Jossinaldo, lágrima escorrendo, e me apertou as mãos, as duas em duplicado. Não falou, retirou-se em silêncio.

Sou eu agora quem, pela luz das tardes, passeia o peixe do lago. À mesma hora, uma misteriosa força me impele para cumprir aquela missão, para além da razão, por cima de toda a vergonha. E me chegam as palavras do vizinho Jossinaldo, ciciadas no leito em que desfalecia: – Não existe terra, existem mares que estão vazios.

Dentro de mim, vão nascendo palavras líquidas, num idioma que desconheço e me vai inundando todo inteiro.

Fonte:
Mia Couto. O fio das missangas. Publicado em 2004.

Jorge Wanderley (Poemas Diversos)

ADERIR

Amo o que neles já vi com desprezo,
O uso das mãos, a música, o inexato
Poder de seus mistérios e seu vezo
De amar sem conta contra a estrela e o fato;

Desprezo e amo: acaso mimetizo
Os que a tal plano vim para negar?
Perco na gaia terra garbo e siso
E adiro ao solo que era de deixar?

Amo e não amo e tudo em mim questiona
Missão e crença, ardil e decisão.
Mas se me sabem, sofro; e se me atrevo

No além-mudez, sossego me abandona:
Daí, silêncio erijo e solidão,
E em solidão me deixo, erijo, escrevo.
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CORPO ANTERIOR

Que faço aqui, neste meu corpo, amando,
Outro corpo, doado — e estranho a mim?
Dois corpos desiguais e no comando
O que eu decido. E quem decide assim?

Estranho todos os departamentos
E eu sou um outro, que não pousa aqui.
Cada nervura, poro, o tegumento
— Desconheço de todo, nunca vi.

Altura que não quero, mãos esquerdas,
O que está velho e não forjou memórias,
O gesto alheio, o olhar sobre tropeços,

São crônicas já pálidas, a perda
Do nunca possuído: alguma história
Que espera no futuro o seu começo.
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MÁQUINA

Deram-lhes máquina curiosa, essa
que é dos seus corpos. Não interligados,
encontram pares, mas um dia cessam;
passam por um percurso que, somado,

chamam de História e no correr do tempo
vão registrando como em seus poemas
(— que uns poucos querem frio como um templo
sem música e sem alma, todo esquema

de pétrea arquitetura no vazio).
Do que não sabem, amam perguntar,
magicar, intuir, ver pelo escuro,

tocando às vezes certo fugidio
não-saber, com escamas de voar,
e asas de peixe e jornais do futuro.
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NADA VEEM

Pois se entre todos vou desconhecido,
No além de minha condição negado,
Eis que por duas vezes vou servido
De recusa e cegueira, e acostumado.

Melhor: a quem recusa, recusado
Faço que fique no seu mal vencido,
E a quem não vê, pobre desentendido,
Engano, enquanto vim assinalado.

Tudo o que dizem, tenho conhecido,
Sei quando calam tudo que hão calado.
Vá lá que ceguem, já que entorpecido

Têm seu sentido, em si tão limitado;
Mas que neguem quem seja, tem nutrido
Minha vingança e meu poder chamado.
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SOU CRUZADO

Sou cruzado, mas esqueci meu rei,
Da nave em que cheguei, mal vou lembrado;
Quero guardar comigo o que ora sei
E de antes não sabia, descuidado.

Amar, perder, a ventania, a lei
Desordenada e injusta — este reinado
De amoráveis desastres que encontrei,
Deles cativo quero estar, atado.

Assim, longe de nave e de equipagem,
Fico; não deixo mais esses rigores,
Fico: não me acrescento mais àqueles

Que perdem quanto acharam na viagem,
Pois se retornam os navegadores,
As descobertas deixam de ser deles.
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Jorge Eduardo Figueiredo de Oliveira Wanderley nasceu no Recife (PE), no dia 21 de janeiro de 1938, e morreu na mesma cidade, em 12 de dezembro de 1999. Formado em Medicina, com especialidade em Neurocirurgia, abandonou a carreira em 1981 para se dedicar integralmente à literatura. Em 1976, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez mestrado e doutorado em Letras na PUC (RJ). Em seguida, passou a dar aulas na UERJ. Tornou-se exímio tradutor, o que lhe rendeu um Prêmio Jabuti e “ofuscou a sua produção poética pessoal”. Em quatro décadas, escreveu os seguintes livros de poemas: Gesta e outros poemas (1960), Adiamentos (1974), A casa navega (1975), Coração à parte (1979), Mesa/musa (1980), A foto fatal (1986), Anjo novo (1987), Homenagem: Dez sonetos (1992), Manias de agora (1995), O agente infiltrado (1999). Escreveu ainda Arquivo/ensaio (1993), que reúne artigos de critica literária.

Fonte:
Ermira

Aparecido Raimundo de Souza (Rapídinhas) 3


VIA EXPRESSA

- Do que morreu o motorista?

- De volante...

- Como assim?

- Perdeu a direção.
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GIBI

- Você acredita que o capeta se assustou com Capeto?

- Quem é esse Capeto?

- O cachorro do Fantasma.
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AULA PRÁTICA DE PORTUGUÊS II

A aluna encontra seu professor a caminho do refeitório e não perde a oportunidade de demonstrar o que sente por ele. Ataca:

- Vou prender o senhor com o meu laço. Até hoje ninguém escapou nem resistiu ao meu charme.

O professor, seguro de si e sem deixar de lado seu melhor sorriso, rebate de imediato. Dá o troco:

- Asseguro que a senhorita não conseguirá, ainda que leve em consideração o fato de ter sido a única da sala a ganhar nota máxima na redação...

- E por que o meu amado mestre acha que eu não terei sucesso em meu empreendimento?

- Porque desde que entrei para esta escola eu fiquei lasso.
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O VISTO IMAGINADO

- Uma menina nova, lá da escola, na hora do recreio, me encarou de cima embaixo com uma cara muito engraçada. Parecia uma lâmpada.

- E você, o que fez?

- O que queria que eu fizesse? Tive a ligeira impressão de que se tocasse nela, acenderia!...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O vulto da sombra estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book enviado pelo autor.