sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Minha Estante de Livros (Cenas, de Cecy Barbosa Campos)


Segundo Ilma de Castro Barros e Salgado, doutora em Literatura Comparada da UERJ (contra-capa), a presente obra - Cenas - foi a estreia de Cecy Barbosa Campos no publicação de poesias. Além da acuidade linguística, marcante em obras anteriores, o leitor depara com a sensibilidade poética do autora, sinalizada por sua cosmovisâo. A semântica de Cenas se confirma nos vários recortes que o autora apresenta de sua leitura do mundo. São temas que evocam a memória coletiva, a transcendência, a natureza, a globolização. Nâo é um livro para se ler uma única vez. Sua profunda variação temática levará o leitor a selecionar aqueles poemas que serão, certamente, inúmeras vezes, relidos, pelo encantamento literário que os mesmos lhe provocarão.

Marisa Timponi e Leila Barbosa (Escritoras, Pesquisadoras da História Literária de Juiz de Fora), apresentam o livro em "As Cenas de Cecy":

Cena (do latim scena, -ae: lugar sombreado) foi o espaço selecionado, entendido e aceito pela autora para se posicionar frente às passagens da vida, pois "aceitar tudo é um exercício, entender tudo é uma tensão. O poeta apenas deseja a exaltação e a expansão, um mundo em que ele possa se expandir" (G.K. Chesterton). E a expansão se deu em trama, em aparato, por meio da linguagem.

A palavra se autossignifica na passagem para o jogo literário, já que se coloca em  espetáculo, ao entrar em cena. O poeta/ator tece, engendra, lima, torce, retorce, escolhe, risca e arrisca o texto, fertilizado pela imaginação que cria. A fecundação, etimologicamente, é derivada do termo latino fecundatio, proveniente do verbo fecundare, que significa "fertilizar". E a fertilização acontece nos poemas de Cenas entre "fogo ardente" e "broto hesitante", entre "semem" e "útero", ao proteger o líquido amniótico que jorra do talento, do mais ver para além do sentido dicionarizado dos nomes e coisas. Faz surgir a "busca inútil" da ausência ou da "não presença", das tentativas vãs, entremeadas de um "amor despudorado" que desabafa, em um "amplexo caloroso": "Porque é, em meu coração, que estás presente".

Para Roland Barthes, "a literatura não permite caminhar, mas permite respirar." (...) e "como Liberdade, a escrita não é mais que um momento. Mas esse momento é um dos mais explícitos da História, visto que a História é sempre e antes de tudo uma escolha e os limites dessa escolha". E Cecy aproveitou o momento, chegou ao limite e respirou. Respirou uma vida plena de cenas de histórias que emocionam, que encantam: foi da cena que desponta no horizonte matinal, marcada pela passagem da cena crepuscular de "amantes fugitivas", até a chegada da "Cena final", com as "molduras vazias de meu porta-retrato", escolhidas como aceitação do mundo, muito menos sofridas do que as saudades que nos chegam pela sensualidade insinuante, aquecida na vida que explode:

"O sol se achegava para tornar mais tórrida a paixão".

Há um corte na "Cena melancólica" que elege a perda como condutora da vida, com uma constelação linguística de semas da ananqué (falta): "o que resta de mim", "sonhos antigos que se tornaram passado", "a chama da vela/ que se esvai dentro de mim". É o Thanatos entremeado na existência que se anuncia na conclusão: "fragmentos de um ser que quase não é". É o nada que resulta do mal-estar da civilização...

Mas, no entremeio do trajeto, as cenas se alternam: em "Cena muda", a troca do sorriso substitui o desafeto de não ter o que dizer; na "Cena natalina", entra, no espaço da alegria, o desaponto de não se comemorar o aniversariante do Natal; na "Cena transitória", há a apologia ao tempo que passa, ao tudo que muda na transitoriedade da vida; na "Cena triste", os sonhos "harmonizam os tons na desarmonia da vida".

Como é mais importante a viagem do que a partida ou a chegada, as cenas continuam e Eros entra no palco, desenrolando os atos que se abrem e se fecham nas variações das "Palavras", "Partidas", "Indagações" e outros diálogos com o leitor que pode ler a existência e se ler nos entretextos e entrecenas da poesia das Cenas de Cecy Barbosa: uma alma lúcido-lírica-precisa que retrata o existir no espetáculo e no trânsito da vida.
Juiz de Fora, out. 2010

Abaixo, 2 poemas do livro de Cecy:

ÁLBUM

Desfolhando o velho álbum de retratos
que jazia abandonado em alguma prateleira,
relembrei pessoas que estavam esquecidas
e não reconheci imagens que eram minhas.
O tom amarelado esmaecia
sorrisos jovens que ficaram tristes;
tirava o viço de vidas tão distantes
e que um dia foram parte da minha vida.
Entre as velhas amizades retratadas
revi amigos dos quais eu lembro os nomes
e outros, dos quais mais nada resta
porque ficaram perdidos pelo tempo.
Ao contemplar aquelas fotos desbotadas
vou rejuntando, aos poucos, os pedaços
de uma história que nem sei se já vivi.
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ANGÚSTIA

Fome que devora as minhas entranhas
e anestesia os meus sentidos.
Fome que me deixa insone,
de olhos abertos, esbugalhados,
cheios de sonhos amaldiçoados.
Fome que me angustia,
que me faz carente e triste,
saudosa de antiga alegria.
Fome que se apodera
de minhas lembranças e de minhas quimeras.
Fome que me sufoca com seu abraço
de braços vazios, inconsistentes.
Fome do amor perdido
que não me abandona
mas não me alimenta.
Fome que me acompanha
e me faz morrer
a cada dia, a cada instante.
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Sobre a autora (Contra-capa)

Cecy Barbosa Campos nasceu em Juiz de Fora-MG. Possui graduação em Direito e Letras (UFJF), especializaçâo em Teoria Literária, Mestrado em Teoria Literária (UFJF) e diversos cursos de Aperfeiçoamento em Ingiês em diferentes Centros de Língua, nos Estados Unidos e na Inglaterra, formaram o perfil acadêmico desta brilhante professora-pesquisadora de Língua e Literaturas de Língua Inglesa na UFJF, onde se aposentou em 1991, e no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. A esses estudos, acrescente-se a pesquisa que desenvolve sobre escritores afro-descendentes.

Sua participação em diversas associações culturais, comissões julgadoras, Congressos nacionais e internacionais e encontros literários. Tem artigos de pesquisa literária pulicados em revistas especializadas e anais de congressos e trabalhos em prosa verso premiados em concursos de várias academias tais como: Academia Pontagrossense de Letras, a Academia Dorense de Letras, a Academia de Letras do Estado do Rio de Janeiro, o Ateneu Angrense de Letras e Artes e outras.

Pertence, entre outros associações culturais, à Academia Juizforana de Letras,  à Academia Granbervense de Letras, Artes e Ciências, à Academia Rio Pombense de Letras, Cíências e Artes, à Academia de letras Rio - Cidade Moravilhosa, à Academia de Letras do Brasil - Mariana e ao Conselho de Amigos do Museu Mariano Procópio.

Autora dos livros, tais como : The iceman cometh: a carnavalização na tragédia (2000); O reverso do mito e outros ensaios (2002) e Recortes de vida (2009) - e do capítulo A poética de Conceição Evaristo, que compõe o livro, organizado por Edimílson de Almeida Pereira, Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil (2010).


Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Cenas. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2010.
Livro enviado pela autora.

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfolio de Spinas) 4

 

Baú de Trovas XXXV


Mesmo parecendo tarde,
qualquer situação melhora
quando sem fazer alarde
o amigo chega na hora.
Alba Christina Campos Netto
São Paulo/SP

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Sem lamentar o passado,
nem o presente tristonho
tem um tesouro guardado
quem na vida tem um sonho!
Ana Cristina de Souza
Teresópolis/RJ,  ????  – 2020, São Paulo/SP

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Bem falsa verdade encerra
e muita desgraça traz,
chamar de santa uma guerra
que mata em nome da paz!
Antonio Zanetti
Caçapava/SP, 1917 – 2002

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A saudade é bem sagrado
que acompanha, sempre, a gente.
É farrapo do passado
no remendo do presente.,.
Antonio Zoppi
Americana/SP, 1931 – 2000

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Quando eu morrer, solidão,
quero chuva no jardim,
para sentir a ilusão
de alguém chorando por mim!
Aprygio Nogueira
Machado/MG, 1928 – 1998, Belo Horizonte/MG

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A verdade é como um canto
difícil de decorar…
A gente ensaia, e no entanto,
sempre esquece de cantar!
Araci da Silva Corrêa
Magé/RJ

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Quando te vejo, vizinha,
corpo bem feito a gingar,
eu lembro um violão que tinha
sem nunca poder tocar...
Araífe David
Taubaté/SP, 1907 – ????

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Para encurtar a distância
que nos separa na vida,
do teu perfume a fragrância
foi a minha arma escolhida!
Araceli Rodrigues Friedrich
Passo Fundo/RS, 1916 – 2016, Curitiba/PR

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Se Deus atendesse um dia
minha prece ingênua e doce,
quem fosse mãe não morria,
por mais velhinha que fosse!
Archimino Lapagesse
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ

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Tenho tudo e nem mereço,
eu me sinto no apogeu!
Mas todo dia agradeço
a vida que Deus me deu!
Argemira Fernandes Marcondes
Taubaté/SP

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Diz um sábio singular
este aforismo, a valer:
– Deus criou o Bem e o mal
compete à gente escolher,
Argentina de Mello e Silva
Curitiba/PR, 1904 – 1996

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Assim como o dia é extinto,
e a noite nos traz o sono,
não sou dono do que sinto,
nem do que sentes, és dono.
Carolina Ramos
Santos/SP

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Quando chega Santo Antônio
e a quermesse se inicia,
tem quadrilha, matrimônio,
comilança e pescaria.
Célia Vasconcellos Azevedo
Bragança Paulista/SP+

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O meu sonho de criança,
alegre, multicolor,
não ficou só na lembrança,
transformou-se em grande amor
Celma Leal de Azevedo
Itaocara/RJ +

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Quisera morrer de amores,
morrer amando eu quisera
entre os matizes e odores
das flores da primavera
Celso Baptista da Luz
Itaquera/SP

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Nesta noite alucinante,
quero viver só de poesia
pois a noite é minha amante,
madrugada é nostalgia.
Celso Luiz Fernandes Chaves
Cambuci/RJ

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Mãe, quando a dor te maltrata,
finges tão bem ser feliz,
que te damos, nesta data,
o "Oscar" de melhor atriz!
César Sovinski
Curitiba/PR

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A morte e as curvas da estrada
são iguais ao menos nisto;
continua a caminhada,
mas quem vai já não é visto...
Padre Celso de Carvalho
Curvelo/MG, 1913 – 2000, Diamantina/MG

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Ah! Quanta vida esquecida,
quanta ternura velada,
nesta verdade escondida
de te amar, sem ser amada...
Cely Maria Vilhena de Moura Falabella
Conquista/MG, 1930 – 2017, Belo Horizonte/MG

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É soldado e, por prudência,
nada quer que o desabone
por isso faz continência
ao cabo... do telefone...
César Torraca
Rio de Janeiro/RJ

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Solidão é vela acesa
no quarto do solitário
onde a Saudade e a Tristeza
rezam o mesmo rosário...
Cesídio Ambrogi
Natividade da Serra/SP, 1893 — 1974, Taubaté/SP

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Durante o sono do Sol,
enquanto a Lua desperta,
tomo a duna por lençol
e as estrelas por coberta...
Élbea Priscila de Sousa e Silva
Caçapava/SP

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Por minha culpa partiste;
e o sal do pranto, sem dó,
agora torna mais triste
o triste viver de um só...
José Tavares de Lima
Juiz de Fora/MG

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Busco de novo a verdade
na aspereza dos caminhos,
e só encontro a saudade,
a solidão dos sozinhos!
Luiz Carlos Abritta
Belo Horizonte/MG

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Quando as mangas arregaço
para cumprir o dever,
se bate à porta o cansaço
eu me recuso a atender!
Renata Paccola
São Paulo/SP

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Sozinha num desvario,
sem concretude meus braços
traçam sobre um leito frio,
o perfil dos teus abraços!
Rita Marciano Mourão
Ribeirão Preto/SP

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Tendo fé, não sou ruim,
na caridade me esforço,
pois quem é mau tem por fim
a fornalha do remorso!
Yedda Ramos Patrício
São Paulo/SP

Camilo Castelo Branco (De abismo em abismo)


Eu é que não podia satisfazer a minha curiosidade com a descosida revelação de Valadares.

Muitas vezes acalorei a questão do cinismo, aplicando-a a Miquelina; mas este nome enfurecia-o de tal modo, que as nossas relações estiveram a romper-se, e reataram-se com a condição de eu nunca lhe tocar ligeiramente em semelhante assunto.

Sujeitei-me, mas, na primeira ocasião prosperada pelo acaso, alcancei esclarecimentos, que elucidam a degradação da pobre mulher.

Em 1848, Miquelina vivia ainda no Porto. A sua vida já a sabem. Como veio ela tão abaixo?

Foi assim:

Alguns dias depois da fuga vergonhosa com o defunto lacaio, Miquelina foi conduzida a Lisboa. A avó, que pôde sobreviver ao golpe, quis salvar a neta da cólera do filho. Este ausentara-se para Chaves, no momento em que a filha entrara em casa. De lá, escrevendo à mãe, dizia-lhe que desse à infame algum destino, porque, enquanto a sua presença envergonhasse aquela casa, nunca ele tornaria ali.

Daquela família estava em Lisboa um magistrado, tio materno de Miquelina. Foi este o encarregado de recebê-la durante alguns meses na sua casa.

Não se passaram muitos dias, sem que Miquelina revelasse os seus instintos. Namorava escandalosamente um homem, sem nome, que frequentava as janelas de um alfaiate, que morava em frente.

O magistrado suspeitou, e proibiu-lhe o uso das janelas. O homem, que, por força, havia de ter um nome, e poderia muito bem chamar-se José Maria, não era tão escasso de meios que não comprasse um criado da casa. O criado era o intermédio da correspondência, menos da última carta, surpreendida pelo magistrado. Esta carta autorizava José Maria a empregar a força judicial para tirar de casa Miquelina. Nesse mesmo dia, a perigosa “donzela” foi mudada para casa de um general, cunhado de seu tio.

O general era solteiro, homem de cinquenta e tantos anos bem conservados, admirador das boas mulheres, e vigoroso ainda para não desmentir o culto, quando se lhe pedissem provas práticas das teorias um pouco irrisórias na sua idade.

Tinha consigo duas irmãs, mais novas, que, mutatis mutandis, professavam as ideias do irmão.

Dito isto, vê-se que a casa, onde Miquelina foi reclusa, era um viveiro de moral.

Foi bem recebida, e até muito bem aconselhada. As irmãs do general falavam muito da virtude e da honra. Quem as não conhecesse, acrescentaria duas mártires inéditas às onze mil virgens conhecidas, de que Byron duvidou, e eu não me sinto muito propenso a acreditar, nem o meu amigo Valadares.

O José Maria não sei que fim levou. Seria algum desses quatro que em 1845 se precipitaram dos “Arcos das Águas-livres!?” Se foi, não andou bem, porque fez as coisas de modo que ninguém fala dele. Os Werthers sabem escolher as ocasiões, senão... é melhor deixarem-se morrer de tédio, que é a morte que me espera a mim, e a ti, leitor, no fim deste livro, se não morreres no meio.

O general namorou Miquelina. Namorando-a, seduziu-a. Seduzindo-a, abriu-lhe a outra meia porta da corrupção.

Porque foi assim que as coisas se passaram:

Miquelina afeiçoou-se ao general, como se afeiçoara a Valadares, ao lacaio, e ao José Maria. Trazia o cunho da perdição! Era uma destas desgraçadas que a gente vê cair, cair, cair a despeito de todos os estorvos! Que Deus, ou que demônio imprime o movimento nestas máquinas, sem coração nem cabeça? Não se sabe! A verdade é que eu sinto vontade de chorar essas vítimas cegas de um destino bárbaro, e tenho fúrias de blasfemo quando me dizem que Deus se intromete nas coisas deste mundo... Vamos adiante, senão atiro a pena fora, e rasgo o papel...

Ora já vedes que o general era um devasso, e a pobre menina deve merecer-vos uma pouca de compaixão, se eu vos afianço que o amou, até ao ciúme.

Disseram-lhe um dia que uma mulher de capote e lenço entrara no quarto do general, que era ao rés da rua. Miquelina estava doente de cama. Ergueu-se com febre, vestiu-se precipitadamente, desceu as escadas cambaleando de fraqueza, escutou à porta do traidor, e ouviu risadas, e palavras obscenas.

Era noite, quando isto se passava.

As irmãs do general deram pela falta da hóspede, e desceram a procurar o irmão. Miquelina, quando as sentiu, na incerteza do que devia responder-lhes, fugiu. Fugindo, achou-se numa rua que não conhecia, atravessou umas poucas, chegou a uma praça onde encontrou umas mulheres esfarrapadas que a trataram por tu, e fugiu até deparar as escadas de uma igreja, onde um soldado lhe veio dizer palavras desconhecidas.

Fugiu ainda, mas a desgraça corria a par dela.

O frio da noite, e a febre do coração aniquilaram-na. Sentou-se num portal, e desmaiou. Uma patrulha deu-lhe com a ponta do pé, e a desgraçada não respondeu. Tomaram-na como bêbada, e continuaram o seu caminho.

Outra patrulha sacudiu-lhe a cabeça pelos cabelos. Miquelina gemeu, abriu os olhos, e pediu erguendo as mãos que a deixassem morrer. Estava perto do hospital de São José. Os soldados pediram socorro ao próximo corpo da guarda, e mandaram-na para lá.

No hospital, deram-lhe uma cama na enfermaria... não sabemos que enfermaria, mas parece que o facultativo, na visita de manhã, mandou retirar a mulher para um quarto particular, pago à sua custa.

Que foi o que ela disse ao médico? Nada. Seria nele um arrojo de caridade? Não. “Pois não tens uma palavra boa para explicar uma ação nobre?” Nobilíssimos leitores, deixai-me supor que sois melhores pessoas que o médico. O que ele queria era uma criada, com as feições de Miquelina. As despesas da cura, além de ficarem encontradas no seu ordenado, seriam pequenas. Uma febre benigna não resistiria ao tratamento de oito dias.

Mas, ao sétimo, Miquelina fugiu do hospital, favorecida pela enfermeira, em cuja casa foi residir.

Desde esse dia, chamou-se  Rosa...

 — Que bonita rapariga é aquela que está em casa da A*** na calçada do Duque?

 — É uma rapariga da província, pela pronúncia: chama-se Rosa, mas não diz de onde é, nem quem a trouxe ali.

 — Parece bem educada!

 — Parece... e não é desbocada... Não tem ainda a consciência do seu ofício... É necessário que perverta a linguagem, se quiser celebrizar-se...

 — De quem falam vocês? — disse um terceiro, que na Praça do Rocio veio associar-se ao grupo.

 — Daquela Rosa, que tu denominaste um querubim precipitado na tua poesia.

 — E é...

 — É!... pois tu sabes a vida dela?

 — Sei...

 — Contas?

 — Não...

Este terceiro era Valadares.

Teve ele coragem de vê-la face a face?

Não teve: entrou ali com uma máscara na terça feira de Entrudo.

Conheceu-o ela? Conheceu: porque no dia imediato desapareceu de Lisboa.

É por isso que eu a vi no Porto em 1848...

O general é hoje conde. O menos torpe dos florões da sua coroa é este... Foi honrado e hospitaleiro!...

Valadares embriaga-se todos os dias, e não pode assim viver muitos mais, porque já não sente no paladar o ácido do conhaque.

E Miquelina?

Há mais de seis anos que os estudantes da escola médico-cirúrgica do Porto a retalharam fibra a fibra com os seus escalpelos observadores.

Já vedes que morreu no hospital, e foi em pedaços atirada ao monturo da Santa Casa, depois de se prestar, como cadáver, às lucubrações da anatomia.

Podeis não acreditar tudo, ou parte disto... Olhai, porém, que vos não dei aqui a verdade descarada como ela é no conto melindroso, que vos contei. Escondi-vos metade.

Minha Estante de Livros (História de Canções, de Wagner Homem)

Chico Buarque

O livro conta as histórias por trás das canções de Chico Buarque. Responsável pelo site do cantor e compositor, Wagner Homem se vale do vasto conhecimento da obra de Chico para destrinchar, com minúcias, episódios relacionados a mais de uma centena de canções do artista. Em cada abertura de capítulo, uma apresentação da cena sociopolítica vigente na época, com exceção dos dois últimos um deles sobre a morte de Tom Jobim, em 1994, em Nova York. O livro é riquíssimo em personagens de todos os matizes. Está ali a nata da cultura nacional, gente como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Toquinho e Zuzu Angel. Estão também histórias deliciosas como a da parceria de Chico e Vinicius na letra de Gente humilde, música de Garoto. Enciumado com as parcerias de Chico e Tom Jobim (na época eram três), Vinicius pediu que Chico desse um jeito na letra. O amigo nada achou de errado numa letra irretocável e só acrescentou uma estrofe. Foi o suficiente para Vinicius alardear a Tom que agora também era parceirinho de Chico.

Tom Jobim
A história da música brasileira e da Bossa Nova passa pelo piano e o talento de Tom Jobim. Canções como Garota de Ipanema, Chega de Saudade, Retrato em Branco e Preto, Águas de Março e outras, foram compostas por ele em parceria com célebres nomes, dentre os quais Newton Mendonça, Chico Buarque e Vinicius de Moraes - poeta, amigo e 'irmão de copo'. Neste volume da coleção Histórias de Canções, pretende-se apresentar a trajetória de Tom Jobim por meio de curiosidades sobre as músicas que o tornaram famoso e admirado em todo o mundo.

Fonte:
Amazon 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Versejando 81

 

Benedita Azevedo (Pergunte à lua...)

A literatura está repleta de histórias de casais que separam, voltam, separam... Um cônjuge mata o outro e tantas... e tantas... peripécias. Mas, nada se compara ao que aconteceu com John e Mary.
 
Mary, moça que parecia a todos um modelo de recato e meiguice foi abordada por John, numa paquera de rua. Ela fugiu e se refugiou na primeira porta aberta que encontrou. O jovem a seguiu e percebeu que ali era o seu ambiente de trabalho.

John perguntou a Mary se poderiam conversar em outro lugar. Preocupada com os olhares dos colegas de trabalho, passou seu cartão para livrar-se daquela incômoda presença.

Quase completando quarenta anos e muitos relacionamentos desfeitos, John atraía pretendentes pela beleza física. Loiro de um lindo olhar azul, cor do céu, parecia não combinar com a velha jaqueta de couro e sapatos furados de mesmo material.

Sentada à sua mesa da Casa de Empréstimos Consignados, onde trabalhava, Mary falou alto com os companheiros:

- Que cara estranho! Seguiu-me por todo o quarteirão. Tão bonito, mas tão andrajoso!

Ninguém se importou com a observação de Mary.

No dia seguinte, com o mesmo traje, lá estava John na esquina. Ela apressou o passo e entrou no trabalho. Desta vez ele desistiu e desapareceu. Mary ficou cismada por alguns dias, mas, o trabalho era intenso e acabou esquecendo.

Sua rotina de casa para o trabalho e do trabalho para casa foi quebrada quando, naquela noite, andando rápido para descontar o atraso de um cliente retardatário, viu despencar do bonde de Santa Tereza, um corpo bem à sua frente.

De coração agitado pela cena inesperada, nem percebeu a lua brilhando sobre os Arcos da Lapa. Parou para se recompor. Conhecia aquela roupa, aqueles sapatos... Não podia ser, ela estava equivocada pelo stress do dia desgastante de trabalho. Olharia ou não o rosto do infortunado homem? Um grupo de pessoas rodeou o infeliz. Mary quase sem perceber, olhou para o local de onde o homem caíra. Deparou-se com a luz fria da lua e não pode evitar uma exclamação diante daquele paradoxo. Por que uma coisa assim acontecia no coração da “Cidade Maravilhosa”, em um dos pontos mais bonitos do Centro? Naquele momento, um mendigo chegou com um cobertor e cobriu o corpo.

Mary ficou paralisada. Não conseguia sair do lugar. Com esforço deu alguns passos e ficou ali olhando o corpo coberto... Uma vontade enorme de desvendar a identidade da criatura. Seria alguém conhecido? Havia anos que trabalhava ali pela redondeza e nunca vira cena tão chocante.

Um curioso afastou a coberta e a moça pode ver o rosto de John ainda de olhos abertos, refletindo o luar dos Arcos da Lapa.

Fonte:
Recanto das Letras da autora
https://www.recantodasletras.com.br/contos/3432046

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 5

NA LUZ PERENE


Não te rendas aos golpes da amargura,
Nem conserves a mágoa no teu ninho;
A dor que atinge extremos de tortura
É refúgio real no torvelinho.

Colhe as flores da estrada com brandura,
E planta novos sonhos de carinho;
Socorre a inquietação que te procura,
E eis que a paz te enobrece no caminho.

Se te escasseia o amor à própria vida,
Descerás para a sombra, instante a instante,
Ao tributo fatal da morte infrene.

Mas se buscas sorrir e dar guarida
Ao cansado viajor de passo errante,
Renascerás, feliz, na Luz Perene!…
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OFERENDA

Nina irmã, devotada mensageira
Dos celeiros de amor da eterna aurora,
Deus te abençoe a luz que resplendora
Nos caminhos da vida verdadeira.

Vai, minha irmã, por este mundo afora,
Cura a lepra do mal e da cegueira,
Que as tuas mãos de santa e de enfermeira
Mitiguem toda a angústia de quem chora.

Nesta noite de paz e de esperanças,
Guarda no teu escrínio de lembranças
Nossas preces de dúlcida saudade...
Recebe, nas celestes primaveras,
Nossas rosas votivas de outras eras,
Nossos lírios de amor da eternidade!
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ORAÇÃO DE HOJE

Hoje, Senhor, resplende novo dia,
Que deveres e júbilos condensa,
Nova esperança luminosa e imensa
Renascendo da noite espessa e fria...

Dá-me trabalho por excelso guia,
Ensina-me a servir sem recompensa
E a fazer do amargor de cada ofensa
Uma prece de amor e de alegria.

Que eu Te veja na dor com que me elevas
Por flamejante sol, rompendo as trevas,
Ante a beleza do celeste abrigo!

E que eu possa seguir na caravana
Dos que procuram na bondade humana
A glória oculta de viver contigo.
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PÁGINA DE FÉ

Alma cansada e triste, alma sincera,
Se a dor por noite em lágrimas te alcança,
Acende em prece o lume da esperança,
Onde o grilhão da mágoa te encarcera!

Ante a sombra que assalta, esfera a esfera,
Se surge a ofensa por sinistra lança,
Na tormenta do mal que investe e avança,
Perdoa, silencia, ajuda, espera!...

Esquecida na cela da amargura,
Não te revoltes contra a senda escura.
Ergue-te e serve, embora torturada...

Luta, chora, padece, mas confia,
Das trevas nasce a bênção de outro dia
Nas promessas de nova madrugada!…
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PENSA

Antes de maldizer a própria sorte,
Pensa nos tristes de alma consumida,
Que vagueiam nas lágrimas da vida,
Sem migalhas de amor que os reconforte.

Que a retaguarda escura nos exorte!
Contemplemos a noite indefinida
Dos que seguem sem pão e sem guarida,
Entre a dor e a aflição, a treva e a morte!...

Pensa e traze ao que choram no caminho
A fatia de luz do teu caminho,
Pelas mãos da bondade, terna e boa...

E encontrarás no pranto da amargura
A fonte cristalina que te apura
E a presença do céu que te abençoa.

Fonte:
Francisco Cândido Xavier. Auta de Souza. Ebook obtido na Biblioteca Espírita.

Sammis Reachers (Antônio e os malandros voadores)

Conheci Antônio enquanto ele trabalhava como cobrador na linha 24 (Palmeiras x Gragoatá), em Niterói. Ele já era um coroa, e sempre gente fina. Antônio hoje está encostado pelo INSS, e prestes a se aposentar. Mas, nos idos da década de 80, Antônio era um jovem cobrador iniciando seus trabalhos na empresa Ingá. Tirava o horário do chamado vice-pelanca (penúltimo horário da tarde), 16:45, na linha 49 circular.

Ao entrar na empresa, naquela época, Antônio se deparou com uma realidade singular: as caronas eram 'permitidas', ou melhor, toleradas: se algum fiscal visse a dupla dando carona, deixava passar batido ou no máximo chamava verbalmente a atenção dos responsáveis. Mas, se visse o cobrador ou o motorista pegando dinheiro, aí era rua na certa. O jovem Antônio, muito temeroso, evitava seja dar carona, seja principalmente, quando a carona era 'inevitável', aceitar qualquer dinheiro.

Pois bem. Uma bela tarde, já em início de noite, nosso Antônio vinha em sua terceira viagem, na altura do que hoje é o terminal rodoviário João Goulart (que na época não    existia). Tremendo verão, os reflexos do dia escaldante ainda se faziam sentir. Eis que sinalizam ao veículo e embarcam dois elementos um tanto suspeitos. Antônio estranhou: os camaradas estavam de blusas de manga longa, naquele início de noite muito quente. As roletas, claro, ficavam na parte de trás do veículo.

Um dos rapazes, sacando uma moeda e fazendo menção de dá-la para Antônio, disse:

- Segura aí essa moeda, sangue bom. Nós vamos dar um voo (passar por baixo da roleta).

Antônio recusou a moeda e disse que não poderia deixá-los passar. A fiscalização estava acirrada e, infelizmente, seria preciso que pagassem a passagem.

Um dos malandros, se irritando, sacou um grande bolo de notas de dinheiro, e disse para o cobrador:

- Dinheiro nós temos, otário. O negócio é que nós não queremos pagar passagem. Libera logo pra gente passar aí, vambora, rapál

Enquanto esse diálogo transcorria, um cidadão, sentado próximo ao cobrador, levantou-se e, já empunhando um tremendo três oitão e apontando-o para os caras, disse para Antônio;

- Não está vendo que eles querem te assaltar, rapaz? Num calor desses e esses dois de blusa comprida?

Os passageiros presentes no veículo, ao perceberem toda essa movimentação, ficaram assustados. Uma velhinha começou a gritar.

- Calma, calma todo mundo! Eu sou policial!

Os dois malandros olhavam assustados para o policial. Antônio, atordoado, não sabia o que fazer.

- Vocês vão pular ou vão morrer aqui? - Disse o policial.

E, antes que os elementos pudessem responder, ele gritou:

- Motorista, acelera! Acelera e abre a porta!!!

O motorista, que de santo não tinha nada, entendeu logo o recado. Acelerou à toda a velha carroça, e lá quase na altura do Moinho Atlântico, abriu a porta.

- Bora cambada! Ou pula ou morre! Ou pula ou morre!!!! - gritou o policial.

Sem pensar duas vezes, os dois elementos saltaram do ônibus em grande velocidade, dois malandros voadores...

Olhando para trás, tudo que Antônio pôde ver foram os dois malandros, pássaros sem asas, capotando diversas vezes no asfalto duro. Duro e ainda quente...

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes
 do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 10: Nádia Huguenin

 

Hans Christian Andersen (O que nos conta o vento)


O vento é tão alegre como uma criança. Já o viram correr, pelos campos, movendo o trigo, como as ondas do mar? É isto a dança do vento; mas ele não só dança, também canta. Vão ouvir como ele canta.

- Zum!... Zu!... Zê, ss... Ss... Ss!... - está ele dizendo.

Se não houvesse uns senhores muito graves, que usam chapéus que rodam pelas ruas, a vida na cidade seria para mim grande aborrecimento. Todas as distrações fugiram das cidades. Há cem anos não havia nada de que eu mais gostasse do que ir soprando pelas ruas abaixo. Mas, então, as ruas eram uma exposição de quadros divertidos, mais que lugares de comércio.

Todas as casas tinham sua vitrina ou tabuleta. Havia a vitrina do alfaiate, cheia de figurinos de várias cores, querendo mostrar que o alfaiate era capaz de transformar o homem mais esfarrapado num elegante senhor.

O barbeiro tinha por cima da porta um grande pau com uma navalha de madeira pendurada; peixes, chapéus, queijos, bolas, enfim, todas as coisas que se vendiam na cidade, eram representadas nas tabuletas; e quando eu as fazia oscilar e as punha a bater umas contra as outras, produziam um barulho ensurdecedor.

Que momentos tão alegres e divertidos passei eu numa noite em que me meti pelos mostradores! Tinha jurado que me havia de divertir.

O vento calou-se, dando em seguida um grito que estremeceu a casa.

- Oh! Como me lembro bem! - continuou ele a gritar pela varanda. - Era num dia em que os sapateiros se mudavam do antigo estabelecimento para o novo, levando consigo todas as tabuletas. Naqueles tempos, que já vão bem longe, os sapateiros eram ricos e poderosos e valia a pena ver a procissão que eles formavam. Havia um palhaço que abria a marcha, uma figura grotesca com a cara negra e uma roupa feita de retalhos. Todos riam. Hoje já não se divertem desta maneira. Atrás do palhaço ia a música, seguida dos homens que levavam os estandartes, e a grande bandeira de seda do grêmio dos sapateiros, enfeitada com uma grande bota preta. Subiu a um andaime, no qual tinha que fixar uma tabuleta, o sapateiro que presidia a associação e começou a discursar; mas o palhaço, que subiu atrás dele, fazia rir às gargalhadas o público, com os seus trejeitos. Eu quis também tomar parte na brincadeira e comecei a bater com as tabuletas umas nas outras e o orador desceu dizendo:

"Não é possível fazer-me ouvir por causa do vento, mas vamos fixar a tabuleta."

Mas eu havia resolvido - continuou o vento - que a tabuleta não se fixasse. Soprei até que o avental do sapateiro lhe tapasse os olhos, fiz cair a escada e levei-lhe o chapéu e a cabeleira. Por fim cansaram-se de lutar comigo e foram-se todos para a sua nova casa para celebrarem o banquete.

O vento deu um salto e prosseguiu:

- Eu estava naquele dia disposto a fazer mal. Tenho conseguido divertir-me com os sapateiros, andava pelas ruas tentando novas proezas. Comecei a tirar os tetos das casas velhas, mas ainda sentia vontade de fazer pior. Continuei a fazer cirandar tudo com muita habilidade. Quando a gente da cidade despertou, no dia seguinte, encontrou a tabuleta do Instituto Histórico num salão de bilhares e o Instituto tinha lá, em troca, a tabuleta arrancada de um asilo para crianças... Havia criadas e mamadeiras... Um peleiro tinha pintado na tabuleta uma raposa. Mudei a tabuleta para o outro lado da rua, para a casa de um conselheiro avarento, que pretendia passar por excelente pessoa. Toda a população se riu, sobretudo quando viu a tabuleta que eu tinha posto na casa de um juiz: era um pau com uma navalha de madeira. A mulher do juiz tinha o apelido de "A Navalha", por sua má língua.

Mas a partida mais original - continuou o vento com voz baixa - foi a que preguei a uma rica mulher que inventava grandes histórias contra os seus vizinhos. Pus na casa dela um letreiro que havia num solar abandonado e que dizia: "Aqui precisa-me de estrume."

Foram dias alegres - suspirou o vento - mas que já não voltam. Depois do que eu fiz nunca mais usaram aquelas tabuletas. Por minha causa muitos se envergonharam do seu comportamento e muitos homens nem queriam ouvir falar de mim e nas minhas travessuras.

O vento acabou de falar na varanda e, dando um grito muito agudo, foi-se embora.

Therezinha Dieguez Brisolla (Livro de Trovas) 2


À droga, ao fumo, à bebida,
- é o bom senso quem avisa -
se der a um deles guarida,
torna-se vício... e escraviza!
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Ao conter minha ousadia
deu-me o destino, severo,
em vez do amor que eu queria,
a saudade... que eu não quero.
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Ao disfarçar a paixão,
quando na rua se olharam
bem à luz do lampião,
suas sombras... se abraçaram!
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Atua língua refreia,
porque a calúnia é um defeito
de quem pela vida alheia
não tem o menor respeito!
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Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las?
Então, Deus... cria o poeta!
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Falo à minha confidente!...
Lá no céu, onde se esconde,
minha estrela, displicente,
pisca... pisca... e não responde!
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Foi o segredo a guarida
que o nosso amor protegeu...
e a inconfidência da vida
nos fez Marília e Dirceu!
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Há certos dias tristonhos
em que um livro me faz bem...
e enquanto não tenho sonhos,
vivo dos sonhos de alguém.
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Meu tempo é o da serenata...
do flerte... da matinê...
da valsa... terno e gravata...
do primeiro amor... você!
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Não acho coisas no chão
porque não consigo vê-las.
Sou poeta, eis a razão:
- Ando à procura de estrelas!
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O seu olhar tem tal brilho
que chega à sublimidade...
Toda mãe, que espera um filho,
tem um "quê" de majestade!
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Passam sorrindo ao meu lado
avó e neto... amor puro!
Nela, revivo o passado...
Nele, adivinho o futuro.
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Perguntei ao coração
se este amor o faz culpado.
Respondeu - e tem razão -
"Não amar é que é pecado".
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Por mais que o mundo me agrida,
minha fé não arrefece...
Mesmo no inverno da vida,
Deus manda o sol que me aquece!
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O homem, a cada investida,
em sua ambição funesta,
nos rouba o direito à vida
ao destruir a floresta.
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Quando desfazes a trança,
jogando longe teus grampos,
tu me recordas a dança
do trigo dourando os campos!
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Que eu não me esqueça, jamais,
que a moral é a diretriz
e ter ética é bem mais
do que a gente pensa e diz!
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Que eu tenha, no dia a dia,
cautela na trajetória...
Meus passos, na travessia
gravam, no chão, minha história.
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Que não haja cerca ou muro...
que entre as flores, no quintal,
a criança, no futuro,
celebre a paz mundial!
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Se a vida me desafia
e eu luto e venço a batalha,
o destino, à revelia,
põe noutro peito... a medalha.
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Sorrindo, tento esconder
toda a mágoa que me inspiras.
Finges me amar... finjo crer...
Nós somos duas mentiras!
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Sua mensagem chegou...
Rasguei a carta e, serena,
lembrei que o tempo passou
e agora é tarde... Que pena!
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Sufoca a dor em meu peito,
meu coração sonhador...
e ajeita o ninho desfeito,
à espera de um novo amor!
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Tantas juras de mãos dadas!...
Mas, a vida em seus desvãos,
ao namoro armou ciladas
e separou nossas mãos!
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Tanto amor na despedida!!!
Voltas... e eu não sinto nada...
Pior que o adeus, na partida,
foi nosso adeus, na chegada!
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Uma foto... uma missiva...
que eu guardei da mocidade.
Uma flor, a sempre-viva
e a sempre viva... saudade!

Fonte:
Therezinha Dieguez Brisolla. À procura de estrelas.
Porto Alegre/RS: Odisséia, 2014.
Livro enviado pela trovadora.

Hermínio Bello de Carvalho (Lia de Itamaracá)

Essa ciranda quem me deu foi Lia
Que mora na Ilha de Itamaracá
(Teca Calazans)


Enquanto Lia não vem, é Dona Creusa que vai desfiando histórias. É a proprietária do "Sargaço" que comprou em 1973, ali no Jaguaribe. Trabalha com frutos do mar em geral: peixada, lagosta, filé de agulha, ostra, marisco, camarão. E tem sururu, pirão de guaiamum, e, é claro, cerveja bem geladinha — indispensável quando o sol castiga fone a ilha de Itamaracá. Não, não ganha muito dinheiro não.

Agora mesmo, veja só, o bar só tem vocês aqui. Vocês, eu, o Dr. Bernardo, diretor do Manicômio, e o Gilberto Marques Paulo — Secretário de Justiça e, nas horas vagas, tocador de violão e seresteiro. E mais o Juca, filho de José Lopes — ex-Prefeito da ilha. Gilberto acaba de me fazer visitar a Casa Grande do Presídio. Estranho aqueles homens todos morando em mil e setecentos hectares de terra, cada um com sua família em casas bem feitinhas, plantando as verduras que comem, andando livres pela Ilha. É um trabalho de humanização que vem aplicando às penitenciárias, tarefa na qual se engajou Célia, sua mulher. Ela cuida dos menores, antes que cheguem à delinquência. Pergunto se eles não fogem, tão fácil é o caminho da fuga. Nos dias de hoje, com moradia e comida garantida para si e a família — para que se evadir? Não me dou ainda por satisfeito, vou aqui e ali conversando com alguns presidiários. Visito a Casa da Farinha, vejo-a em pleno funcionamento. Vasculho as estradas, puxo conversa e me lembro de um tempo em que tinha. um programa de violão e poesia que era transmitido de uma rádio instalada na Frei Caneca. Vivaldi e Fernando Pessoa eram de vez em quando entrecortados por gritos pavorosos, a pancadaria comendo solta no meio da noite. Um dia contarei essa história, passada nos idos de cinquenta.

"Lia já vem". Teca Calazans costumava passar uns tempos na Ilha e ia às cirandas de Dona Duda, no Janga — subúrbio de Olinda. E me parece que foi por lá que conheceu a Lia. Ouviu-lhe as cirandas, anotou algumas, e ainda compôs outra que ficou famosa em todo o Brasil, cantada pelo Quinteto Violado: "Essa ciranda quem me deu foi Lia/ Que mora na Ilha de Itamaracá". E aí a cirandeira virou símbolo da ilha, parte integrante de seu folclore. E vem ela chegando.

Bonita, essa Lia! Enorme mulher de metro e oitenta. Os cabelos desarrumados, blusa florida e calça jeans, pés gigantescos em sandália de couro cru. Não está nada à vontade, devemos ser mais alguns daqueles forasteiros que vêm para lhe tirar fotografias, posar ao lado se possível com um sorriso que por enquanto economiza, como também raciona as palavras. Mais mimetiza do que fala.

Dona Creusa parece um pouco a Neuma da Mangueira, bonita como ela. Cabelos brancos, manda renovar a cerveja e a cachaça, os filés de agulha. Queixa-se do preço do camarão, diz que todo ano tem Festival de Cirandas, mas que a vontade dela é botar ali em freme do bar uma espécie de palco cheio de luz. Para que Lia cante e cirandeie. No espaço que tinha, ergueram um barraco inútil que só atrapalhou a vida do bar. "E vive de que a Lia?" Da profissão de merendeira escolar. empregada do Estado. "Ganho salário". Quer dizer: esse mísero salário mínimo, que é uma vigésima parte do preço de uma diária das suítes presidenciais que nós pagamos para a primeira-dama desfilar seu eterno sorriso, coisa aliás muito rara no rosto de Lia, a de Itamaracá.

As cirandas são famosas: além do canto de Lia, existem os músicos que a acompanham: um surdo, piston, tarol e ganzá. Às vezes, ao invés do piston, um saxofone. Disco já gravou sim, na Rozenblit — isso em 1977. Diz que não viu a cor do dinheiro. Vai lá dentro do bar e traz a capa: Lia bonita. sorridente, florida. Cheirosa. Lamenta que lhe roubem as músicas que faz, mas o que se há de fazer? Direito autoral, direitos conexos — são coisas de que ela não ouviu falar, sabe apenas que a música a empobrece mais ainda. Pergunto se ela não quer participar do disco do Capiba, diz que vai sim e não tenho muito por que acreditar. Promessas deve receber a toda hora, nota-se isso no olhar entristecido que quase nunca se fixa no interlocutor, vagueia para um lado para outro, como se buscasse na linha do horizonte as palavras de seu fraseado curto, quase monocórdio.

E como é que é na hora da ciranda. hein Lia? “É cachorro amarrado, pau comendo!" Ai desamarra a boca, solta-se um pouco mais, parece que vejo os seios bufarem quando fala em ciranda. E começa cantar uma que Capiba lhe fez de presente: "Minha ciranda não é minha só/ é de todos nós!/ a melodia principal quem tira/ é a primeira voz/ pra se dançar cirandada/ juntamos mão com mão/ formando uma roda / cantando uma canção". Combino quase tudo: o dinheirinho que vai ganhar. ela fala dos músicos que precisa arregimentar. Vem mais uma rodada de pinga e mais peixe-agulha. Lia vai buscar seu Bezerra, do saxofone; e Marcelo do ganzá, Genuário do tarol, do surdo: precisa deles para a gravação.

A Ilha de Itamaracá começa a se parecer um pouco com a da Jipóia ou Jibóia, como queiram: lá de Angra dos Reis. Não a de agora, que nem mais a quero conhecer. Mas a dos tempos de meu avô Gregório que não conheci, e que era tido como o melhor violeiro do Estado do Rio.

A velha Florinda, sua mulher, vinha trazendo aviso:"Lá na ilha Grande tem um violeiro que anda prosando que é melhor do que você. Se aprepare”. Ele ia temperar (afinar) a viola, ela fazer o farnel. Desciam os dois, ela pegava o remo e ele só temperando, temperando. E que só voltasse vencedor. Essa herança de violeiro passou para os filhos, pegou de raspão num neto que ainda chegou a dedilhar uns clássicos e largou tudo pela poesia, mas agora ressurgiu num bisneto que está firme em Leo Brouwer, Villa-Lobos, Torroba. Lembro meu sobrinho Saulo, fico orgulhoso de meu avô Gregório e largo meus devaneios porque é hora de voltar ao mundo.

Claro que deveria explicar o que estou fazendo aqui em Recife: um disco para Capiba, história que já comecei a contar há duas semanas passadas e correu firme pelo Recife inteiro: todo o mundo de Pasquim na mão. Cansaço, emoção: e lá vou eu parar na Unicordis, outra crise de hipertensão — eu ali domesticado na sala branca, monitorizado para um eletro que vai apontar a polirritmia dos batimentos cardíacos, o coração já em compasso de frevo dedilhado pela "Valsa verde" de Capiba, pelo choro que Jacaré fez em minha homenagem, mas também pelos aborrecimentos todos que cercam a vida de um fazedor de cultura, de um brasileiro irremediável e que anda chorando à toa pelos cantos da vida — a serenidade escoando aos poucos, a tensão desses dias ameaçadores provocando a hipertensão — e ainda mais agora essa tal de Lia de Itamaracá, ora vejam só.

Lia chega ao estúdio: seu Bezerra se perdeu no caminho, daqui a pouco chegará. Os meninos da "Casa do Guia Mirim" de Olinda estão por aqui, para deitar recitação no disco de Capiba. E uma ciranda come solta no estúdio três por quatro da Somax. Lia cirandeira de Itamaracá ,toda sorridente e festeira, primeira-dama destituída de outros privilégios que não seu próprio talento de mulher do povo, assalariada com um mínimo que não lhe roubou ainda toda a alegria.

Estranha música, essa de seu povo! As cirandas pernambucanas de Lia estão na boca de toda a gente, na alegria das pessoas se dando as mãos. cirandando em volta dela. E na verdade essa mulher de quarenta anos, meiga às vezes e justamente desconfiada quase sempre, e para muitos apenas uma dessas peças de artesanato urdidas em barro e que vão ornamentar uma estante — até que se espatifem e ganham o caminho da lixeira. Pegaram o disco de Lia e o trataram como se fosse de barro. Nem ela tem um só, até porque nem escutaria: vitrola é coisa que deve existir em sua vida de merendeira escolar. Volta e meia um turista de ar dementado virá tirar-lhe uma foto e nisso eu fico toda hora me lembrando de meu querido Camafeu de Oxossi, toda hora requisitado no extinto Mercado Modelo para exibir o sorriso, o chapéu imenso, a fama de melhor sabedor da Bahia, elogio que lhe pespegou o Jorge Amado.

Deixo Lia à porta do estúdio. Parece até que está feliz. Por pouquinho deixa de cruzar com Mestre Capiba, que vem cheio de guizos no rosto, a felicidade lhe tomando a alma.

Vai com Deus, Lia! toma conta dele direitinho.
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Hermínio Bello de Carvalho nasceu em 1935, no Rio de Janeiro (RJ). Poeta, escritor, compositor e produtor musical, tem toda sua vida dedicada à música, com parceiros como Pixinguinha, Radamés Gnattali, Paulinho da Viola, Ivone Lara, Cartola, Chico Buarque, Baden Powell, e muitos mais. Foi o criador de "Rosa de Ouro", "Elizeth Cardoso, Jacob do Bandolim, Zimbo Trio e o Época de Ouro", "Caymmi em Concerto", entre outros. Tem 13 livros publicados, como "Poemas do amor maldito", "Mudando de conversa", "Cartas cariocas para Mário de Andrade", "Contradigo" e "Sessão Passatempo".

Fonte:
Jornal “Pasquim” nº 796, Rio de Janeiro (RJ): edição de 
27/09/1984 a 03/10/1984.

Minha Estante de Livros (Canta… Sabiá!, de Carolina Ramos)


O livro “Canta... Sabiá!", da escritora de Santos/SP, Carolina Ramos (97), tem como tema o folclore nacional, reunindo poemas, provérbios, parlendas e ditos populares, além de poesias e contos da própria autora.

Carolina obteve mais de 1.300 prêmios literários. Ela diz que por ser um tema que não é abraçado com facilidade, e não é como uma poesia que sai da alma da gente, é diferente. Começou a escrever sobre folclore em uma obra ou outra, e ia separando. O folclore foi uma de suas primeiras inspirações.

No prefácio do livro, Domingos Trigueiro Lins, da Academia Santista de Letras, diz:

"Canta... Sabiá! " não é, somente, manifestação poética da inteligência de Carolina Ramos, sua autora. É, também, canto lírico do seu coração entoado em florilégios, como saudação à Pátria, brindando a alma brasileira com o que há de mais belo na criatividade dos seus sentimentos patrióticos.

O Monsenhor Primo Vieira (Academia Paulista de Letras) tece suas considerações sobre o livro:

No livro de Carolina Ramos - "Canta... Sabiá!" – o pássaro é simplesmente metáfora de poesia, se quiserem, de um lirismo, agora objetivo, posto a serviço da alma cívica e de sua grandeza histórica.

Na Trova, a Autora é mestra consagrada, mas, voltando-se 2 o poema de extensão maior, conseguiu imprimir versos tecnicamente perfeitos, belas mensagens poéticas, sem descambar para o prosaísmo vulgar dado ao gênero dissertativo em que se inscrevem os seus poemas. Os sonetos, por exemplo, não abandonam a forma tradicional das rimas obrigatórias das Chaves de Ouro, algumas destas de rara felicidade, como quando fala de um dos nossos produtos:

"Café, sangue moreno do Brasil!"

A parte dedicada ao folclore nacional- seria completada com poemas, dedicados a Santos, que foram incluídos, anteriormente, em outro livro seu - "Sempre"- onde, em 1968, já anunciava a preparação

-'Canta... Sabiá!"- que é um pequeno relicário de joias líricas, como as lendas do "Rio-Mar", do "Saci-Pererê", etc,

"Canta...Sabiá!" vale, assim, pela sua mensagem de otimismo patriótico, muito particularmente nesta hora de grande angústia, de inegável e vil tristeza, vivida pela Pátria, mas, que, com as bênçãos de Deus, aguarda um futuro melhor que lhe está reservado!

Este é um livro belo e bom, como se vê!


No vídeo, no Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=zKP8-N0EAaE), em entrevista, Carolina fala do livro e de si.

O livro está à venda nas livrarias de Santos ou pode ser comprado por whatsapp (13) 99762-2706.

Alguns de seus contos e poemas/trovas foram postados neste blog para apreciação dos leitores.

Fontes:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021. Livro enviado pela autora.

Turismo Santos.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Adega de Versos 50: Raimundo Caetano

 

Fernando Sabino (Comédia Humana)

— ESTOU numa situação meio complicada.

Levantei os olhos: eu acabara de entrar na livraria, e do outro lado de uma pilha de livros um rapazinho de ar modesto conversava com um senhor bem vestido.

— Situação complicada como? Que foi que aconteceu com você?

— O senhor não pode imaginar.

— Nem que eu quisesse não poderia. Conte logo, rapaz.

— Estão me acusando de roubo.

O outro ficou calado, mas como o rapaz também se calasse, repetiu, sacudindo a cabeça:

— Sim. Estão te acusando de roubo. E daí?

— De roubo — tornou o rapaz, mais veemente agora: — Veja o senhor que situação.

— E que foi que você roubou?

— Eu não roubei nada! O senhor acha que eu era capaz?

— Não acho nada. Estou só perguntando. Você mesmo é que disse.

— Eu disse que estão me acusando de ter roubado — o rapaz reagiu com firmeza.

— Muito bem. Estão te acusando de ter roubado o quê?

— Um relógio.

— Um relógio? Conte essa história direito.

— Foi num trem da Central. Eu ia para Madureira, onde moro. Quando saltei na estação um sujeito passou correndo e largou qualquer coisa na minha mão: era o relógio.

— Que relógio?

— O relógio roubado do pulso de um sujeito que estava cochilando. Só falou assim: segura isso, meu chapa — e saiu correndo.

— Meu o quê?

— Meu chapa. Foi o que ele disse. Era um crioulo alto, assim do tamanho do Didi, só que diferente ...

— Que Didi?

— O Didi, jogador de futebol. Se eu encontrar sou capaz de reconhecer ele.

— Está bem, mas conte o resto da história.

— Pois foi assim como estou contando: quando vi, os outros estavam me segurando. Até em linchar eles falavam. Me levaram para o Distrito, fui fichado como punguista, veja o senhor.

— Quando foi isso?

— Na semana passada. Fizeram o diabo comigo lá no Distrito, para que eu confessasse. Até no pau-de-arara me botaram. Confessar o quê? Acabaram me soltando, mas agora andam dizendo que vou ser processado.

— Quem anda dizendo?

— Um investigador lá, que arranjou para me soltarem. Diz ele que ainda tem jeito de abafar o caso.

— E o que você quer de mim? O caso já não está abafado?

— Eu queria só que o senhor me desse um atestado, qualquer coisa assim. Já trabalhei para o senhor, afinal o senhor me conhece, sabe que eu nunca fui de coisa nenhuma.

— Mas filho, como é que eu posso atestar sua conduta, se até ficha na Polícia você já tem?

— Eu não tinha não, agora é que eles fizeram.

— Eu sei, mas a título de que eu vou recomendar você à própria Polícia?

— Me recomendar então para algum emprego... Qualquer coisa serve. Só pra mostrar que eu não sou ladrão.

— Uma recomendação, nessas condições, não teria nenhum valor.

— Então o senhor não pode fazer nada por mim.

— Nada. Lamento muito.

O rapaz ficou calado um instante, mordendo o lábio e sacudindo a cabeça. Depois se despediu e saiu. O outro voltou-se e perguntou ao empregado da livraria quanto custava, em edição Plêiade, a “Comédia Humana”, de Balzac.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Ialmar Pio Schneider (Versos Diversos) – 5 –

AUTO-RETRATO


Preciso confessar que não a quero
por simples desabafo ou desagrado;
e procurando ao menos ser sincero
comigo mesmo o coração magoado.

Se nada tive e tudo ainda espero,
mais infeliz fora não ter cantado
o amor inatingível que venero
num misto de virtude e de pecado.

Alguém irá dizer, é bem provável,
que sou um sonhador, que vivo abstrato
no mundo da ilusão desagradável...

porquanto transformei a minha vida
num esboço qualquer, o auto-retrato
de uma pessoa a mim desconhecida.
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DESEJO ALGOZ

Não quisera perder e nem estar perdido
quando me vejo a sós em meio à multidão,
à procura de alguém, o amor desconhecido
que pode ser real ou simples ilusão...

Talvez há de surgir qual um fruto proibido
numa tarde banal na minha solidão,
e se concretizar ao ser correspondido
ou morrer infeliz, só na imaginação...

Triste desejo algoz que tem me torturado
com tanta intensidade e não posso esquecer,
como se eu fosse assim um pária condenado

cujo destino seja apenas padecer...
Bani-lo de minh' alma em vão tenho tentado,
vive dentro de mim, faz parte do meu ser.
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MINHA POESIA

Minha poesia desprendeu-se inútil
de um amor importuno de quimeras
que mais incompreendido do que fútil
pereceu esperando primaveras.

Oh! Jorge dá-me a Túnica Inconsútil,
quero fugir do mundo e suas feras
que o céu brilhante há de entregar-me dúctil
a pedra que foi rígida deveras.

Quanta esperança caminhou comigo
e não pude afastar este castigo
de prever coisas belas pela frente;

e tarde vejo todos os desejos
se transformarem nestes meus solfejos
que ferem fundo o coração da gente.
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SONETO AO SOL

Nesta tarde sem chuva até parece
que a claridade abraça nossa Terra,
o sol risonho aos poucos se descerra
e alegremente brilha e resplandece...

Oh! Rei dos Astros, quanta luz encerra
tua mensagem pura como a prece,
minh'alma consternada te agradece
a paz que trazes afastando a guerra !

Fugindo ao teu calor, buscando as águas,
a Humanidade olvida suas mágoas
e vai achar sossego à beira-mar...

Fazes crescer a planta com carinho
que produz folha, flor e até o espinho;
e as folhagens enfeitando o Lar.
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SONETO DA VIDA

Esperar novamente que amanheça
e começar a lida novamente,
sentir nos lábios um tremor descrente
e ideias revoltadas na cabeça...

Ter a vida já côncava e avessa,
nos membros um cansaço irreverente
e ter anseios de seguir em frente,
sem medo de que a nave lhe pereça...

Estar ausente de quem muito se ama,
levar no coração acesa chama
que abrase o corpo todo de calor

e lance irradiações ao semelhante,
é uma coragem de valor tocante
que não compreende quem não sente amor...!

Fonte:
www.sonetos.com. Acesso em 15.01.2016. (site fora do ar)

Nilto Maciel (Mancha na Parede)

Nota do blog: Frases em latim, significado no final do texto
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Eles estão se desvairando, aos poucos. Somente eu permaneço lúcido. Vejo tudo nitidamente: paredes e tapumes, portas e janelas, chão e ar, poeira e insetos. Enludrados estão os muros por onde passeiam lagartixas e outros seres. Ouço tudo o que fala, guincha, ruge, chia. No entanto, não sei como anda o mundo lá fora. Anos e anos metido neste mosteiro. Haverá guerras ou as nações vivem em paz? O comunismo ateu terá tomado conta de tudo ou se esfiapou? E a Igreja terá se expandido mais e mais ou perdido rebanhos para novas seitas e o ateísmo? Como viverão meus pais e irmãos? Certamente alguns deles morreram. Não durariam para sempre.

A mancha na parede parece se alargar dia a dia. Quem morreu aqui depois de minha chegada? O corpo de monge Heraldo estendido no caixão, lívido e grave, após um dia de orações sem fim – havia muito tempo. De velhice. Não falava mais, não andava. Talvez ainda rezasse. Depois monge Onguinaldo, tão cheio de viço, corado, loquaz, risonho, brincalhão, que definhou, murchou, da noite para o dia.

Outros e outros se foram, uns para muito longe, outros para o Céu. Introibo ad altare Dei. Ad Deum qui laetificat juventutem meam*. Aquela mosca me encara, como se eu fosse estranho. Mas ontem ela esteve aqui, lambeu e lambuzou minha mão. Ou será filha da outra? Aqui não é lugar para insetos. Aqui vivem meus irmãos, cenobitas como eu. Uns muito velhos, outros nem tanto.

Arnúbio fita os olhos em mim, com piedade, e foge pelas esquinas, a resmungar. Samuel ri à toa, observa o céu, persigna-se. Nos cantos vejo restos de biscoitos. E formiguinhas. Nazário passa horas debaixo da mangueira. Parece cochilar. Não temos nada a fazer, a não ser rezar. Se chovesse uma chuva muito forte, se os ventos prostrassem algumas árvores... Quem sabe desabelhássemos todos.

Não consigo me lembrar mais das feições de minha irmã caçula. Às vezes vejo seus lábios na imagem de Santa Bárbara. À noite fito as estrelas. Pisco para elas, mando-lhes mensagens. Antes de vir para cá, numa tarde, minha irmãzinha tomava banho. Por descuido, entrei no banheiro. Ela se sobressaltou. A menina se retraía, com medo. Eu me aproximei dela, passei  a mão em sua cabecinha. Senti um arrepio e fugi. Fui para a rua, atordoado. Eu nunca tinha visto ninguém sem roupas. Ajoelhei-me numa igreja, confiteor Deo omnipotenti.* Rezei durante horas, querendo tirar da cabeça a imagem da menina nua. Machuquei-me como pude. Fui ao médico, porque não alcançava a cura da ferida. Joguei-me contra paredes. Imaginei-me no inferno, a arder para sempre. O corpo se abrasava, doía. Quando voltei para casa, minha mãe me examinou com olhos de estranha ansiedade. Voltei-me para as paredes.

Havia uma mancha à imagem e semelhança do semblante do demônio, olhos cravados em mim, com deleite. Agora a mancha na parede se esverdeou. Preciso falar com frei Angélico. Há dias não o vejo. Ouvi falarem de uma indisposição estomacal. Frei Domênico morreu de diarreia. O convento virou uma fossa insuportável. Ostende nobis Domine, misericordiam tuam.*

Ali vai Bernardo, a arrastar os chinelos, a sondar o ambiente, com medo de capetas. Sonha – contou-me, trêmulo, nervoso – com seres terríveis. Anda a espantar coisas com os dedos. O passarinho voa para os fundos da chácara. Diziam quinta, há muito tempo. Havia, ao fundo, grandes gaiolas. Os pássaros chanfalhavam o dia todo, num canto interminável. Por que não soltá-los? Aproximei-me da grade, eles se perturbaram, gritaram, desesperados. Para eles eu seria uma ameaça? Corri, tropecei numa pedra, caí. Quantas vezes tenho caído, quantas vezes me erguido. Mas sempre sujo. Minha alma se lavará algum dia? A qualquer momento serei chamado para o Eterno. Irei. Como não ir? E nunca voltarei. Como frei Domênico. Mas então estaremos limpos, longe das fossas.

Ali vai outro demente, pobre frei Sinfrônio. Quer conversar comigo, mas nada temos a dizer. Benze-se e ri. “Deus esteja contigo”. Afasta-se devagar, a olhar de viés, como se temesse que eu o seguisse com os olhos. Mas não quero deitar minha atenção nele. À noite não tenho conseguido dormir logo. Passo horas a rezar. Uns roncam e penso que vão morrer sufocados. Amarro as mãos com a ponta do lençol. “Em tuas mãos entrego o meu espírito”. Se amanhecer morto, saberão que tentei me agarrar, para não ser levado por estes seres terríveis que comigo se defrontam a todo momento, zombam de mim, tomam conta de meus sonhos. Acordo sobressaltado, como se cães danados uivassem dentro de meus ouvidos. Preciso rezar mais, mais e mais. Sempre, até o último dia, o derradeiro instante nesta vida.

“Cavalgava um querubim, e voou; sim, levado velozmente nas asas do ...”. O vento corta a copa das árvores e sibila. Andorinhas passeiam para cá e para lá, invisíveis, a zinzilular sem freio. Faz muito calor. O suor empapa minhas vestes. Eu quero frio, gelo e barulho. Os corredores são imensos e não levam a lugar nenhum. Há vultos atrás das colunas, das cortinas, espiam pelas janelas, fogem sorrateiramente para o mato, escondem-se de si mesmos. “Por que escondes a tua face e te esqueces da nossa miséria e da nossa opressão?” Sou lúcido como um filho de Deus. Nada invento.

Meus irmãos, coitados, riem de nada e se desvairam sem controle. Passam horas sentados, ou a caminhar sem rumo, perdidos. Examinam as paredes, como se fossem seres, e falam com elas. Conversam com os próprios pés, os chinelos, as pedras. Falam de Deus para mim, como se eu fosse um intruso, um desconhecido. Cuidado, frei Jeremias. E se retiram sem despedida. Entram para seus claustros ou se escondem atrás de pilares.

Reaparecem e me chamam de frei Domênico. Assusto-me e saio de esconso. Volto para a parede suja, vejo a mancha que cresce dia a dia. Aproximo-me dela e vislumbro o rosto de minha mãe, com o olhar misterioso e de repreensão. “O que você fazia dentro do banheiro, menino?” Corro sem freio, desembestado, medroso, e atiro-me na cama, a chorar baixinho, com vergonha de tudo, de meu corpo, de minha nudez, de meus pecados. Quero me afligir, me torturar, me sangrar, me purificar. Pater noster, qui es in cælis: sanctificetur nomen tuum...*

Como estará lá fora o mundo? Terá pegado fogo? Ninguém nos manda notícias. Não se sabe de nada, de ninguém, como se nenhum de nós tivesse pais e irmãos. A mancha na parede cresce. Ali vai outro pobre monge, a resmungar. Talvez encontre sua pedra e também caia. Eles não enxergam nada. Eu vejo tudo com nitidez.
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Tradução:
Introibo ad altare Dei. Ad Deum qui laetificat juventutem meam = Subo ao altar de Deus, o Deus que alegra minha juventude!
Confiteor Deo omnipotenti = Eu confesso ao Deus Todo Poderoso.
Ostende nobis Domine, misericordiam tuam = Tua misericórdia, oh Senhor, mostra-nos ela.
Pater noster, qui es in cælis: sanctificetur nomen tuum = Pai Nosso que estais nos Céus, santificado seja o vosso Nome.


Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

domingo, 10 de outubro de 2021

Varal de Trovas n. 528

 

A. A. de Assis (A Mãe da Criatividade)

A necessidade é a mãe da criatividade”. Sábia e antiga frase que ouvi pela primeira vez quando era ainda criança, uns oito ou nove anos, e morava na roça. Começo dos anos 1940. O mundo estava atravessando um dos piores períodos da história, a segunda grande guerra. Rigoroso racionamento de tudo, principalmente de combustíveis e alimentos. Então era preciso inventar soluções para sobreviver. A necessidade faz milagres nesses momentos.

O povo, antes do conflito, estava acostumado com variedade e fartura. O que não se produzia no Brasil vinha de fora, de marmelada em lata a bacalhau. Com o racionamento decretado pelo governo, mudou tudo: era preciso economizar o quanto fosse possível e fazer filas até para comprar bolacha na padaria.

Mas na roça era um pouco mais fácil, visto que as famílias contavam com produção própria. Com paciência, criatividade e fé, dava-se sempre um jeito de resolver as coisas. De fome ninguém morria. Na falta de trigo, a gente comia pão de fubá, bolo de aipim, batata doce assada, biju, tapioca, sopa de inhame com taioba. Na falta de açúcar, o café e as sobremesas eram adoçados com garapa ou rapadura. Na falta de querosene, usava-se óleo de mamona preparado em casa para abastecer as lamparinas.

Tinha carne e miúdos de porco, de cabrito, de galinha; em dias especiais carneiro ou peru – tudo criado ali mesmo, no pasto ou no terreiro. Peixe era pescado no riozinho que rolava nos fundos da casa: piau, cachimbau, piaba. Ovo era só apanhar nos ninhos. Tinha leite de vaca e de cabra, com o qual se fazia queijo e requeijão. Verduras e legumes estavam bem ao lado, na horta. Frutas no pomar. No sábado um tutuzinho com torresmo e carne-seca.

Forno e fogão eram aquecidos com lenha. Para cozinhar usava-se banha. Sabão era de sebo e cinza. Remédio era um chazinho de macaé. Gás e energia elétrica, nem pensar. Adubo era titica de galinha. Ração industrializada não havia. Os porcos engordavam comendo abóbora, banana e lavagem, os outros animais comiam milho e capim.

Pergunte aos seus avós, que eles se lembram. Quem tivesse um sítiozinho e disposição para trabalhar estava equipado para enfrentar a grande crise. Moleza não era, mas serviu como um precioso aprendizado para a sobrevivência em situações difíceis e disso resultou uma geração de gente forte e decidida.

E foi justamente essa geração de gente forte e decidida que, nos meados dos anos 1940, logo após o final da guerra, saiu de onde estava e veio com toda a garra inaugurar aqui um mundo novo. Originários de todas as regiões do Brasil, alguns de países distantes, vieram trazendo nas mãos os calos da corajosa labuta que lhes deu forças para peitar e vencer qualquer desafio. Homens e mulheres da melhor qualidade, aos quais devemos tanto.

A eles e a elas nossa gratidão e o maior respeito.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 16-9-2021)
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Nota do blog: O pintor Gael Mac Tiréban, autor do retrato artístico acima da catedral de Maringá, faleceu em agosto deste ano em Curitiba, aos 87 anos, de complicações pulmonares devido a Covid. Nasceu em Lurgan/Irlanda do Norte, em 1934. Especializou-se em retratar as cidades do Brasil.
 
Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXX

“DEIXO AO CEGO E AO SURDO”

 
Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,  
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.

Do alto de ter consciência
Contemplo a terra e o céu,  
Olho-os com inocência:
Nada que vejo é meu.  

Mas vejo tão atento
Tão neles me disperso
Que cada pensamento
Me torna já diverso.

E como são estilhaços
Do ser, as coisas dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.

E se a própria alma vejo
Com outro olhar,
Pergunto se há ensejo
De por isto a julgar.

Ah. tanto como a terra
E o mar e o vasto céu,
Quem se crê próprio erra,
Sou vário e não sou meu.

Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.

Se quanto sinto é alheio
E de mim sou ausente,
Como é que a alma veio
A acabar-se em ente?

Assim eu me acomodo
Com o que Deus criou,
Deus tem diverso modo
Diversos modos sou.

Assim a Deus imito,
Que quando fez o que é
Tirou-lhe o infinito
E a unidade até.
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“DEPOIS QUE TODOS FORAM”
 
Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas* do ermo parque
Eu e minha agonia.

A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.

Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as  sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.

Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não  ser.
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“DEPOIS QUE O SOM DA TERRA, QUE É NÃO TÊ-LO”
 
Depois que o som da terra, que é não tê-lo,
Passou, nuvem obscura, sobre o vale
E uma brisa afastando meu cabelo
Me diz que fale, ou me diz que cale,
A nova claridade veio, e o sol
Depois, ele mesmo , e tudo era verdade,
Mas quem me deu sentir e a sua prole?
Quem me vendeu nas hastes da vontade?
Nada. Uma nova obliquação da luz,
Interregno factício onde a erva esfria.
E o pensamento inútil se conduz
Até saber que nada vale ou pesa.
E não sei se isto me ensimesma ou alheia,
Nem sei se é alegria ou se é tristeza.
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Nota:
* Álea = Renque ou fileira de árvores.

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Aparecido Raimundo de Souza (Rapidinhas) 4


Vovô


Era tão velho, mas tão velho que até a bengala sofria do mal de Parkinson.
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É bom saber que...

- Há uma considerável diferença entre homens e cobras, com relação a pequenos barcos de aluguel.

- Diferença entre homens e cobras? Mas qual?

- Enquanto eles, realmente alugam, elas dão...

- Meu Deus, Eusébio. Elas dão? Dão o quê?

- O bote.
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Alma gêmea

- Estão comentando no bairro inteiro que seu Cani encontrou o grande amor da vida dele!

- Tomara! Ele é uma boa alma. Merece. E quem é a felizarda?

- Uma tal de Vete.
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Repetitivo

- O velho Taborda agia sempre da mesma forma. Acendia o cigarro, jogava o palito para o alto, dava uma tragada bem longa, guardava a caixa de fósforos no bolso e, em seguida, cuspia nos pés. Um belo dia, seu Arcanjo, o cara resolveu dar um basta, já que a coisa havia virado rotina.

- E como foi que ele fez essa mudança?

- Da maneira mais simples possível. Jogou para o alto o cigarro, deu uma tragada no palito, cuspiu na caixa de fósforos e olha só que loucura. Acendeu o alto e guardou o bolso nos pés.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O vulto da sombra estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book enviado pelo autor.