quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXII

A CHAMA DO AMOR...

MOTE:
Peço a Deus que o tempo corra
e corra a nosso favor,
para que este amor não morra,
antes que eu morra de amor!...

Aloísio Alves da Costa
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE

GLOSA:
Peço a Deus que o tempo corra

e que una mais, a nós dois,
e que apressado, concorra
pra antecipar o depois!

Quero que seja veloz
e corra a nosso favor,
impulsionado, na voz
desse nosso grande amor!

Peço a Deus que nos socorra,
que encurte as horas, um pouco,
para que este amor não morra,
nem diminua, tampouco!

Eu quero ter a certeza
que essa chama, com fervor,
continue sempre acesa...
antes que eu morra de amor!…
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LUA DA PAIXÃO...

MOTE:
Da paixão em nós presente
fulge um desejo tão farto,
que a lua, em quarto crescente
parece cheia em meu quarto...
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:
Da paixão em nós presente

entre suspiros e beijos,
aumentam, sempre, entre a gente,
os nossos sensuais desejos!

E nessa doce emoção,
fulge um desejo tão farto,
que todo o meu coração,
contigo, amor, eu reparto!

Essa explosão envolvente,
tem tanta força a mostrar,
que a lua, em quarto crescente
não se cansa de aumentar!

É tanta a luz, que irradia,
que de luz se faz um parto
e a Lua, em sua magia,
parece cheia em meu quarto…
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LAVOURAS DO CÉU

MOTE:
Pela magia do vento,
que leva a semente ao léu,
elevo meu pensamento,
para as lavouras do céu!
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS

GLOSA:

Pela magia do vento,
eu viro um mago, a sonhar
e é em agradecimento,
que então me ponho a rezar!

Esse vento tão faceiro
que leva a semente ao léu,
faz vezes de feiticeiro,
num brando e lindo escarcéu!

Vendo o vento em andamento
bailando pelo universo,
elevo meu pensamento,
e nasce, então, o meu verso!

Esse vento vou lembrar
como um doirado troféu,
vou pedir chuva e luar
para as lavouras do céu!
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DUAS TRAPAÇAS

MOTE:
Nós somos duas trapaças
usando a mesma altivez:
- Eu finjo que tu não passas...
- Tu finges que não me vês...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:
Nós somos duas trapaças,

tentando nos enganar;
vestimos nossas couraças,
mas continuamos a amar!

Guardamos nosso segredo
usando a mesma altivez,
num silêncio que dá medo,
que nem o tempo desfez!

Com teu olhar, tu me abraças,
mas eu faço que nem vejo...
- Eu finjo que tu não passas...
e sufoco o meu desejo!

Bate forte o coração,
quando tu passas... de vez,
mas fria e sem emoção,
tu finges que não me vês.
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ESPERANÇAS NAUFRAGADAS...

MOTE:
Pelo mar das ilusões,
pelas paragens salgadas,
fui buscar embarcações
de esperanças naufragadas...
Renata Paccola
São Paulo/SP

GLOSA:

Pelo mar das ilusões,
eu me pus a navegar,
e, ao pulsar de corações
comecei a procurar...

Segui, assim, minhas rotas
pelas paragens salgadas...
Nessas paragens remotas,
procurei contos de fadas!

Explodindo em emoções
de riso e pranto, alternados,
fui buscar embarcações
entre sonhos tão sonhados!

Sete mares, eu cruzei,
em incessantes jornadas
mas só um porto, encontrei,
de esperanças naufragadas...

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XVI. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Março 2004.

Aparecido Raimundo de Souza (Macacos me mordam)


O telefone celular de repente começou a tocar insistentemente dentro da mochila que o Bigode trazia às costas. Sem pressa, tirou-a e colocou no chão. Abriu um compartimento pequeno fechado por um zíper e pegou o aparelho que se esgoelava. Era o Paulo.

— Alô! Paulo? Sou eu. Fale...

— Bigode, por que demorou pra atender? Onde você está?

— Onde marcamos. Na porta da casa que você me passou o endereço ontem à noite. Lembra?

— Seu mentiroso. Então me diga: o que tem aí na frente dessa residência?

— A entrada...

— ...O quê?

— Na porta de acesso tem a entrada, ora bolas.

— Seu imbecil, você ainda nem saiu da cama. Se realmente está aonde te mandei, me fale o que tem na porta, junto à entrada.

— Você não explica! Só o velho senhor Capacho.

— Um velho capacho? E quem colocou essa porcaria aí?

— Isso eu não sei. O fato é que toquei duas vezes a campainha e ele apareceu.

— Não estou entendendo. Você tocou a campainha duas vezes e ele apareceu? Ele quem, apareceu?

— Meu Deus, Paulo, o seu Capacho. De quem estamos falando?

— Bigode, o capacho não está no chão?

— Não, o seu Capacho está em pé, na minha frente com um copo de café numa das mãos e um pedaço de pão com manteiga na outra. É um senhor simpático de idade bastante avançada. Foi ele que veio atender a campainha.

— Um... Um senhor?

— Em carne e osso. É a ele que me refiro desde o começo da nossa conversa.

— Pastel. Você é um pastel.

— Ah! Bem lembrado. O Pastel. Está quase chegando. Você tirou as palavras da minha boca.

— Quem está quase chegando?

— O Pastel. E, de lambuja, trazendo um ajudante.

— Bigode, pelo amor de Deus, que pastel, que ajudante?

— Pastel é meu vizinho, seu bocó e está vindo para cá com outro amigo nosso, que mora no mesmo bairro. O nome dele é Bolinho de Carne.

— Como? Bolinho de carne?

— Isso. Um ajudante porreta. Sempre que o serviço aperta costumo convocar os dois. Assim como você lembrou de mim e me chamou... Fiz o mesmo com Pastel e Bolinho. Eles vão nos dar uma mãozinha na retirada dos cacarecos.

— Bigode, seu espertinho de uma figa. Entra logo nessa droga de casa e comece a desmontar os móveis.

— Tenho que esperar pelo Pastel e pelo...

— ...Entre logo e deixe de palhaçadas. Estou chegando aí com o caminhão em menos de meia hora. Nesse tempo quero as tranqueiras todas desmontadas. Com ou sem esse pastel ou bolinho de carne.

— Está bem, está bem, você é quem manda. Agora fale com o senhor Capacho.

— Não quero...

Apesar do contra, Bigode passou o celular para o ancião.

— Bom dia, meu amigo. Com quem falo?

— Paulo. Meu nome é Paulo. E o senhor?

— Eu sou o Capacho.

— O senhor ligou para meu patrão ontem a tarde pedindo um caminhão a frete?

— Positivo. Liguei sim.

— Seu nome é realmente Capacho?

— Na verdade, José Capacho da Silva Oliveira. Capacho para os amigos.

— Desculpe. Nunca antes de hoje havia falado com alguém que tivesse um nome tão...

— ...Tão...?

— ...Tão fora do comum, excêntrico...

— Agradeço seus elogios. Geralmente as pessoas acham estrambótico.

— Que diabo vem a ser isso?

— Extravagante.

— Concordo plenamente.

— Obrigado. Bem, voltando ao nosso caso, quanto tempo o senhor acha que levará para desmontar todos os meus móveis e acomodar no seu caminhãozinho?

— Caminhão. Eu tenho um caminhão. Pois bem. Vai depender aí do Bigode que está ao seu lado.

Risos.

— Ele me parece um bom rapaz. Só acho que sozinho não conseguirá. Tenho muita tranqueira. Sabe como é: velho adora coisas antigas.

— Não se preocupe seu Tapete. Vamos dar conta do recado.

— Perdão, seu Paulo. Não é tapete, é Capacho.

— Mil desculpas. Cabeça cheia de preocupações dá nisso…

— Eu compreendo. Deixa perguntar uma coisa, seu Paulo. Não é mais viável aguardarmos a sua chegada com seu caminhãozinho e a dos dois rapazes?

Paulo começou a dar sinais de que a conversa não lhe agradava nem um pouco, quando o senhorzinho, com certa insistência, passou a se referir ao seu veículo como caminhãozinho. Precisava dar o troco.

— Meu caminhão não é caminhãozinho. Eu tenho um caminhão. Mas a que rapazes o senhor se refere?

— Aos que seu amigo aqui está esperando. Só um minuto. Seu Bigode, como é mesmo o nome dos ajudantes?

— Pastel e Bolinho de Carne.

Novos risos.

— Pastel e Bolinho de Carne.

— Macacos me mordam, seu Limpa Solas. Eu...

Nessa hora, o sujeito ao ser chamado de Limpa Solas se abalou da base ao cimo, deixando que a cólera o dominasse completamente. Paulo finalmente se vingara do coroa.

— Seu Paulo, por favor. Não gosto de brincadeiras, principalmente com meu nome. Capacho. Capacho. Será que é tão difícil? Tome. Já me aborreci. Fale com seu amigo. Passe bem.

— Fala, mano!

— Imbecil. Tinha que dar o telefone para o tal do Carapátio?

— Paulo, não é Carapátio, é Capacho. Capacho.

Ouvindo essa balela do outro ter lhe alcunhado de Carapátio, o velhote perdeu a esportiva e as estribeiras, de uma só vez. Tomou o telefone do Bigode e explodiu:

— Seu... Seu Paulo, o senhor vá sacanear a sua mãe. Carapátio uma ova. Fui claro? Além de tapete, limpa solas e não sei mais o quê, tem a cachimônia de me comparar ao navio que deu socorro ao Titanic? Vá a @#$#@&%. E de barquinho, que é para chegar mais rápido. Outro detalhe: não é Carapátio, é Carpathio, com “th”.

Paulo ao invés de tentar contornar a situação, já que havia tirado o velho do sério, resolveu continuar com a provocação:

— O senhor deveria é ficar agradecido e lisonjeado. O apelido que lhe arranjei, sem querer, em nenhum momento veio denegrir a sua imagem de cidadão de bem. Como o prezado lembrou aí, Carpathio, com "th", foi o nome de uma embarcação que salvou muitas vidas num dos desastres mais famosos da história. Além de não ter afundado, o que é mais importante.

— Pois fique sabendo que vou afundar a mão na sua fuça tão logo chegue aqui com seu caminhãozinho. Aliás, depois dessa conversa fiada, não vai ter mais mudança. Agora mesmo sairei para contratar outro pessoal. Seu Paulo, passe muito bem... Ou mal.

— Por favor, tenha calma. Vamos esperar então pelo Pastel e o Bolinho...

— Não vamos esperar ninguém. E quer saber? Comerei esses dois assim que pintarem na área... E o senhor e o seu caminhãozinho de lambuja, como sobremesa. Para terminar nosso papo, assim que acabar de tomar meu café palitarei os dentes com o seu comparsa aqui, o Bigode.

Temendo a ira da criatura que parecia atabalhoada e completamente fora de si, Bigode não esperou para ouvir o final da conversação, àquela altura completamente fora de esquadro. Tratou de passar a mão na mochila e dar no pé. Teve sorte. Num ímpeto de raiva, seu Capacho atirou o telefone contra sua cabeça. Não acertou. O velho, ensandecido, e soltando fogo pelas ventas errou a pontaria.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Como matar sua mulher sem deixar vestígios. SP: Ed. Sucesso, 2012. Livro enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (Capitú Mandou Flores, de Rinaldo de Fernandes [org.])


Num desafio criativo sem precedentes, 40 autores brasileiros contemporâneos reescrevem contos famosos de Machado de Assis, recontando, à luz de hoje, histórias que o bruxo tornou eternas

No centenário da morte de Machado de Assis, a Geração Editorial lança uma coletânea audaciosa e sem precedentes: um grupo de 40 autores brasileiros de alto nível pratica o exercício original, estimulante e desafiador de recriar, a partir do tema, dez das melhores histórias do maior escritor brasileiro de todos os tempos. O livro – “Capitu mandou flores” surgiu da ideia do premiado contista, doutor em Letras pela Unicamp e professor universitário Rinaldo de Fernandes, autor de antologias de sucesso como “Contos Cruéis” e “O Clarim e a Oração”, da mesma editora.

Na década de 70, o escritor Osman Lins já havia proposto a cinco autores – Antonio Callado, Autran Dourado, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles e Nélida Pinõn –, além dele próprio, recriar o lendário conto “Missa do Galo”, o que fizeram com grande maestria e resultou no livro Missa do Galo – variações sobre o mesmo tema. Ninguém, até agora, havia proposto a empreitada de se recriar 10 histórias e publicá-las juntamente com as recriações.

Na presente antologia, os dez contos reescritos são o próprio “Missa do Galo” e ainda “A Cartomante”, “O Espelho”, “Noite de Almirante”, “A causa secreta”, “Pai contra mãe”, “O Alienista”, “ Uns braços”, “O Enfermeiro” e “Teoria do medalhão”. Para ampliar o projeto, alguns autores recriaram também trechos e situações do romance Dom Casmurro. Além dos contos originais de Machado de Assis – e um resumo de Dom Casmurro – o livro contém também cinco ensaios sobre a obra de Machado.

Para que serve um livro como este? Em primeiro lugar, informa a editora, trata-se de um reencontro com a obra de Machado de Assis, nos cem anos de sua morte. Ler – para as novas gerações – ou reler 10 das melhores histórias de Machado é sem dúvida uma experiência literária e humana muito rica. Ler como autores consagrados, emergentes ou promissores recontaram as mesmas histórias é também exercício intelectual mais do que estimulante.

Entre os autores, estão consagrados como Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar, Hélio Pólvora e outros, como Daniel Piza,André Sant'Ánna, Fernando Bonassi, Nelson de Oliveira, Antonio Carlos Secchin, Glauco Mattoso, Hélio Pólvora, Nilto Maciel, Regina Zilberman, W. J. Solha entre os 40 escritores participantes desta obra.

Fonte:
Geração Editorial
http://geracaoeditorial.com.br/capitu-mandou-flores/

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 5

 


Hans Christian Andersen (Os Namorados)


O Pião e a Bola achavam-se numa gaveta, junto com outros brinquedos, e o Pião disse a Bola:

- Não vamos ser namorados, já que estamos juntos na mesma gaveta?

A Bola, porém, feita de marroquim, e tão vaidosa como uma senhorita elegante, nem resposta quis dar a semelhante pergunta.

No dia seguinte, veio o menino, dono dos brinquedos. Pintou o Pião de vermelho e amarelo, e pregou-lhe bem no centro um prego de latão. Era muito bonito quando o Pião girava.

- Olhe para mim - disse o Pião à Bola - que diz você agora? Não vamos então ser namorados? Servimos muito bem um para o outro: você pula e eu danço. Ninguém poderá ser mais feliz que nós dois.

- É o que o senhor pensa - disse a Bola - certamente não sabe que meu pai e minha mãe foram chinelos de marroquim, e que tenho dentro de mim uma cortiça.

E eu sou feito de mogno - disse o Pião - o próprio prefeito me torneou em seu torno, o que lhe deu um grande prazer.

- Se eu pudesse acreditar nisso! - disse a Bola.

- Quero nunca mais ver uma fieira em toda a minha vida se for mentira o que eu disse - respondeu o Pião.

– O senhor advoga bem a própria causa - disse a Bola - mas não posso namorar. Estou quase comprometida com um sr. Andorinha. Cada vez que subo ao espaço, ele põe a cabeça fora do ninho e pergunta: "Quer? Quer?" Ora, eu intimamente já disse que sim, o que equivale a um meio compromisso. Mas lhe prometo que nunca o esquecerei!

- E isso vai adiantar muito! - disse o Pião.

E nada mais disseram.

No dia seguinte vieram buscar a Bola. O Pião viu como ela subia a grande altura, como um pássaro, desaparecendo de vista. Voltava todas as vezes, mas dava um grande salto cada vez que tocava o chão. Devia ser por causa das saudades, ou por causa da cortiça que ela tinha dentro dela. A nona vez a Bola subiu ao alto, e não mais voltou. O menino procurou muito, e nada: a Bola sumira.

- Bem sei onde ela está - suspirou o Pião - está no ninho do sr. Andorinha e com ele se casou.

Quanto mais o Pião pensava naquilo, tanto mais se apaixonava pela Bola. Por não poder tê-la, seu amor por ela aumentava. O fato de ter ela ficado com outro, tornava o caso mais apaixonante. O Pião dançava ao redor e zunia, mas sempre pensava na Bola, que em seus pensamentos se foi tornando cada vez mais bonita. Passaram-se assim muitos anos e o amor do Pião transformou-se num velho sonho.

O Pião não era mais moço. Um dia, porém, foi inteiramente pintado de dourado. Nunca fora antes tão bonito. Era agora um Pião de Ouro, e pulava, deixando um zunido pairando no ar. Aquilo sim, era formidável! Mas de repente ele saltou alto demais - e sumiu.

Procuraram por toda a parte, até na adega, mas nada de aparecer o Pião.

- Onde estaria ele?

Pulara para dentro da barrica de lixo, onde jaziam amontoados talos de couve, cisco e entulho caído da calha.

"Estou bem arrumado" - pensou o Pião - "aqui a douração não tardará a sair de mim. E que gentalha é essa em cujo meio vim parar! "

Olhou de esguelha para um longo talo de couve e para um estranho objeto redondo, que parecia uma maçã velha. Mas não era uma maçã. Era uma velha Bola que durante muitos anos estivera caída na calha, embebida de água.

- Graças a Deus, aí vem alguém com quem se pode falar - disse a Bola ao ver o Pião Dourado - eu, para falar a verdade, sou de marroquim, costurada pelas mãos de uma gentil senhorita, e tenho uma cortiça dentro de mim. Mas duvido que se veja isso agora. Eu estava prestes a casar-me com uma andorinha quando caí na calha, e ali estive por cinco anos, encharcada de água. É um longo tempo, pode crer, para uma jovem.

O Pião não respondeu. Pensava em sua antiga namorada, e quanto mais a ouvia, tanto mais certo estava de que era ela.

Nisto chegou a criada e quis virar a lata de lixo.

- Oh! Aqui está o Pião Dourado! - disse ela.

E o Pião retornou à sala, à antiga posição de respeito, mas da Bola nada mais se ouviu. O Pião nunca mais falou em seu antigo amor.

O amor se extingue quando a amada passa cinco anos numa calha, embebendo-se de água. Nem a conhecem mais quando a encontram na lata de lixo.

Fonte:
Contos de Encantar
https://contosencantar.blogspot.com/2012/03/os-namorados.html

Prof. Garcia (Caderno de Trovas) 2

Com meu cinzel afiado,
e o martelo do desgosto,
esculpi, amargurado,
a solidão do meu rosto!
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Da sorte, nunca lamente.
Ame a vida com seus ais,
que a sorte de muita gente
cresce em falsos pedestais!
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Dizem que a justiça é cega.
Não creio, é falsa premissa;
cega, àquele que se apega,
aos infiéis da justiça!
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Em meio às indiferenças,
dar bons exemplos preciso,
jogando fora as ofensas
dentro da fonte do riso!
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Em silêncio, a tua rede,
com saudade, chora tanto,
que, do armador da parede,
respingam gotas de pranto!
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Enquanto, tu buscas rindo,
a paz do azul desse mar...
Eu busco esse abismo infindo
do verde do teu olhar!
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Eu amo as gotas serenas
do orvalho que beija a flor,
porque sei que são apenas
serenas gotas de amor!
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Eu ouço em tuas demoras,
vozes de outros rituais...
Na ressonância das horas
do martelar dos meus ais!
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Meu sertão não tem floresta,
é pobre o pó deste chão...
Mas esta paz que me empresta
me faz amar meu sertão!
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Não reclamo ante os escolhos,
nas trevas, mantenho a calma...
Quem tirou-me a luz dos olhos,
pôs luz e brilho em minha alma!
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Nesse casebre sem dono.
tive uma infância tão boa;
mãe, foi rainha sem trono,
papai, um rei sem coroa!
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No amor, há tanta afeição,
na família, há tanto bem...
Que os filhos dos filhos, são
netos, e filhos também!
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No mosteiro abandonado,
na solidão da clausura,
o silêncio é tão calado
que à solidão se mistura!
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Nos momentos mais tristonhos,
das ilusões mal sonhadas...
Sou tropeiro dos meus sonhos
tangidos nas madrugadas!
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Nosso amor teve a mistura
na dose certa, e depois...
Fomos viver, na ternura,
do eterno amor de nós dois!
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O mundo inteiro se arrasta,
sofre, lamenta e padece;
mas a crise não se afasta,
e em todo canto ela cresce.
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Pobreza dói mas não mata,
não faz vergonha a ninguém;
pobre, é quem tem ouro e prata,
mas quer ter mais do que tem!
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Por cicatrizes, marcado,
teu rosto guarda a virtude,
de um riso, lindo, poupado,
do tempo da juventude!
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Por longa que seja a espera,
calma, que tudo se alcança!
Enquanto houver primavera
não morre a flor da esperança!
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Quando acenaste, à distância,
vi, no teu gesto tristonho,
que um sonho de nossa infância
foi simplesmente, outro sonho!
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Se a avareza te angustia,
e a humildade te seduz...
Neste Natal que te guia,
tu serás luz de outra Luz!
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Sê feliz na caminhada,
esquece o bem que te fiz...
Nem sempre o fim de uma estrada
é o fim de quem foi feliz!
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Sei que a velhice me alcança;
e, entre uns sins e outros senões...
Enquanto houver esperança
vou cultivando ilusões!
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Toda Trova é linda flor,
flor que perfuma e inebria,
se a Trova é rosa de amor,
sou canteiro de poesia!

Fontes:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livros enviados pelo trovador.

Lima Barreto (Dentes negros e cabelos azuis)

A Edgard Hasselman


Era dos mais velhos, o conhecimento que eu mantinha com esse rapaz. Iniciadas na rua, nos ligeiros encontros dos cafés, as nossas relações se estreitavam dia a dia. Nos primeiros tempos, ele sempre me apareceu como uma pessoa inalteravelmente jovial, indiferente às pequeninas coisas do mundo, cético a seu modo; mas, em breve sob essa máscara de polidez, fui percebendo nele um queixoso, um amargo a quem uma melancolia, provinda de fugitivas aspirações impossíveis, revestia de uma tristeza coesa. Depois o seu caráter e a sua organização muito concorriam para sua dolorida existência. Muito inteligente para amar a sociedade de que saíra, e muito finamente delicado para se contentar de tolerado em outra qualquer, Gabriel vivia isolado, bastando-se a si e aos seus pensamentos, como um estranho anacoreta que fizesse, do agitado das cidades, ermo para seu recolhimento.

Às vezes ele nos surgia com uns ares de letrado chinês, lido em Sai-Tsê, calmo, superior, seguro de si e contente de se sacrificar à lógica imanente das coisas. Não dava um ai, não se lamentava, talvez temendo que o alarido de seus queixumes não desassossegasse a viagem do seu espírito “par-delà du soleil, par-delà de l’éther, par-delà des confins de sphères étoilées”.*

Um dia o encontramos, eu e mais alguns da roda, e a um deles que lhe perguntava: “Que tu vais fazer agora?” aludindo às consequências do último desastre da sua vida, Gabriel respondeu:

— Nada! O soberano bem não é agir.

Dias depois confessava-me o contemplativo que seguia idiotamente, pelas ruas e pelos bondes, os belos olhos negros de uma preceptora francesa.

Sua natureza era assim, dual, bifronte, sendo que os seus aspectos, por vezes, chocavam-se, guerreavam-se sem nunca se colarem, sem nunca se justaporem, dando a crer que havia entre as duas partes um vazio, uma falha a preencher, que à sua união se opunha um forte obstáculo mecânico...

Esta maneira biface de sua organização, a sua sensibilidade muito pronta e uma tentação delirante, para as satisfações materiais, tinham transformado a sua vida num acúmulo de desastres; pelo que, em decorrer dela, de todo se lhe fora aquela película cética, faceta, gaiata, ficando-lhe mais evidente a alegria e o sainete do filósofo pessimista, irônico, debicando a mentira por ter conhecimento da verdade, que é uma das povoadoras da imagem sem validade que é o mundo.

Pelos seus trinta e quatro anos, eu o procurava em sua casa, uma pequena casinha, numa rua da ponta do Caju, junto daquele mar de morte que beija as praias desse arrabalde, olhando defronte o cinzelado panorama das montanhas.

Não vivia mal, o emprego exigia pouco e dava relativamente muito; e solteiro, habitava a casinha com um africano velho, seu amigo, seu oráculo e seu cozinheiro; e um desgraçado poetastro das ruas, semilouco e vagabundo.

Era uma colônia de ratés animados pela resignação africana. Quando eu entrei em sua casa naquela tarde, a sua fisionomia irradiava. Pareceu-me que a iluminação interior que há muito sentíamos nele ia afinal exteriorizar-se. Seu rosto afinara-se, sua testa alongara-se, havia pelo seu olhar faiscações novas; era como se a graça descesse até ele, povoasse-lhe a alma e a enchesse de tal modo que se extravasasse pelo seu olhar brilhante, bondoso e agora calmo.

— Que tens hoje, fui lhe dizendo, a tua apaixonada rendeu-se ou achaste... o teu destino?

— Qual paixão, qual destino! interrompeu ele. O sábio não tem paixões para melhor poder contemplar a harmonia do universo.

E depois dessa sentença, não sei de que filósofo hindu ou chinês, ele me leu o seguinte, escrito com letra miúda e irregular em duas dezenas de tiras de papel almaço, cheias de paixão.

Morava eu nesse tempo em rua remota de uma estação de subúrbio afastado. Sem calçamento e mal iluminada, eu a trilhava a desoras em busca da casa reconfortante. Afazeres e, em geral, a exigência do meu temperamento pelo bulício, pela luz da cidade, faziam-me demorar nas ruas centrais. A esmo, por elas à toa, passeava, vagava horas e horas, olhando e conversando aqui, ali; e quando inteiramente fatigado, buscava o trem e durante uma meia hora, tímido, covarde, encostado a um canto, pensava, sofria à menor risota e o mais imbecil dito cortava-me a alma. Era a constante preocupação das minhas ideias passar meu sofrimento, a outra pessoa, evitá-lo detidamente a alguém.

Sob a pressão daquela mágoa eterna, no meu íntimo ficava o seu segredo exigente de comunicação, fosse mesmo a quem não tivesse o refinamento do meu espírito e que a substância imortal lhe animasse a vida, não tivesse sido adivinhado e me sentia impelido a comunicá-lo. Era nessas ocasiões que eu pensava no amor, mas... Bem depressa, porém, meu espírito se perdia, caía em devaneio, não encontrava deleite, sorria. Do homem ia aos cães, aos gatos, às aves, às plantas, à terra, em busca de confidente.

Uma vez, em frente ao mar augusto, verde e translúcido, tive desejos de lhe contar o meu segredo, mas logo o temor me veio de que os ventos voltassem, e trouxessem para a vasta cidade as minhas palavras, tal como a planta que nasceu à confidência feita à terra do feitio das orelhas do rei Midas.

Quando a percepção do meu estado, da maneira da minha existência, era mais clara aos meus olhos, arquitetava planos de fugas para lugares longínquos, livros vibrantes como indignações de Deus; mas nada disso executei. Qualquer coisa muito obscura na minha estrutura mental, talvez mesmo o sentimento da lógica da hostilidade de que me via cercado, impedia-me de reagir ativa ou passivamente. Agachava-me por detrás do meu espírito e então bebia em largos prantos o fogo claro, claro que enche os límpidos espaços e, por instantes, era feliz porque:

Heureux celui qui peut d’une aile vigoureuse
S’élancer vers les champs lumineux et sereins,
Celui dont les pensées comme des alouettes
Vers les cieux le matin prennent un libre essor
Qui plane sur la vie et comprend sans effort
Le langage des fleurs et des choses muettes.**


Depois de ter carinhosamente ouvido essa linguagem, a amargura aumentava. O espírito dirigia, reclamava, queria qualquer coisa, não se bastava a si mesmo, esperava na sua prisão, no seu cárcere; e, para o meu caso, oh! que blasfêmia, o provérbio se modificara: “não é só de espírito que vive o homem...”.

Certa noite, demorando-me mais do que de costume, fui saltar à estação pelas duas horas da madrugada. Tudo era mudo e ermo. Um ventinho constante soprava, inclinando as árvores das chácaras e agitando as amareladas luzernas de gás como espectros aterradores. As casas imóveis, caiadas, hermeticamente fechadas pareciam sepulcros com portas negras. A escuridão aconchegava os morros nas suas dobras. Pus-me a andar rapidamente. A rua pouco larga, bordada de bambuais de um e outro lado, iluminada frouxamente e abobadada no nevoeiro, era como uma longa galeria de museu. Em meio do caminho, alguém saltou-me na frente e, de faca em punho, disse-me:

— Olá! Passe o “bronze” que tem.

Não tinha francamente grande prática desses encontros, contudo me portei na altura da sua delicadeza. Calmamente tirei das algibeiras o pouco dinheiro que tinha e, de mistura com alguns cupons de bonde, pálido, mas sem tremer, entreguei-o ao opressor daquele minuto fugaz.

O gesto foi belo e impressionou o bandido, a tal ponto que nem por sonhos desconfiou que eu poderia ter deixado algum oculto pelos forros. Há, já se disse, mais ingenuidade nos grandes criminosos do que a gente em geral supõe. Quase com repugnância ele recebeu o maço que lhe estendia; e já se retirava quando a uma onda de luz que em um vaivém da chama de gás lançou-me, percebeu alguma coisa nos meus cabelos e com ironia indagou:

— Tens penas? És azul? Que diabo! Estes teus cabelos são especiais.

Ouvindo isso, eu o fitei com as pupilas em brasa e minha fisionomia devia ter tão estranha expressão de angústia que o ladrão fechou a sua e estremeceu. É que as suas palavras relembravam-me toda a minha existência envenenada por aquele singular acidente; as desastrosas hesitações de que ela ficara cheia; o azedume perturbador, ressaibo do ódio e de amarguras de que estava tisnado.

Os suplícios a que meu próprio espírito impunha. E de uma só vez, embaralhado tudo isso se ofereceu aos olhos como uma obsessão demoníaca, algo premente, cruel, vivendo em tudo, em todas as coisas, em qualquer boca, na boca de um ladrão.

— Pois até tu! Que mais queres de mim? disse-lhe eu. Acaso além do dinheiro que trazem nas algibeiras, mais alguma coisa te interessa nos transeuntes? És também da sociedade? Movem-te as considerações dela?

Olhei-o interrogativamente. O homem tinha o ar mudado. Os lábios estavam entreabertos, trêmulos, pálidos, o olhar esgazeado, fixo, cravado no meu rosto. Olhava-me como se olhasse um duende, um fantasma. Contendo porém a comoção, pôde dizer:

— Dentes negros! Meu Deus! É o diabo! É uma alma penada, é um fantasma.

E o rosto dele dilatava-se, as pupilas estendiam-se; tinha os cabelos eriçados o homem que me assaltava; e desandaria a correr se o medo não lhe pusesse pesadas toneladas nas pernas.

Esteve assim minutos até que percebeu que a expressão do meu rosto era de choro e que nele havia a denúncia de uma grande mágoa fatal. O meu interlocutor transmudou as contrações de horror estampadas nas suas feições, abrindo-as num dúlcido sorriso de bondade.

— Desculpa-me. Desculpa-me. Não sabia. Quem não sabe é como quem não vê.

E sem ligação continuou:

— Não me creias um miserável gatuno de estradas, um comum assaltante de ruas. Foi o momento que me fez. Emprego-me em mais altos “trabalhos”, mas preciso de uns “miúdos” e, para obtê-los, o meio se impunha. Se me demorasse, a ocasião perdia-se. Bem sabes, a vida é um combate; se não se fere logo, morre-se. Mas... Deus me ajudará. Toma o teu dinheiro. Arranjarei sem ele como iniciar o meu grande “trabalho”, aquele que é a mira, o escopo da minha existência, que me vai dar, enfim, o descanso (resplandecia), a consideração dos meus semelhantes e o respeito da sociedade. Vai... Tu és sem esperança. Vai-te... Desculpa-me.

Aqueles meus cabelos azuis, cabelos que eram o suplício da minha vida, e aqueles meus dentes negros compuseram-se, dignificaram-se para sorrir ao herói jovialmente, de reconhecimento e ternura.

— Mas quem te faz sofrer, rapaz? perguntou-me o desconhecido.

— Ninguém, falei-lhe eu, ninguém. É o meu espírito, meu entendimento, é a representação que ele faz do mundo circundante.

Íamos nos separar, quando ainda ele insistia:

— Com isso deves sofrer muito?

Dessa vez, antes de lhe responder pensei ligeiramente. Quem seria aquele homem? Vê-lo-ia ainda uma vez? Nunca mais, era certo. Depois daquele minúsculo incidente de sua carreira, continuaria inflexivelmente na sua grande missão sobre a terra. Teria todo o interesse em me fugir, em desaparecer dos meus olhos, ou senão, reconhecido, se eu encontrando não o denunciasse, ligar-se-ia a mim pela gratidão. Por que, sendo assim, não havia eu de lhe contar o meu segredo? Ouviria, não compreenderia bem; se o quisesse contar a outrem as palavras me faltariam. Certo disso e de que naquele indivíduo a ternura não era um jogo de sociedade, nem uma forma de elegância, quase espontaneamente, pus-me a lhe narrar a minha desventura:

— Dói-me, sim! Dói-me muito. É o demônio que me persegue, é o perverso desdobramento da minha pessoa. É uma companhia má, amarga, tenaz que me esporeia e que me retalha. Ela vai junto a mim, bem junto, no caminho que trilho, haja luz ou haja trevas, seja povoada ou deserta a estrada. Não me abandona, não me larga. Dorme comigo, sonha comigo; se me afasto um instante dela ela volta logo, logo, dizendo-me ao ouvido baixinho, com um cício cortante: estou aqui! É um símio irritante que me faz carantonhas e me vai às costas, pula na minha frente, dança, esperneia.

O ladrão tinha agora outra espécie de espanto: era o espanto das palavras, das altas palavras. A sua grosseria nativa, primordial, sem limitações de qualquer educação, ia por elas alto, entendendo-as a meio, seu espírito aguçava-se e penetrava melhor no meu.

— Se, em dia claro e azulado, continuei, vou por entre árvores, crendo-me só, e feliz, o miserável rafeiro que passa deixa a inexorável busca do osso descarnado, para olhar as caretas do símio em que me desdobro, e ri-se de mim, meio espantado, mas satisfeito. Então, como por encanto o caminho se povoa. Há por toda parte zumbidos, alaridos, risotas. Do farfalho das árvores ouço: Olá, tingiste a cabeça no céu; mas onde enlameaste a boca? Os seixos rolam, crepitam, e na sua vileza não escolhem palavras, não ensaiam deboches, gritam: monstrengo, vergonha da terra.

O gatuno analisava-me a fisionomia. Detinha-se nos meus olhos, no meu nariz, nos meus lábios, até as minhas mãos, os meus pés mereceram a análise do seu olhar inquieto. Foi por esse tempo que me lembrou reparar quem estava na minha frente. Era um homem alto, de largas espáduas, membrado, e que em “sotaque” espanhol, me falou ainda:

— Tu és poeta. Fantasias... Vês demais.

— Talvez que a minha sensibilidade... Mas não, não! Meu organismo não mente, fala a verdade: é como o microscópio a descobrir um mundo hostil onde nada se vê, retorqui eu...

— Não andas por aí, pelos teatros, pelos cafés — como então é possível isso? inquiriu ele.

A pergunta me atrapalhava; era da minha natureza, estas contradições ostensivas, entretanto pude lhe responder:

— É verdade..., mas palmilho tais lugares escravo do meu gênio, servo dos meus sentidos, que são inimigos do meu corpo; posso fugir deles, mas muito me custa seguir o curso imperioso dos meus nervos. Não sei... Não sei... Eu devia fugir, desaparecer, pois mal ando passos, mal me esgueiro numa travessa, das gelosias, dos mendigos, dos cocheiros, da gente mais vil e da mais alta, só uma coisa ouço: lá vai o homem de cabelos azuis, o homem de dentes negros... É um suplício!

Tudo se apaga em mim. Isso unicamente brilha. Se um amigo quer referir-se a mim em conversa de outros, diz: aquele, aquele dos dentes negros... Os meus sonhos, as minhas leituras são povoados pelos momos do símio. Se escrevo e faltam sílabas nas palavras, se estudo e não compreendo logo, o sagui salta-me na frente dizendo com escárnio: — fui eu que a “cumi”, fui eu que não te deixei compreender...

Meu peito arfava, meus olhos deviam brilhar desusadamente. A animação passava de mim ao ouvinte. Ele todo vibrava às minhas palavras...

— Mas trabalha, sê grande... combate, aconselhou-me.

— Bom conselho, bom... Ah! Como és mau estrategista! Não percebes que não me é dado oferecer batalha; que sou como um exército que tem sempre um flanco aberto ao inimigo? A derrota é fatal. Se ainda me houvesse curvado ao instituído, podia... Agora... não posso mais. No entanto tenho que ir na vida pela senda estreita da prudência e da humildade, não me afastarei dela uma linha, porque à direita há os espeques dos imbecis, e à esquerda, a mó da sabedoria mandarinata ameaça triturar-me. Tenho que avançar como um acrobata no arame. Inclino-me daqui; inclino-me dali; e em torno recebo a carícia do ilimitado, do vago, do imenso. Se a corda estremece acovardo-me logo, o ponto de mira me surge recordado pelo berreiro que vem de baixo, em redor aos gritos: homem de cabelos azuis, monstro, neurastênico. E entre todos os gritos soa mais alto o de um senhor de cartola, parece oco, assemelhando-se a um grande corvo, não voa, anda chumbado à terra, segue um trilho certo cravado ao solo com firmeza — esse berra alto, muito alto:

“Posso lhe afirmar que é um degenerado, um inferior, as modificações que ele apresenta correspondem a diferenças bastardas, desprezíveis de estrutura física; vinte mil sábios alemães, ingleses, belgas, afirmam e sustentam”... Assim vivo. É como se todo dia, delicadamente, de forma a não interessar os órgãos nobres da vida, me fossem enterrando alfinetes, um a um aumentando cada manhã que viesse... Até quando será? Até quando? fiz eu exuberante.

Uma rajada mais forte do vento que soprava quase apagava o combustor próximo. Ao cantar dos galos já se juntava a bulha do rolar de carroças na rua próxima. O subúrbio ia despertar.

Despedi-me do salteador. Andara alguns passos e como me parecesse que me chamavam, voltei-me e dei com a figura retangular do ladrão, agitando-se ao meneio de sua cabeça, como a venerável bandeira de misericórdia das execuções.

Pelos anos em fora, pelos dias iguais e monótonos que minha vida presenciou, mais fundo que essa incurável mágoa muito sofrida na mocidade, doeu-me à minha alma mais, muito mais a sincera piedade que inspirei àquele homem.
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Notas: (Versos de “Elévation”, de Charles Baudelaire.)

*Além do sol, além dos éteres, Além dos confins das esferas estreladas, –

**Abençoado é aquele que pode com uma asa vigorosa
Elevar em direção aos campos brilhantes e serenos;

Aquele cujos pensamentos, como cotovias,
Em direção aos céus pela manhã voam livremente,
- Que paira sobre a vida e compreende sem esforço
A linguagem das flores e das coisas silenciosas!



Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama. Publicado originalmente em 1920.

Minha Estante de Livros (“Arsène Lupin, o ladrão de Casaca”, de Maurice Leblanc)


Arsène Lupin, Ladrão de Casaca é uma coletânea de nove histórias do escritor francês Maurice Leblanc que constituem as primeiras aventuras de Arsène Lupin. Surgiu em 1907 com o título francês Arsène Lupin, gentleman-cambrioleur — literalmente, Arsène Lupin, ladrão-cavalheiro — por encomenda para a revista francesa Je sais tout: Pierre Lafitte, o editor da revista, encomendou a Maurice Leblanc uma novela policial, cujo herói fosse para a França o que eram para a Inglaterra Sherlock Holmes (de Sir Arthur Conan Doyle) e A. J. Raffles ao mesmo tempo.

Nasceu assim Arsène Lupin, personagem vivo, audacioso, impertinente, desafiando sem cessar o Inspetor Ganimard, arrastando corações atrás de si, zombando das posições conquistadas e ridicularizando os burgueses, socorrendo os fracos, Arsène Lupin é um Robin Hood da Belle Époque.

Como não poderia deixar de ser, Lupin se defronta diversas vezes com o maior detetive de todos os tempos, seu rival "Herlock Sholmes" (nome de Sherlock Holmes na obra de Leblanc; nas primeiras edições não havia tal modificação, mas teve de ser feita após protestos de Conan Doyle), e cria várias situações embaraçosas para o grande detetive de Doyle. Lupin tinha uma característica peculiar: avisava sempre a vítima antes do roubo. Mas, independentemente dos esforços da polícia, Lupin sempre "adquiria" o que queria.

Nas palavras de Pierre Lazareff, "Um Robin Hood bem francês: não se leva muito a sério; sua arma mais mortífera é o engenho; não é um aristocrata que vive como anarquista, mas um anarquista que vive como aristocrata."

A série foi adaptada várias vezes ao cinema: Arsène Lupin détective (1937), com Jules Berry; Les Aventures d'Arsène Lupin (1956) de Jacques Becker, com Robert Lamoureux; Arsène Lupin contre Arsène Lupin (1962) de Édouard Molinaro, sendo também famosa a série televisiva baseada na obra em causa. Ladrão de Casaca, de 1955, do diretor Alfred Hitchcock com Cary Grant e Grace Kelly.

Este livro reúne as nove histórias A prisão de Arsène Lupin, Arsène Lupin na prisão, A fuga de Arsène Lupin, O viajante misterioso, O colar da rainha, O sete de copas, O cofre de Madame Imbert, A pérola negra e outros. Quando Lupin é preso ao descer do navio em Nova Iorque, seu biógrafo já o acompanha, pois Watson sempre acompanhará Sherlock Holmes. A diferença é que aqui é o próprio Maurice Leblanc quem se transforma em personagem para contar as aventuras do protagonista de sua invenção.

A coletânea agrupa as seguintes histórias:

A prisão de Arsène Lupin,
publicação original em 15 de julho de 1905. Ao desembarcar nos EUA de uma viagem no transatlântico Provence, o “ladrão de casaca” Arsène Lupin — “o incansável ladrão cujas proezas enchiam as páginas dos jornais havia meses [...] o caprichoso gentil-homem que só operava nos castelos e nos salões [...] o homem dos mil disfarces” — é preso por seu arqui-inimigo, o inspetor Ganimard. Mas graças ao seu poder de sedução, consegue se desvencilhar antes das “provas do crime”, dinheiro e joias furtados durante a travessia marítima.

Arsène Lupin na prisão,
publicação original em 15 de dezembro de 1905. Mesmo trancafiado atrás das grades, Arsène Lupin, através de um estratagema, consegue surrupiar obras de arte valiosas (dois Rubens, um Watteau etc.) do castelo "inexpugnável" do Barão Cahorn.

A evasão de Arsène Lupin,
publicação original em 15 de janeiro de 1906. Arsène Lupin cria uma expectativa de que fugirá da prisão e, fazendo-se passar por outra pessoa (o pobre-coitado Baudru Désiré), acaba conseguindo sair de lá.

O viajante misterioso,

publicação original em 15 de fevereiro de 1906. Em viagem de Paris a Rouen, Arsène Lupin (sob o pseudônimo Guillaume Berlat) sofre uma agressão e assalto, mas depois ajuda a polícia (embora a rigor ele próprio seja procurado pela polícia!) a prender o ladrão: o assassino Pierre Onfrey.

O colar da rainha,
publicação original em 15 de abril de 1906. Numa noite após uma recepção, o lendário “colar da rainha” (que pertenceu a Maria Antonieta) desaparece misteriosamente da mansão do conde e condessa de Dreux-Soubise. Anos depois, em almoço em casa do casal, um tal de cavalheiro Floriani, que o conde conhecera na Sicília (mas que na verdade é Arsène Lupin sob um de seus muitos disfarces) elucida o mistério.

O cofre-forte da Sra. Imbert,
publicação original em 15 de maio de 1906. Primeiro golpe da "carreira" de Arsène Lupin, verdadeiro "batismo de fogo", e a primeira vez que ele usa este nome. De olho na suposta fortuna do casal Imbert, Lupin trama um ataque noturno contra o Sr. Ludovic e finge salvá-lo. Este, agradecido, contrata Lupin como seu secretário particular, que se aproveita da situação para assaltar o cofre-forte. Só que os títulos lá guardados eram falsos! "Foi a única vez, durante toda a minha vida, que fui logrado. Mas, com todos os demônios, essa vez valeu por muitas e boas!"

Herlock Sholmes chega tarde,
publicação original em 15 de junho de 1906. Observe-se que, entre a publicação no periódico e a publicação na coletânea, Sherlock Holmes tornou-se Herlock Sholmes, em virtude de um protesto de Conan Doyle. Primeiro encontro entre o "ladrão nacional" francês Arsène Lupin e o "grande policial inglês [...] Herlock Sholmes, o mais extraordinário decifrador de enigmas", girando em torno de uma passagem secreta, cujo segredo se perdeu com o tempo, que dá acesso ao castelo de Thibermesnil, cujos tesouros são cobiçados por Lupin (aqui sob o pseudônimo de Horace Velmont).

A pérola negra,

publicação original em 15 de julho de 1906. Arsène Lupin penetra no apartamento da viúva Zalti, condessa de Andillot, com o intuito de roubar a pérola negra, presente de um imperador. Depara com seu corpo, assassinada, e constata que a pérola desapareceu. Tempos depois Lupin extorque a pérola do ladrão e assassino, que havia sido absolvido pela Justiça, por falta de provas.

O sete de copas,
publicação original em 15 de maio de 1907. Fatos estranhos e inexplicáveis ocorrem na casa do narrador (Maurice Leblanc), a qual, à sua revelia, servia de esconderijo dos planos roubados do submarino Sete de Copas. As investigações o levam a descobrir que seu amigo Jean Daspry na verdade é Arsène Lupin, de quem se torna biógrafo. "E eis como conheci Arsène Lupin. [...] Eis como estabeleci laços de amizade muito agradáveis com o nosso grande homem e como, pouco a pouco, graças à confiança com que ele se digna honrar-me, me tornei seu mui humilde, mui fiel e mui reconhecido historiógrafo."

Fonte:
Wikipedia
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ladr%C3%A3o_de_Casaca

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Versejando 82

 

Dorothy Jansson Moretti (E o Verão Que não Chega)

Curitiba - além de capital do Paraná — é capital de muita coisa bonita; capital do verde, capital das flores, capital do Natal… mas  também —infelizmente—capital de uma coisa até bonita, mas extremamente desagradável: o inverno!

Estou aqui desde Março, e nesse tempo todo nunca pus um vestido leve, e com exceção do dia 25 de Outubro, quarta-feira passada, nunca pude dormir sem meias.

Lembro-me que em anos passados eu não podia vir a Curitiba no inverno. A pele das mãos e dos pés parda-se, chegando ate a sangrar. Somente após meu longo "estágio" de vinte anos em São Paulo (que em matéria de frio pouco perde para Curitiba), é que consegui, não digo acostumar-me, mas pelo menos suportar o frio incenso desta capital sem outros problemas que tremores e pés frios.

Há uma velha piada segundo a qual alguém, de fora, contava que em seu lugar de origem o tempo era tão instável que frequentemente as quatro estações do ano aconteciam num dia só. Ao que um curitibano replicou: "Pois nós aqui, ao contrário, só temos duas estações; a Rodoferroviária... e o inverno…

E esta outra: Um forasteiro perguntou a um nativo deste frigorífico há quanto tempo fora o último verão em Curitiba. Ele pensou, pensou, e respondeu: "Eu não me lembro direito… faz tanto tempo, mas... se não me engano, caiu num domingo..."

Eu também posso afirmar convictamente que este ano o verão aqui, caiu numa quarta-feira, precisamente no dia 25 de Outubro, a quarta-feira passada.

(O Guarani — 11/11/1989)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XVII

A dor que tememos tanto
pode ser a dor de dente,
rega a face com seu pranto
numa chuva deprimente.
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A lembrança nos transporta
pelas asas da saudade,
sem querer nos abre a porta
da mais remota amizade.
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Aos menos afortunados
Deus possa lhes compensar,
deixando-os mais amparados
felizes a descansar.
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As migalhas de alimento
que sobram na nossa mesa,
podem se tornar sustento
às aves na natureza.
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As obras esculturais
são belas por seus entalhes,
embora miniaturais
engalanam nos detalhes.
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Dizem que o mundo termina
e que o fim já vai chegar,
só por vontade divina
tudo pode terminar.
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Em cada momento nasce
a renovada esperança,
de que o próximo não passe
sem provocar a mudança.
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Em novembro recordamos
nossos entes falecidos
e em dezembro celebramos
o maior dos já nascidos,
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Lá, não tem o que tem cá,
cá faz sol no tom da flor,
som que paz ao ser lhe dá
não só luz, mas bem mais cor.
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Muitas vezes, nada temos,
para mudar tudo quanto,
deixa triste e pouco vemos
senão dores, muito pranto.
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Não confunda marceneiro
pensando ser mercenário,
o trabalho do primeiro,
no segundo é secundário.
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Nosso coração não pensa
nem foi feito pra pensar,
se a pulsação fica tensa
dor de cabeça vem dar.
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Nunca percas a esperança
e a força de quem enfrenta,
com luz à estrada e se lança
sem ir além dos "oitenta".
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Persistentes, combatemos,
imbatíveis lutadores,
combatentes, pretendemos
terminarmos vencedores.
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Quando a janela se abrir
do nosso magno saber,
todos vamos descobrir
maravilhas do viver.
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Que ama, todo mundo diz,
mesmo não sendo verdade.
No mundo, quer ser feliz?
Ame e dê felicidade...
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Quem da fonte se aproxima
água pretende beber,
pra sede que o desanima
também desaparecer.
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Quem passar por este mundo
sem mostrar por que passou,
vê que o sonho mais profundo
de viver nunca alcançou.
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Silêncio da madrugada,
para muitos, medo traz
e à noite toda estrelada
é a grande fonte de paz.
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Tal a pérola escondida
nas profundezas do mar,
é o saber em nossa vida
que nos leva a procurar.
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Tantos focos reluzentes
sempre brilham no Natal,
muitos lembram dos presentes
e esquecem do principal.
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Ter medo duma serpente
talvez seja natural.
Mas da minhoca, temente,
nada tem de tão normal.
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Todos quantos forem vistos
buscando o conhecimento,
nos livros lidos, revistos,
sejam o aporte ao talento.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Raul Pompéia (Antes e depois)

I
 
O salão entornava luz pelas janelas. No sofá, bocejava a boa gorducha d. Maria, digerindo sonolentamente o quilo do jantar. O seu digno consorte, o desembargador, apreciava o fresco da noite à janela, sugando com ruído a fumaça de um havana, com os olhos nos astros e as mãos nas algibeiras. Perto do piano, arrulavam à meia-voz Belmiro e Clara... Já se sabe: dois pombinhos...

O Belmiro estudava; tinha futuro, portanto; Clara... tocava e cantava...

II

— Belmiro, disse o desembargador, atirando à rua a ponta do charuto, manda Clara cantar...

— Cante, d. Clara, pediu Belmiro.

Clara cantou... Cantou mesmo? Não sei. Mas as notas entraram melífluas pelos ouvidos de Belmiro e foram cair-lhe como açúcar no paladar do coração...

— Esplêndido! esplêndido! dizia ele, fazendo chegar a umidade do hálito à face rosada da meiga Clarinha...

O desembargador olhava outra vez para os astros...

III

Rola o tempo...

Numa casinha modesta de S. Cristóvão, mora o dr. Belmiro com sua senhora d. Clara... Os vizinhos dizem coisas... ih!

IV

— Como vais, Belmiro?

— Mal!

— Mal?... disseram-me que te casaste com a tua Clarinha...

— Sim! sim!... mas, queres saber... de amor ninguém vive; é de feijões...

— Então...

— Devo até a roupa com que me cubro!...

— E o dote?

— Ah! ah! adeusinho...

V

É noite.

D. Clara está ao piano. Um vestido enxovalhado escorre-lhe da cintura abaixo, sem um enfeite. D. Clara está magra. No chão arrasta-se um pequenote de um ano, com uma camisolinha porca amarrada em nós sobre o cóccix.

Clara toca; e não canta, porque tem os olhos vermelhos e inflamados...

O dr. Belmiro vem da rua zangado.

— Não sei o que faz a senhora, gastando velas a atormentar-me!... Mande para o diabo as suas músicas e vá-se com elas!

Fonte:
A Comédia. São Paulo, n. 66, 21 maio 1931. Série "Uma história por dia". 
Disponível em Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Técnicas de leitura: aprenda como ler mais rápido e melhor

Para conciliar todas as atividades e ser capaz de dar conta do cronograma de estudos, é possível adotar algumas técnicas de leitura para ler melhor e com mais velocidade. Já pensou nisso? Para ajudá-lo, vamos explicar a importância de ler mais rápido e como fazer isso com eficiência! Confira!

Por que ler mais rápido?
Ler mais rápido pode proporcionar a você o aumento da sua motivação. Sabe por quê? Quanto maior for o seu rendimento, mais motivado se sentirá para continuar lendo.

Outra razão para você ter vontade de ler mais rápido é que, quanto maior for a sua velocidade de leitura, mais conteúdos fixará. Mas essa leitura deve ser feita com cuidado, sem deixar que qualquer informação passe despercebida.

Por fim, essa é uma habilidade que será muito útil em toda a sua vida e não só no período antes do vestibular. Na faculdade, você terá mais disposição para ler todos os textos recomendados pelos professores e não verá isso como um problema, porque saberá adotar as melhores técnicas de leitura. Caso pretenda fazer um concurso público mais tarde, vai tirar de letra o estudo dos conteúdos indicados.

Como ler mais rápido?
Se você percebe que apresenta dificuldade para engatar e ter um ritmo adequado de leitura, não se preocupe. Essa é uma prática que pode ser treinada e aprimorada. Talvez esse seja um dos motivos para muitas pessoas afirmarem não gostar de ler. Na verdade, o problema é a falta de conhecimento de técnicas de leitura.

Para você ter uma ideia, um adulto costuma ler cerca de 200 palavras por minuto. No entanto, de acordo com as demandas e, principalmente, após entrar na faculdade, é bastante comum que o número de palavras aumente para cerca de 300.

Isso mostra que uma leitura melhor envolve a questão de torná-la um hábito. Você precisa exercitar o seu cérebro e os seus olhos, porque quanto mais treinar, melhores serão os resultados.

Então, vamos colocar a mão na massa? Abaixo, apontamos algumas técnicas de leitura que vão auxiliá-lo a ler mais rápido e melhor!

Concentre-se apenas na leitura
Primeiramente, quando for ler algo, é preciso se concentrar apenas nessa atividade. Se a TV estiver ligada e o celular apitando do lado, você vai prestar atenção em tudo, menos no que deveria estar lendo.

Quando nos concentramos, a velocidade de leitura aumenta e, consequentemente, melhor será a compreensão e a memorização do conteúdo.

Portanto, vá para um ambiente tranquilo e livre-se de distrações quando for o momento de estudo e leitura. Desse modo, você perceberá como o seu rendimento será bem melhor.

Tenha uma postura adequada
Outra dica que vai influenciar na sua capacidade de ler mais e melhor é a postura adotada. Nós sabemos muito bem que pode ser muito confortável ler deitado, porém é a forma que vai te cansar mais rápido ou dar sono.

Por isso, vá para uma mesa e sente-se com a coluna ereta. Assim, você não sentirá desconfortos ou sonolência.

Leia um livro de cada vez
A leitura de mais de um livro pode fazer com que o seu cérebro se confunda. Ao se dedicar a apenas uma obra por vez, a sua capacidade de concentração naquela história será maior e, assim, terá uma compreensão mais qualificada do conteúdo.

Não releia trechos
É comum que, durante alguns momentos de leitura, percamos a atenção e, de uma hora para outra, percebamos que não nos lembramos do que foi lido nos últimos parágrafos. Mas se você achou que a solução para isso é reler os trechos, está enganado.

Essa tática atrasaria o seu rendimento e não seria tão benéfica para a memorização do texto. O ideal é seguir a leitura, pois, certamente, o que foi dito voltará a ser contemplado em algum momento.

Leia grupo de palavras
Vá aumentando, aos poucos, a quantidade de termos que contempla durante a leitura. Por exemplo, há quem vá lendo palavra por palavra. Nesse caso, estenda o seu campo de visão e passe a ler grupos de palavras. Essa é uma das técnicas de leitura que vai ajudá-lo a assimilar mais informações em menos tempo.

Pesquise antes sobre o conteúdo a ser lido
Outro procedimento que pode ser muito útil para aumentar a velocidade da leitura é pesquisar antes sobre o tema do texto ou livro. Isso facilitará o entendimento do assunto e o deixará mais preparado para o que pode ser abordado. Desse modo, invista, antes, na leitura da introdução, tópicos, capítulos ou resumos. O conhecimento prévio deixará a sua mente mais preparada para entender o tema da obra.

Não pronuncie as palavras
A leitura silenciosa é muito mais efetiva do que ler o texto em voz baixa. Isso se deve ao fato de que, quando você está lendo em voz alta, faz com que o seu cérebro gaste um tempo maior para assimilar a informação.

Utilize um dicionário
Essa dica é muito importante, porque ajuda a aumentar o vocabulário. É comum encontrar palavras das quais desconhecemos o significado, o que influencia no entendimento do conteúdo.

Com o dicionário, você tira as suas dúvidas sobre alguns termos e eleva a capacidade de compreensão. Isso vai ajudá-lo a ler melhor e com mais velocidade. Inegavelmente, você deve interpretar os textos com qualidade e reduzir o tempo de leitura para ser mais produtivo.

Respeite os próprios limites
Você pode adotar as melhores técnicas de leitura do mundo, mas não vai ter um bom rendimento caso não saiba o momento em que precisa dar um descanso para o corpo e a mente. Ao estar cansado, perderá capacidade de concentração e de assimilar as informações contidas no texto.

Essa situação acabará o obrigando a ler novamente a publicação, o que resulta em perda de tempo. Procure se dedicar a leitura em um período do dia em que está mais descansado e capaz de compreender o significado do conteúdo.

Ler mais rápido também envolve o seu estado físico e mental. Não adianta apenas passar os olhos em uma matéria de revista; é preciso captar as informações mais relevantes para adquirir conhecimento.

Adote a técnica de scanning
O scanning é um recurso utilizado no inglês instrumental e procura, inicialmente, identificar as palavras-chave, ou seja, os termos mais relevantes de um texto para facilitar a compreensão do assunto abordado.

Essa é uma das técnicas de leitura mais eficientes, pois permite um foco somente na parte do texto que julgar interessante. Por exemplo, você está lendo um artigo sobre as carreiras com mais destaque no mercado de trabalho.

Porém, você está interessado apenas em aprofundar o conhecimento sobre medicina e odontologia. Ao usar o scanning, identificará os dados sobre essas duas áreas com mais facilidade, o que ajuda a ler mais rápido e a fixar o conteúdo.

Opte pelos resumos
De que maneira constatar que as técnicas de leitura estão apresentando um bom resultado na compreensão dos textos? A resposta envolve a elaboração de resumos sobre o que você acabou de ler.

Não precisa fazê-los em um caderno — você pode gravá-los. Contar para si mesmo o que entendeu de um assunto é uma alternativa válida para analisar o próprio desempenho e ter mais incentivo para ler mais rápido.

À medida que for avançando na capacidade de memorizar as informações relevantes, você poderá fazer novos testes para aumentar a velocidade da leitura e assimilar novos conteúdos com extrema rapidez. Lembre-se de que os resumos são essenciais para aumentar o seu potencial de obter conhecimento.

Tenha foco na prática
O planejamento é primordial para atingir os objetivos, não é mesmo? Por isso, reserve um período do dia para ler publicações que sejam interessantes no momento para você.

Essa medida vai ajudá-lo a verificar as técnicas de leitura mais adequadas para apresentar um desempenho notável. Com certeza, a organização e o foco em resultados contribuirão para ler com mais produtividade e em menos tempo.

Cronometre o seu tempo de leitura
Como você saberá que realmente está melhorando o desempenho? Cronometrando quantas páginas consegue ler em determinado tempo. Assim, ao ter ciência do tempo gasto, adotará um parâmetro para superar os próprios limites.

Viu só como é possível ler mais rápido e melhor? Basta colocar em prática as técnicas de leitura apresentadas. Em pouco tempo, você logo perceberá os resultados! É importante, porém, que você torne essas dicas em hábitos o quanto antes, de modo que se torne algo fácil e recorrente em sua vida!

O conhecimento é peça-chave para vencer desafios e evoluir a cada dia!

Fontes:
FARO – Faculdade de Rondônia
https://faro.edu.br/blog/tecnicas-de-leitura-aprenda-como-ler-mais-rapido-e-melhor/
Imagem obtida no site Pinterest

domingo, 17 de outubro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 11: João Freire Filho

 

Júlia Lopes de Almeida (In extremis)*

– Estás pronta, Laura? perguntou o doutor Seabra, entrando no quarto de toilete da esposa.

– Estou... só me faltam as luvas... Como me achas?

– Linda!

Ele não mentia: a mulher parecia-lhe ainda mais formosa e mais fresca, com o seu vestido azul claro, muito leve, e o chapeuzinho de rendas finas bem pousado na cabeleira loira, de ondas largas. Ela sorriu, contente, pulverizando-se com white rose**; ele franziu as sobrancelhas grisalhas, percebendo, através da carnação delicada da sua mulherzinha, um íntimo estremecimento de vaidade satisfeita.

– O carro está na porta? perguntou a moça com modo distraído, mirando-se toda num grande espelho e a passar, num último toque vaporoso, o pompom de veloutine*** pelo pescoço branco e perfeito.

– Está... e lá tens o ramo de rosas que pediste...

– Como és bom!...

– Hoje as corridas devem ser muito animadas. O tempo está lindo!... Levas a pequenina?

– Não. Mamãe toma conta dela, já a mandei para lá... Sabes? Estou hoje com tanto leite!... Tenho medo de manchar o vestido... que vergonha se...

– Escuta, interrompeu ele; antes de irmos para o Derby, parece-me que deveríamos entrar um pouco em casa do Bruno Tavares...

O doutor Seabra sentara-se atrás da mulher e contemplava-a no espelho, com olhar prescrutador e vigilante. Viu-a estremecer; fez uma pausa; ela suspendeu o pompom, à espera da conclusão. Ele acabou por fim.

– O Bruno está muito mal... creio mesmo que não escapará!

Laura voltou-se, muito pálida, com os olhos esgazeados e os beiços trêmulos. O marido baixou o olhar, entristecido. Havia muito tempo já que ele sabia quanto amor a esposa consagrava ao Bruno. O seu ciúme de marido não explodira nunca, mas concentrava-se, cada vez mais amargo, no fundo do coração. O outro era moço, ele já se avizinhava da velhice; o outro era um sonhador, um idealista, simpático à imaginação ardente de Laura; ele era um homem de ciência, materialista, descrente, já sem forças para encantar ninguém. Conhecia, estudava sem tréguas o espírito e o coração da mulher e confiava nela.

Laura era honesta, dedicada, e abafava com ânimo forte o seu amor pecaminoso, nas dobras de um manto de virtude e de sacrifício. Ele sabia que o Bruno não se declarara nunca, mas que o que os lábios calavam respeitosamente diziam o olhar, a sua pele quente, o som de sua voz moça e o arrojo da sua fantasia de apaixonado!

Quantas vezes o doutor Seabra, fingindo ler os seus livros de estudo, auscultava de longe aqueles dois corações, que se conservavam ali, um em frente do outro, mudos e ternos, enquanto as bocas falavam de poesia e de flores, de luar e de música, de aves e de estrelas, de tudo que brilha, que alegra, que entusiasma e que une as almas apaixonadas.

Eles liam juntos, contavam-se cenas da infância, alegremente, com interesse mútuo; e o doutor Seabra passava as páginas secas do seu livro tremulamente, com os olhos úmidos e o coração pesado. Tinha medo de intervir, calava os seus receios, esperando sempre uma solução ou um meio de levar a sua Laura para outras terras, sem mostrar o seu zelo, com vergonha de parecer ridículo ou de ofender a esposa. Ela era trêfega, graciosa, mas firme. Mesmo naquele dia, ele compreendia bem que toda a sua graça, todo o seu perfume, toda a sua gentileza se dirigiam ao outro, que esperava encontrar nas corridas, na arquibancada...

Eram para o outro a doçura do seu ramo de rosas, o mimo das suas rendas finas, o colorido branco da sua toilete primaveril! Voavam para o outro todo o seu pensamento, toda a sua vontade, toda a sua alegria!l
Laura continuava pálida, suspensa.

– Quem me disse isto foi o médico – continuou o marido. Como és amiga da família lembrei-me que desejarias talvez ir lá...

– Sim!... vamos, vamos!

Desceram. O dia estava esplêndido, passavam carros cheios de moças para as corridas. Sorria o sol, dourando o espaço, e o rumor de um domingo festivo alegrava as ruas.

Laura sentou-se muito calada, apertando nas mãos com desespero o seu ramo de flores. O marido sentia-lhe a dor através do silêncio e do olhar parado de quem vê fantasmas...

Tinha pena dela, dessa pobre amante virtuosa, sonhadora e casta. Falecia-lhe a coragem de perturbar-lhe a mágoa e o pensamento com uma palavra ou um simples gesto.

Aquela piedade singular enchia-o de pasmo, a ele mesmo!

Ela parecia-lhe agora um pouco sua filha, embora a adorasse como mulher! Era tão moça, tão inexperiente, mas tão meiga, tão dócil, que se julgava com o supremo direito de a conduzir com carinho, na solicitude amável de um pai. Compreendia a firmeza do caráter da moça, sabia que ela preferiria morrer a enganá-lo grosseiramente e que toda a sua paixão pelo Bruno era feita de imaginação e de sonho!

A culpa não era deles, mas sua, que já tinha cabelos brancos, as falas amortecidas, o espírito inquietado por atribulações diferentes. A morte daquele pobre rapaz era um alívio para o seu coração. Desaparecido ele, teria morrido a causa do seu ciúme amargo e irremediável. Laura continuaria por longo tempo a amá-lo nas suas orações, através das estrelas, mas o tempo viria sossegadamente atenuar-lhe as saudades... e tudo acabaria em doce paz. Se o outro não sucumbisse... ele então arrastaria a esposa para bem longe, sem que ela desconfiasse por que, temendo entretanto a luta e descrente da vitória!

Sentia que o pensamento dos dois unir-se-ia sempre através das distâncias, arrastados pelo mesmo ideal, pelo mesmo ardor e pela mesma esperança! Sim, só a morte, a morte bendita, poderia cortar com as suas asas frias aquele amor nascente...

Quando o carro parou, Laura desceu sem esperar auxílio e correu para a casa do Bruno. Dentro havia um silêncio triste, um ar de túmulo...

A mãe do moço apareceu-lhes chorando. O filho desenganado pelos médicos; e descreveu os horrores da febre que o levava assim, rapidamente.

– De mais e mais ele nega-se a todo o alimento, dizia a pobre senhora; só consegue tomar leite... Os médicos mandam-no tomar leite de peito, tenho chamado amas... umas não querem dar-lhe o seio, outras recusam-se a tirar o leite com a bomba! E o meu filho morre... meu filho morre!

Laura olhou para o esposo; conservavam-se mudos um em frente ao outro. A dona da casa levou-os por fim para o quarto do doente.

O moço, enterrado entre as dobras dos lençóis, pareceria dormir se não movesse continuadamente os lábios muito secos. Exalava-se de todo o seu corpo um calor intensíssimo de febre. A irmã mais velha vigiava-o solicitamente, sentada ao pé do leito.

– Já veio a ama, mamãe? perguntou ela com voz chorosa.

– Ainda não!

Bruno não abriu os olhos, mas uma ligeira contração arrebanhou-lhe as faces. O doutor Seabra estremeceu. Parecia-lhe a morte! Laura voltou-se de novo para o marido, com o rosto transtornado e o olhar interrogativo.

Ele vacilou um momento; depois fez-lhe um sinal afirmativo, muito vago, quase imperceptível!

A moça ajoelhou-se rapidamente e desabotoou com os dedos nervosos e tateantes o seu lindo vestido de seda azul claro. O marido curvou-se, trêmulo, com as narinas dilatadas e o coração opresso; arrependido do seu consentimento, ia talvez dizer – não! mas Laura tirara o seio túmido, branco, onde as veias estendiam tênues fios azulados, e encostava o bico róseo à boca ardente e seca do moribundo.

Ela, muito curvada, encobria a meio o busto do enfermo, ele engolia o leite a largos tragos, sofregamente, descerrando a pouco e pouco os olhos.

A comoção de Laura era imensa! Salvar o seu amor, o seu amante sonhado, a sua esperança, com o leite da sua carne, o sangue da sua vida, era um gozo de inextinguível doçura! Não era a volúpia, a paixão sensual que vibrava no seu corpo frágil de mulher moça, mas uma piedade, uma ternura que lhe alagava a alma, de tal jeito que a fazia amar agora o moço, como uma mãe adora o filho pequenino...

Ele abriu completamente os olhos: reconheceu-a... houve um sorriso entre ambos, um clarão de verdade! Mas a febre exigia mais leite e ele continuou a chupar com sofreguidão a carne da mulher que nem em sonhos profanara nunca, dizendo-lhe com o olhar tudo que tinha sempre calado – que a amava... que a amava!... até que a prostração veio de novo cerrar-lhe as pálpebras e que ele adormeceu profundamente, sem contrações, com um sorriso de paz nos lábios satisfeitos... Laura escondeu o seio, trêmula e feliz...

Só o doutor Seabra compreendeu que aquele sono do moço era o último, e foi com piedade e comoção que viu Laura levantar-se e dizer-lhe, toda dele, atirando-se aos seus braços, com ar vitorioso e sincero:

– Obrigada, meu querido... como tu és bom!
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NOTAS
* In extremis = Nos últimos instantes de vida; no derradeiro momento.
** White rose = Perfume feminino.
*** Veloutine = Tipo de tecido de lã aveludado.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Francisca Júlia (Cristais Poéticos) 4


A UM POETA


Poeta, quando te leio, a angústia dolorida
Que te mina a existência e que em teu peito impera,
Faz-me também sofrer, d’alma se me apodera,
Como se da minh’alma ela fosse nascida.

Sinto o que sentes: ora a lágrima sincera
Que foi pela saudade ou pelo amor vertida,
Ora a mágoa que habita em tua alma, – guarida
Onde a negra legião das mágoas se aglomera.

Não há nos versos teus um sentimento alheio
A esse teu coração macerado de fráguas;
Há neles ora o suave e módulo gorjeio

Das aves, ora a queixa harmônica das águas...
Leio os teus versos; e, em minh’alma, quando os leio,
Vai gemendo, em surdina, a música das mágoas…
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AURORA

Mensageira da luz, a brisa corre. A Aurora
Do seu leito real de tiro se levanta.
Toda a campina acorda em festa. Cada planta
Mostra o sorriso ideal da matutina Flora.

Um cheiro doce e fresco a verdura evapora.
A araponga, afinando a matinal garganta,
Grita; um pássaro geme; a patativa canta...
Todo o campo é uma orquestra harmônica e sonora.

Vara o diáfano véu da alvíssima neblina
Uma seta de sol. E a floresta, a campina,
Ainda cheias de luz de um pálido arrebol,

Descortinam-se ... E em pouco, a campina, a floresta,
Cheias do riso bom da natureza em festa,
Palpitam sob a luz fecundante do sol.
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CALME DE LA MER*

Tranquilo, o mar não canta nem ondeia;
O nauta, imerso noutro mar de mágoas,
Os olhos tristes e úmidos passeia
Pela tranquila quietação das águas.

A onda que dorme quieta, não espuma;
O austro que sonha plácido, não canta;
E em todo o vasto mar, em parte alguma,
A mais pequena vaga se levanta.
––––––––––––––––
* Calma do mar.
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LIED SICILIEN*

Olhos! Que ateais os corações e a guerra,
Olhos, quando piscais, olhos de brasas,
Muralhas abalroam, caem casas,
E enormes paredões rolam por terra!

Assim, a um golpe rápido de vista,
Esta débil e trêmula muralha,
Dentro da qual meu coração trabalha,
Como quereis, dizei-me, que resista?
–––––––––––––––––––––––––––––––-
*Canção siciliana.
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LA PRUDE*

Deliciosa manhã de primavera doura
Os campos. Ainda dorme o sol. Mas a pastora,
Descuidosa, passeia, enfeitadinha já.
Quem a vê, a maciez das faces lhe namora.
E ela cantando vai pelos campos em fora:
Trá, la, lá! Trá,lá, lá!

Por um beijo um pastor oferta-lhe uma ovelha,
Duas, quantas quiser... E ela fica vermelha
De raiva, bate o pé... Tão formosa e tão má!
Encara-o com desprezo; e depois, apressando
Os passos, segue adiante, alígera, cantando:
Trá, lá, lá! Trá, lá, lá!

Um pastor lhe oferece o coração a ela;
Fitas outro pastor lhe oferta; mas a bela
Pastorinha gentil, enfastiada já,
Ri de ambos, como riu das ovelhinhas brancas
Do primeiro. E prossegue, entre risadas francas,
Trá, lá, lá! Trá, lá, lá!
–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––-
*A recatada.

Fonte:
Francisca Júlia da Silva. Mármores. Brasília: Senado Feder4al, 2020.
 Publicado originalmente em 1895.

Minha Estante de Livros (Livros de H. G. Wells)


A GUERRA DOS MUNDOS
Publicado pela primeira vez em 1898, essa obra-prima de ficção especulativa de H.G. Wells aterrorizou e divertiu gerações de leitores, gerou inúmeras imitações e serviu de inspiração a mestres como Orson Welles e Steven Spielberg.
 
Por tempos, os homens foram estudados à distância pelos marcianos, que nos observavam como quem analisa micróbios por um microscópio. No final do século XIX, entretanto, eles partem para a Terra e aterrissam nos arredores de Londres. À primeira vista, os marcianos parecem risíveis: mal conseguem se mover, e não saem da cratera criada pela aterrissagem de sua espaçonave.
Mas, conforme seus corpos começam a se acostumar com a gravidade terrestre, revelam também seu verdadeiro poder. Os marcianos são máquinas biomecânicas assassinas com mais de 30 metros de altura, que destroem tudo a sua volta. Aniquilando toda tentativa de retaliação do exército britânico, eles rapidamente eles chegam à capital britânica, que é evacuada às pressas por uma população desesperançada.
 
O enredo é uma analogia à Inglaterra e à Europa do século XIX - potências imperialistas que submetiam, colonizavam e sugavam recursos de culturas menos avançadas tecnologicamente. Com A Guerra dos Mundos, Wells procurava mostrar o que seria da Inglaterra se ela enfrentasse o mesmo tipo de extermínio social, econômico e cultural que impunha a outros povos.
 
O livro é narrado em primeira pessoa e tem pouquíssimos diálogos. A história é contada quase integralmente através de narrativa. Mas além dos conflitos entre homens X marcianos o autor toma a liberdade de questionar a soberania do homem sobre tudo que os rodeia. De início, os cidadãos de Londres não se assustam com a chegada dos primeiros aliens; tem em mente que "aconteça o que acontecer nos sempre venceremos", porém se esquecem que não somos Deus, somos parte de um todo e nem sempre estamos no topo... Nessa "pirâmide social" até mesmo o mais simples ser vivo tem o seu poder...
 
Um ponto característico da narração é o foco nas regiões de Londres: muitas descrições de localidades são tão específicas que provavelmenete somente alguém que conheça entenderá.
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O DORMINHOCO
Publicado em 1910, conta a história de Graham, um homem na casa dos 30 anos, herdeiro de uma grande fortuna, mas que vive uma vida desmotivada e sofre de uma insônia crônica. Quando finalmente cai no sono, dorme durante 203 anos e acorda numa sociedade totalmente diferente da que conhecia. Para sua estupefação, o patrimônio que possuía o tornou uma espécie de dono do mundo e alvo de uma idolatria mística, graças a investimentos e aquisições feitos durante seu sono. Aqui a veia satírica de Wells aparece com vigor, ao descrever um mundo em que uma elite desfruta de ambientes sofisticados em metrópoles hipertrofiadas, com intensas luzes brancas, elevadores, domos, caminhos móveis e estruturas de vidro, enquanto operários vivem em estado de semiescravidão em subterrâneos escuros, recebendo comida em troca de trabalho. Como é comum nas obras de Wells, o entrecho foi uma inspiração para Woody Allen no filme O Dorminhoco (1973).
 
A narrativa é bem construída, excelente. Há capítulos mais descritivos, e um capítulo especialmente longo, preparando um final, na época, futurista, que tornou-se uma realidade obscura anos depois. Há, também, críticas socioeconômicas bem contundentes, ao capitalismo, à exploração do trabalho (alguns trechos lembram bem o sistema taylorista) e às condições de trabalho desumanas na indústria do século XIX, e um alinhamento com a luta das mulheres por igualdade de direitos.
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UMA UTOPIA MODERNA
Enquanto caminhavam pelos alpes suíços, dois viajantes ingleses caem em uma dobra espacial e de repente se encontram em outro mundo. Em muitos aspectos igual ao nosso, mas ainda assim radicalmente diferente, os dois caminhantes estão agora sobre uma terra utópica controlada por um único governo mundial. Logo eles aprendem que todos compartilham uma linguagem comum, há igualdade econômica, racial e de gênero, e a sociedade é governada por ideais socialistas reforçados por uma elite austera e voluntária: o Samurai. Mas o que os utópicos farão com esses novos visitantes de um mundo menos perfeito?


Fonte:
Skoob – Resenhas