segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Minha Estante de Livros (Estórias da Casa Velha da Ponte, de Cora Coralina)


Decifrar os caminhos da vida de Cora Coralina é adentrar o espaço da memória da cidade de Goiás no estado de Goiás, das suas representações e da complexidade dos deslocamentos entre o passado e o presente da cultura que a constituiu. Falar da obra de Cora Coralina é estabelecer uma conexão forte deste passado, pois ele constituiu a chave fundamental para entender a sua trajetória pessoal e de poetisa.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas chamada de Aninha e pseudônimo Cora Coralina, perdeu o pai aos dois meses de idade e, após este falecimento, sua mãe casou-se novamente. Cresceu no período que corresponde ao fim da Monarquia e a instalação da República no Brasil e foi criada entre nove mulheres.

A vida de Aninha pode ser dividida em três grandes fases: a infância e juventude vivida em Goiás (de 1889 a 1911); o período do casamento, passado em São Paulo (de 1911 a 1955) e a fase da vida madura, na qual Ana voltou a viver em Goiás (de 1956 até o seu falecimento em 1985).

A infância de Aninha transcorreu em um período de restrições materiais, decorrente da decadência da mineração, da abolição da escravidão, das ausências e de lutas pela sobrevivência econômica, social e moral da Villa Boa de Goyaz. Uma época de forte disciplina entre os seus habitantes, herança do período colonial, escravista.

A cidade de Goiás, Patrimônio Mundial e Cultural da Humanidade é o grande personagem dos livros de Cora Coralina. A cidade é apresentada e re-inventada através de uma deliciosa viagem no tempo, promovida pelo texto poético, que inclui simplicidade, odores, cores, sentidos e o movimento cotidiano da vida tranquila e saborosa, coisas boas que perpassam toda a trajetória da sua obra.

O livro Estórias da Casa Velha da Ponte é o quarto dos seus dez livros. Publicado após a morte da escritora possui 109 páginas e transporta o leitor através de dezoito contos pelos mistérios da “Procissão das Almas”, sensações de “… depená o frango na casa da vizinha” e muitos causos da cidade de Goiás. Seus personagens e tradições perpassam as gerações desde o século XIX e a leitura encanta e possibilita uma viagem pelo interior de um Brasil pouco conhecido, “velho documentário de passados tempos, vertente de estórias e de lendas”.

Cora Coralina conhece como ninguém histórias de sua gente e se insere no grupo de narradores clássicos que, segundo W. Benjamim, sem sair de seu país conhece suas histórias e tradições. Mesmo tendo vivido várias décadas longe da terra natal ela não consegue desvencilhar-se da tradição familiar de contadores de histórias e assume a tarefa de narrar à história de sua gente, dos reinos de Goiás, “antes que o tempo passe tudo a raso” . A partir de então, passa a cantar e contar notícias suas e dos outros.

Como toda residência de interior habitada muito tempo pela mesma família, a casa velha da ponte vivia cheia de histórias. Construída "em pedra, madeirame e barro", com as suas "folhas de portas pesadas de árvores fortes descomunais serradas a mão", a sua senzala desativada e seus imensos portais, a própria casa já era uma parte viva da história da cidade de Goiás Velho.

As suas paredes presenciaram histórias de amor e suicídios de escravos, enquanto lagartixas buscavam as brechas para se aquecer. Um dos antigos proprietários, recebedor dos quintos reais, tinha se apossado do dinheiro do Estado. Para fugir da prisão, teria ocultado no porão moedas e barras de ouro, dando origem assim à lenda do tesouro enterrado. Mais tarde, em época de esplendor, a família só "almoçava sua gorda feijoada goiana em pratos e talheres de ouro".

Tradições como essas embalaram a infância de Cora Coralina, criada na velha casa, já então decadente, "cerradas portas e janelas, resguardando de olhar estranho o desmazelo e a pobreza que se instalavam". Essas histórias domésticas e outras vividas na cidade, que impressionavam a menina, são o material vivo e humano do livro, registro de velhas tradições e, ao mesmo tempo, retrato fiel e pitoresco de uma comunidade do Brasil Central no final do século XIX e início do século XX, com as suas prostitutas segregadas, vivendo em becos, capazes de valentias, como a narrada no delicioso Minga, zoio de prata, os famosos raptos de donzelas (“Cortar em Riba do Rasto”), tão frequentes no Brasil antigo, as solteironas (“Quadrinhos da Vida”).

Nem faltam as estórias de assombração e assombramento (“Procissão das Almas”, “O Caso de Mana”), sempre tão vivas no imaginário popular, narradas com aquela insuperável simplicidade e leveza de Cora Coralina, encanto de seus versos, encanto de sua prosa.

Na escrita coralineana se confirma o autobiográfico a partir do título e se efetiva a cada momento do relato. A narradora-personagem traz informações que são passíveis de verificação, outras fazem parte do imaginário popular que ao serem repassadas de geração para geração adquirem feição meio lendária. A questão do ouro enterrado nas paredes da Casa Velha da Ponte foi fato que se popularizou e mesmo Cora Coralina não se furtou à curiosidade de mandar escavar o velho porão em busca do ouro perdido. A Casa Velha da Ponte foi adquirida quando do nascimento de Helena, segunda irmã mais velha de Cora Coralina, pelo seu pai, o Desembargador Francisco de Paula Lins dos Guimarães, no século XIX.

A Casa Velha da Ponte é elemento provocador de retorno ao passado, de protagonista ela passa a mera coadjuvante dos fatos e dos acontecimentos que fazem parte de sua história. Eles, sem pedirem licença, invadem a cena narrativa e centralizam o motivo da enunciação, depois novamente a Casa volta a ocupar seu espaço e demarca a sua existência em três esferas temporais: no presente, no passado e no mítico.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 25: Vera Vargas

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 41 –

Nossos antepassados certamente sabiam apreciar melhor a vida em relação aos costumes e princípios que temos hoje. Mas se fizemos algo de errado, sempre há tempo para mudar.

Na vida desenfreada dos nossos dias, ficaram de lado o lazer, a recreação, o ócio criativo. Essa é a vida a ser vivida? Inflacionamos os dias com tantos afazeres - até os dispensáveis -, caímos na roda-viva da correria, semeamos o insensível para todo o lado, bestificamos os bons dias, ironizando a vida da própria vida.

Em recente livro o humanista Juan Arsuaga afirmou literalmente que "a vida não pode ser trabalhar a semana inteira e ir ao supermercado no sábado. Essa vida não é humana. Deve haver algo mais, e essa outra coisa se chama cultura. É a música, a poesia, a natureza, a beleza".

E acrescenta o também antropólogo:

"Apreciar a beleza é uma questão de educação e sensibilidade. Procure o que é belo na vida. Há muita beleza".

A missão é trabalhar com afinco, mas viver a vida em plenitude.

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Lima Barreto (Coisas de "mafuá")

 - Mas, onde esteve você, Jaime?

- Onde estive?

- Sim! Onde você esteve?

- Estive no xadrez.

- Como?

- Por causa de você.

- Por minha causa? Explique-se, vá!

- Desde que você se meteu como barraqueiro do imponente Bento, consultor técnico do “mafuá" (*feira, mercado) do padre A, que o azar me persegue.

- Então eu havia de deixar de ganhar uns "cobres"?

- Não sei! A verdade, porém, é que essas relações entre você, Bento e "mafuá" trouxeram-me urucubaca. Não se lembra você da questão do pau?

- Isto foi há tanto tempo!... Demais o Capitão Bento nada tinha a ver com o caso. Ele só pagou para derrubar a arvore; mas você...

- Vendi o pau, para lenha, é verdade. Uma coisa à toa de que você fez um “lelé” medonho e, por causa, quase nós brigamos.

- Mas o capitão não tinha nada com o caso.

- À vista de todos, não! Mas foi o azar dele que envenenou a questão.

- Qual, azar! Qual nada! O capitão tem os seus "quandos" e não há negócios que se meta, que não lhe renda bastante.

- Isto é para ele, mas para os outros que se metem com ele, sempre a roda desanda.

- Comigo não se tem dado isso.

- Como não?

- Sim. Tenho ganho "algum" - como posso me queixar?

- Grande coisa! O dinheiro que ele te dá, não serve pra nada. Mal vem, logo vai.

- A culpa é minha que o gasto, mas do que não é minha culpa - fique você sabendo - é que você tenha sido metido no xadrez.

- Pois foi. Domingo, anteontem, não fui ao "mafuá" de você?

- Meu, não! É do padre ou da irmandade.

- De você, do padre, da irmandade, do Bento ou de quem quer que seja, o certo é que lá fui e caí na asneira de jogar na tua barraca.

- Homessa! Você foi até feliz!... Tirou uma galinha! Não foi?

- Tirei! É verdade, mas a galinha do "mafuá" foi que me levou a visitar o xadrez.

- Qual o quê!

- Foi, Pena! Eu não tirei a "indrômita" à última hora?

- Tirou, e não vi você mais.

- Tentei passá-la ao Bento, por três mil-réis, como era costume, mas ele não quis aceitar.

- Por força! A galinha já tinha sido resgatada três ou quatro vezes, não ficava bem...

- A questão, porém, não é essa. Comprei A Noite, embrulhei nela a galinha e tomei o bonde para Madureira. No meio da viagem, o bicho começou a cacarejar. Tentei acalmar o animal, ele porém, não estava pelos autos e continuou: "crá-crá-cá, cró-cró-có". Os passageiros caem na gargalhada, e o condutor me põe fora do bonde e, tenho eu que acabar a viagem a pé.

- Até aí...

- Espere. O papel estava despedaçado e, também, para maior comodidade, resolvi carregar a galinha pelos pés. Ia assim, quando me surge pela frente a "canoa" dos agentes. Suspeitaram da proveniência da galinha, não quiseram acreditar que eu a tivesse tirado do "mafuá". E, sem mais aquela, fui levado para o distrito e metido no xadrez, como ladrão de galinheiros. Iria para a "central", para a colônia, se não fosse ter aparecido o caro Bernardino que me conhecia, e afiançou que eu não era vasculhador de quintais, à alta hora da noite.

- Mas que tem isso com o “mafuá"?

- Muita coisa: vocês deviam fazer a coisa clara. Dar logo o dinheiro de prêmio e não galinhas, bodes, carneiros, patos e outros bicharocos que, carregados alta noite, fazem a polícia tome um qualquer por ladrão... Eis aí!

 Fonte:
Lima Barreto. Marginália (obra póstuma), 1953. Crônica de 1921.

VI Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Trovas Premiadas) Nacional Veteranos


Tema: Jorge Amado


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VENCEDORES
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1
Jorge Amado, vida e glória,
bela herança nos deixou;
nas letras, honrou a história,
na história, a vida gravou.
Maria Helena Ururahy Campos da Fonseca
Angra dos Reis – RJ


2
Jorge Amado nos encanta:
sua obra, vista a fundo,
é ponte que se levanta
de Itabuna para o mundo!
José Ouverney
Pindamonhangaba – SP
 
3

Dona Flor ou Gabriela,
personagens geniais
que em cada história revela
Jorge, dentre os imortais.
Márcia Jaber
Juiz de Fora – MG

4  

- Jorge Amado, um literato,
voava quando escrevia,
compondo um lindo retrato
das tradições da Bahia.
Marciano Batista de Medeiros  
Parnamirim – RN


5 (?)
 Com fardas de general
a mãe-de-santo previa...
Hoje, em fardão de "Imortal"
te vejo na "Academia"
  Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras - RJ

 
6
Revelou grandes encantos
deste solo abençoado!
Terra de Todos os Santos!
Bahia de Jorge Amado!
Fernando Antônio Belino
Sete Lágoas – MG

 
7
Cheiro de cravo e canela,
gosto de amor delicado:
temperos de Gabriela
aos olhos de Jorge Amado.
Elizabeth Aparecida de Castro Mendonça Fontes
Joinville – SC

8

Versátil, Jorge semeia
talento em qualquer ação;
seu legado é grande teia
viva em cada geração.
Marina Caraline de Almeida Carvalhal
Itaperuna/RJ
 
9

- Um mundo igual à Bahia:
alegre, livre, encantado.
Era por essa utopia
que lutava Jorge Amado.
A. A. de Assis
Maringá – PR


10
Casa do Rio Vermelho,
 de Jorge Amado foi lar.
Em teu portal, me ajoelho,
como se fosse um altar.
 Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora - MG


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MENÇÕES HONROSAS
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1
Disse um dia Jorge Amado
que não morre a trova e quem
faz da trova seu legado
eterniza o amor e o bem.
Jerson Lima de Brito
Porto Velho – RO


2
Tendo um pincel temperado
com cravo, sal e canela,
Jorge pintou seu pecado
no corpo de Gabriela.
Francisco Gabriel
Natal – RN

3

Nome forte abençoado,
codinome de um guerreiro;
no mundo todo aclamado:
Jorge Amado, Brasileiro!
Paulo Marcelo Ribeiro de Araújo
Estrela Dalva – MG

 4

 Em Salvador, da Bahia,
Jorge Amado devaneia.          
- Cada conflito o escrevia:
eis “Os Capitães da Areia”!
Ari Santos Campos
Camboriú – SC

5

Escritor sempre inspirado,
hoje orgulho nacional,
sem dúvida é Jorge Amado
pela sua obra imortal.
Antônio Francisco Pereira
Belo Horizonte – MG


6
Cansado dos ares nobres,
Jorge nas ruas vagueia
na pele dos “anjos pobres”
de seus capitães de areia.
Francisco Gabriel
Natal - RN


7
Autor de livro famoso,
de um enredo bem tramado,
ouso afirmar, orgulhoso,
que Jorge tornou-se... amado...
Antonio Colavite Filho
Santos – SP
 
8

 O grande autor Jorge Amado,
com obras de encantos mil,
nos deixou em seu legado
um retrato do Brasil!
Renata Paccola
São Paulo – SP


9
Jorge Amado e ninguém mais
foi tão grande observador...
tanto que disse: imortais
são a trova e o trovador.
Mário Moura Marinho
Sorriso – MT

10

Gabriela, Dona Flor,
entre outras, teu dom fecundo,
Jorge Amado, és escritor
que mostra a Bahia ao mundo.
Cezar Defilippo
Astolfo Dutra – MG


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MENÇÕES ESPECIAIS
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1
Para ter, em profusão,
um talento bem regado,
quisera, em meu coração,
ter o amor de Jorge Amado!
Elias Pescador
São Paulo – SP

2

Os "quitutes africanos",
já falava Jorge Amado,
hoje se dizem baianos.
Que delicioso bocado!
Luis Parellada Ruiz
Londrina – PR

3

Talento que chegou cedo,
entre lutas impossíveis,
Jorge Amado traça o enredo
dos romances mais incríveis.
Márcia Jaber
Juiz de Fora – MG
 
4

Jorge Amado, realista,
 entre risos e tristeza,
 relata a vida hedonista
 dos ricos sobre a pobreza!
Sílvia Alice de Carvalho Soares
Angra dos Reis - RJ


5
É Jorge de 'Gabriela'
que no romance, eu diria,
faz da Cultura a janela
pra iluminar a Bahia!
Maria Dulce de Lima Pessoa
Tabira – PE

6

Pôde o mundo conhecer
da Bahia um bom bocado,
quando o mundo pôs-se a ler
o mundo de Jorge Amado!...
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo – SP
 
7

O seu nome é Jorge Amado,
grande escritor brasileiro
Partiu deixando o legado
e saudade ao mundo inteiro!
Danusa Almeida
Campos dos Goytacazes – RJ

8

Jorge Amado ao compilar
cores, cheiros e magia
propôs ao mundo escutar
a voz forte da Bahia.
Maurício Cavalheiro
Pindamonhangaba – SP
 
9

 Devoto do Candomblé,
inspirou-se em Orixás;
Amado, esse homem de fé,
foi um amigo veraz!
 Glória Tabet Marson
São José dos Campos - SP

10 (?)

Voltou, baiano dileto,
pra reatar o que ficou!...
Não houve exílio completo,
tua alma, ninguém levou.
Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio das Ostras - RJ


Fonte:
Resultado enviado pela presidente da Seção, Jaqueline Machado.

Aluísio de Azevedo (Polítipo)


Suicidou-se anteontem o meu triste amigo Boaventura da Costa.

Pobre Boaventura! Jamais o caiporismo encontrou asilo tão cômodo para as suas traiçoeiras manobras como naquele corpinho dele, arqueado e seco, cuja exiguidade física, em contraste com a rara grandeza de sua alma, muita vez me levou a pensar seriamente na injustiça dos céus e na desequilibrada desigualdade das coisas cá da terra.

Não conheci ainda criatura de melhor coração, nem de pior estrela. Possuía o desgraçado os mais formosos dotes morais de que é susceptível um animal da nossa espécie, escondidos, porém, na mais ingrata e comprometedora figura que até hoje viram meus olhos por entre a intérmina cadeia dos tipos ridículos.

O livro era excelente, mas a encadernação detestável.

Imagine-se um homenzinho de cinco pés (*1,52 m) de altura sobre um de largo, com uma grande cabeça feia, quase sem testa, olhos fundos, pequenos e descabelado; nariz de feitio duvidoso, boca sem expressão, gestos vulgares, nenhum sinal de barba, braços curtos, peito apertado e pernas arqueadas; e ter-se-á uma ideia do tipo do meu malogrado amigo.

Tipo destinado a perder-se na multidão, mas que a cada instante se destacava justamente pela sua extraordinária vulgaridade; tipo sem nenhum traço individual, sem uma nota própria, mas que por isso mesmo se fazia singular e apontado; tipo cuja fisionomia ninguém conseguia reter na memória, mas que todos supunham conhecer ou já ter visto em alguma parte; tipo a que homem algum, nem mesmo aqueles a quem o infeliz, levado pelos impulsos generosos de sua alma, prestava com sacrifício os mais galantes obséquios, jamais encarou sem uma instintiva e secreta ponta de desconfiança.

Se em qualquer conflito, na rua, num teatro, no café ou no bonde, era uma senhora desacatada, ou um velho vítima de alguma violência, ou uma criança batida por alguém mais forte do que ela, Boaventura tomava logo as dores pela parte fraca, revoltava-se indignado, castigava com palavras enérgicas o culpado; mas ninguém, ninguém lhe atribuía a paternidade de ação tão generosa. Ao passo que, quando em sua presença se cometia qualquer ato desairoso, cujo autor não fosse logo descoberto, todos olhavam para ele desconfiados, e em cada rosto o pobre Boaventura percebia uma acusação tácita.

E o pior é que nestas ocasiões, em que tão injustamente era tomado por outro, ficava o desgraçado por tal modo confuso e perplexo, que, em vez de protestar, começava a empalidecer, a engolir em seco, agravando cada vez mais a sua dura situação.

Outro doloroso caiporismo dos seus, era o de parecer-se com todo o mundo. Boaventura não tinha fisionomia própria; tinha um pouco da de toda a gente. Daí os quiproquós em que ele apesar de tão bom e tão pacato, vivia sempre enredado. Tão depressa o tomavam por um ator, como por um padre, ou por um barbeiro, ou por um polícia secreto; tomavam-no por tudo e por todos, menos pelo Boaventura da Costa, rapaz solteiro, amanuense (*escrevente) de uma repartição pública, pessoa honesta e de bons costumes.

Tinha cara de tudo e não tinha cara de nada, ao certo. A circunstância da sua falta absoluta de barba dava-lhe ao rosto uma dúbia expressão, que tanto podia ser de homem como de mulher, ou mesmo de criança. Era muito difícil, senão impossível, determinar-lhe a idade. Visto de certo modo, parecia um sujeito de trinta anos, mas bastava que ele mudasse de posição para que o observador mudasse também de julgamento; de perfil representava pessoa bastante idosa, mas olhado de costas, dir-se-ia um estudante de preparatórios; contemplado de cima para baixo era quase um bonito moço, porém de baixo para cima era simplesmente horrível.

Encarando-o bem de frente, ninguém hesitaria em dar-lhe vinte e cinco anos, mas com o rosto em três quartos, afigurava apenas dezoito. Quando saía à rua, em noites chuvosas, com a gola do sobretudo até as orelhas e o chapéu até a gola do sobretudo, passava por um velhinho octogenário, e quando estava em casa, no verão, em fralda de camisa, a brincar com o seu gato ou com o seu cachorro, era tirar nem por, um nhônhô de uns dez ou doze anos de idade.

Um dia, entre muitos, em que a polícia, por engano lhe invadiu os aposentos, surpreendeu-o dormindo, muito agachadinho sob os lençóis, com a cabeça embrulhada num lenço à laia de touca, e o sargento exclamou comovido:

– Uma criança! Pobrezinha! Como a deixaram aqui tão desamparada!

De outra vez quando ainda a polícia quis dar caça a certas mulheres, que tiveram a fantasia de tomar trajes de homem e percorrer assim as ruas da cidade, Boaventura foi logo agarrado e só na estação conseguiu provar que não era quem supunham. Outra ocasião, indo procurar certo artista, de cujos serviços precisava, foi recebido no corredor com esta singularíssima frase:

– Quê? Pois a senhora tem a coragem de voltar?… E quer ver se me engana com essas calças?

Tomara-o pela pobre, a quem na véspera havia despedido de casa.

Não se dava conflito de rua, em que passando perto o Boaventura, não o tomassem imediatamente por um dos desordeiros. Era ele sempre o mais sobressaltado, o mais lívido, o mais suspeito dos circunstantes. Não conseguia atravessar um quarteirão sem que fosse a cada passo interrompido por várias pessoas desconhecidas, que lhe davam joviais palmadas no ombro e na barriga, acompanhando-as de alegres e risonhas frases de velha e íntima amizade.

Em outros casos era um credor que o perseguia, convencido de que o devedor queria escapar-lhe, fingindo não ser o próprio; ou uma mulher que o descompunha em público; ou um agente policial que lhe rondava os passos; ou um soldado que lhe cortava o caminho supondo ver nele um colega desertor.

E tudo isto ia o infeliz suportando, sem nunca aliás ter em sua vida cometido a menor culpa.

Uma existência impossível!

Se achava-se numa repartição pública, tomavam-no, infalivelmente, pelo contínuo; nas igrejas passava sempre pelo sacristão, nos cafés, se acontecia levantar-se da mesa sem chapéu, bradava-lhe logo um consumidor, segurando-lhe o braço:

– Garçom! Há meia hora que reclamo que me sirva.

Se ia provar um paletó na loja do alfaiate, enquanto estivesse em mangas de camisa, era só a ele que se dirigiam as pessoas chegadas depois. Nas muitas vezes que foi preso como suposto autor de vários crimes, a autoridade afiançava sempre que ele tinha diversos retratos na polícia. Verdade era que as fotografias não se pareciam entre si, mas todas se pareciam com Boaventura.

Num clube familiar, quando o infeliz já no corredor, reclamava do porteiro o seu chapéu para retirar-se, uma senhora de nervos fortes chegou-se por detrás dele na ponta dos pés e ferrou-lhe um beliscão.

– Pensas que não vi o teu escândalo com a viúva Sarmento, grandíssimo velhaco?!

O mísero voltara-se inalteravelmente, sem a menor surpresa. Ah! ele já estava mais habituado àqueles enganos.

Que vida!

Afinal, e nem podia deixar de ser assim, atirou-se ao mar.

No necrotério, onde fui por acaso, encontrei já muita gente; e todos aflitos, e todos agoniados defronte daquele cadáver que se parecia com um parente ou com um amigo de cada um deles.

Havia choro a valer e, entre o clamor geral, distinguiam-se estas e outras frases:

– Meu filho morto! Meu filho morto!

– Valha-me Deus! Estou viúva! Ai o meu rico homem!

– Ó senhores! Ia jurar que este cadáver é o do Manduca!

– Mas não me engano! É o meu caixeiro!

– Dir-se-ia que este moço era um meu antigo companheiro de bilhar!…

– E eu aposto como é um velho, que tinha um botequim por debaixo da casa onde eu moro!

– Qual velho, o que! Conheço este defunto. Era estudante de medicina! Uma vez até tomamos banho juntos, no boqueirão. Lembro-me dele perfeitamente!

– Estudante! Ora muito obrigado! Há mais de dois anos chamei-o fora de horas para ir ver minha mulher que tinia de cólicas! Era médico velho!

– Impossível! Afianço que este era um pequeno que vendia jornais. Ia levar-me todos os dias a “Gazeta” à casa. É que a morte alterou–lhe as feições.

– Meu pai!

– O Bernardino!

– Olha! Meu padrinho!

– Jesus! Este é meu tio José!

– Coitado do padre Rocha!

Pobre Boaventura! Só eu compreendi, adivinhei, que aquele cadáver não podia ser senão o teu, ó triste Boaventura da Costa!

E isso mesmo porque me pareceu reconhecer naquele defunto todo o mundo, menos tu, meu desgraçado amigo.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado em 1895.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Varal de Trovas n. 542

 

Aparecido Raimundo de Souza (Como um passageiro em trânsito...)

Pense no dia que ainda não nasceu:
e a Manhã chegará linda e sorridente.

Pense na esperança:
e ela lhe sorrirá com ternura.

Pense no amor:
e ele transformará a sua vida.

Pense na paz:
e ela estará sempre ao seu lado.

Pense no seu trabalho:
e ele será recompensador.

Pense no seu semelhante:
e ele lhe abraçará em retribuição.

Pense no silêncio:
e ele acalmará as suas horas mais difíceis.

Pense em coisas boas:
e elas brotarão de  dentro do seu “eu” gradativamente.

Pense em fazer alguém feliz:
e verá que esse sonho nunca saiu do seu lado.

Pense na noite encantadora que se avizinha:
e ela lhe trará o descanso merecido e necessário.

Pense no futuro:
e ele simplesmente acontecerá.

Pense nos seus filhos e netos:
e descobrirá a magia imensa em ter alguém lhe chamando de Papai ou Vovô.

Pense nos amigos:
e compreenderá que somente os verdadeiros nunca nos deixarão sem socorro.

Pense na alegria de estar vivo e com saúde:
e agradeça pelo sopro benfazejo da plenitude.

Pense na morte:
e faça tudo aquilo que deixou para realizar no dia seguinte.

Pense nos que se foram e nos deixaram num vazio imenso:
e dobre os joelhos em oração para que descansem em paz.

Pense na escuridão:
E se congratule pela visão perfeita que lhe permite enxergar além dos horizontes.

Pense, por derradeiro, em se prostrar, ou melhor, se detenha, de fato, diante de um espelho e vasculhe longamente buscando o interior de si mesmo:
e certamente concluirá que, tendo Deus na sua vida, na sua alma, e, principalmente, em seu coração, NADA LHE SERÁ NEGADO E COISA ALGUMA SE FARÁ IMPOSSÍVEL.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Alci Vivas Amado (Caderno de Poesias)

AMAR É HUMANO


Desejo namorá-la à moda antiga,
Beijar-lhe a face e a mão,
Você me fere me instiga
Faz do meu corpo um corrimão.

Trago flores à rainha do jardim,
Meu olhar brilha, meu amor lhe ofereço.
Você me alucina: Coitado de mim!
Perdi o freio, agora só resta o começo.

Você está linda! É assim que eu a vejo
Sobre o leito nupcial, vou lhe amar,
E sua boca exaltar com terno beijo.

Meu desejo você desprezou
No mais puro e santo momento
Mas em nossas vidas, um fruto ficou.
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O VELHO E O IDOSO

Afirmam que o velho é nocivo,
Ninguém gosta de envelhecer,
Juventude eterna é sonho de todo ser,
A idade, o rigor, nada é decisivo.

Velho não aceita a realidade nascida,
O idoso admite tal inovação,
Ambos levam a história da vida,
Ser velho aos 18 ou 70, depende da criação.

O profundo jamais envelhece,
Sentimento é o coração do ancião,
Carrega a coroa de glória em prece.

O velho vai ao encontro da miopia,
O idoso não se fecha para o amanhã,
Espírito jovem, semente de alegria.
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POR QUÊ?

Tudo em torno de mim é incerteza
Sem você, meu destino se evapora,
Com essa tepidez revelo só tristeza,
O meu amor puro, mandou embora.

Por quê? Enamorei de sua beleza
Dos seus olhos, sua voz, leve e sonora,
Entreguei-lhe tudo! O afeto... minha natureza,
Sem saber seu nome e, até, onde mora.

Por quê? Não me sai da memória
Muito sonhei construir consigo história
Morarmos numa cabana: linda e forte!

Sua ausência me fará crua saudade
Talvez só a esqueça na eternidade
Ou lhe amarei, mais ainda, após a morte.
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VIDAS PARALELAS

Desejo poetar com clareza,
Esmiuçar sua intimidade...
Sentir o esplendor da saudade
Na tepidez de sua beleza.

Na adolescência, lhe chamava, tigresa,
E ainda trago o pudor, forte lealdade!
Mas falta-lhe sutil caridade
Que em mim te exalta, com certeza.

Hoje, não posso vê-la sozinha
E nem me sentir tão só,
Passado deserto, ao meu lado caminha

As rugas vão sulcando agora
Todo esse amor... A história,
Que em minha face, triste, descora.
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VOU TE DIZER ADEUS

Finais momentos de felicidade
Abraça-me com urgência,
Tristeza é mania de ansiedade
Examina tua consciência.

O teu descaso por mim foi perdoado
Não esquecerei um amor tão profundo
De súbito em nós despertado
laço forte, maior desse mundo.

Senta-te aqui, não sejas uma fera.
Conta-me os dissabores de tua vida
Não fiques assim, estou a tua espera.

Minha alma sente que é inevitável
Adeus! Peço perdão se te ofendi
Redime esse cupido miserável.
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Alci Santos Vivas Amado (1945) é poeta, historiador, contista, cronista; filho de Alcebíades Lopes Amado e de Odete Vivas Amado. Nasceu no Distrito de Santo Antonio do Muqui, em Mimoso do Sul/ES, onde fez o primário; cursou o ginásio e o 2º grau no Rio de Janeiro. Cursos Profissionalizantes: Arquivista e Correspondente Comercial pelo SENAC. Trabalhou na Usina Nuclear de Angra dos Reis, onde morou por 20 anos. Publicou livros de poesia e de contos: Santo Antonio Descendente de Corpo Inteiro, Insinuações Poéticas,  Duelo & Perdão e Reminiscencias. Organizou e historiou “A Pastorinha” folclórico – com apoio do SEBRAE e FAOP – Federação de Artes de Ouro Preto – MG. Participou em livros, com diversos autores: “Antologia Escritores Brasileiros” e “Galeria Brasil 2009”. É membro efetivo da APOLO – Academia Poçoense de Letras e Artes, e ocupa a cadeira nº 52. Escreve em alguns sites e blogs, dentre eles: www.apoloacademiadeletras.com.br; www.poetas.capixabas.nom.br.

Fontes:
Celeiro de Escritores. Sonetos Eternos: Antologia de Sonetos. Vol. 1. Santos/SP: Ed. Sucesso, 2009.
Portal Escritores: complemento biográfico

Sammis Reachers (O valentão da madrugada)

Algumas histórias por que passamos em nosso dia-a-dia envolvem certa violência, e sabemos que o melhor, em relação à violência, é mantermos distância dela. Afinal, "violência gera violência." Mas, trabalhando nas ruas, estamos sujeitos a tudo, e muitas vezes nossa única opção é dançar conforme a música. Trabalhando durante a madrugada então, ah, aí é que 'o bagulho fica doido'.

Tudo começa com nosso amigo Sílvio, hoje motorista e homem de Deus, mas na época trabalhando como cobrador, e dado a tomar alguns tragos da "marvada" cachaça. A madrugada ia em seus inícios, lá pelas uma da manhã. A empresa era a ABC de São Gonçalo; a linha era a 12, Santa Luzia x Covanca. Havia já alguns passageiros no carro, dentre    os quais alguns maus    elementos, bandidagem conhecida do bairro Jardim Catarina. Sempre pegavam carona    quando iam ou voltavam de suas 'atividades'. Área de chapa quente é sempre igual: Se não uma amizade, ao menos alguma tolerância se estabelece entre eles, os marginais, e os rodoviários que, acuados, não têm outro recurso senão fazer vista grossa a certos movimentos e caronas.

Pois bem, em certo ponto sobe no veículo um elemento, moreno parrudo, acompanhado de duas mulheres, bonitas e vestidas como 'mulheres da vida'. As mulheres passam pela roleta, e em seguida o cara que, mal-encarado, saca uma nota de cem cruzeiros, algo como 100 reais de hoje. Ao que Sílvio, o cobrador, pergunta:

- O senhor não teria nota menor aí não?

- Só tenho esse, dá seu jeito aí.

Sílvio disse então para o elemento aguardar, pois não havia ainda troco suficiente. O indivíduo, muito cheio de si e querendo se mostrar para as duas mulheres, que sorriam, começou a bater boca com nosso amigo. Ofensa vai, ofensa vem, um dos tais malandros, que estava lá no fundão do buzu, se levanta, vai até Silvio e diz baixinho:

- Aí, cobra, esse malandro tá chiando muito. Segura aqui essa peça e põe na cara dele - e em seguida sacou um trabuco da cintura e fez menção de entregá-lo a nosso amigo.

- Não, não, quero não, tá tranquilo - disse Sílvio, assustado.

Enquanto isso o indivíduo, entretido com as mulheres, sequer percebera a movimentação. Mas continuou a falar grosso, enquanto o malandro voltava para seu lugar.

Mas, meus amigos, o problema foi que o indivíduo não parou de falar. Não se aguentando mais, dois dos malandros se levantaram, e um deles foi logo apontando o canhão direto na cara do 'brabo'.

- Abre a porta aê, motorista. O otário aqui vai descer. Bora otário, desce!

O cara, levantando-se assustado e contrariado, ainda perguntou:

- E o meu troco?

– Troco?!! Tem troco não mané! Desce, vaza!!!

O indivíduo, agora sem a expressão de homem valente, desceu. Mas, como bom otário, cometeu mais um erro: do lado de fora, foi até a porta de trás, que se abrira para apanhar outro passageiro, e perguntou novamente ao cobrador:

- E o meu troco? Quero meu troco.

Ao ouvir isso, os malandros não se aguentaram:

- Para, para, para aê, motô, que nós vamos limpar esse mané.

Os quatro elementos desceram atrás do 'valentão', e o ônibus seguiu viagem, tranquilamente, com Sílvio aliviado por se ver livre da encrenca.

Uma semana depois, um dos malandros do Catarina apanhou novamente o ônibus da dupla. Ao reconhecer Sílvio, o marginal foi logo contando:

- Aí, cobra, lembra daquele otário? Limpamos ele e as duas meninas. Até a camisa e o tênis dele levamos.

Moral da história: Cuidado quando for pegar um ônibus na madrugada. Toda humildade é pouca!

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários. São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (“Viagens na minha terra”, de Almeida Garret)


A obra foi publicada originalmente em folhetins na Revista Universal Lisbonense entre 1845 e 1846, sendo editada em livro apenas em 1846. Tida como obra única no Romantismo português por sua estrutura e linguagem inovadoras, Viagens na minha terra é um marco para a moderna prosa portuguesa e um importante documento de referência para entender a decadência do império português.

Foco narrativo

A obra é narrada em primeira pessoa e o narrador é o que conhecemos por “narrador-protagonista”. Ou seja, a história é contada por um dos personagens principais (no caso, o autor-narrador que viaja pelo país) em primeira pessoa. Dessa forma, a história tem um ponto de vista fixo, centrado nessa personagem. Além disso, esse narrador-protagonista está quase inteiramente confinado a seus pensamentos, sentimentos e percepções.

O que sabemos a respeito das outras personagens (incluindo seus pensamentos e sentimentos), ou nos é passado através dela mesma, ou através de outra personagem que conta algo ao narrador (em Viagens temos Frei Dinis contando o drama de Carlos e Joaninha). Essas informações podem ser, ainda, inferências feitas pelo narrador-protagonista.

A viagem como busca do autoconhecimento

O tema das viagens sempre foi parte integrante da literatura portuguesa, desde o século XIV quando os navegadores portugueses registravam suas histórias de navegação. Eles produziam uma literatura que não ficava restrita aos acontecimentos da viagem, mas que continha também os motivos que os levavam a se deslocar de um local a outro e as descrições em forma narrativa sobre as terras e os homens que encontravam. Assim, pode-se dizer, que a literatura de viagem não fica restrita ao desejo de conquistar novos territórios, mas, através do contato com outros povos e culturas, pensar de uma nova maneira o seu próprio eu.

Almeida Garrett faz parte dessa tradição literária ao escrever Viagens na minha terra. Nessa novela, a viagem não serve apenas para entrelaçar os fatos ali tratados, mas serve em si como elemento temático fundamental. A viagem como tema da obra está assinalada desde o primeiro capítulo, onde o autor-narrador deixa claro que vai “nada menos que a Santarém”, tornando sua novela uma crônica-ensaio. Através da viagem pelo interior do próprio país do autor-narrador, busca-se a fonte do que é ser português em um momento de drásticas mudanças no país.

O pano de fundo em Viagens na minha terra é a Revolução Liberal. Grosso modo, as ideias liberais surgiram como oposição ao monarquismo, ao mercantilismo e ao domínio religioso. Portugal, na época um país monarquista com fortes raízes católicas, via qualquer ideia liberalista como antinacional.

O país já estava enfrentando diversas crises (as invasões de Napoleão e crise do colonialismo no Brasil) e o embate entre Miguelistas (favoráveis ao monarquismo absolutista de então) e Liberais acabou por gerar uma guerra civil, em 1830. O embate terminou com uma vitória dos Liberais e a restauração da monarquia constitucional.

Almeida Garrett, que sempre lutou pelos ideais liberais, mantém nas Viagens este propósito, através da narração de fatos do presente e do passado, sempre denegrindo àquele em favor do outro. Para tanto, brinca-se também com a questão do verossímil, criando-se a ilusão do verdadeiro através do uso de um tom calculadamente coloquial e uma aproximação com o quotidiano.

Dessa forma, as digressões do narrador sobre os mais diversos temas, da literatura à política, servem para demarcar ideologicamente a obra. O discurso do autor-narrador revela o caótico estado em que se encontra Portugal, a corrupção da sociedade, a aristocracia decadente e o modelo familiar burguês corrompido por atitudes individualistas. Assim, pode-se dizer que para o narrador a crise moral coletiva tem origem na moral individual.

A personagem protagonista Carlos, aparece como símbolo deste embate entre tradição (monarquismo) e modernidade (ideias liberais). Carlos não consegue se decidir entre Joaninha (que representa o velho Portugal) e Georgina (representante do novo Portugal). Por fim, o protagonista acaba por desistir de ambas, perdendo sua identidade e sua moral. Carlos termina como uma representação de uma sociedade alienada e degradante.

Assim, a preocupação de Garrett em Viagens na minha terra é tentar despertar na nação portuguesa a consciência da situação em que o país se encontrava e que direção pode ser tomada para tentar mudar o rumo decadente que Portugal estava tomando. Porém, o próprio autor-narrador não vê perspectivas de melhora, pois a imagem que o homem português tem de si mesmo não é positiva. Dessa forma, apesar de conseguir enxergar um caminho para a recuperação de Portugal, Garrett termina a obra com um tom pessimista.

Comentário

Para o professor Marcílio Lopes Couto, do Colégio Anglo, deve-se antes de tudo ficar atento ao próprio estilo da obra. Apesar de ser um livro pertencente ao Romantismo, ele foge um pouco aos padrões dessa escola literária e já anuncia algumas características do Realismo. Além disso, é importante comparar a obra com outras, como, por exemplo, identificar que aspectos ligam “Viagens na minha terra” a outras obras românticas que são pedidas no vestibular (Memórias de um Sargento de Milícias e Til) e que aspectos a ligam a, por exemplo, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

O professor destaca também, que o título da obra de Garrett em si já é importante para compreender o texto. Já que o livro trata de apenas uma viagem que vai de Lisboa a Santarém, por que o autor coloca viagem no plural? Estas “viagens” fazem referência a uma série de reflexões políticas, históricas, filosóficas e existenciais que o autor-narrador trabalha no texto. Assim, estas “viagens” não tratam apenas de um deslocamento físico, mas também de um “deslocamento psicológico”.
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Almeida Garrett nasceu na cidade do Porto, Portugal, em 1799, com o nome de batismo de João Leitão da Silva. Durante sua época de estudante de Direito, em Coimbra, passou a adotar o nome que o tornaria célebre: Almeida Garrett. Participou da revolução liberal e ficou exilado na Inglaterra em 1823. Durante esse tempo, casou-se e teve contato com o movimento romântico inglês. Em 1824 mudou-se para França e escreveu Camões e Dona Branca, obras que inauguraram o romantismo português. Ávido defensor do liberalismo, Almeida enfrentou outros diversos exílios ao longo dos anos.

Após retornar definitivamente a Portugal, passa a incentivar a literatura e o teatro, escrevendo inúmeros livros e peças teatrais. É dele, por exemplo, a iniciativa de criar o Conservatório de Arte Dramática e o Teatro Normal (atualmente Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa). Faleceu em Lisboa no dia 9 de dezembro de 1854.

Suas principais obras são: “Camões” (1825), “Dona Branca” (1826), “Romanceiro” (1843), “Cancioneiro Geral” (1843), “Frei Luis de Sousa” (1844), “D’o Arco de Santana” (1845) e “Viagens na minha terra” (1846).


sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 16

 

A. A. de Assis (Tio Joca)

Desde menino aprendi a gostar de poesia. Em grande parte por influência de minha mãe e do meu avô maestro. Mas penso que um pouquinho devo também a um personagem fascinante, que trabalhava no velho trem da Leopoldina Railway, no trecho entre Campos e Miracema – RJ. Os passageiros, quase todos conhecidos dele, chamavam-no Tio Joca.

Simpatia em pessoa, tinha por função percorrer os vagões picotando ou recolhendo as passagens. Não bastasse o seu generoso sorriso resistente a quaisquer humores da vida, Tio Joca, redondilheiro de truz, animava a viagem fazendo versinhos. Antes de cada estação, ele ia de ponta a ponta do trem recitando suas alegres cantigas. Tal encanto isso me despertava, que ainda hoje me lembro de algumas:

     – Quem vai pra Ernesto Machado, me dê o bilhete, e obrigado.

     – Pra São Fidélis, quem vai, dá a passagem pro papai.

     – Quem desce no Grumarim, dê a passagem pra mim.

     – Passageiros de Pureza, passagem por gentileza.

     – Quem vai para Cambuci, entregue o bilhete aqui.

     – Quem vai para Três Irmãos, passagem nas minhas mãos.

Sei lá, mas sempre desconfiei de que a influência do bom Tio Joca deveria ser estudada com maior atenção. É que naquele trenzinho maria-fumaça viajavam quase diariamente numerosos jovens que iam das fazendas para as cidades frequentar a escola. E pode ter sido bem mais do que mera coincidência o fato de muitos daqueles moços e moças terem virado poetas algum tempo depois…

Cláudio de Cápua (Escritores)


Tendo um volumoso fichário de dados muito bem selecionado, alguns "escritores" sentem-se capazes de comentar temas variados, demonstrando através da sua escrita grande erudição, o que, em verdade, é falso, pois na maioria das vezes não possuem a mínima ideia sobre o que estão escrevendo.

Não pense caro leitor que assim agem porque querem ter um lucro econômico e isso seria uma recompensa para seus talentos. Em verdade, eles querem, por pura vaidade, ter o título de condutores da humanidade. Porém seus leitores não sabem como segui-los, tal a confusão mental de seus textos.

O erro desses "escritores" é achar que podem se valer da internet e de uma vasta biblioteca e que não precisam ter ideias próprias.

Um livro só deve ser escrito se realmente for contribuir, de uma forma ou de outra, para alargar os horizontes de quem vai lê-lo, para somar algo mais à cultura humana.

O trabalho calcado em terceiros nunca poderá ter a originalidade artística necessária. Porque arte em geral é pura criação. E só pode ser titulado de artista, de poeta, de escritor aquele que tem condições de passar sua própria mensagem para a cultura humana, em que gerações futuras se espelharão.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXII

A injustiça neste mundo
causa tanta indignação,
gera um abismo profundo
em toda a população.
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A luz que brota do sol
não tem nem comparação,
mas a que vem do farol
ameniza a escuridão.
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Com dinheiro até podemos
ter o pão de cada dia,
mas dele nem sempre obtemos,
a paz que traz harmonia,
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Deus conceda os atributos
para a planta produzir
e àquela que não der frutos
venha a pó se reduzir.
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É impossível resgatar
o passado da memória,
sem termos que transitar
pelos caminhos da história.
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Fazer, por mera paixão,
tão distante da moral,
pode acabar num caixão
seguido de um funeral.
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Frente o mar, alguém calado,
fica tomado de espanto,
vendo águas por todo lado
no horizonte um tênue manto.
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"Lançai nas águas profundas
estas redes tão vazias!
As verão voltar fecundas
na maior das pescarias".
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Muitos dos que são eleitos
têm um bom 'papo furado',
só defendem seus direitos
e esquecem do eleitorado.
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Nada nos comove tanto
como a morte do inocente,
a dor se lava com pranto
num mergulho comovente.
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Não mates tua saúde
que é da vida o dom maior,
sem drogas e em plenitude
teu viver será melhor.
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Não podemos subjugar
tudo ao nosso bel prazer,
cada qual tem seu lugar
e algo bom para fazer.
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Nem todo o assassino é nato
e ao crime se converteu,
pois antes do assassinato
outros atos cometeu.
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Nenhum presente supera
a grande satisfação,
de saber que alguém prospera,
fruto da dedicação.
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Ninguém obrigue ofertar
aqueles que nada têm,
porém muitos pra não dar,
fingem ser pobres também.
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No universo dos prazeres,
queres chegar aos confins?
Bem melhor se então viveres
longe das drogas e afins.
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O assassino nunca pensa
no resultado da ação,
lhe resta a triste sentença
da cruel condenação.
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O estudante desatento
não vai ter aprovação,
se lhe faltar o talento
pode sobrar frustração.
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O grande valor da oferta
nunca está na quantidade,
muitos dão de mão aberta
mas com pouca qualidade.
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O homem forte não fraqueja
busca forças no seu Deus
e assim onde quer que esteja
sempre alcança os sonhos seus.
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O ponto frágil da corda
é o que rompe por primeiro,
o fruto sempre transborda
se encher demais o celeiro.
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Paisagens exuberantes
embriagam todo olhar,
com doses estimulantes
pro visitante voltar.
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Quando as águas do passado
nosso ser sedento invade,
poderá voltar molhado
com respingos de saudade.
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Se Deus sempre está por nós,
contra nós quem pode estar?
Nunca Ele nos deixa sós,
sua luz quer emprestar.
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Temos razões de sobejo
para à vida agradecer,
que nela o maior desejo
seja com razão, vencer.
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Toda a dor me faz sofrer:
diz o fraco com temor.
É preferível morrer
que sentir tamanha dor.
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Toda a vez que o sofrimento
não for bem interpretado,
a dor se torna um tormento
longe de um aprendizado.
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Trabalho e dedicação
são pilares do progresso,
demonstram a vocação
e o segredo do sucesso.
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Um sinal de salvação
neste mundo tão cruel,
deve ser todo o cristão
sendo a Deus sempre fiel.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 4

 
Publicado no Jornal “O Indianópolis”
Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn


Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

Aparecido Raimundo de Souza (Brincando de quem sabe mais)

DOIS SUJEITOS discutiam na fila da casa lotérica. O primeiro, um baixinho sobejamente vestido, no rosto ostentando um óculos de aro banhado em ouro, camisa de seda e calça de terno de marca, tinha cara e pinta de intelectual. O outro, humildemente composto, carecia, na verdade, de tudo, a começar por um bom par de sapatos. Sem falar na camisa rasgada nas costas, a calça jeans com uma mancha de tinta vermelha na perna direita. Parecia, coitado, um ganso recém afogado numa bacia de água quente.

— Digo pra você uma coisa e pode ter certeza. A maioria do povo é burra. Ou melhor: os filhos da nossa terra são burros de pai e mãe.

— Não acredito. Existem pessoas inteligentes.

— Mas é uma minoria. O resto, pena. Topa tirar a prova dos nove?

— O que ganho com isso?

— Vamos fazer uma aposta.

— De que tipo. Se for dinheiro, aviso logo: aqui no bolso só disponho, miseravelmente dos trocados para o jogo da virada de ano. Quero entrar 2022 rico.

— Espera lá. Se eu ganhar, o amigo me compra vinte pães na primeira padaria que encontrarmos pela frente quando sairmos daqui. Se eu perder, lhe pago quarenta.

— É muito.

— Você não gosta de pães?

— Não é isso. Não posso pagar nenhum. Deixei a carteira em casa.

— Não terá que pagar coisa alguma, seu Mané. Basta me provar que existem pessoas inteligentes. Eu acho que a maior parte dos que aqui estão, grosso modo falando, não sabe nem por qual motivo resolveu sair de casa...

Um grandalhão sem camisa ouvindo essas palavras engrossou. Queria pegar o baixinho dos óculos de aro banhado em ouro e jogar para o alto.

— Burro é o irmão mais velho do seu tio, aquele que colocou você no mundo. Eu topo a parada. Pago os vinte do seu amigo aí, mais os quarenta e ainda entro na briga com vinte. Oitenta pães não se veem, todo os dias, numa mesa.

Para não ficar por baixo, o baixinho dos óculos de aro banhado em ouro topou.

— Fechado.

— Quem começa?

— Por favor, vá em frente.

— Vou sabatinar o prezado com perguntinhas fáceis.

— Eu escolho o tema.

— Nada disso: eu pergunto, eu escolho.

— Não tem graça.

Uma senhora que ouvia o papo dos três com atenção desmedida resolveu entrar no meio da confusão.

— Posso dar uma sugestão aos ilustres cavalheiros?

— Vá em frente, madame.

— Senhora...

— Que seja.

— Escreverei em pedacinhos de papel, algumas palavrinhas simples, ao acaso. Chacoalho nas mãos, vocês fecham os olhos e tiram um. Por exemplo, o Senhor aí, tirou “relógio”. O outro, aqui, “oligopólio”. Eu, então, perguntarei: o que é um relógio, ou o que venha ser oligopólio? A resposta deve ser rápida, simples e objetiva. Quem for mais sucinto será o ganhador. Podemos começar?

O dos óculos de aro banhado em ouro deu um passo à frente:

— Estou pronto.

— E eu aqui para o que der e vier.

Enquanto a bondosa senhora cuidava dos nomes, um outro cidadão com o boné do Flamengo resolveu entrar no desafio.

— Não pude deixar de ouvir a conversa fiada dos amigos. Quero provar aos distintos que não sou burro e levar para casa todos esses pães que estão em jogo...

— Pois tome guarda.

— Estou dentro...

A fila aumentava de tamanho a cada abrir e piscar de olhos. Na verdade, todos esperavam pelo desfecho da contenda. Saber quem seria o felizardo a ir embora com uma baita sacola de pães quentinhos. Num canto, onde havia uma espécie de bancada, a boa senhora grafava as tais indagações que seriam sorteadas entre os presentes. Uma funcionária avisada do que ocorria, bondosamente trouxe uma caixinha:

— Dona, a senhora põe os nomes aqui “drento” e balança...

A mulher agradeceu o gesto cortês da garota. Ao acabar de escrever, colocou todos os papeizinhos na caixinha, e, em seguida, se voltou para os competidores que a aguardavam, impacientes.

— Estão prontos?

Todos balançaram a cabeça, afirmativamente.

Nessa altura, a fila não era mais uma fila. Os que haviam chegado depois, procuraram se acotovelar em derredor, formando um grande circulo em torno dos desafiadores que tomariam parte da enxurrada de questionamentos.

— Quero alguém para sortear a primeira perguntinha.

Um senhor acompanhado de uma menina que puxava um cachorrinho por uma coleira, se prontificou. Meteu a mão na caixinha e trouxe na ponta dos dedos, uma tirinha rosa. Leu:

— Flauta.

O cara de óculos de aro banhado em ouro deu um passo à frente:

— Respondo.

— Quando quiser...

— Instrumento musical de sopro.

— Ótimo. Agora o senhor que respondeu por favor, puxe um papelzinho.

— Tabuada.    

Foi a vez do grandalhão sem camisa.

— Fácil. Livrinho que contém as quatro operações fundamentais.

— Bom. Agora tire a próxima disse a velhinha. Quem se habilita?

O grandalhão sem camisa leu a palavra: — Escanifrado*.

— Não sei...

— Aí está o primeiro burroooooo — completou a velhinha, eufórica.

Uma quase confusão restou formada. A senhora que intermediava, por pouco não levou uns tapas. Ao se ver acuada, deu uns gritos estridentes que reverberaram por todos os espaços da agência. Os funcionários vieram em socorro:

— Senhores, pelo amor de Deus, se comportem como adultos. Que coisa horrível! Quem souber, pode responder.

O silêncio se fez total. Ninguém, claro, sabia definir escanifrado.

— Bem, até agora o meu amigo dos óculos de aro banhado em ouro continua empatado com o nosso amigo grandalhão sem camisa.

— Pois vamos desempatar — se manifestou o senhor que rebocava a menina e o cachorrinho. – Se me permite, senhora, pedirei ao amigo do boné do Flamengo, por gentileza, que sorteie a pergunta seguinte.

— Atenção! — estrondou a senhora - quem acertar, leva os oitenta pães. Quem errar, paga. Entendido?

Todos fizeram que sim balançando a cabeça.

O homem do boné do Flamengo meteu a mão na caixa.

O silêncio se fazia total.

— Mentecapto...

O sujeitinho dos óculos de aro banhado em ouro olhou para o grandalhão sem camisa e o grandalhão sem camisa o encarou, de cima em baixo, desafiador.

— E então, seu intelectual de meia tigela? Passa ou responde?

— Não, eu respondo. E você?

— Também respondo...

— Cedo a vez. Solta a língua. Tá vendo, não sabe. Burroooooo...

— Você idem, também não sabe o que é mentecapto. Burroooooo...

— Você é um energúmeno. Está blefando. Burroooooo...

A boa velhinha resolveu apartar o que logo terminaria em briga.

— Vou contar de um a três. Quando terminar o que souber, responde e leva os oitenta pães. Lá vai: — Um...

Podia ser ouvida até a respiração dos rivais. A roda de curiosos cruzava os dedos, outros rezavam.

— Dois...

— É agora ou nunca: três.

O dos óculos de aro banhado em ouro resolveu abrir a guarda.

— Está bem. Desisto. Não sei a resposta...

— Burro, burro, burroooooo — ecoou a uma só voz em uníssono a galera que assistia e torcia pelos jogadores.

— Silêncio, gente, deixaram a educação no chiqueiro?

— Tudo bem, sou burro. Reconheço. Então diga qualquer um de vocês o que é mentecapto? Vamos, falem, vamos, miseráveis, desembuchem...

Os homens que se doeram ao serem taxados de miseráveis, do nada se engalfinharam e rolaram pelo chão, aos tapas e aos socos. Um corre-corre dos diabos tomou forma.

Os seguranças do estabelecimento precisaram entrar em cena, bem como alguns funcionários. Final da história: viaturas da polícia militar foram acionadas. Todos acabaram na delegacia, inclusive a boa velhinha que teve a ideia dos papeizinhos picados. Nem o idoso que trazia pela mão uma menina com um cãozinho atado a uma coleira conseguiu ficar de fora. Quando saíram escoltados pelos fardados, a multidão (não só das pessoas que esperavam para jogar), como uma dezena de transeuntes que passava na calçada deu novo clamor ao coro das chacotas,  em repeteco:

— Burroooooo!... Burroooooo!... Burroooooo!...
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* Escanifrado = muito magro; magrelo.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Sá de Carvalho (Álbum de Trovas)


A gratidão verdadeira
vem de Deus e me apaixona,
é sentido sem barreira,
é bênção que me emociona!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Ao fim de longa batalha
encontrei meu grande amor...
Surge a vitória, se espalha
dentro de mim com ardor!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Ao sair da depressão,
senti a vida chegar
com centelha de paixão
no meu peito a iluminar!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Bandeirinhas penduradas
balõezinhos coloridos...
São festas abençoadas
que nos deixam comovidos!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Beijou a mulher do guarda...
Jurou sofrer de miopia...
Enganação felizarda
para a cana que bebia!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Belas marolas do mar
com espumas borbulhantes
explodem a ronronar
no espírito dos amantes!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Da janela eu aprecio
a melodia a adentrar
no espaço do casario...
Triste violino a tocar!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Dei um beijo no bisneto
quando dormia quietinho...
Afaguei com todo afeto
o inocente nenenzinho!
(Ao Miguel)
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Esperamos o milagre,
ficamos esperançosos
que a mão de Deus nos consagre
com primores dadivosos!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Eu o tratei com respeito,
mas você foi muito infame!
Não creio no seu preceito,
nem que, de joelhos, proclame!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Filhos são inexplicáveis!
Sangue e carne que comovem...
São também inigualáveis
na doçura que promovem!
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

Há despedida que dói.
Há a que nos dá alegria,
aquela que nos corrói
e outra que é só poesia!
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Inverno! Tudo de bom:
cama, amor e cobertor!
Curtir um ótimo som,
almejar ser trovador!
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Meu mestre na arte do amor
é o tempo traiçoeiro
que se torna o consultor
de mim, pobre prisioneiro!
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Minha alma que dói, em pranto,
coração seco, sombrio...
São frutos do desencanto
por ter amor tão vadio!
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Mulher, tu és a guerreira
que lutas contra a violência!
Mulher, és a missioneira
que combate a turbulência!
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Na canoa sigo em frente...
Forte, luto contra o vento,
nesse mar tão turbulento
buscando um amor ardente!
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Naquele beijo roubado
ficou a eterna lembrança
de quem foi o mais amado
no silêncio da esperança!
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Nas horas das aflições
com desespero e temor,
busco o Senhor das ações
no reencontro de amor!
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No lindo olhar verde-mar
onde sozinho navego,
nas ondas do meu sonhar,
mil utopias carrego!
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No meu livro preferido
acho a folha perfumada
de quando eu, surpreendido,
recebi da minha amada!
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O burburinho dolente
no riacho acolhedor,
traz de volta, complacente,
o passado abrasador!
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Ó Francisco, padroeiro
da trova e do trovador,
de Jesus és o luzeiro,
do pobre és o defensor!
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Os seus olhos de criança,
meu coração disparado
são os frutos da esperança
de um amor afortunado!
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O Zé, cheio de cachaça,
se mete a tal valentão,
com a vizinha se engraça
e recebe um bofetão!
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Pé de moleque, cocadas,
canjica, bolo, quentão,
batidas tão perfumadas
pra esquentar o coração!
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Poder amar sem medida,
de peito aberto, sem medo,
chorar, cantar todo dia...
É a vida sem segredo!
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Quero abrandar a rudeza
tirar a dor que admoesta,
vestir-me com a leveza
das borboletas em festa!
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Senhor, meu Deus amoroso,
ponho em Ti minha esperança,
muda o que está nebuloso,
dê a nós mais segurança!
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Tanta dor e sofrimento
marcam o ano que findou,
mas Deus, num deslumbramento,
a vacina abençoou!
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Trovador não tem idade;
fala de Deus e do amor,
nas trovas mostra a saudade,
um coração sonhador!
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Ver o mundo com olhar
especial, glamoroso,
é um dom peculiar
próprio do poeta ardoroso.

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TROVAS PREMIADAS

A atitude petulante
que eu lia na sua face
foi de fato relevante...
Destruiu o nosso enlace!
(Menção Especial – São José dos Campos /SP)
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A justiça verdadeira
somente Deus pode dar.
A dos homens é matreira,
pretende ao povo enganar!
(4. Lugar – Menção honrosa – Ocara/CE – 2019)
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Aquela que tem piedade
é pessoa de valor.
Sabe unir fraternidade
com a caridade e o amor.
(2. Lugar – Cantagalo/RJ – 2017)
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Do negro céu estrelado
a estrela mais resplendente
dá ao mundo o mais sagrado
e iluminado presente!
(Cantagalo/RJ – 2020)
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Meninos... Bola de meia
no chão batido da vida,
buscam o que Deus semeia;
muita bênção merecida!
(2. Lugar – Menção Especial – Colômbia – 2020)
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Quando se vive a partilha
entre irmãos, finda a guerra...
Não mais a gente se humilha
todo conflito se encerra!
(5. Lugar – Curitiba – 2019)
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Sempre tive muita sorte,
mas sequer eu atinava
que era Deus o meu suporte
que a mim sempre abençoava!
(2. Lugar – Petrópolis/RJ – 2020)
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Viçosa, terra encantada!
Seu povo não é incréu,
bela serra abençoada
a orar na Igreja do céu!
(2. lugar – Maranguape/CE – 2016)

Fonte:
Autores diversos da UBT-Angra dos Reis. Sementes poéticas. SP: Daya Ed., 2021.
Livro enviado por Jessé Nascimento.

Samuel da Costa (Em perpétuos ciclos)


Em memória de João Carlos Pereira

‘’Eu prefiro as certezas do sim!
Do que a incertezas do talvez.’’
Clarisse da Costa


Uma vaga leve fragrância de flor de laranja alternado por um forte olor almiscarado estava suspenso no ar. Uma explosão de fortes e vívidas cores irritou muito o agente de segurança que vagava pelo salão. O vai e vem de gente negra, de vários tons de pele escura, pulseiras reluzentes, enormes brincos, lenços na cabeça, turbantes variados e as roupas berrantes e chamativas.

E o som baixo e discreto de eufônicas de variadas línguas estrangeiras que se lançavam no ar e intercambiavam entre as pessoas que ocupavam os espaços como se fosse uma perfeita sinfonia. O agente de segurança de idade avançada sentiu um frio na espinha como nunca tinha sentido antes.
***

— Aquieto-me para recomeçar um novo ciclo professor Muteia. O texto quase parece com o de uma falecida autora. Mas a obra é minha com toda a certeza!

O rascunho estava na mesa, Adérito Muteia relutava em pegar o manuscrito para ler. O literato africano já tinha recebido uma cópia em mídia digital. Mas algo gritava dentro dele e de forma desesperada.

— Minha querida Fabiana de Lima, não creio que posso satisfazer os anseios de vossa senhoria no momento.

O palavrório afetado, com leve sotaque luso, irritou a jovial loura, vestida sobriamente como uma aluna de pós-graduação a apresentar uma tese, com seu tailleur chanel azul limão. Os olhos castanhos em chamas dela cravaram profundamente em Muteia, o africano devolveu semicerrando os olhos negros profundos. Seria uma reunião e tanto pensou Muteia àquela hora.

O agente de segurança passou ao lado de onde Fabiana e Muteia foram se alojar. O homem da lei, muito idoso para um agente de campo, parou e se voltou de forma abrupta para o casal. Mil vozes mínimas em desesperos urraram dentre dele, o casal impassível sequer deu pela existência do homem idoso impecavelmente vestido que andava com a ajuda de uma bengala e de óculos escuros. Cansado o homem sai da sala onde estava, sai como quem foge para salvar a vida cambaleando e lânguido.

— Então irá fazer mudanças no texto? Olha, ô miúda, eu não tenho muito tempo para aspirantes a escritores, és ambiciosa demais e não creio que...

— Balela, professor Muteia! — Falou em tom de desafio — Não vim de tão longe para ter a sua aprovação pessoal!

— Não me interrompa de novo, miúda! Não vou e não quero te dar aprovação alguma, não é este o meu papel!

Muteia estava falando com a jovem adulta na frente dele como se estivesse de novo em campo de batalha. O adido militar já tinha visto isto antes, bem falantes e corajosos jovens combatentes recém saídos de treinamento apressados, em desespero eles choraram e se esconderam quando os combates começavam de fato.

— Não quero ser grosseira professor, me desculpe, eu só vim de muito longe e quero ser publicada, eu quero ser mais útil!

Muteia sentiu um zumbido que crescia e crescia, um drone pensou, dois drones na verdade calculou o professor africano. E o literato ficou mais relaxado e pensou em um charuto, sentia a necessidade de um charuto a bem da verdade.

E não demorou muito um jovem secretário indiano bem alinhado veio com uma bandeja de madeira com as bordas artesanalmente decoradas. Nela uma caixa de charutos pintada a mão e de copo de cristal decorado, nela havia chá de lima-da-pérsia gelado. O jovem de cabelos negros e olhos negros vivazes serviu o casal e desapareceu tão rápido quanto chegou.

Miúda não somente querer, pensar ou mesmo desejar! Na verdade, é tudo isto junto temperado com as a casualidades que a vida nos impõe! E temos que viver e conviver não somente com as nossas escolhas, mas também com as escolhas alheias.

O zumbido ficou mais alto, e o literato esperou e esperou enquanto pegou o cortador de charutos Don Emmanuel e o isqueiro à querosene com tanque de óleo transparente. O professor, literato e adido militar preparou e acendeu o charuto cubano que tinha levado à boca e deu uma demorada baforada.

A jovem escritora levantou a mão fechada em punho na frente do Muteia, abriu e fechou! O drone parado a poucos metros dos dois se esmigalhou e caiu no meio da rua, caiu na calçada e não atingiu ninguém. Muteia dá uma segunda baforada seguida de um discreto sorriso de marfim e bate palmas.

— Jovem e impulsiva! E nada discreta pelo que vejo!

O segundo drone parado a quilômetros de distância caiu lentamente, foi para em uma mata fechada do que seria um jardim de uma luxuosa casa abandonada. Muteia, muito cansara em dar aulas para estes jovens impulsivos.

— Vamos ver com mais cuidado o que temos aqui. — Muteia pegou o manuscrito em cima da mesa e leu: Eu falo entre estátuas!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Minha Estante de Livros (Volpone ou A Raposa, de Ben Jonson)


Volpone ou A Raposa, é a história de um homem rico, velho e sem filhos, apaixonado pelas boas coisas da vida e sobretudo pelo dinheiro que as compra. Ao seu redor vive uma nuvem de falsos amigos que ambicionam se tornarem seus herdeiros. Para se divertir com eles, Volpone se faz passar por moribundo, fazendo com que cada um acredite que será seu beneficiário. Dessa exposição de vícios e mesquinhez resulta uma visão absolutamente cínica da natureza humana.

A penetração psicológica, a habilidade da construção dramática e sobretudo a verve utilizada por Ben Jonson fizeram de Volpone ou a raposa uma das melhores obras da literatura inglesa.
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Benjamin Jonson, conhecido como Ben Jonson (1572 - 1637), foi um dramaturgo, poeta e ator inglês da Renascença. Ben Jonson é considerado um dos três pilares da era elisabetana, ao lado de Marlowe e Shakespeare, entre suas peças mais conhecidas estão Volpone, A Feira de São Bartolomeu: uma Comédia e O Alquimista. De fundamental importância para a renovação do teatro na primeira metade do século XVII. Suas peças eram tão populares em sua época quanto as do próprio William Shakespeare (1564-1616), seu rival contemporâneo e conterrâneo. Mestre do diálogo e do perfeito delineamento de personagens, manejava enredos muito bem construídos e defendia que o teatro era para divertir e instruir. Sua fórmula de comédia de costumes, que tinha por base uma curiosa teoria dos humores, continuou a exercer profunda influência na dramaturgia europeia por mais de dois séculos seguintes.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 10

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 47, 48 e 49


O LAZER DA FORMIGA


A formiga entrou no cinema porque achou a porta aberta e ninguém lhe pediu bilhete de entrada. Até aí, nada de mais, porque não é costume exigir bilhete de entrada a formigas. Elas gozam de certos privilégios, sem abusar deles.

O filme estava no meio. A formiga pensou em solicitar ao gerente que fosse interrompida a projeção para recomeçar do princípio, já que ela não estava entendendo nada; o filme era triste, e os anúncios falavam de comédia. Desistiu da ideia; talvez o cômico estivesse nisso mesmo.

A jovem sentada à sua esquerda fazia ruído ao comer pipoca, mas era uma boa alma e ofereceu pipoca à formiga. — Obrigada — respondeu ela —, estou de luto recente. — Compreendo — disse a moça —, ultimamente há muitas razões para não comer pipoca.

A formiga não estava disposta a conversar, e mudou de poltrona. Antes não o fizesse. Ficou ao lado de um senhor que coleciona formigas, e que sentiu, pelo cheiro, a raridade de sua espécie. Você será a 7001a da minha coleção, disse ele, esfregando as mãos de contente. E abrindo uma caixinha de rapé, colocou dentro a formiga, fechou a caixinha e saiu do cinema.
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ONDE NINGUÉM ENTRA

Na casa do rei, que é um palácio de corindo e pórfiro vermelho antigo, não posso entrar, mas nos jardins do rei, abertos à visitação pública, eu e meus amigos e os amigos de meus amigos temos direito de passear e até de fazer piquenique.

Vivemos de olhos cravados nas janelas da casa do rei, pois há expectativa de ele assomar e saudar-nos ou fazer um gesto qualquer. Até agora isto não aconteceu. Começamos a suspeitar que o rei não mora, nunca morou em sua casa.

Então onde mora o rei, e se não mora ali, por que não nos franqueiam a entrada da casa? O guarda explicou-nos que seria contra o protocolo, e não pode haver rei sem protocolo. E que não fazia mal o rei, por hipótese, não morar ali ou mesmo em nenhum lugar, pois o rei não é propriamente uma pessoa, mas uma instituição, ao passo que nós, seus súditos, somos pessoas físicas e em geral não nos comportamos bem nos paços.

Um dia destes alguém, desconhecido de nós todos, tentou forçar a entrada na casa do rei e foi dissuadido com bons modos. Como insistisse, removeram-no à força. Meu filho de oito anos, que assistiu à cena, perguntou: “Quem sabe se era o rei que queria entrar?”.
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O PERGUNTAR E O RESPONDER

O espelho recusou-se a responder a Lavínia que ela é a mais bela mulher do Brasil. Aliás, não respondeu nada. Era um espelho muito silencioso. Lavínia retirou-o da parede e colocou outro, que emitia sons ininteligíveis, e foi também substituído.

O terceiro espelho já fazia uso moderado da palavra, porém não dizia coisa com coisa.

Um quarto espelho chegou a pronunciar nitidamente esta frase:

“Vou pensar”. Ficou pensando a semana inteira, sem chegar à conclusão.

Lavínia apelou para um quinto espelho, e este, antes que a vaidosa senhora fizesse a interrogação aflita, perguntou-lhe:

— Mulher, haverá no Brasil espelho mais belo do que eu?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.