quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Odenir Follador (Crestomatia Trovadoresca)

A foto ou fotografia
revela muita emoção,
deixa a marca desse dia
 impressa no coração!

A imagem que eu possuía
e guardei com tanto amor...
A sua fotografia,
aos poucos, ficou sem cor!

A mulher é como a flor,
necessita de carinho...
E é somente com amor,
que ganhamos um beijinho!

Arte é a demonstração
de criar o mundo em verso;
é para o escritor a visão
subjetiva do universo!

A trova é fácil, quer ver?
Quatro versos bem rimados,
sete sílabas conter,
com assuntos bem formados!

Chora junto àquela fonte
a bela moça donzela...
Raios de sol do horizonte
brilham nas lágrimas dela.
5. Lugar – I Concurso de Trovas “Singrando Horizontes”, Estadual (PR), 2019.

Deus criou o Paraíso,
o Céu e todo o Universo...
Mas, o homem perdeu o juízo
ao criar um mundo inverso!

É comum em residência
ter a proteção de um cão;
por vezes sem assistência,
de teto e alimentação!
5. Lugar – I Concurso de Trovas "Memorial Luiz Otávio" da Delegacia de Arapongas/PR, Estadual (PR), 2016.

Eu já não sei o que faço
nas linhas do meu caderno,
cada palavra que traço
lembra nosso amor eterno.

Feliz dias dos avós!
E de Sant’Ana também!
Que derrame sobre vós
graças e saúde... Amém!

Lua é a inspiração
aos casais enamorados;
neste clima de emoção
aos beijos, apaixonados...

Mãe... Oh! Palavra sublime
por três letras é formada;
e tão grande amor se exprime
nesta palavra encantada!

Nas festas juninas têm:
pipoca, doce e quentão;
dança caipira e também:
fogos, fogueira e pinhão.

Nas horas que não consigo
e não sei mais o que faço;
vem resolver um amigo
com a força de um abraço!

Neste incrível universo    
do mundo da poesia;
sendo aprendiz, tento imerso
nos meus versos, noite e dia!

Neste mágico momento
que desce a temperatura;
em flocos e muito lento
a neve queda, alva e pura!

Netos! Um encantamento...
Alegria que traduz
recordações  no momento,
de uma paz e muita luz!

Nosso Santo protetor...
Salve São Francisco... Amém!
Patrono do trovador,
proteja a fauna também!

O dia do trovador
é pra sempre ser lembrado;
pois a trova tem valor
de brilhante lapidado!

Onde reside a humildade,
sempre ajudo, mas confesso:
não quero ter a verdade,
muito menos o sucesso.

Plantando haverá colheita,
nos diz um velho ditado;
só não colhe quem rejeita,
um solo bem preparado.

Quem encontrar um amigo
trate com muito cuidado;
preserve sempre consigo
esse tesouro encontrado.

Quisera ninguém mais visse!
Nem ódio, guerra ou maldade,
e todo mundo se unisse:
Em raça, cor e amizade.

Saudemos a primavera,
estação linda das flores;
oh! Se eu pudesse... Quem dera!
Cantar-te em versos e cores.

Ter pureza natural
é ser correto, é atitude!
Ser verdadeiro, real,
é legítima virtude!

Toda ação final se alcança
com a equipe em união;
onde existe liderança,
há também satisfação!
7. Lugar – II Concurso de Trovas "Memorial Luiz Otávio", da UBT Delegacia de Arapongas/PR – Estadual (PR), 2018.

Todo álcool é semente
do usuário de bebida;
tornando-o dependente,
com risco da própria vida.

Todo professor ensina
com muita dedicação...
Escreve, fala, examina,
e o aluno aprende a lição!

Todo texto literário
lapidado pelo autor,
tem como destinatário
os olhos do seu leitor.

Uma linda foto antiga    
traz boas recordações,
saudades que nos instiga
a reviver emoções!

Um momento singular
de alegria e de emoção...
É para sempre guardar
no fundo do coração!
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Odenir Follador, nasceu em 31 de maio de 1948, em Taquaruçu, Distrito de Palmeira-PR, faleceu em Ponta Grossa/PR, onde se radicou, em 23 de novembro de 2021.

Formado como Técnico de Contabilidade em 1975, Licenciado em Ciências em 1979, pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e Licenciado em Letras – Português/Inglês em 2017, pela UniCesumar de Maringá-PR. Pós-graduação “Lato Sensu” em Neuroaprendizagem, pela UniCesumar em 2019.

Atuou como Militar no 13º Batalhão de Infantaria Blindado de 1967 a 1977, e como Economiário na Caixa Econômica Federal, em Castro e Ponta Grossa, nas funções de Escriturário, Caixa Executivo, Gerente de Núcleo e Supervisor, até sua aposentadoria.

Atuou por algum tempo como professor de Matemática, e como professor de Ciências. Teve experiência por algum tempo com professor de música.

Acadêmico de diversas academias, como ACLAB – Academia de Ciências Letras e Artes Belforroxense, Rio de Janeiro-RJ (correspondente); Academia de Letras Brasil/Suíça (correspondente); Academia de Letras dos Campos Gerais, Ponta Grossa-PR (efetivo); Academia de Letras de Teófilo Otoni – MG (correspondente); Academia Ponta-grossense de Letras e Artes, Ponta Grossa-PR (efetivo); Academia de Artes de Cabo Frio -RJ; Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes, Rio de Janeiro –RJ (correspondente); Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes, Niterói-RJ (correspondente); Movimento Nacional Elos Literários, Salvador – BA (efetivo); Ordem dos Benfeitores Culturais da Humanidade, Rio de Janeiro-RJ (correspondente); Organização Mundial dos Defensores dos Direitos Humanos (efetivo).

Figurante do filme Cafundó em Ponta Grossa em 1999, lançado no Brasil em de 2005.

Premiado em concursos de trovas, poesias e contos no Brasil e exterior.

Em 2015, a Câmara Municipal de Ponta Grossa lhe conferiu o Título de Cidadão Honorário de Ponta Grossa, pelos relevantes serviços prestados á Comunidade e ao Município.

Em 2016, O Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes do Rio de Janeiro, lhe confere a Medalha no Grau Oficial “Ordem do Mérito Conìnter Artes”.

Em 2016, o Conselho Internacional dos Acadêmicos de Ciências, Letras e Artes & o Instituto Comnène Palaiologos de Educação e Cultura, lhe concede a Medalha e outorga a Comenda da Paz Nelson Mandela, com direito ao uso do Título Honorífico de Comendador, em reconhecimento de Suas contribuições de destaque nas diversas áreas de trabalho, bem como os Seus Atos que contribuíram através de Serviços Prestados à Humanidade, através da Influência Intelectual, Científica e Artística.

Livros publicados:
Memórias de infância e outros relatos (Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2012) e Associação dos Militares da Reserva–ASMIRE (Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015).


Fonte:
Trovas enviadas pelo trovador.

Isaac Asimov (Versos na luz)

A última pessoa deste mundo que alguém julgaria um criminoso era a sra. Avis Lardner. Viúva do grande mártir da Astronáutica, era filantropa, colecionadora de arte, uma extraordinária anfitriã e, todos concordavam, um gênio artístico. Acima de tudo, era o mais gentil e bondoso ser humano que se podia imaginar.

O marido, William J. Lardner, morreu, como todos sabemos, devido aos efeitos da radiação da luz solar, após ter deliberadamente permanecido no espaço, a fim de que uma espaçonave de passageiros pudesse levar seu veículo espacial em segurança à Estação Espacial n°5.

Por isso a sra. Lardner havia recebido uma generosa pensão, a qual investira bem e com muita sabedoria. Ao fim da meia-idade, estava rica.

Sua casa era uma espécie de exposição permanente, um verdadeiro museu, contendo uma coleção de lindas joias, pequena, porém de extremo bom gosto. De uma dúzia de diferentes culturas havia conseguido relíquias de quase toda peça de artesanato concebível que pudessem ser engastadas de joias para servir à aristocracia daquela mesma cultura. Possuía um dos primeiros relógios de pulso, adornado de pedras preciosas, fabricado na América, uma adaga incrustada de pedras preciosas, procedente do Camboja, um par de óculos, decorado com joias, vindo da Itália, e assim por diante, interminavelmente.

Tudo estava aberto ao público. As peças de artesanato não estavam no seguro, e não havia nenhuma providência comum no sentido de garanti-las. Não havia a necessidade de nada convencional, porquanto a sra. Lardner mantinha um corpo de auxiliares, constituído de robôs-servos, a cada um dos quais podia se confiar a guarda de cada um dos objetos, tendo eles imperturbável concentração, irrepreensível honestidade e irrevogável eficiência.

Todos sabiam da existência dos robôs e não há registro de ter algum dia ocorrido alguma tentativa de furto.

E havia também, é claro, sua escultura-luz.

Como a sra. Lardner descobriu seu próprio gênio para a arte, nenhum convidado de suas pródigas reuniões conseguia adivinhar. Contudo, em cada ocasião, quando a sra. Lardner abria a casa para os convidados, uma nova sinfonia de luz percorria os aposentos de um lado ao outro; curvas e sólidos tridimensionais, numa mescla de cores, algumas puras, outras difusas, em surpreendentes efeitos cristalinos que mergulhavam no assombro cada convidado, e que se ajustavam por si mesmos, de forma a embelezar os cabelos macios e azulados e o rosto de contornos pouco definidos da sra. Lardner.

Era por causa da escultura-luz, mais do que por qualquer outra coisa, que os convidados apareciam. Nunca era a mesma duas vezes, e nunca deixava de explorar novos enfoques da arte.

Muitas pessoas que podiam comprar consolo-luz preparavam esculturas-luz por diversão, mas ninguém chegava nem de longe a igualar a perícia da sra. Lardner. Nem mesmo aqueles que se consideravam artistas profissionais.

Ela mesma era encantadoramente modesta a respeito disso – Não, não – dizia ela, quando alguém destilava lirismo. – Eu não a denominaria “poesia na luz”. Isto é ser bondosa demais. No máximo, eu diria que se trata de meros “versos na luz” – e todos sorriam da sutil tirada de espírito.

Embora fosse solicitada frequentemente a fazê-lo, jamais criava “escultura-luz” em outras ocasiões, salvo em suas próprias festas.

– Seria comercialização. – costumava dizer.

Contudo, não objetava à preparação de elaborados hologramas de suas esculturas, de forma que se tornassem permanentes e fossem reproduzidos em todos os museus do mundo. Tampouco nunca cobrou nada pelo uso que pudesse ser feito de suas “esculturas-luz”.

– Eu não teria coragem de cobrar um centavo. – dizia ela, abrindo bem os braços. – É de graça para todos. Afinal de contas, eu mesma a uso durante pouco tempo.

Era verdade, ela nunca utilizava duas vezes a mesma “escultura-luz”.

Ela própria cooperava quando eram feitos os hologramas. Observando benignamente cada etapa, estava sempre pronta a mandar que os robôs ajudassem.

– Por favor, Courtney, quer ter a bondade de ajustar a escadinha?

Era o seu estilo. Sempre se dirigia aos robôs com a mais formal das cortesias.

Certa ocasião, há muitos anos, quase fora repreendida por um funcionário federal do “Bureau of Robots and Mechanical Men”:

– Não pode fazer isto. – disse ele severamente. – Interfere na eficiência deles. São construídos para cumprir ordens e quanto mais claramente lhes der ordens, mais eficientes as cumprirão. Quando pede com elaborada polidez, compreendem com dificuldade que está sendo dada uma ordem. Reagem mais lentamente.

A sra. Lardner ergueu a aristocrática cabeça:

– Não exijo rapidez e eficiência. – disse ela. – Peço boa vontade. Meus robôs me amam.

O funcionário poderia ter explicado que robôs não podem amar, mas murchou sob o olhar ofendido, ainda que meigo, dela.

Era fato conhecido de todos que a sra. Lardner jamais remeteu um robô à fábrica para ajustamentos. Seus cérebros positrônicos eram de enorme complexidade, e quando saem da fábrica, um em dez não está perfeitamente regulado. Às vezes o desajuste não se revela durante um período de tempo, mas sempre que um engano se manifesta, a “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation” efetua a correção gratuitamente.

A sra. Lardner sacudiu a cabeça:

– A partir do momento em que o robô está em minha casa, – disse – e cumpre com seus deveres, as excentricidades secundárias devem ser toleradas. Não permitirei que seja maltratado.

Era a pior coisa possível tentar explicar que um robô era apenas uma máquina. Ela dizia inflexivamente:

– Nada que seja tão inteligente como um robô pode ser apenas uma máquina. Trato-os como gente.

E pronto!

Ela conservava até mesmo Max, embora fosse quase inútil. Mal se podia compreender o que se esperava dele. Contudo, a sra. Lardner insistia:

– Absolutamente, – dizia firmemente – ele é capaz de pegar e guardar chapéus e casacos perfeitamente. Segura objetos para mim. Sabe fazer muitas coisas.

– Mas por que não manda regulá-lo? – perguntou um amigo, certa ocasião.

– Oh, eu não teria coragem. Ele é ele mesmo. É muito amável, sabe? Afinal de contas, um cérebro positrônico é tão complexo que ninguém consegue saber onde está enguiçado. Se fosse ajustado para a perfeita normalidade, não haveria meios de recuperá-lo para a amabilidade que possui agora. E eu não quero desfazer-me dele.

– Mas, se ele está mal regulado, – disse o amigo, olhando nervosamente para a sra. Lardner – não poderá ser perigoso?

– Nunca! – a sra. Lardner deu uma risada. – Tenho-o há anos. É completamente inofensivo e é um amor.

Na verdade, ele tinha a mesma aparência de todos os outros robôs: liso, metálico, vagamente humano, mas inexpressivo.

Contudo, para a bondosa sra. Lardner, todos eram gente, pessoas, todos meigos, todos adoráveis. Ela era assim.

Como poderia cometer um crime?

A última pessoa que alguém esperaria que fosse assassinado seria John Semper Travis. Introvertido e de modos suaves, estava no mundo, mas não pertencia a ele. Possuía aquele peculiar talento para a Matemática que lhe tornava possível resolver mentalmente o complexo entrelaçamento de uma miríade de circuitos positrônicos cerebrais da mente de um robô.

Era o engenheiro chefe da “U. S. Robots and Mechanical Men Corporation”.

Mas era também um entusiasmado amador em “escultura-luz”. Havia escrito um livro sobre a matéria, no qual tentava mostrar que o tipo de Matemática que utilizava para resolver problemas de circuitos de cérebros positrônicos poderia ser modificado para servir de guia na produção da estética da “escultura-luz”.

No entanto, sua tentativa de colocar a teoria em prática foi um fracasso desanimador. As esculturas que produziu, segundo seus princípios matemáticos, eram pesadas, mecânicas e sem interesse.

Era a única razão de infelicidade em sua vida tranquila, introvertida e segura, no entanto era razão suficiente para sentir-se profundamente infeliz. Ele sabia que suas teorias eram corretas, se bem que não conseguisse pô-las em ação. Se não conseguisse produzir uma boa peça de “escultura-luz”…

Naturalmente, estava a par da “escultura-luz” da sra. Lardner. Ela era universalmente aplaudida como um gênio, muito embora Travis soubesse que era incapaz de compreender mesmo o mais simples aspecto da matemática dos robôs. Havia trocado correspondência com ela, mas ela recusava-se obstinadamente a explicar seus métodos, levando-o a perguntar-se se ela possuía mesmo algum. Não seria mera intuição? – mas mesmo a intuição pode ser reduzida à matemática. Finalmente, ele conseguiu receber um convite para uma das festas. Precisava avistar-se com ela a todo custo.

O sr. Travis chegou bem tarde. Havia feito uma última tentativa com uma peça de “escultura-luz”, que resultara num fracasso desalentador.

Cumprimentou a sra. Lardner com uma espécie de enigmático respeito e disse:

– Estranho aquele robô que pegou meu chapéu e casaco.

– Aquele é Max. – disse a sra. Lardner.

– Está muito desregulado e é um modelo bem antigo. Por que razão não o manda para a fábrica?

– Oh, não! – disse a sra. Lardner. – Seria demasiado trabalho.

– De modo nenhum, sra. Lardner. – disse Travis. – A sra. ficaria surpresa com a simplicidade do trabalho. De vez que sou da U.S. Robots, tomei a liberdade de ajustá-lo pessoalmente. Não levou tempo e a sra. verá que ele está agora em perfeitas condições de funcionamento.

Uma estranha mudança ocorreu no rosto da sra. Lardner. A fúria estampou-se nele pela primeira vez em sua existência sossegada. Era como se os traços fisionômicos não soubessem qual posição tomar.

– Ajustou-o? – perguntou com voz aguda. – Mas foi ele que criou as minhas “esculturas-luz”. Foi o ajustamento defeituoso, o desajuste, que você jamais conseguirá restaurar… aquele…

Foi uma grande desgraça que ela estivesse mostrando sua coleção naquele momento e que a adaga com cabo cravejado com pedras preciosas, procedente do Camboja, estivesse sobre o tampo de mármore na mesa em frente dela.

A fisionomia de Travis também se distorceu:

– A sra. quer dizer que, se eu tivesse estudado o estranho cérebro positrônico dele, eu poderia ter aprendido…

Ela avançou com a arma com demasiada rapidez para alguém detê-la. Ele não tentou se esquivar ao golpe. Há quem diga que foi ao encontro dele – como se quisesse morrer.

Fonte:
Isaac Asimov. Nós, Robôs. Publicado em 1982.

Minha Estante de Livros (Solo de Clarineta, de Érico Veríssimo)


Solo de clarineta é uma obra múltipla: reflexões de um escritor sobre sua ficção e a arte literária, testemunho de um período da história brasileira e mundial, e retrato de uma família que parece tirado de um romance.

O leitor mergulha no caldo da matéria-prima de onde brotou a obra do autor de O tempo e o vento nos dois volumes que revelam a trajetória da família Verissimo, desde Érico garoto, passando pela decadência econômica da família, pela luta da mãe para manter os filhos com o trabalho de modista, pelas leituras de um menino à sombra de uma ameixeira-do-japão, até a consagração de Érico Verissimo como um dos escritores mais importantes da literatura brasileira.

Solo de Clarineta é dividida em dois volumes:

O primeiro volume de Solo de clarineta (1973) Veríssimo conta a sua infância e adolescência até a idade adulta quando abandona o cargo na UPA e sua filha Clarissa casa-se com o físico americano David Jaffe. No segundo, após relatar o nascimento de seus três netos e o denominar de O Arquipélago , relatando também o primeiro dos ataques cardíacos, Érico começa a contar sua viagens. A primeira é a viagem à Grécia. Depois conta sobre O Senhor Embaixador e então… Portugal! Veríssimo era apaixonado pelo país e conta de seu tour pelo país em 1959 junto com a esposa Mafalda, seu editor e seu filho Luís Fernando. Infelizmente, Érico morreu antes de concluir este volume, essa segunda parte foi organizada postumamente por Flávio Loureiro Chaves e publicada em 1976, segunda parte deste segundo volume, contando sobre a Holanda, a Espanha e um colóquio entre ele e o homem no espelho através do qual ele analisa a si mesmo, sua obra, suas opiniões e sua autobiografia: o que ele nos deu foi "não um concerto de jazz ou uma grande peça sinfônica, mas um solo de clarineta.”

Nessa edição, os volumes apresentam prefácio e apresentação inéditos, uma cronologia que cruza dados biográficos da família Verissimo com a vida dos personagens das obras mais famosas de Érico, e um caderno com fotos, manuscritos e desenhos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 546

 

Leandro Bertoldo Silva e Valéria Gurgel (Qual o mundo que você quer?)

 (Texto inicial de Leandro Bertoldo Silva, o “Quixote das Gerais”)

Há um tempo escrevi uma reflexão sobre a pandemia e fiquei a pensar como ele, o tempo, muda de perspectiva. O passado já não existe e o futuro ainda virá e, assim, além de acarretar uma sobrecarga no presente, faz muitas coisas se perderem, inclusive nossas responsabilidades com nós mesmos.  

Para quem escreve, excetuando os clássicos, que só são clássicos por nunca serem esquecidos, pode ser meio frustrante se sentir desatualizado ou, no mínimo, ver se tornar desimportante algo tão sério e talvez diminuído na fala dos que ainda virão. Já pensou ouvir daqui a alguns anos algo do tipo: “Ah, não liga não! Esse negócio de pandemia que o vovô fala é láááá do ‘tempo do onça’ (assim como essa expressão). Hoje não tem importância nenhuma, é só uma ‘gripezinha’”. Tomara mesmo ser uma gripezinha com o avanço da ciência… No entanto, na iminência de deixar vivo o alcance de nossos atos, devo acrescentar apenas uma pergunta ao final do escrito. Foi assim…

Que momento vivemos! É engraçado — sim, há “graça” em tudo isso — pensar na única certeza existente: as incertezas.

Sou do tipo de pessoa a acreditar naquele ditado: “se a vida te deu um limão, faça uma limonada”. Pois é, a vida não nos deu um limão, mas uma plantação inteira.

Estou a falar dessa medonha pandemia que em momento algum da humanidade a história registrou algo tão surpreendente. Mas não quero dizer aqui mais do que os jornais, os especialistas e as autoridades já noticiaram; quero ir além do medo, se é possível, e pensar nisso tudo como um grande presente, uma grande oportunidade de uma mudança absurdamente necessária em nossas vidas, pelo menos na minha.

Há tempos vivenciava uma angústia por não conseguir expressar meu sentimento ao olhar para as coisas do mundo, de como as pessoas, e até mesmo eu, iam dispondo suas vaidades, suas “certezas” e opiniões em um mundo tão superficial. De repente a felicidade passou a ser medida pela nossa popularidade, pela quantidade de “amigos” e seguidores e, depois, nem isso – bastam as curtidas, o resto não interessa.

Em um mundo onde tudo virou marketing – e da pior espécie – ao ponto de nos vermos invadidos por uma onda de propagandas de produtos e serviços os quais sequer necessitamos ou temos interesse, em um mundo onde até os sorrisos são vendidos por uma camuflada onda de “gatilhos mentais” para capturar nossa atenção e vender felicidade de forma fácil, para não dizer mágica, a custo da inocência do desejo, vem a vida e nos obriga a parar com tudo isso e a pensar unicamente em sobreviver.

Mas sobreviver para quê?

Para voltar ao que era antes? Voltar ao trabalho da mesma maneira como se nada tivesse acontecido ou simplesmente termos tirado umas férias inesperadas? Voltar às enxurradas de postagens marqueteiras e à vida superficial das redes sociais? Voltar a tratar o outro como inimigo porque pensa diferente, embora também não sejamos obrigados a ser cordiais com quem nos faz mal e termos o direito de nos afastar? E por que não fazemos? Porque temos medo de sermos sinceros com nós mesmos e, por isso, suportamos o insuportável? Sabe aquele pensamento: “eu te respeito, mas isso não significa que eu preciso ser seu amigo?” Sabe aquele trabalho que você realiza porque é obrigado a ganhar dinheiro, pois se não fosse isso você não o faria? Sabe tantas outras coisas ditas e acreditadas pela verdade dos outros?

Pois é… Para esse mundo eu não quero mais voltar.

Quero o mundo onde eu continue a escrever, porque escrever é a minha sobrevivência, mas sem me ver preso nas correntes ocultas a me forçar a divulgar para todo mundo. Deixa-me falar uma coisa: estou a compreender que o que fazemos não é para todo mundo… Este blog não é para todo mundo, os meus livros não são para todo mundo, nem mesmo este texto é para todo mundo, mas para quem, por alguma razão, se alinha com o meu estado de espírito e com a minha forma de pensar. Pode não ser, e certamente não é, melhor e nem pior do que a de ninguém; é simplesmente minha e nossa para quem nos irmanamos. E isso basta.

Quero o mundo onde a obrigação de trabalhar não destrua o prazer que o trabalho me traz e nem mesmo faça parte da minha vida; onde as pessoas entendam o meu jeito de fazer as coisas. Pode até não ser o delas, e está tudo bem.

Quero o mundo onde eu tenha menos amigos virtuais e mais amigos reais. O mundo onde a tecnologia seja usada a meu favor e não o contrário. O mundo o qual não seja preciso me afastar das pessoas para dizer o quanto gosto delas e futuramente eu me arrepender de não tê-lo feito. Quero um mundo tão diferente…

Sabe o que mais penso de tudo isso?

Para esse mundo poder existir eu precisarei ressignificar dentro dele quem eu sou ou quem eu fui. Não é ele a mudar, mas eu na minha ignorância de me fechar em meus medos por achar não dar conta dos desafios que é não pertencer a lugares, relacionamentos, formas de trabalho há muito perdidas por não mais acreditar dessa ou daquela maneira.

E aqui está a “graça”, não hilária, mas da permissão de sermos autênticos e fazermos diferente, pois, embora a palavra mudança traga calafrios gigantescos em nossos corações, nos colocamos nessa situação de ter nela a única forma de salvar a nós mesmos e os outros, nos olhando de verdade e transformando as incertezas em possibilidades.

E VOCÊ, QUAL O MUNDO QUE VOCÊ QUER?

E aqui acrescento a pergunta a tornar essa reflexão universal e duradoura, a considerar a vitória da ciência. Passado tudo isso e a olhar para você, mas olhar bem, em qualquer tempo e em qualquer lugar, responda: é esse o mundo que você quis?
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QUAL O MUNDO QUE VOCÊ QUER?

por Valéria Gurgel


Eu dei a minha resposta! Uma carta desabafo que gostaria muito que também fosse lida por Miguel de Cervantes! Claro, se ele hoje pudesse ter acesso às nossas atuais realidades, mas, que para dizer a verdade, vejo que o mundo e a humanidade não caminha! Até hoje mal rasteja por aí! E percebo que dentro de cada um de nós habita um Dom Quixote e um Sancho Pança!!! Vamos à resposta.
__________

Querido amigo “Quixote das Gerais”, Don Leandro Bertoldo! Essa é a minha humilde carta, que eu, Valéria Gurgel, gostaria ter enviado para Miguel de Cervantes!

Se eu pudesse analisar o mundo em que vivemos, baseado no contraste entre o Cavalheiro Sonhador que nos inspira a agir e o de seu Fiel Escudeiro realista e sua revigorante humanidade, eu diria que seguimos oscilando o pêndulo da razão e da emoção.

Essa busca constante pelo equilíbrio tão almejado que poderia dar fim ao egoísmo, chaga sangrenta essa, que só atrasa o processo evolutivo da humanidade, não cessa. Somos bombardeados a cada século, a cada ano, meses, dias, horas por inúmeros e constantes desafios. Doenças, conflitos familiares, conflitos internos, externos, desigualdades, insanidades inumanas e limitações financeiras, físicas, psíquicas, que resultam em letargiar nossas ações, reações e decisões no cotidiano da vida. E tudo isso vem recheando os nossos mais lindos sonhos deixando-os com um leve sabor amargo de decepção.

Sabemos que viver é uma dádiva, um verdadeiro presente que nos foi concedido pelo criador. Por isso, e por um sentimento que nos invade às vezes, a vida nos instiga a aventurar-se a…

Aí mora o precioso quixotismo imbatível, romântico e sonhador que não nos deixa esmorecer e amarelar o verde de nossas esperanças. Que faz despertar o brilho nos olhos e aquele desejo de fazer acontecer, ainda que quantas vezes, nem sabemos como ou por onde seguir.

Diante a essa competição desenfreada, cruel, onde os verdadeiros valores, vem sendo substituídos por prazeres vãos. Vitórias que jamais conhecerão derrotas, competidores que não enxergam o seu adversário com o mesmo valor e respeito, atropelamentos sucessivos acontecem nessa desenfreada corrida que pisa em cima do outro para se elevar, sucessos que jamais entenderam o que é trabalho. A Selva de pedras devoradora das oportunidades e do papel de destaque.

Ou podemos optar por estagnarmos as ideias, os projetos, os desejos, os sentimentos, por excesso de realismo deprimente, que também não nos conduz a nenhum porto seguro. E morremos frustrados, decepcionados, quantas inúmeras vezes em uma única vida, sem sequer descobrirmos: aonde habita o nosso verdadeiro propósito por trás de tudo isso!?

Lamentavelmente ainda nos perdemos entre o passado e o futuro, entre o medo e a coragem, entre o sonho e a realidade, deixando escapar de nossas mãos esse autoconhecimento de entender, afinal, o que viemos fazer aqui. E nessas angústias existenciais, vamos perdendo o nosso precioso tempo, presente, que é a única coisa real na qual ainda temos um certo controle substancial.

As nossas inquietações pançônicas urgem e nos tornamos leões com garras abertas prontos para atacar, quando o assunto é família, sobrevivência, e defender o nosso condado familiar repleto de carências existenciais e limitantes crenças, medos, bloqueios mentais nos quais somos submetidos de geração a geração, até mesmo sem entender o porquê de tudo isso.

Então, afinal, quem somos nós? Cavalheiros Errantes ou Fiéis Escudeiros, meros acompanhantes? Somos os seguidores da tropa, da grande massa de pés no chão, ou o fidalgo com a cabeça nas estrelas, que mira um oásis no horizonte, ainda que caminhando sobre as areias escaldantes do deserto? Somos simplesmente humanos, ou, desejamos ser?

Como defensores de nossas subjetividades temos o direito de sermos, de querermos, porém, o ciclo vicioso, do “te ver e não te querer, é improvável, é impossível” como diz a letra da música de Francisco Eduardo Amaral e Samuel Rosa de Alvarenga, é um labirinto cruel, sem fim, que às vezes, não nos leva a lugar nenhum. Entender e valorizar o Ser, sem o Ter, é um processo longo e diário.

Portanto, vale a pena gargalharmos por nossas supostas infelicidades ou fracassos assim entendidos por nós e se formos motivos de chacotas por almejarmos algo maior que nós mesmos, que saibamos seguir adiante, com a certeza de que ainda que pareça distante essa conquista, toda longa caminhada sempre começa com o primeiro passo. Às vezes, esse primeiro passo possa representar muita atitude.

Rotulados de covardes sempre seremos, pela sociedade Quixotesca, porque os Sanchos se recusam a entrar em combates fadados ao fracasso. Rotulados de loucos sempre seremos, pela sociedade Panciana, dos Sanchos que não acreditam que a vida é aquele cenário paradisíaco, palpável, de justiça e ao alcance de todos e de nossos olhos ilusórios de cristal. A trajetória vai sendo escrita e precisa ser lida, relida, pontuada e corrigida diversas vezes. É um verdadeiro percurso sinuoso, que não se conclui em decisões retilíneas. Onde tanto o Cavalheiro como o Escudeiro, precisam interagir-se num bom diálogo interno, pautado com vírgulas do bom senso, exclamações de encantamentos, interrogações, na hora do medo, aspas, para enfatizar cenários específicos, parênteses para repensar situações para, no final da história, fecharmos a última página sem nenhumas reticências, e sim um certeiro ponto final.

Nossas querências jamais serão capazes de responder afinal qual o mundo queremos viver. O mundo de Quixote, ou o mundo de Sancho Pança? Sabemos que muitos são os que nem sequer vivem, apenas sobrevivem!

Mas, diante tudo isso, amigo Don, em pleno século XXI e um mundo tão caótico e repleto de incertezas, de uma coisa eu tenho a certeza, que a verdadeira realidade das escolhas individualistas, não são nem uma coisa nem outra. E como já dizia Martin Luther King “O que mais me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”!

Fonte:
Texto enviado por Leandro Bertoldo, administrador do blog Árvore das Letras

Jaqueline Machado (O coração delator)

Até que ponto nossa lucidez mental pode, de fato, ser considerada lúcida e nossa insensatez uma coisa verdadeiramente insana e irracional? A que tipo de tormentos somos diariamente acometidos pelas adversidades psicológicas da vida?

O personagem do conto O CORAÇÃO DELATOR, escrito por Edgar Alan Poe, convive com tormentos terrivelmente abstratos. E frequentemente ouve coisas que os outros não ouvem.

Por essa razão, ele é tido por muitos como alguém que sofre de doenças mentais. A pessoa em questão, jura apenas sofrer de ansiedade e de uma certa sensibilidade auditiva aguda. De loucura, não. Jamais! Dentre seus tormentos, o principal concentra–se no olhar do Amo com quem vive.

Segundo a sua “visão”, os olhos do velho lhe pareciam aterrorizantes, saltados, embranquecidos, medonhos. Ao seu ver, eram olhos de abutre que lembravam a morte. Aquele olhar lhe incomodava, lhe causava impulsos nervosos, tirava–lhe o sossego e precisava ser eliminado.

Afinal, olhos assim devem ser expurgados do mundo para que os cidadãos permaneçam em paz. Com sagacidade e sentimento de justiça, planejou a morte do homem que nunca lhe fizera mal. Numa certa noite escolhida, o homicídio se fez inevitável. A fim de livrar-se dos sinais do crime, esquartejou e enterrou a vítima embaixo do assoalho da casa.

Os vizinhos, depois de ouvirem barulhos estranhos, acionam a polícia. O crime seria pleno ou quase perfeito não fossem as batidas do coração do ser imolado que parecia martelar a cabeça do assassino. Na verdade, esses sons eram a sua consciência denunciando a culpa de sua alma doente.

Bem sabemos que dessa metáfora podemos extrair muitas verdades...

Exemplo: a sociedade segue adoecida, e o branco que fica aflito com a presença do negro, o rico que menospreza o pobre e o moralista que desvia o olhar da prostituta, discretamente, comete o mesmo crime. Resta-nos saber quando suas consciências os deletarão.

Quem tem ouvidos para ouvir ouça ...E indague-se: Até que ponto nossa lucidez mental pode, de fato, ser considerada lúcida e a nossa insensatez uma coisa verdadeiramente insana e irracional? A que tipo de tormentos somos diariamente acometidos pelas adversidades psicológicas da vida?

Fonte:
Texto enviado pela autora

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 14

 

Aluísio de Azevedo (Último lance)


Dez luíses!

Era tudo que lhe restava!... Eram as últimas moedas da larga e velha herança que até a ele chegara, escorrendo sonoramente, de degrau em degrau, por uma nobre escadaria de avós. Dez luíses!...

E D. Filipe, depois de agitar na mão fidalga, as derradeiras moedas de ouro, encaminhou-se lentamente para o lugar que meia hora antes havia abandonado à banca da roleta.

De pé, apoiado ao espaldar da sua cadeira ainda vazia, deixou cair sobre o tabuleiro verde o seu frio olhar indiferente e altivo. Os números desapareciam afogados no ouro e na prata dos outros jogadores.

Permaneceu imóvel por longo tempo, sem ver o que olhava. Seus sentidos estavam de todo ocupados pelo pensamento que lhe trabalhava aflito dentro do cérebro: - Era preciso refazer a fortuna esbanjada, ou parte dela... Mas com cem mil francos, apenas cem mil! Poderia salvar-se, sem cair no ridículo aos olhos do meio em que se arruinara... Com cem mil francos correria, sem perda de tempo a Paris, solveria as dívidas que ali deixara garantidas sob palavra, e logo em seguida, a pretexto de qualquer exigência da saúde, simularia uma viagem à Suíça e partiria para a América, com o que lhe restasse em dinheiro. Na América engendravam-se rápidas riquezas; descobriam-se dotes fabulosos! Se fosse preciso trabalhar - trabalharia!

Não sabia em que, e como, iria trabalhar, mas a miragem do novo mundo surgia-lhe à imaginação num sonho de ouro; numa apoteose de milagres de reabilitação, em que a sua incompetência para qualquer trabalho produtivo encontraria lugar entre os vencedores. Nenhum programa, nenhuma ideia acompanhava aquela esperança; confiava na América como confiara nas cartas e na roleta. Era ainda uma esperança de jogador. Era a cega confiança no acaso!

Não seria a América também um tabuleiro verde, banhado pelo ouro da Califórnia?... Ele era a moeda jogada num último lance pelo desespero!

Iria!

E, depois?... Como seria belo volver à Europa, muitas vezes milionário, com um resto de mocidade, para continuar a gozar os vícios interrompidos?...

E, enquanto castelavam seus doidos pensamentos, sucediam-se os golpes da roleta, e o ouro e a prata dos jogadores perpassavam em rio por defronte dos seus olhos distraídos.

- Mas, e se eu perder?... interrogou ele à própria consciência.

E o fidalgo não teve ânimo de entestar com a solução que esta pergunta exigia, como se temesse abrir de pronto, ali mesmo, um duro e violento compromisso com a sua honra.

Todavia, se perdesse aquele miserável punhado de moedas, que lhe restava além do... suicídio?... Que lhe restava no mundo, que não fosse ridículo e humilhante?...

E viu-se sem vintém, esgueirando-se como uma sombra pelas ruas escuras, com as mãos escondidas nas algibeiras do sobretudo, fugindo de todos, desconfiado de que a sua irremediável miséria fosse de longe pressentida como uma moléstia infecciosa. Teve um calafrio de terror.

As falazes hipóteses de salvação, que covardemente se lhe apresentavam ao espírito, lembrando amigos ricos e recursos inconfessáveis, eram amargamente repelidas pelo seu orgulho, ainda não vencido.

- Façam suas apostas, senhores! exclamou o banqueiro.

E D. Filipe sorriu resignado e triste, como respondendo afirmativamente para dentro de si mesmo à voz que apelava para seus brios, e, depois de sacudir ainda uma vez as dez moedas, espalmou a sua linda mão inútil e, com um ar mais do que nunca indiferente e sobranceiro, despejou-as na seção do vermelho que à mesa lhe ficava em frente.

- Rien ne va plus!

Uma vertigem toldou-lhe a fingida calma.

A pequena esfera de marfim girava já no quadrante da roleta. Fez-se em toda a sala um silêncio que doía de frio.

Se naquele golpe, em vez de um número vermelho, viesse um número preto, pensou o desgraçado, qualquer mendigo das ruas seria mais rico do que ele!...

E a bola girava já com menos força, prestes a tombar no número vencedor.

O fidalgo deixou-se cair assentado na cadeira, fincando os cotovelos na mesa e escondendo o rosto nas suas duas mãos abertas.

A bola tombou no número. Vermelho!

Os dez luíses de D. Filipe transformaram-se em vinte. E o fidalgo não teve um gesto; esperou novo golpe, aparentemente imperturbável.

O tabuleiro esvaziou-se e de novo se encheu de reluzentes paradas. O banqueiro fechou o jogo; a bola girou, caiu.

Veio outra vez vermelho.

D. Filipe continuou imóvel, sem tirar as mãos do rosto. Sobre os seus vinte luíses derramaram-se outros vinte.

E o jogo continuou, silenciosamente.

E, no meio do surdo ansiar dos que jogavam, um terceiro número vermelho dobrou a parada de D. Filipe, que conservava a sua imobilidade de pedra.

Tão forte, porém, era o arfar do seu peito, que todo o corpo lhe acompanhava as pulsações do coração.

Vermelho!

E oitenta luíses despejaram-se sobre os oitenta luíses do jogador imóvel.

Vermelho!

E o ouro começou a avultar defronte dele.

Vermelho ainda!

E as moedas iam formando já um cômoro de ouro defronte daquela figura estática, da qual só se viam distintamente as duas mãos, muito brancas, ligeiramente veiadas de azul puro.

Ainda vermelho!

E a figura imperturbável parecia agora de todo petrificada. E as duas mãos brancas pareciam fitar escarninhamente os outros jogadores, rindo por entre os dedos fixos.

A imobilidade e a fortuna do singular parceiro começavam a impressionar a todos.

Vermelho!

E já os olhares dos homens e das mulheres não se podiam despregar daquele misterioso companheiro de vício, cuja fisionomia nenhum deles conhecia ainda, absorvido como até então estivera cada qual no próprio jogo.

Vermelho! Vermelho!

E o monte de ouro ia crescendo, crescendo, defronte daquelas duas mãos que pareciam cada vez mais brancas, mais escarninhas, e mais ferradas ao rosto do jogador imóvel.

Vermelho! Vermelho! Vermelho!

E as moedas alargavam a zona inteira, escorrendo por entre os cotovelos do jogador de pedra, e caiam-lhe pelas pernas inalteráveis, e rolavam tinindo pelo chão.

Vermelho! E os jogadores esqueciam-se do próprio jogo para só atentar no jogo do singular conviva; à espera todos que aquelas duas mãos de mármore se afastassem; que aquela escarninha máscara caísse, revelando alguém.

E a cada golpe uma nova riqueza vinha dobrar a riqueza acumulada defronte do sinistro mascarado de mármore. Em vão, ao lado dele, uma formosa criatura, com ares de rainha e olhos de criada, aquecia-lhe havia meia hora a perna esquerda com a sua perna direita; em vão, por detrás da sua cadeira, formara-se um palpitante grupo de mulheres, que riam forte e lhe discutiam a fortuna, apostando, a cada novo golpe da sorte, se o original jogador sustentaria ou não o lance por inteiro.

E já quando o vermelho era ainda uma vez anunciado pelo trêmulo banqueiro, partia de toda a sala uma explosiva exclamação de pasmo.

Era preciso tocar a cada instante o tímpano, pedindo atenção e silêncio.

Mas os comentários reproduziam-se, fervendo em torno da estátua feliz. Uns protestavam contra a loucura daquela pertinácia, pedindo para seu castigo um número negro; outros se entusiasmavam com ela e soltavam bravos de aplauso; outros ainda calculavam o ouro acumulado, somando os lances.

E o banqueiro, cada vez mais pálido, tomava com a mão trêmula a bola fatídica, e, a tremer, fazia-a girar na gamela dos números, e, a tremer, anunciava ofegante o número vencedor que era sempre vermelho.

Cada número vinha acompanhado de um coro de pragas e gargalhadas.

Até que, num desalento do capitão vencido, o banqueiro, dando ainda o último vermelho, anunciou com uma voz de náufrago sem esperanças:

- Banca... à glória!

Mas, nem assim, o imperturbável jogador misterioso fizera o menor gesto; ao passo que em redor dele se acotovelavam os viciosos de ambos os sexos e de todas as nações, formando uma rumorosa e irrequieta muralha, ansiosa de curiosidade.

Chamaram-no de todos os lados, em todas as línguas e em todos os tons.

Ele se não moveu.

Tocaram-lhe no ombro; tocaram-lhe na cabeça.

Nada!

Sacudiram-lhe o corpo.

A estátua continuou imóvel.

Então, dois homens, tomando cada um uma das mãos do fidalgo, arrancaram-lhas do rosto, enquanto um terceiro lhe levantava a cabeça.

E um só grito de horror partiu dentre toda aquela gente.

Quem à glória levara a banca e ali estava imóvel a jogar com eles durante a noite, provocado pelas mulheres e invejado pelos homens, era um cadáver frio, de olhos escancarados a boca semi-aberta, e com duas lágrimas compridas escorrendo pela algidez das faces contraídas.

Largaram-no espavoridos; e o morto tombou com a cabeça sobre a mesa, colando o rosto e as mãos de mármore sobre o seu ouro, como se o quisesse defender da cobiça dos outros jogadores sobreviventes, que já discutiam aos gritos a legitimidade daquela posse.

Fonte:
Aluísio de Azevedo. Demônios. 1895.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXIV

À luz de fortes abraços
o amor possa começar,
sempre que cruzar os braços
seja só para abraçar.
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Ao chegarmos neste mundo
começamos um passeio,
por vezes longo e fecundo,
noutras, partido no meio.
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Aos homens faltam alento,
ó Deus nunca os deixeis sós!
Sede Vós o seu sustento
sendo eles a vossa voz.
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Dizem que ninguém aguenta
uma dança de salão,
quando alguém joga pimenta
espalhada pelo chão.
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Entre a tentação do 'ter'
e o poder de dominar
está a sede do 'poder'
levando o homem a sonhar.
= = = = = = = = = = = = =

Faça sempre por dever,
não por mera obrigação,
mais do que só por fazer
pode ter vida em ação...
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Fulge forte o sol no além,
mas a vida brilha mais,
outra luz maior não tem
nem há de morrer jamais.
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Gotas de chuva carregam
novas forças para o chão,
lentamente os pingos regam
sobre a terra a plantação.
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Inseridos num contexto
de lutas buscando a paz,
muitos usam de pretexto
guerras que a vida desfaz.
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Licitude e temperança,
virtudes que poucos têm,
confundem com liderança
que à penumbra se sustém.
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Milhares de confidências
fazemos todos os dias,
muitas de benevolências
outras de meras fobias.
= = = = = = = = = = = = =

Mundo novo está surgindo
debaixo do nosso olhar,
muitas mãos vão construindo
caminhos pra palmilhar.
= = = = = = = = = = = = =

Nas densas noites, errantes,
tememos a escuridão,
nem as estrelas brilhantes
um consolo elas nos dão.
= = = = = = = = = = = = =

Nem todo e qualquer lugar
temos um livro pra ler,
na biblioteca do lar
há muito para aprender.
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No mundo das fantasias
vigora a contradição,
a estrela brilha de dia
e à noite o sol faz clarão.
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No reduto dos anseios
emergem nobres projetos,
desenleiam nos passeios
novos caminhos concretos.
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Nunca devemos fazer
algo que não seja honesto,
pra não termos que colher
um fruto amargo e funesto.
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Nunca siga inoperante
pelas estradas da vida,
mas com a fé dum migrante,
rumo à 'terra prometida'.
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O homem peca, não por ser,
tão mau num certo momento,
mas também por não saber,
empregar o seu talento.
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O homem tem seu momentinho
que se torna um Valentão,
teme os dentes do ratinho
mas não teme os do leão.
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Quem projeta se protege
e ao buscar a proteção
toda a tática que elege
lhe assegura a projeção.
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Se a dor devagar nos mata
num gesto cruel e atroz,
está no efeito "cascata"
o inimigo mais feroz.
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"Tá nervoso"? Então nos deixe!
Vá pescar com seu cinismo...
O que tem a ver o peixe
com o tal do nervosismo?
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Tantas lágrimas rolaram
sobre o rosto já cansado,
face as dores que sobraram
dos espinhos do passado.
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Tardes quentes, borbulhantes,
manhãs tépidas, serenas,
quase em tudo semelhantes
às noites calmas e amenas.
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Ter riquezas não condiz
em sentir felicidade,
tem pobre muito feliz
por conter a dignidade.
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Todo retorno presume
uma suposta partida,
sem ele à dor se resume
se quem parte for a vida.
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Tudo tem em seu contorno
algo esquecido jamais,
nada maior que o retorno
do filho à casa dos pais.
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Vivo palácio de cores
nos canteiros do jardim,
rosa, rainha das flores,
rei do perfume, o jasmim.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Raul Pompéia (As Festas de Reis de minha Prima)

Conheci muito o dr. Sinfrônio. Nunca lhe achei cara de poeta... Pois ele o fora!

Uma única vez na vida, às escondidas, como se tivesse vergonha... Mas fora... Vim a sabê-lo, alguns anos depois da sua morte.

Não quero dizer que este póstumo achado lhe valha a glória. Poeta, é modo de escrever. São umas linhas execráveis, sem metrificação nem graça, em que bela rima à toa com janela ou com singela, como no "Era no outono..." de B.Pato...

São versos de paixão, espécie de carta de namoro a linhas curtas, começadas em letra maiúscula.

Mostrou-me o filho, um velho amigo de colégio que me ficou da infância; mostrou-me, fazendo considerações a propósito de certas ingenuidades que todos têm e certas fraquezas em que todos caem. Aquele homem prático, prosaico, impregnado de negócios do foro e alguma política rasteira, empírica de mais, sem horizontes largos, aquele burguês redondo tivera um dia de pieguice aguda na sua vida! Lá estava o corpo de delito, descoberto em meio dum aluvião de rascunhos de correspondências, contas, recibos, papelada forense, traças e poeira.

Era uma página da mocidade incontestavelmente.

O papel estava cor-de-palha e a letra extinta. Mas sentia-se ainda, naquele fragmento de papel, a frescura juvenil de uma alma ardente, embora um tanto avessa à música das liras.

Nada me entristece mais do que um verso apaixonado, e errado! Parece-me a pomba do sentimento, rolando no chão de asas e pés quebrados... Pés quebrados!

Ora, imaginem que pena: - Cupido cambaleante e trôpego!

Quando um homem furta-se aos afazeres positivos da vida e arroja-se ao cometimento de uma estrofe, certo de que não tem veia, nem teve apurada educação literária, contando apenas com um raio celestial de inspiração, guiando-se apenas pela bamba norma fundamental da letra grande, por princípio, linha curta, por base e rima alternada, por fim; quando um mortal faz isto, é que tem todas as vísceras escalavradas de paixão! O amor roeu-lhe já o coração fibra a fibra e começa a morder-lhe as células do cérebro. É um heroísmo que se enternece.

Respeito estas desventuras literárias, quando as descubro, principalmente percebendo que elas queriam ficar sempre escondidas na obscuridade tímida das fraquezas humanas.

No momento em que o meu velho amigo mostrou-me o pecado literário do pai, não foi preciso esforço, para eu conservar-me sério.

"Quando te vejo, ó gentil imagem...

Começava assim a poesia e prolongava-se pelo papel abaixo, exaltando os dotes da minha prima Isaura.

Isaura contava nesse tempo quatorze ou quinze anos e não era absolutamente feia, conquanto já tivesse, no meio da cara o mesmo pedaço de nariz que hoje distingue a maturidade dos seus trinta e oito. Menos crescido, talvez.

A prima Isaura sempre foi namoradeira e nunca achou casamento. Não sei se os namorados espantavam os casamentos, ou se a falta de casamento excitava os namoros. Nunca achou casamento, eis o fato. O único marido que lhe andou ao alcance da mão foi o dr. Sinfrônio.

Sinfrônio teve a fantasia de se apaixonar pela Isaura. Esta, porém, que estreava nos esplendores da puberdade, entendeu que toda a vida os Sinfrônios haviam de ameigar para ela a pupila e desprezou o primeiro à espera de outro mais bonito, senão menos esbodegado.

Sinfrônio era feio e pobre. Acabava de formar-se em direito e queria fazer família, para entrar regularmente na vida prática. Abstraindo-se-lhe o nariz, a Isaura não era detestável. Sinfrônio deitou namoro. De repente, com grande surpresa sua, reconheceu que estava caído perdidamente pela menina... Sempre nariz à parte, suponho.

Neste período, cometeu, fora de si, algumas poesias (entre outras a que eu vira) que, durante as reuniões da família da minha prima, cuja casa ele frequentava, conseguia fazer chegar-lhe às mãos. Isaura deu corda, a princípio. Pouco depois abandonou o pobre Sinfrônio por um pilantra que fingia fazer caso dela.

A ingratidão da menina exasperou o dr. Sinfrônio, que, a modo de desfeita à gentil imagem dos seus malogrados arroubos poéticos, tratou de casar-se logo com outra; e o fez sem dificuldade.

Muito arrependeu-se Isaura, tempos depois, do desdém com que tratara o dr. Sinfrônio. Os Sinfrônios não se repetiram...

E, por maior desdita, foi o nariz avultando com a idade e descrevendo uma órbita insensível em direção ao queixo, que saiu-lhe amavelmente ao encontro...

Ainda hoje cresce o nariz; cresce, e Isaura não desanima. A esperança foi sempre a sua força.

Lá vai uma história que prova evidentemente que a prima Isaura não desanima.

A nossa família retine-se toda para os dias de Natal, Ano Bom e Reis.

Há sempre uma festa em nossa casa, por ocasião dos três grandes dias. Uma festa que dura semanas...

A prima Isaura não falta nunca; vem com a mãe, os cunhados, a melhor gente deste mundo, folgazãos, despretensiosos e amigos de agradar a todos.

No dia de Reis do ano passado, a prima obsequiou-me com um trabalho da sua agulha, uma coisinha chique.

Já não me lembro bem o que era... Desde essa época, observo que não sou indiferente à minha estimável Isaura. Não havia, entretanto, documentos comprobatórios, salvo uns olhares que notei, sorrisos que apanhei no ar, atenções que me cativavam - pura cortesia, em última análise, temperada naturalmente por um afeto vulgar entre primos...

Mas, como qualquer afeto, por mais vulgar que seja, toma caráter grave, quando se trata da prima Isaura, eu esperava tudo...

Dois dias antes do seis de janeiro deste ano, a minha amável Isaura, enfeitada com os pés-de-galinha dos seus trinta e oito e um ligeiro sorriso enrugado nos lábios, acercou-se de mim, meio acanhada...

Tomou-me entre os dedos os berloques do relógio, com uma graça infantil e meiga...

- “Temos coisa”, pensei.

- Edmundo - disse ela - quando me dá as festas... deste ano?...

- E você? prima... – perguntei igualmente.

É o que ela queria.

- Depois de amanhã bem cedo, você há de achá-las... no seu quarto... há de gostar, afianço... E não seja ingrato!

Dado o recado, Isaura deixou os berloques e afastou-se, confusa como uma noiva, levando diante de si, como um belo fruto maduro e longo, o magnífico nariz, ruborizado de velhos pudores virginais.

Álea Jacta!

No dia de Reis, ao levantar-se, de manhã, observei, através da meia treva do quarto fechado, que, sobre a minha mesa, havia alguma coisa.

Eram flores elegantemente apertadas em buquê e uma carta, um pequeno envelope fechado.

Flores! Carta! Bravíssimo, senhora minha prima!

- Ah, meus pressentimentos negros! – suspirei.

E suspirando abri a janela. A luz alegre da manhã caiu sobre as flores, palpitantes de frescura, rociadas de brilhantes gotas d'água. Que esplêndida coroa de cravos rubros e que formosa camélia branca ao centro!

Admirei de uma só vez as flores e o bom gosto da minha Isaura. Que mimo!

E a carta!... E o envelope! Uma joia de papelaria! Pombos em cromo, entretecidos com malmequeres e rosas...

Tive pena de rasgar aquilo.

Uma letra bonita desenhava em sobrescrito - Primo Edmundo.

Eram as festas efetivamente da Isaura; quase posso dizê-lo já - da minha namorada Isaura!

Quando abri o envelope, foi como se quebrasse um frasco de perfume... A carta era uma poesia!

Com certeza a intensa nuvem de aromas que me povoava o quarto vinha das flores daquelas estrofes!

Versos de amor! Santo Deus! Acordo em dia de Reis, entre os braços parnasianos de Safo!

De repente, estremeci... Era possível?!... Mas eu conhecia aqueles versos!...

Li-os outra vez:

"Quando te vejo, ó gentil imagem

Ora, ora! Eram os versos, os cambaios versos do dr. Sinfrônio, impingidos em segunda edição, e assinados sobre aquele delicioso papel de cetim pelo doce nome de Isaura!...

Tu, só tu, puro amor!...

Uma vez, um pobre apaixonado armara umas palavras desconcertadas, parecendo, de longe, versos... Vinte e tantos anos mais tarde, uma apaixonada, amorosa até o crime, plagia ousadamente a coisa e a impinge como sua, masculinizando-lhe devidamente o sentido!...

Mistos de ousadia e fraqueza que amor prepara.

Notável coincidência fora aquela de ter visitado, dias antes, o filho do falecido Sinfrônio!... que eu tanto conhecera, sem nunca descobrir-lhe vestígios do fogo sagrado que um dia lhe acendera no cérebro a paixão violenta e que o levara a urdir trabalhosamente a epopeia dos encantos de Isaura, para muitos anos depois, esta respeitável senhora, mutatis mutandis, converter em mavioso hino de amor (por este seu criado!) e festas de Reis, acompanhando o hino de uma coroa de cravos rubros com uma camélia branca ao centro!...

Triste destino dos poetas!

Malvadas tentações de Cupido!

Incansável Isaura!

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. UFSC. Conto publicado em 1884.

Lucy Hay (Dicas de Escrita) Como escrever o esboço de um Enredo = Parte I

Alguns autores não gostam muito de escrever a estrutura do enredo de seus textos, preferindo algo mais fluido e direto. Entretanto, essa estratégia ajuda a dar uma noção melhor da história que se quer desenvolver. No fim das contas, ela serve de guia para detalhes como ambientação, personagens e eventos transcorridos, além de ser a solução de muitos bloqueios criativos.

 
MONTANDO A PIRÂMIDE DE FREYTAG

1. Identifique as seções da pirâmide de Freytag.

O esquema quinário de Freytag, mais conhecido como pirâmide de Freytag, é uma das formas mais tradicionais de estruturar o enredo de uma história. A pirâmide é dividida em seis seções (ou cinco, dependendo da fonte): introdução, incidente incitante, ação em ascensão, clímax, ação de queda e resolução. A introdução fica em uma linha à esquerda da pirâmide, seguida pelo incidente na base, a ação em ascensão na curva, o clímax no topo, a ação em queda na curva da direita e a resolução na linha também à direita.

Esse tipo de diagrama é comum entre autores de romances que precisam estruturar as ações na história. A pirâmide ajuda a mostrar se o enredo contém todos os elementos e se acarretaria uma reação positiva nos leitores ao ser publicado.

Você pode esboçar a pirâmide ou escrever somente os nomes das seções, mas às vezes vale a pena ter a representação visual nessa etapa.

2. Pense em uma introdução cativante.

Muitos romances começam já pelo incidente incitante, mas não custa nada partir da introdução, que integra os estágios de planejamento do enredo.

Identifique os elementos desse estágio e você vai enxergar melhor o protagonista e os temas centrais em jogo.

A introdução deve incluir a ambientação da história, dar informações do protagonista e falar um pouco do conflito dele.

Você pode resumir isso tudo em algumas linhas ou pensar em uma cena completa, na qual o protagonista esteja conversando com outros personagens e explorando o mundo.

Por exemplo: Harry Potter, de J.K. Rowling, é uma das franquias de maior sucesso da literatura contemporânea. O primeiro livro da série, Harry Potter e a Pedra Filosofal, apresenta o leitor ao protagonista, o pequeno Harry. Ao mesmo tempo, ela leva o leitor ao mundo dos trouxas e dos bruxos da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.

3. Identifique o incidente incitante.

O incidente incitante é o evento da história que muda o rumo da vida do personagem principal. Ele pega o protagonista de surpresa, apresenta um risco sério e, muitas vezes, aparece logo depois da introdução.

Por exemplo: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, o incidente incitante acontece quando Harry recebe a visita do meio gigante Hagrid, que revela que o jovem é um bruxo e foi aceito em Hogwarts. Essa informação muda não só a vida, mas a trajetória de Harry enquanto personagem. O garoto deixa a situação de miséria com os Dursley e o mundo dos trouxas para trás e viaja à escola, dando o pontapé inicial à sua jornada.

4. Crie a ação em ascensão.

A ação em ascensão, que fica na curva ascendente da pirâmide de Freytag, é a seção mais longa do enredo. Nela, você vai desenvolver os personagens, explorar o relacionamento de uns com os outros e organizar os eventos importantes que levam ao clímax.

Além disso, a sensação de suspense e mistério fica cada vez maior conforme a ação em ascensão avança. A ação em ascensão inclui uma série de eventos e você tem a opção incluir cada um na pirâmide de Freytag. Só não se esqueça de deixar os acontecimentos mais tensos e arriscados próximos ao clímax.

Veja, por exemplo, a série de eventos na seção da ação em ascensão de Harry Potter e a Pedra Filosofal:

Harry acompanha Hagrid ao Beco Diagonal, onde compra todos os materiais de estudo necessários (incluindo a varinha mágica). Harry deixa a casa dos Dursley e toma o trem para Hogwarts na plataforma 9¾. Em seguida, ele conhece outros três personagens principais da série: Rony Weasley, Hermione Granger e Draco Malfoy, que se torna um dos inimigos do jovem bruxo. Harry recebe a Capa da Invisibilidade. Harry toma conhecimento da Pedra Filosofal e conta o que sabe a Rony e Hermione.

5. Escreva o clímax da história.

O clímax é o ponto mais tenso e importante da história para o protagonista e o próprio leitor. É nele que o personagem principal sofre um grande baque, se vê obrigado a tomar uma decisão importante e assim por diante.

Muitas vezes, trata-se também de um evento externo a que o protagonista precisa sobreviver para chegar à ação de queda e, por fim, à resolução.

Por exemplo: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, o clímax acontece quando Harry descobre que existe um plano em ação para roubar a Pedra Filosofal. Ele se une a Rony e Hermione para proteger o artefato.

6. Identifique a ação de queda.

A ação de queda é a parte mais movimentada da história, quando o enredo acelera para chegar à resolução. O leitor deve estar em constante suspense ao longo da seção, conforme descobre como o protagonista lida com o clímax.

A ação de queda pode se estender por diversos capítulos, principalmente se o protagonista estiver lidando com um clímax muito intenso. Ela chega a ter ares de uma jornada completa, apesar de ser mais acelerada, e leva os personagens à resolução.

Por exemplo: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, Harry é obrigado a tomar uma série de decisões de vida ou morte para evitar que a Pedra Filosofal caia nas mãos erradas. Essa jornada é contada ao longo de alguns capítulos, nos quais o jovem bruxo precisa ultrapassar diversos obstáculos.

7. Crie a resolução da história.

A resolução, também chamada de conclusão, acontece no fim do enredo. É nessa seção que o leitor descobre se o protagonista obteve êxito na sua jornada ou se fracassou. Muitas vezes, ela também revela como o personagem principal mudou ao longo da obra, seja física, mental ou psicologicamente (ou de todos os jeitos). Ele deve enxergar o mundo de um jeito diferente em relação à visão que tinha no início.

Por exemplo: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, a resolução acontece quando Harry confronta o Professor Quirrell na última câmara que contém a Pedra Filosofal. O jovem descobre que Quirrell foi possuído pelo Lorde Voldemort e, em seguida, combate o bruxo das trevas pela pedra. Harry vence, desmaia de cansaço e acorda na enfermaria de Hogwarts, rodeado de amigos. Depois, o Professor Dumbledore o visita e conta que o menino sobreviveu à luta por causa do amor de sua mãe. A Pedra Filosofal é destruída, Voldemort torna a desaparecer e Harry volta à casa dos Dursley para as férias de verão.

8. Brinque um pouco com as seções da pirâmide.

O bom de começar com a pirâmide de Freytag na ordem certa é que tudo fica mais claro na sua cabeça, mas você também pode ajustar as seções nos esboços seguintes. Que tal começar com o incidente incitante e só depois falar da introdução? Ou colocar o clímax bem no final, em vez do meio?

Experimente opções que deixem o enredo mais único e dinâmico. Faça este exercício: escreva as partes da pirâmide em post-its e cole na parede. Depois, reorganize-os até achar uma ordem que seja interessante.


Fonte:
Traduzido de https://www.wikihow.com/Write-an-Outline-for-a-Story

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Versejando 99

 

Sammis Reachers (Ele não queria ser motorista...)

Alcemir 'Maricá' trampava há 25 anos como cobrador da Ingá. Era homem de baixa estatura e corpo magro, conservado apesar da idade. Rosto sempre de sobrancelhas franzidas, como se fosse um cara 'brabo'.

Mas de brabo só mesmo a cara, e acerta o ditado quando diz que quem vê cara, não vê coração...

Entre lutas e dívidas, certo dia sua mulher, morena forte e enfezada, de estatura bem maior que a dele, mandou esse recado na cara do pequeno Alcemir:

- Agora chega, Alcemir! Com esse seu salário de fome não dá pra gente viver! Ou você vira motorista, ou eu largo de você e arrumo um!

No dia seguinte lá foi o nosso Alcemir, triste e amuado, falar com a chefia da empresa. Antigo e bom funcionário, ele imediatamente conseguiu uma chance na garagem, ou 'escolinha',

- Hoje à tarde mesmo você pode vir fazer o teste.

E assim, à tarde lá estava o assustado Maricá. O chefe da garagem era o lendário 'Seu' Joel, excelente, mas muito, muito exigente profissional. Um verdadeiro sargentão. Após as apresentações, Joel diz:

- Bem senhor Alcemir, sei que o senhor já sabe dirigir, pois possui carteira de motorista, categoria B. Está vendo aquele ônibus ali? Vá até lá, ligue o carro e saia bem devagarinho.

Missão dada é missão cumprida; Maricá entrou no veículo, sentou-se no 'cockpit', limpou o suor do rosto tenso. Girou então a chave na ignição e ligou o motor; mas em seguida, ao invés de liberar o freio de mão e passar a marcha à ré. Maricá levantou-se do banco e desceu do veículo bem, mas bem devagar (afinal Seu Joel não lhe mandara ligar o carro e sair bem devagarinho?), na ponta dos pés e olhando assustado para o Seu Joel, que não acreditava no que via...

Hoje o Alcemir, conformado, é um ótimo profissional do volante e continua a prestar serviços para a mesma casa, com ótima conduta e presteza.

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Acrobacia Inesperada)

Esta aconteceu no pátio da Sorocabana, no tempo em que Itararé era o maior entreposto madeireiro da América do Sul, e os lados da linha férrea eram completamente cercados por pilhas e mais pilhas de tábuas que ofereciam como passagem apenas estreitas e pequenas aberturas entre si.

Minha irmã Linéa e eu saímos numa tarde de domingo para visitar nossa amiga Lídia que morava do outro lado da linha.

O movimento no pátio era intenso e as manobras ininterruptas tornavam o cruzamento dos trilhos um perigo para quem não tivesse algum traquejo.

Por isso mesmo, já de antemão a Lídia se oferecera para orientar-nos na complicada travessia. Ela era filha do chefe da estação e tinha uma habilidade incrível para se locomover no meio daquele inferno de máquinas em constante movimento. À hora marcada, lá estava ela à nossa espera.

Naquele tempo todo mundo gostava de se trajar muito bem, mas nos domingos a coisa era um exagero! Estavamos as três elegantíssimas, os vestidos muito bem ajustados, meias finas e altíssimos sapatos de salto Luis XV que mal nos permitiam manter o equilíbrio. E assim equipadas, fomos enfrentar a difícil operação.

Passamos os trilhos e chegamos a um ponto em que a abertura entre as pilhas de tábuas era mínima. Estávamos justamente procurando o melhor jeitinho de passar para o outro lado sem rasgar a roupa, desfiar a meia, ou até mesmo enroscar o salto e quebrá-lo, danificando toda aquela irrepreensível elegância... quando eu olhei para um lado e a certa distância avistei um grande animal chifrudo.

"Lídia, o que é aquilo?"

"É um bode", respondeu ela com um arzinho entre preocupado e gaiato. "E ele avança na gente..."

"E que tal se ele inventa de avançar na gente agora? Neste lugarzinho mais crítico?"

Parece que o bicho escutou nossa conversa, pois foi eu acabar de falar e ele desembestou para o nosso lado numa velocidade que só avião a jato! Nenhuma de nós viu mais nada... Quando nos demos conta, estávamos as três confortavelmente instaladas, minha irmã e eu em cima de uma pilha, e a Lídia em outra. O bode ficou no meio...

"Venham aqui", chamava ela, rindo meio nervosa.

"Venha você para cá", respondíamos.

Situação mais ridícula era impossível. Apesar do susto, davamos boas risadas. E ali ficamos até que apareceu um garotinho, provavelmente o dono do bicho. Pegou o animal pela cordinha do pescoço e ele o seguiu docilmente, deixando o caminho livre para nós.

"Vamos descer!"

Falar foi fácil. Descer é que foi o diabo! Coisa mais inexplicável era minha irmã encontrar-se ali cm cima, ela que não conseguia subir nem em uma cadeira, que lhe dava tonturas... Quanto a mim, sempre fora chegada a proezas daquele gênero, eternamente enroscada aos galhos mais altos das árvores as quais me identificava como um verdadeiro macaco. Mas de saia justa, salto alto e meias... bem, a coisa em um pouco diferente. Se a escalada fora uma brincadeira, a descida foi uma barra!

Finalmente no chão, ajudei a Linéa, desajeitada para aquele tipo de coisa e medrosa como ela só! Não sei como a Lídia tinha se arranjada, mas já descera.

Estavamos intactas. Nem um fio de meia puxado. Lindas e arrumadinhas chegamos à casa da Lídia para uma tarde gostosa que terminou com chá, biscoitinhos e os deliciosos docinhos de banana que ela tão bem sabia fazer.

E tudo isso apesar de — literalmente - ter dado "bode" no programa...

(Tribuna de Itararé- 10/10/84)


Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Adega de Versos 68: Reginaldo Albuquerque

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) - 42 -

Na minha opinião existem dois tipos de viajantes: os que viajam para fugir e os que viajam para buscar.
Érico Veríssimo (Cruz Alta/RS, 1905 – 1975, Porto Alegre/RS)

E as viagens? E aquele sujeito com a bonomia na intimidade, possuído pelos demônios das viagens?

Há tempo viajou para outras paragens nas planuras do universo. Deve estar junto ao Quintana, lá na estrela Aldebarã.

O escriba da póvoa de Cruz Alta nos deixou tanta coisa boa - os escritos, a cordialidade, o bom papo junto à sua Mafalda, sempre divertida. Ficaram também seus livros de viagens - México, Gato Preto em Campo de Neve, Israel em Abril, A Volta do Gato Preto - , além das vilegiaturas em forma de romances nos caminhos do tempo e o vento, escritos junto a solos de clarineta.

Livros e viagens se misturam quando estamos na estrada. Caminhos e destinos.

Embrenhar nas leituras é entrar no mundo das viagens. Cada livro é uma viagem. Cada viagem, um livro aberto.

Que deleite andejar pelas leituras, trilhando por tantos livros. Que delícia ser obsessionado pelo demônio das viagens.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Júlia Lopes de Almeida (Esperando...)

– Fecha aquela janela que deita para a rua... assim; abaixa o estore*... agora abre as duas do jardim.

– Está bem?

– Está bem. Vai arranjar-te; põe o avental branco bordado, que eu te fiz, e vê lá se levantas esse cabelo da testa; gosto das testas nuas!

A criada saiu. A dona da casa, moça, gentil, alegre, começou a dar uns retoques na mesa, cantarolando, na sua meia voz de soprano, um romance novo. Agora punha ao lado da mesa o canário favorito sobre uma corbeille* de flores naturais, daí a pouco temperava a salada, escolhendo com as pontas dos dedos, muito delicadamente, as folhinhas mais tenras; revistava as garrafas de cristal, os talheres, os pratos, escondia dentro do guardanapo do marido uma hastezinha mimosa de avenca, onde espetara um cartão com esta palavra: “– Adoro-te!”

Modificava, sob o musgo fresco da fruteira, a posição das uvas e dos pêssegos vermelhos, mudava para outro lado o galheteiro; alisava as coberturas das cadeiras, descia ainda mais o store de cretone branco, e, debruçando-se das janelas do jardim, puxava para dentro os galhos floridos das trepadeiras. Depois, relanceou por toda a sala os seus olhos vivos de burguesinha feliz. Notou que um quadro estava ligeiramente inclinado para a esquerda e deu pela ausência da geleira sobre a étagère*.

Correu a reparar as duas faltas e saiu. Foi à cozinha.

– Então, André, a sopa está boa?... e o peixe... deixa-me ver o peixe...

E, avançando o narizinho arrebitado, ela cheirava as panelas, fazendo os seus comentários:

– Olha, ó André, o rosbife não me parece bom...

O cozinheiro franziu a testa, indignado; ela continuava:

– Ora! as ervilhas estão com bispo; logo as ervilhas, de que Luís gosta tanto!

– Perdão, minha senhora, as ervilhas não estão queimadas!

– Não estão queimadas! E que cheiro é este?

– É mesmo o cheiro das ervilhas.

– Onde viu você ervilhas com cheiro a fumo?

– Prove-as, minha ama.

Para convencer-se ela provou as ervilhas; achando-as deliciosas, murmurou disfarçadamente: está bom, está bom... e os bolinhos, fez?

– Esqueci-me: também há tanta coisa!...

Foram novos ralhos; mas, afinal, certa de que o jantar agradaria ao marido, ao seu amado Luís, com quem se casara havia apenas um ano, ela voltou para dentro.

Foi pedir conselhos ao seu psyché*. Estava pálida. “Isto há de ser, pensou, por causa das fitas verdes.”

Trocou-as por fitas azuis... estudou-se: continuava feia... “Bem! agora, fitas cor-de-rosa... hão de me ir melhor...” Mas as fitas cor-de--rosa desagradaram-lhe tanto como as azuis e as verdes. Lembrou-se do colar de coral. Os colares de coral passaram de moda... mas que importa! são bonitos! Atou sobre o pescoço alvo e roliço um fio de coral, abriu um pouco mais o vestido, e afogou entre as rendas do peito a flor cor de sangue de uma orquídea nova.

“São quase seis horas! Luís não tarda! vou esperá-lo ao piano!”

Tocou várias peças, ora um idílio, ora uma sonatina; mas, impaciente, descaiu a dedilhar polcas e valsas.

De vez em quando levantava-se, ia à janela. Viu passar um vizinho, o Ramos, carregado de embrulhos, e calculou:

“A mulher do Ramos é mais feliz do que eu... ele tem mais pressa de a ver do que Luís de me ver a mim!...”

Após o Ramos, passou um velho gordo, que vinha habitualmente depois do marido, logo no bonde imediato; viam-no quase sempre passar através das grades do jardim, onde ela descia para receber Luís.

O relógio marcava já seis e um quarto! Ela não voltou para o piano: instalou-se na janela. Começou a sentir fome; a impaciência cresceu. Parecia que iria devorar todo o rosbife! “Decididamente, Luís, supunha ela, teve algum negócio grave a prendê-lo até mais tarde... aposto em como vem naquele bonde...” Mas o bonde passou. “Vamos a ver! se o primeiro carro que passar for tilburi, é porque ele vem antes das seis e meia; se for coupé é porque só vem às sete.” O primeiro carro a passar foi uma caleça. Às sete horas Luís não tinha chegado.

A copeira veio perguntar-lhe se podia tirar o jantar; a infeliz rapariga, em pouca harmonia com o cozinheiro, estorcia-se de fome. A ama repreendeu-a: quando for ocasião, eu saberei mandar servi-lo! disse.

Ela já não tinha vontade de comer: passada a hora habitual, o estômago não sentia necessidade de alimento. Entretanto, continuava à janela.

Eram já sete e meia! A casa do Ramos iluminava-se; apareciam vultos na sala de visitas; uma das filhas ia para o piano e ela adivinhava o Ramos, palitando os dentes, recostado no sofá, ao lado da esposa, que estava de casaco branco e saias engomadas. “São velhos, e são mais felizes do que eu”, suspirava.

Deram oito horas. Voltava muita gente para a cidade, de onde os bondes vinham agora quase vazios. Por que será que Luís não veio? conjecturava a triste esposa. Saiu da janela, e, caindo em uma poltrona, começou a chorar.

Erguia-se no seu espírito uma suspeita: a infidelidade de Luís!

“Ele ama outra, ama outra com certeza! a estas horas ri-se a seu lado... logo virá com uma desculpa qualquer!” Lembrou-se de fugir para a casa da mãe; sim, lá ao menos teria companhia, carinhos, alegria! E Luís, quando chegasse, compreenderia não ter por esposa uma mulher passiva, de quem pudesse zombar! Levantou-se, foi ao seu quarto e, tendo vestido uma capa, ia colocar o chapéu, quando foi ferida por uma ideia horrorosa: Um desastre! “Meu Deus! exclamou a pobrezinha: Luís foi pisado por algum trem!...”

Aterrorizada, hirta, no meio do quarto, ela assistia a toda a cena. O marido atravessava a rua, correto, distinto, elegante... súbito, esbarra-se nele um indivíduo, cai-lhe a luneta; Luís curva-se para erguê-la; nisto ouve gritos, é atropelado, cai, e uma enorme carroça, carregada de pedras, roda-lhe pesadamente por sobre o ventre! Apitos, agrupamento de povo, muito sangue na calçada, e o adorado Luís é tirado em braços, esfacelado, inerte, morto!

Correu de novo à janela, debruçou-se: ninguém! A rua estava silenciosa. Teve vontade de gritar: Luís, Luís! e as lágrimas rolavam-lhe grossas pelas faces pálidas. Era a primeira vez que tal lhe acontecia; evidentemente sucedera ao esposo um desastre qualquer! Lembrou-se de ter visto no escritório, uma vez que lá fora surpreendê-lo no trabalho, um revólver sobre a secretária. Aquilo fizera-lhe impressão, a ponto de rogar ao marido que se desfizesse dessa arma tão perigosa... Quem lhe diria que não fosse esse maldito revólver que, por qualquer acaso, matasse o esposo!? Ele era distraído e míope: puxando uns papéis, tateando a mesa, à procura de algum objeto, poderia bater no gatilho e a bala ter partido!

A cada carro que se aproximava ela estremecia: “É ele, vem-no trazer desfigurado... moribundo... Ó meu Luís! meu Luís!!

Nisto uns passos conhecidos esmagam a areia do jardim, ela levanta-se e escuta... sobem a escada, tocam de uma maneira especial a campainha; e ela, reconhecendo o sinal, dá um grito de alegria e corre para a porta, indo abraçar o esposo, comovida e trêmula!

– Que é isso, Mimi? perguntou ele, atônito; como estás transtornada!

– Oh! Luís! por que tardaste tanto?! Que susto que eu tive! Meu Deus! Deixa-me ver-te bem! Que te sucedeu?!

– Mas, filha! não me sucedeu nada de extraordinário! Tolinha! É preciso acostumares-te!

– Acostumar-me...

– Terás muitas vezes de jantar sozinha...

– Ah!

Enquanto ele lhe expunha o motivo da sua ausência, ela via, magoada, extinguir-se o inolvidável período da sua lua de mel!

Como badaladas fúnebres, soavam e ressoavam aos seus ouvidos as frases do marido:

– É preciso acostumares-te... Terás muitas vezes de jantar sozinha!
= = = = = = = = = = = = =
Notas:
Corbeille = Coroa.
Estore = tipo de persiana ou cortina.
Étagère = Aparador.
Psyché = Espelho


Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXXVII

VINHO


MOTE:
O sol engravida a chuva,
e a terra se faz seu ninho,
no ninho se faz a uva,
e a uva desfaz-se em vinho!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)


GLOSA:
O sol engravida a chuva,

com carinho, gota a gota,
como se fosse uma luva
na mão da Chuva Garota!

Produz-se morna umidade
e a terra se faz seu ninho,
e em grande fertilidade
vai nascendo o seu carinho!

O Sol, então, coadjuva,
formando um ninho de amor...
no ninho se faz a uva,
de delicioso sabor!

Numa simbiose preciosa
vemos, aberto o caminho,
nascer a uva gostosa...
e a uva desfaz-se em vinho!
= = = = = = = = = = = = =

TUA CARTA

MOTE:
Tua carta inesperada
tantas lembranças me trouxe,
que eu vivi de um quase nada,
um quase tudo tão doce!...
Analice Feitoza de Lima
(Bom Conselho/PE, 1938 – 2012, São Paulo/SP)


GLOSA:
Tua carta inesperada

me chegou fazendo alarde;
era tão apaixonada,
que coloriu minha tarde!

Essa carta, em minha mão,
tantas lembranças me trouxe,
que um temporal de emoção,
em minha alma triste, armou-se!

A quimera idealizada
no real foi se tornando,
que eu vivi de um quase nada,
o amor que vinha chegando!

E a minha ânsia de amar,
não ligou que um sonho fosse,
pois, a mim, fez vivenciar
um quase tudo tão doce!…
= = = = = = = = = = = = =

RENASCER

MOTE:
Na vida tem melhor sorte
quem consegue vislumbrar
não um fim dentro da morte
mas um novo despertar!
Arlindo Tadeu Hagen
(Juiz de Fora/MG)

GLOSA:
Na vida tem melhor sorte

aquele que tem, na fé,
seu verdadeiro suporte
e enfrenta a vida de pé!

É bem mais feliz, verdade,
quem consegue vislumbrar
essa doce realidade,
sempre a nos acompanhar!

Entender que é um transporte
a uma outra dimensão,
não um fim dentro da morte,
pois a morte é evolução!

Nascer, morrer, renascer!
E pra sempre continuar,
pois um fim não vai haver,
mas um novo despertar!
= = = = = = = = = = = = =

QUANDO MORRE…

MOTE:
Quando morre um trovador,
o céu fica mais bonito.
– Mais uma estrela do amor
a cintilar no infinito!
Benedito Vieira Telles
(Maringá/PR)

GLOSA:
Quando morre um trovador,

só a Terra fica triste,
pois perdeu um grande amor,
que, agora, não mais existe!

Mas o céu, fica radiante,
o céu fica mais bonito,
ele fica mais brilhante,
e acolhe o filho bendito!

Nasce no céu, com fulgor,
unindo, então, suas trovas,
– Mais uma estrela do amor
entre as estrelas mais novas!

Trovador, a tua luz
lançada aos céus, como um grito,
é a estrela que reluz
a cintilar no infinito!
= = = = = = = = = = = = =

MINHAS LÁGRIMAS

MOTE:
Amanhece… e eu me agasalho
na mais fria solidão,
porque o sol enxuga o orvalho
mas minhas lágrimas... não!
Edmar Japiassú Maia
(Nova Friburgo/RJ)

GLOSA:
Amanhece… e eu me agasalho

no sonho que me restou,
nesse meu sonho grisalho
que em meu coração ficou!

Mas eu me sinto sozinho,
na mais fria solidão,
é gelado o meu caminho,
cheio de pedras no chão!

O Sol faz o seu trabalho,
mas não brilha para mim,
porque o sol enxuga o orvalho
mas nem me vê triste, assim!

O Sol acarinha o mundo
em profunda inspiração,
abranda um penar profundo,
mas minhas lágrimas... não!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. julho de 2005.