quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Hinos do Brasil (Estados de São Paulo e Minas Gerais)

Estado de São Paulo
O Hino dos Bandeirantes, como também é chamado o hino oficial de São Paulo, foi instituído em 1974. A canção é proveniente de um poema homônimo do poeta Guilherme de Almeida (1890-1969). Sua letra tem como inspiração a Independência do Brasil e a conquista da liberdade em relação aos portugueses.

Hino dos Bandeirantes
Letra por Guilherme de Almeida
Melodia por Spartaco Rossi


Paulista, para um só instante
dos teus quatro séculos ante
a tua terra sem fronteiras,
o teu São Paulo das «bandeiras»!

Deixa atrás o presente:
Olha o passado à frente!

Vem com Martim Afonso a São Vicente!
Galga a Serra do Mar! Além, lá no alto,
Bartira sonha sossegadamente
na sua rede virgem do Planalto,
Espreita-a entre a folhagem de esmeralda;
beija-lhe a Cruz de Estrelas da grinalda!
Agora, escuta! Aí vem, moendo o cascalho,
botas-de-nove-léguas, João Ramalho,
vem subindo a roupeta...
de Nóbrega e de Anchieta.

Contempla os Campos de Piratininga!
Este é o Colégio. Adiante está o sertão.
Vai! Segue a “entrada”! Enfrenta! Avança! Investe!

Norte-Sul-Este-Oeste,
em “bandeira” ou “monção”,
doma os índios bravios;
rompe a selva, abre minas, vara rios;
no leito da jazida
acorda a pedraria adormecida;
retorce os braços rijos
e tira o ouro dos seus esconderijos!

Bateia, escorre a ganga,
lavra, planta, povoa
Depois volta à garoa!
e adivinha através dessa cortina
na tardinha enfeitada de miçanga,

a Sagrada Colina
ao Grito do Ipiranga!
Entreabre agora os véus!
Do Cafezal, Senhor dos Horizontes,
verás fluir por plainos, vales, montes,
usinas, gares, silos, cais, arranha-céus!
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Minas Gerais
‘Oh, Minas Gerais’, é uma adaptação de uma tradicional valsa italiana, chamada Viene sul mare, introduzida no Estado por companhias líricas e teatrais daquele país que vinham ao Brasil no século XIX e início do século XX. A letra foi feita pelo compositor mineiro José Duduca de Morais, o De Morais, gravada em 1942.


Oh, Minas Gerais
Letra por José Duduca de Morais
Melodia: adaptação da valsa italiana Viene sul Mare.


Tuas terras que são altaneiras.
O teu céu é do mais puro anil.
És bonita, oh terra mineira,
Esperança do nosso Brasil!

Tua lua é a mais prateado
Que ilumina o nosso torrão!
És formosa, oh terra encantada!
És orgulho da nossa nação!

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Teus regatos te enfeitam de ouro.
Os teus rios carreiam diamantes
Que faíscam estrelas de aurora
Entre matas e penhas gigantes.

Tuas montanhas são preitos de ferro
Que se erguem da pátria alcantil!
Nos teus ares suspiram serestas.
És altar deste imenso Brasil!

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Lindos campos batidos de sol
Ondulando num verde sem fim
E as montanhas que, à luz do arrebol,
Têm perfume de rosa e jasmim.

Vida calma nas vilas pequenas,
Rodeadas de campos em flor,
Doce terra de lindas morenas,
Paraíso de sonho e de amor.

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Lavradores de pele tostada,
Boiadeiros vestidos de couro,
Operários da indústria pesada,
Garimpeiros de pedra e de ouro.

Mil poetas de doce memória
E valentes heróis imortais,
Todos eles figuram na história
Do Brasil e de Minas Gerais.

Oh! Minas Gerais!
Oh! Minas Gerais!
Quem te conhece
Não esquece jamais
Oh! Minas Gerais!

Fontes:

Rubem Penz (A carta na garrafa)

Socorro, salve-me! Estou num lugar inóspito cercado de circunstâncias por todos os lados. Até agora, tenho me alimentado de convicções que tinha ainda em semente. Porém, depois de implantadas, em vez de crescerem, algumas minguaram, minguaram, minguaram e, por fim, morreram. As que me restam estão custando muito a florescer para, quem sabe, um novo semear. E, em se tratando de convicções, quebrar o galho não adianta, pois elas não pegam de muda.

Eu sei que poderia enfrentar as circunstâncias e me libertar desse inferno sem o auxílio de mais ninguém. Quem observa o horizonte de modo bastante atento, acaba descobrindo correntes de circunstâncias favoráveis até mesmo no infindável mar de lama. Acontece que desanimo cada vez que vejo as pessoas embarcando em tábuas de salvação meio furadas, que afundam em promessas ou devolvem os cidadãos à praia com novas ondas de pessimismo.

Ainda em se tratando de viagens, talvez me falte coragem para encarar a travessia por desconfiar de que, deixando essa minha ilha, seja para onde for, novas circunstâncias estarão a me oprimir. São tantos anos convivendo com as más, que boas circunstâncias soam como ficção científica.  

Se bem que, noite passada, sonhei com infraestrutura de saúde e educação pública, modais de transporte variados, boas matrizes energéticas e investimentos seguros... Acordei de súbito com a taxa de juros disparando em meu peito. Como não sei se estarei vivo quando esta carta chegar a ser lida, peço a ti, que sacou a rolha, rumar para a minha ilha de qualquer maneira. Por favor, não se furte em me prestar socorro. Se alguma garrafa atirada por um dos meus ancestrais tivesse alcançado a sensatez, a maturidade ou a decência, quem sabe eu agora não estivesse nesta situação lastimável. Isso, claro, na hipótese (positiva) de estares em algum desses estágios de civilidade. Se terríveis circunstâncias levaram minha garrafa para um destino pior, que ela sirva, ao menos, de consolo a ti, caro leitor: sim, existem no mundo outros homens vivendo de precárias convicções.

PS.: Esqueci de mandar o endereço ou mapa, não é? Mas é fácil chegar aqui: siga o caminho do capital especulativo ou do turismo sexual. De outra forma, faça o caminho inverso da evasão de recursos naturais (essa trilha tem mais de 500 anos). Só não caia na tentação de usar a rota da esperança eterna em um futuro melhor - esse caminho parece não levar a lugar algum.

Fonte:
Rubem Penz. Enquanto tempo: crônicas. Porto Alegre: BesouroBox, 2013.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) 4 dicas para desbloqueio criativo

1 - Planeje antes de escrever


Sempre digo que a escrita se dá em 3 etapas: a primeira é o planejamento, pensar na história, no personagens, de repente até esquematizar isso no papel; a segunda é a escrita propriamente dita; a terceira é a releitura, que deve ser feita com distanciamento da fase de escrita. Então muita gente se sente travada porque abre o Word (ou similar), vê um cursor na página em branco mas não tem nem ideia por onde começar. Ocorre que a pessoa não deveria abrir o Word para escrever o texto antes de ter um planejamento, um esqueleto, um esquema. Imagine um engenheiro começar a construir um prédio sem um projeto e uma planta em mãos?

2 - Escreva sobre o que te faz sangrar

A autora Lucy McCormick Calkins diz: "Escreva sobre um tópico que lhe queime por dentro. Escolha um tópico que seja tão importante, para você, que possa senti-lo em seu corpo.” Então deixe-se invadir pelos temas que o importunam, sejam pessoais ou sociais. Isso não significa, claro, ficar preso à realidade, a sua própria vida, mas a realidade e sua própria vida, seus medos, seus desejos, podem se tornar ponto de partida, matéria prima para a criação. E depois que você começa a escrever, a mágica acontece e realidade e ficção se misturam de tal forma que o leitor não saberá de onde partiu sua criação (e nem precisa mesmo!).

3 - Leia

Há uma contradição hoje que mais pessoas afirmam gostar de escrever do que gostar de ler. Eu não sou contra o fato de que todos queiram escrever, pelo contrário, escrever é direito e não dever. Mas ler é fundamental. Como diria meu amigo e poeta Dilan Camargo, "quem não lê, não escreve; quem lê pouco, escreve pouco; quem lê mal, escreve mal". Então transformar esse gosto pela leitura em escrita é fundamental, mas requer coragem, desprendimento e atenção aos aspectos técnicos nas suas leituras. Nesse sentido, oficinas, cursos ou livros sobre escrita ajudam muito, pois eles nos fazem olhar para a ficção, para as narrativas, para além da história, olhar também aquele esqueleto, aquela construção por trás das palavras e da história.

4 - Use as mãos (ou os pés)

Há um livro chamado Roube Como Um Artista - 10 Dicas Sobre Criatividade, de Austin Kleon, que dá a seguinte dica: USE AS MÃOS. A tese dele é que ao usarmos as mãos para pintar, desenhar, bordar, cozinhar, plantar, etc, ativamos uma área diferente do cérebro daquela usada diante do computador. Não entendo nada sobre áreas do cérebro, mas isso fez sentido para mim, e percebi que ao brincar de Lego com meus filhos costumo ter muitas ideias (ou destravar muitas coisas na minha história). Além disso, ao fazer exercício físico, especialmente caminhadas, também costumo ter muitas ideias (por isso brinquei com o use os pés). A questão aqui é se afastar do computador e fazer algo lúdico mas diferente, para ativar outras áreas do cérebro. Aliás, foi isso que me inspirou a criar Escrita Criativa - O Jogo*. Fiz questão de ter tabuleiro, cartas, dado, bonecos, pois isso tudo estimula a pessoa a criar e planejar sua história ANTES de se sentar para escrever de fato.
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* Escrita Criativa – o jogo é um jogo diferente, nele o mais importante não é ganhar, nem sequer existe certo ou errado; o mais importante neste jogo é estimular sua criatividade, tirar você do lugar-comum, convidar você a explorar novas técnicas e novas possibilidades para a escrita de ficção.

O uso de elementos físicos como cartas, bonecos, dado e tabuleiro busca trazer o lado lúdico do que é escrever, resgatar/despertar/fomentar a fantasia, fundamental para qualquer ficcionista. Importante é que você deixe a brincadeira fluir, inspire-se, desbloqueie-se, escreva.

Em Escrita Criativa – o jogo, ao trazer diferentes cenários, personagens, conflitos, etc., vamos estimulando o jogador a imaginar como encaixar essas partes, focando sua preocupação na lógica para a narrativa. Mais do que isso, agregamos conceitos e técnicas como tipos de narrador e desafios de linguagem, além deste livro com orientações, o que torna o jogo uma fonte incrível de aprendizado para a escrita, uma verdadeira oficina interativa e dinâmica.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Varal de Trovas n. 549

 

Cecy Barbosa Campos (Mundos diferentes)

Mafalda, sentada no banquinho da cozinha, contemplava o nada. Seu olhar ia longe, atravessando a parede e recuando no tempo, até que se encontrou menina, tímida e amedrontada, escutando os ralhos da mãe. Fica quieta, sossega... Vai buscar a vassoura e arrumar o seu quarto direito, que mulher tem que ser boa dona de casa...

Aquelas imagens se misturavam com outras, e via a filha afobada, jogando roupas no chão, enquanto se aprontava.

Mafalda tentava tornar a filha mais organizada mas, naquele momento, de nada adiantava falar. A mocinha apressada não escutava e, passando rapidamente pela mãe, estalava-lhe um beijo na face precocemente sulcada.

Lembrando das atitudes da filha, Mafalda sorria. Bagunceira, sim, mas carinhosa e alegre enchia de vida aquela casa pequena que, sem ela, parecia morta.

Entretanto, Marisa cada vez mais corria e não imita tempo nem paciência para escutar o que a mãe lhe dizia: Isinha, escute, quero lhe falar... Pelo amor de Deus, mãe, Isinha não, meu nome é Marisa... E assim a conversa terminava sem chegar, ao menos, a começar.

Ficava preocupada. Reconhecia na filha muitas qualidades. Tinha bom coração e grande generosidade, mas o seu comportamento era completamente diferente do que Mafalda esperava dela.

Lembrou o susto que levou no dia em que Isinha chegou com os cabelos pintados de exuberante rosa shocking e depois os piercings. Via estas coisas estranhas nas ruas, mas, na sua filha?! Não poderia suportar. Reagiu bravamente. Porém, de nada adiantou. A filha ria e, de maneira brincalhona, chamava-a de ultrapassada...

Passou esta fase, o cabelo ficou louro, e dos piercings só restaram dois, no umbigo e na orelha.

Mafalda até confessou para si mesma que já achava os dois bonitinhos.

Agora, a fase complicada era a dos "relacionamentos". Hoje em dia, explicou Isinha, casamento não existe mais. O casal fica junto enquanto quer, não tem que esperar que a morte os separe. Horrorizada, Mafalda pensou, a princípio, que a filha estava "amigada" e depois concluiu que nem isso, pois os relacionamentos eram muito rápidos...

Neste momento, ouviu a chave girar na fechadura. De um salto, levantou-se do banquinho e pegou uma panela com água para ferver e fazer um bom café, do tipo que Isinha gostava, forte, mas não tanto como o expresso.

Sorrindo, pensou que, afinal, não deveria ficar sofrendo por ver tantas diferenças. O tempo havia passado e, talvez, tanto ela como a filha agissem de maneira extremada para um lado ou para o outro. Entretanto, se amavam e deveriam aceitar-se mutuamente. O aroma do café inundou a cozinha, ao mesmo tempo em que Isinha estalava-lhe um beijo na face radiosa.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009.
Livro enviado pela autora.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) X, motes e glosas


“Eu vim ao mundo chorando,
Mas meu destino é cantar.”


Mamãe me disse que quando
A parteira entrou no quarto,
Sem prejudicar seu parto
Eu vim ao mundo chorando;
A vida foi-me ensinando
Sorrir mais do que chorar,
Pela sorte ou pelo azar,
Que não vale viver triste;
Por isso, a tristeza existe,
Mas meu destino é cantar.
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“Papai Noel não visita
Criança de pé no chão”


No morro, a criança grita,
Pela injustiça que sente;
Quem mais deseja um presente
Papai Noel não visita!
Nessa festa tão bonita
Para o universo cristão,
É triste ver um irmão
Ficar olhando de fora,
Pois Papai Noel ignora
Criança de pé no chão!
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"Lamparina sem pavio
É besteira botar gás."


Em qualquer noite de frio,
Fica escura minha tenda...
Não conheço quem acenda
Lamparina sem pavio.
E como o velho sombrio
Que deixou de ser rapaz;
Tem vontade e nada faz;
E carta que não dá jogo...
Sem algodão para o fogo,
E besteira botar gás.
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“Quarenta e nove de idade,
Trinta e nove de trabalho.”


José Lucas, na verdade,
Corajosamente fez,
Em março de oitenta e três,
Quarenta e nove de idade;
Das manhãs da mocidade
Já não bebe o doce orvalho;
Como um boi no cabeçalho,
Moureja o pobre poeta
Que, ao mesmo tempo, completa
Trinta e nove de trabalho!
(Natal, 12-03-83 - glosa autobiográfica)
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"Quero que a morte retarde,
Mas, chegando, seja brevel"


Não sei bem se sou covarde,
Ou tenho alguma coragem,
Mas minha fatal viagem
Quero que a morte retarde;
Ela vindo sem alarde,
Juro não lhe fazer greve...
Que a terra me seja leve
E que a hora derradeira
Não me venha de carreira,
Mas, chegando, seja breve!

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Carolina da Silva Prado (A chama que se apagou)

Eram quatro horas da manhã. Ele havia acordado de novo, devido ao mesmo pesadelo havia tendo há um ano e meio. Sonhava que sua falecida noiva, Adytia, estava sentada na cama, com aquelas feições angelicais, os cabelos negros trançados, e uma delicada covinha pairando sobre sua bochecha cor de pêssego. Seus olhos âmbar o fitavam, com curiosidade. Confuso, o homem perguntava o que estava acontecendo, e a mulher apenas ria, sem responder nenhuma de suas desesperadas perguntas.

Ele sabia que era um sonho. Sabia, que a qualquer minuto podia acabar, e que, aquele pequeno pedaço de céu, podia partir-se em outros mil pedacinhos, antes que ele pudesse desfrutar daqueles momentos de felicidade, na inocente ilusão da presença de sua noiva. E assim que acabasse, o homem entraria em uma cruel e profunda solidão, na qual predominavam o medo e a negridão, que conforme o tempo, iriam consumi-lo, transformando-o em um homem amargo e sem compaixão.

Fitando Adytia, ele notava que a mulher agora possuía asas, tão brilhantes e macias, talvez até capazes de apagar a solidão que queimava seu coração. Agora a mulher iluminava todo o quarto, fazendo jus a seu nome, que, na cultura hindu, significava sol. Ela passava seus pequenos dedos delicadamente no rosto do viúvo, notava que ele estava exausto, com a barba grisalha por fazer. O homem sabia que sua mente estava sendo cruel, criando uma ilusão de uma das mais belas criaturas, apenas depois, para ver seu coração estremecer, e sentir a dor da perda.

Era agora a pior parte do pesadelo. A parte em que aquela linda e temporária ilusão de Adytia se transformava em uma terrível criatura. Suas celestiais asas começavam a tornarem-se negras, e sua pele a ganhar uma penugem grosseira. A mulher ficava cada vez menor, até se transformar em um corvo. Essa era a hora que a solidão dominava o homem. Um filete de lágrima escorria sobre sua bochecha, e ele apenas se lamentava. Aquele ser não era mais Adytia.

E o que mais o assustava era o olhar daquele animal. Tão negro, tão cru, tão só como um poço sem fim. Ele não tinha expressão. Seu olhar era a verdade. A verdade de que o homem estava sozinho no mundo, sem seu querido sol para iluminar seu caminho.

A verdade de que, mesmo após um ano e meio, ele ainda chorava pela perda de Adytia. A verdade da escuridão de mundo tão cruel e sem vida. Aquele corvo não era mais sua esposa. Agora era apenas um animal, tão silencioso, mas ao mesmo tempo, tão persuasivo. A chama que representava a essência da mulher havia terminado.

O corvo começou a alçar voo, deixando o quarto e mergulhando na madrugada escura e sombria. Agora o homem estava sozinho, e era nesse momento que ele normalmente acordava. Estava em sua cama, suado, com seus cabelos grudados em suas têmporas, e lençóis enrolados em suas pernas. Agora era o choque de realidade, indicando que Adytia nunca esteve ali, e que ele estava sozinho. Que antes, ela era uma fogueira ardente e acesa, e que agora, não passava de chama que se apagou.

Fonte:
O conto brasileiro hoje: vol. XXX. SP: RG Ed., 2013.
Livro enviado por Cynthia Theodoro Porto

Estante de Livros (“Contos completos”, de Flannery O´Connor)


Em Valise de Cronópio, Julio Cortázar compara o romance com o cinema e o conto com a fotografia, observando que um filme é uma ‘ordem aberta’, enquanto uma fotografia tem uma limitação prévia. A câmara abrange um campo reduzido, recorta um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas deixando entrever uma realidade muito mais ampla. Numa fotografia ou num conto de grande qualidade, prossegue Cortázar, o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou acontecimento significativo, que atue no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura que projete a inteligência ou a sensibilidade para muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.

É este o caso dos contos da norte-americana Flannery O’Connor (1925-1964), que nos chegam em primorosa edição pela Cosac Naify. E eles vêm em muito boa companhia, na tradução do poeta Leonardo Fróes, com posfácio de Cristovão Tezza, o escritor brasileiro mais premiado em 2008. A edição traz ainda sugestões de leitura, listando as obras de ficção, ensaios e correspondência de O’Connor, como também uma relação de obras adaptadas para o cinema e as traduções encontradas no Brasil. Além disso, apresenta, uma atualizada bibliografia sobre a autora, incluindo listagem de resenhas publicadas no Brasil.

Flannery O’Connor nasceu no Estado da Geórgia, EUA, em 1925. Seus escritos trazem a alegoria gótica desse ambiente rural sulista. A família da mãe era católica e, sem dúvida, o catolicismo foi central em sua vida e obra. Frequentou a Georgia State College for Women, onde começou sua atividade de escritora e cartunista. Fez mestrado no Writers’ Workshop na Universidade de Iowa. Em 1952, publicou o romance Wise Blood (Sangue Sábio) e, em 1955, uma coletânea de contos, A good man is hard to find and other stories (um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias). Teve problemas de saúde ligados ao lúpus, doença que matara seu pai em 1951. No entanto, continuou a escrever e a viajar fazendo palestras sobre assuntos variados, que iam desde a criação de pavões (que ela adorava) até escrita regional, religião e ensino de literatura.

Ela e a mãe moravam numa fazenda perto de Milledgeville, onde O’Connor criava pavões e galinhas. Essa propriedade abriga hoje a Flannery O’Connor – Andalusia Foundation, que promove o conhecimento da vida e obra da autora, bem como incentiva o estudo de sua obra literária e o intercâmbio de pesquisas (ver www.andalusiafarm.org).

O’Connor publicou o segundo romance, The violent bear it away (O mundo é dos violentos), em 1960. Faleceu aos 39 anos, em 1964. Postumamente, foi publicado um volume de contos: Everything that rises must converge [tudo o que sobe deve convergir] (1965), Mystery and Manners: Occasional Prose [mistérios e maneiras: prosas ocasionais] (1969) e Flannery O’Connor: the Complete Stories [Contos completos] (1971).

A obra de O’Connor gira em torno de dois aspectos principais: o fundamentalismo predominantemente protestante do Sul dos Estados Unidos e o mundo moderno caracterizado pela esterilidade espiritual. A preocupação com a questão do bem e do mal é central em sua obra, muitas vezes trazendo uma visão espiritual baseada no Antigo Testamento.

O nome de Flannery O’Connor vem associado, na literatura norte-americana, ao gótico sulista de William Faulkner, Carson McCullers e Tennessee Williams. Em suas páginas, encontramos personagens grotescas, frequentemente envolvidas em situações de violência, de ausência de piedade e diálogo. O grotesco parece ser usado pela escritora com um propósito de revelação.

O mais interessante é que O’Connor faz isso com uma abordagem não sentimental, num estilo direto e simples, enquanto trabalha a caracterização das personagens de maneira aprofundada, em imagens que acentuam essa incongruência. Com frequência, suas personagens apresentam mutilações, seja no aspecto físico, mental, moral ou espiritual.

Nas páginas de seus contos, fica clara a observação de Cortázar: num conto bem realizado, mais importante do que o tema é o tratamento literário desse tema, a técnica empregada para desenvolvê-lo. Estamos falando de intensidade e de tensão: e isso O’Connor consegue com maestria, pela aplicação de sua inteligência realista, sua abordagem irônica no tratamento das personagens e situações. Ela tem muita habilidade como escritora cômica e o uso da ironia e do humor no retrato da classe média e das mulheres de meia idade é algo muito relevante. E o grotesco mescla-se aí perfeitamente.

Os críticos insistem em associar sua prosa ao regional e ao religioso. No entanto, vemos que seus textos nos dão aberturas para universos mais vastos. Temos aí personagens que se associam em relações pai e filha, mãe e filha, mãe e filho, trazendo à tona a difícil condição humana.

Em “O gerânio”, o velho Dudley vai para Nova York morar com a filha, mas tudo na grande cidade lhe é estranho. Fora de seu lugar, traz lembranças do Sul, especialmente do companheiro Rabie, o negro com quem costumava caçar e pescar. Na nova vida, vem à tona o preconceito racial. No final da narrativa, a grotesca figura do velho fragilizado parece associar-se ao gerânio despedaçado:

[...] pôde ver o vaso espatifado com seus cacos dispersos entre um punhado de terra esparramada e uma coisinha cor-de-rosa que sobressaía de um laço de papel verde (p. 22).”

Já o conto “A colheita” trata da angústia de uma escritora em busca de um tema para escrever um conto. A tarefa de Miss Willerton é limpar as migalhas da mesa após o café da manhã:

“Limpar a mesa era um alívio. Catar migalhas dava tempo de pensar, e se Miss Willerton fosse escrever um conto era preciso que de início ela pensasse a respeito (p. 49-50).”

Essa vontade, esse desejo já estão no próprio nome da personagem, Willie (“Will”). Essa busca, agora não uma “colheita”, mas uma “caça”, repete-se em “O peru”, conto que trabalha o motivo da iniciação e desilusão. Temos aqui um menino, Ruller, que luta para capturar um peru selvagem e, assim, impressionar as pessoas, sobretudo seus pais. No entanto, ao final, acaba sendo surpreendido por uns “moleques roceiros” (p. 74), que frustram sua tentativa de fazer jus ao nome, que é, então, irônico. “Ruler” significa governante, rei, soberano.

Em “A vida que você salva pode ser a sua”, Mr. Shiftlet consegue trabalho na propriedade onde vivem uma velha e a filha. Ambas têm o mesmo nome: Lucynell Crater. O olhar de Mr. Shiftlet, “muito claro e esperto” (p. 190) observa tudo o que havia no quintal e é atraído pela “traseira, retangular e enferrujada, de um automóvel” (p. 191). Há um diálogo interessante entre Mr. Shiftlet e a velha: ele de olho no carro e ela tentando empurrar-lhe a filha. Curioso é que Mr. Shiftlet ensina a moça Lucynell, “que era totalmente surda e nunca dissera uma palavra na vida, a dizer ‘passarinho’” (p. 194), que ela pronuncia ‘basarin’. Mr. Shiftlet e a velha fazem uma barganha: a velha lhe dá o dinheiro para consertar o carro e também para uma viagem de núpcias e, assim, ele aceita se casar com Lucynell no gabinete do juiz, para satisfazer a lei, segundo a vontade da velha. Quando ele abandona Lucynell numa lanchonete de beira de estrada, perguntamos se não teria sido menos aviltante se tivesse simplesmente furtado o carro. No entanto, a ideia de deslocamento, mudança e trapaça já estava em “shift”, no seu próprio nome.

Em “Gente boa da roça”, também temos uma relação mãe-filha e um relacionamento homem-mulher, assim como a questão da trapaça. No entanto, a filha, Allegra, é muito diferente de Lucynell, principalmente no aspecto intelectual. Allegra (Joy, no original), 32 anos, loura e corpulenta, é filha de Mrs. Hopewell. Tinha uma perna só devido a um acidente de caça quando tinha dez anos, motivo pelo qual usava uma perna de pau. Ao completar 21 anos, Allegra saiu de casa e mudou legalmente seu nome para Hulga. Nesse conto, o tradutor trabalhou a significação dos nomes próprios; optou por traduzir Joy por Allegra e, em relação à Hulga, faz um interessante jogo de palavras na tradução do seguinte trecho:

When Mrs. Hopewell thought of the name, Hulga, she thought of the broad blank hull of a battleship”. Em português, temos: “Quando Mrs. Hopewell pensava nesse nome, Hulga, o que lhe vinha à cabeça era o casco largo e cor de pulga de um navio de guerra” (p. 349). Na verdade, a “cor de pulga” parece mais apropriada ao som escuro do /u/ de Hulga. Hulga doutorou-se em filosofia, o que deixava a mãe embaraçada:

Qualquer um bem que podia dizer ‘Minha filha é enfermeira’, ou ‘Minha filha é professora do ensino básico’, ou até mesmo ‘Minha filha é engenheira química’. Mas quem diria ‘Minha filha é filósofa’, se isso era coisa morta e acabada desde os romanos e os gregos? Allegra passava os dias lendo, afundada numa poltrona. De vez em quando ela saía para dar uma volta, mas não gostava de cachorros, gatos, passarinhos, flores, nem da natureza nem de rapazes bonitos. Nos rapazes bonitos, se os olhasse, farejava tão-só a ignorância que tinham (p. 351-52). Por isso, quando ela decide “seduzir” o vendedor de bíblias, cuja fala denota sua pouca instrução (“Eu não quis te machucar, ele disse”), o desenlace do conto fará o triunfo do determinismo realista, deixando-a reduzida ao nível do corpo.

Os dois últimos contos que escolhemos para comentar, “Os confortos do lar” e “Tudo que sobe deve convergir”, trazem o relacionamento mãe-filho e, pelo uso da onisciência seletiva, o narrador em terceira pessoa passa ao leitor a visão do filho. Em “Os confortos do lar”, a mãe de Thomas resolve ajudar uma moça a quem ele se refere como “safadinha”: “É uma tarada, isso é tudo que você precisa saber. Nasceu sem a faculdade moral – como alguém nasce sem uma perna ou um rim” (p. 483). A moça é chamada Star: “Dizia se chamar Star Drake. Mas o advogado descobriu que o verdadeiro nome dela era Sarah Ham” (p. 487). Star havia sido presa por passar um cheque sem fundos e a mãe de Thomas, vendo o retrato no jornal, resolve ajudá-la. Thomas não consegue ocupar o lugar do pai e esse é, basicamente, o grande conflito do texto: “Era nessas ocasiões que Thomas realmente lamentava a morte de seu pai, embora em vida nunca o tivesse suportado. O velho não admitiria tais maluquices (p. 486)”.

Thomas acaba agindo seguindo a voz do Pai e cai na armadilha que havia preparado. A situação foge ao seu controle e, tragicamente, acaba matando a própria mãe.

Em “Tudo que sobe deve convergir”, Julian leva a mãe a uma aula de emagrecimento na Associação Cristã de Moços. A mãe se orgulha da passada prosperidade da família. Agora vivem com dificuldades, mas a mãe ostenta a soberba e é racista. A cena no ônibus que evidencia esse racismo chega ao clímax quando a mãe e uma mulher negra ficam frente a frente usando um chapéu idêntico. Julian tenta mudar os valores da mãe: “Aquela mulher era o seu duplo negro”, “o velho mundo mudou” (p. 525), mas tudo é inútil. A mãe se recusa a mudar suas convicções e pode ser vista, alegoricamente, como o declínio do mundo escravocrata sulista.

Os textos de Contos Completos são, assim, aberturas importantes que vão muito além da questão regional; trazem reflexões profundas sobre a esterilidade espiritual que ultrapassa espaços geograficamente demarcados.

Fonte:
Cleide Antonia Rapucci. Aberturas para vastos universos: contos completos de Flannery O´Connor.  Disponível no Periódico “Acta Scientiarum Language and Culture”. v. 31, n. 1. Maringá: UEM, 2009. p. 105-107.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Versejando 102



 

Aparecido Raimundo de Souza (A prazo, sem garantia) – 1

NA ESCOLA


A mestra Hermelinda explicando:

— A baleia é um mamífero que só se alimenta de sardinhas.

Lá atrás, no meio da sala, um aluno chato levanta o dedo e pergunta:

— “Fessora” Hermelinda, e como é que ela consegue abrir a lata?
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NA PONTA DA LÍNGUA

Perguntaram a um motorista profissional qual a roda que sofria menos numa curva fechada para a direita, feita em alta velocidade. Com anos de experiência em cima do volante, o cidadão não deixou por menos. Mandou a resposta num só fôlego e sem pestanejar:

— Com toda certeza, o estepe.
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NEM TERIA CABIMENTO

O único sujeito neste mundo que não reclama das pessoas que metem o nariz em seus negócios é o fabricante de lenços.
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CENA COMUM NUMA BARBEARIA POPULAR

— Bom dia, quanto custa o corte de cabelo?

— Quinze reais.

— E para fazer a barba?

— Três reais.

— Então, por favor, barbeie a minha cabeça.
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DURMA COM UM BARULHO DESSES

O menino estava tão cansado que caiu de maduro: tropeçou em seu próprio sono.
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NO CONSULTÓRIO

— Com todo respeito, volto a repetir que a madame está completamente enganada. Eu sou veterinário, especialista em animais, notadamente os bichos considerados furiosos. Queira, pois, por gentileza, procurar um especialista. Todavia, antes de sair, diga, quem foi o infeliz que lhe indicou minha clínica? Juro que se me der essa informação, não lhe cobrarei a consulta!

— O cachorro do seu genro e a cadela da sua filha.

Fonte:
Textos enviados pelo autor.

Solange Rosenmann (Poemas Avulsos)

HOJE 1 DE AGOSTO

Hoje
Especialmente hoje
Agradeço
Agradeço
Agradeço
O amor e o prazer
De dois corpos
Que se uniram
Deixando que células novas
Se multiplicassem
Formando um novo corpo
De energia vital
E com ele renasço
Para a vida
A cada amanhecer
De um novo dia
Felicidades
Que a vida renasça
Pulse
Pulse
Pulso pulsa
Felicidades.
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HUM CORPO/ALMA

O que
Você procura
Que eu não encontro

O que
Você deseja
Que eu não sinto

O que
Você esconde
Que eu não percebo

O que
Você é
Que eu não sou

O que
Você busca em mim
Que só encontro em você
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O MOÇO

Que lindo é o Moço
Que espera a Moça
Num sôfrego grito a apelar

Que lindo é o Moço
Que sonha com a Moça
Que está por chegar

Que lindo é o Moço
Que é moço
E assim há de ser

Que lindo é o Moço
Que encontra a Moça
Para ali amanhecer.
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QUE PROCURA É ESTA?

Que tu procuras, que buscas incessantemente?
Te aquietes, ouças o teu coração.
Percebes, moro nele
E não pretendo fugir, nem sair por aí.
Quero-te em mim.
Vens, habita-me em calmaria,
Mesmo trazendo tua ventania,
Deixes a maré brilhante,
Em por de sol, mirar-se n'água,
Narciso de ti, vem habitar-me.
Quero-te em mim, estando em ti.
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SOU CAMINHO


Caminhe sozinho
Caminhe
Junto a areia do mar


Converse com ela
Converse com sua alma
Veja se isto lhe acalma


Converse com seu coração
Veja se ele responde



Caminhe sozinho
Caminhe junto da areia do mar
Passo a passo, de mansinho, caminhe


Quem sabe a brisa
Te leva à entrega ao voo do ar


Acalma o coração
De mãos dadas vão, Coração e Alma,
Abraçar o horizonte do olhar
Respostas encontrar.
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Solange Chemin Rosenmann é escritora, artista visual, designer e educadora. Entre 2003 e 2010 foi responsável pela implantação da ação educativa do Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, colaborando com a edição de todo material educativo daquele período; e, em 2010 assim atuou, na 10ª Bienal Brasileira de Design. Autora do livro infantojuvenil O Galo José, editado pela Casa do Verbo, 2021. Integra a Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia (AVIPAF). Participou Poesia e Prosa na SEEC: antologia de escritores da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná (2000); Artes, diversidades e afins – Melhores textos, organizada por Ana Maria Dietrich e Rodrigo Machado – Santo André, SP. (UFABC - 2017); Poesia Livre 2019: antologia poética Vivara Editora Nacional organizada por Isaac Almeida Ramos; Ebook - Mulheres Poetizam, edição 2020 e 2021 organizado por Isabel Furini. Colunista da Contemporartes (2014); colabora na Revista Digital Carlos Zemek de arte e cultura; e, no Bonde.

Fonte:
Colaboração de Isabel Furini

Sílvio Romero (Contos Populares do Sergipe) Dona Labismina

Uma vez havia uma rainha, casada já há muito tempo, que nunca tinha tido filhos, e tinha muita vontade de ter, tanto que uma vez disse: “Permitia Deus que seja uma cobra!...”

Passados uns tempos, apareceu grávida, e quando deu à luz foi uma menina com uma cobrinha enrolada no pescoço. Toda a família ficou muito desgostosa; mas não se podia tirar a cobrinha do pescoço da criança. Foram crescendo ambas juntamente, e a menina tomou muita amizade pela cobrinha. Quando já mocinha, costumava ir passear à beira do mar, e lá a cobra a deixava e fugia para as ondas, mas a princesinha punha-se a chorar até que a cobra voltava, se enrolava outra vez no seu pescoço e iam ambas para palácio, onde ninguém sabia disso.

Assim foram indo até que um dia a cobra entrou no mar e não voltou mais, porém disse à irmã que, quando se visse em perigo, chamasse por ela. A cobra tinha o nome de Labismina e a princesa o de Maria.

Passados anos, caiu doente a rainha, e morreu; mas na hora de morrer tirou do dedo uma joia e deu ao rei, dizendo: “Quando tiveres de casar outra vez, deve ser com uma princesa em que esta joia der sem ficar nem frouxa, nem apertada”.

Depois de algum tempo, o rei quis se casar e mandou experimentar a joia nos dedos das princesas de todos os reinos, e não encontrou nenhuma em que o anel coubesse pela forma que lhe tinha recomendado a rainha. Só faltava a princesa Maria, sua filha; o rei chamou-a e botou a joia no seu dedo, e ficou muito boa. Então ele disse à filha que queria se casar com ela; e, como palavra de rei não volta atrás, a moça ficou muito desgostosa e vivia chorando.

Foi ter com Labismina na praia do mar, gritou por ela, e a cobra veio. Maria contou-lhe o caso, e a cobra respondeu: “Não tenha medo; diga ao rei que só casa com ele se ele lhe der um vestido da cor do campo com todas as suas flores.”

Assim fez a princesa, e o rei ficou muito aborrecido, mas disse que iria procurar. Levou nisto muito tempo, até que afinal conseguiu.

Aí a princesa tornou a ficar muito triste, e foi ter com a irmã, que lhe disse: “Diga que só casa com ele se lhe der um vestido da cor do mar com todos os seus peixes.”

A princesa assim fez, e o rei ainda mais aborrecido ficou. Levou muito tempo a procurar até que arranjou.

A moça foi ter outra vez com a Dona Labismina, que lhe disse: “Diga que só casa se ele lhe der um vestido da cor do céu com todas as suas estrelas.”

Ela assim disse ao pai, que ficou desesperado; mas prometeu arranjar. Levou nisto ainda
mais tempo do que das duas outras vezes, até que conseguiu.

A princesa, quando o pai lhe deu o último vestido, viu-se perdida e correu para o mar, onde embarcou num navio que Dona Labismina tinha preparado, durante o tempo que o rei andou arranjando os vestidos. Labismina recomendou à irmã que seguisse naquele navio, e saltasse no reino onde ele parasse, que nessa terra ela encontraria casamento com um príncipe, e que, na hora de casar, chamasse por ela três vezes, que ela se desencantaria numa princesa também.

Maria seguiu. No reino em que o navio parou ela saltou em terra. Não tendo de que viver, foi pedir um emprego à rainha, que a encarregou de guardar e criar as galinhas do rei. Passados tempos, houve três dias de festa na cidade. Todos de palácio iam à festa, e a criadeira de galinhas ficava. Mas logo no primeiro dia, depois que todos saíram, ela se penteou, vestiu o seu vestido de cor do campo com todas as suas flores e pediu a Labismina uma bela carruagem e foi também à festa.

Todos ficaram muito espantados de ver moça tão bonita e rica, e ninguém sabia quem era. O príncipe, filho do rei, ficou logo muito apaixonado por ela. Antes de acabar-se a festa, a moça partiu e meteu-se na sua roupinha velha, e foi cuidar das galinhas.

O príncipe, quando chegou a palácio, disse à rainha: “Viu, minha mãe, que moça bonita apareceu hoje na festa? Quem me dera casar com ela! Só parecia a criadeira de galinhas.”

— “Não digas isto, meu filho! Aquela pobre tinha roupa tão fina e rica? Vai ver como ela está lá embaixo porca e esmolambada.”

O príncipe foi onde estava a criada e lhe disse: “Ó criadeira de galinhas, eu hoje vi na festa uma moça que só se parecia contigo. . . ”

— “Oxente, príncipe, meu senhor, quer mangar comigo. . . Quem sou eu?”

No outro dia, nova festa, e a criadeira de galinhas foi às escondidas com o seu vestido de cor de mar com todos os seus peixes, e numa carruagem ainda mais rica. Ainda mais apaixonado ficou o príncipe sem saber de quem. No terceiro dia a mesma coisa, e a criadeira de galinhas levou o vestido cor de céu com todas as suas estrelas.

O príncipe ficou tão entusiasmado que foi se pôr ao pé dela e lhe atirou no colo uma joia que ela guardou. Chegando a palácio, o príncipe caiu doente de paixão e foi para cama. Não queria tomar nem um caldo; a rainha rogava a todas as pessoas para lhe levarem algum caldo, para ver se ele aceitava, e era mesmo que nada. Afinal só faltava a criadeira de galinhas, e a rainha mandou-a chamar para levar o caldo ao príncipe.

Ela respondeu:

“Ora dá-se! Rainha, minha senhora, quer caçoar comigo? Quem sou eu para o príncipe, meu senhor, aceitar um caldo da minha mão? O que eu posso fazer é preparar um caldo para mandar a ele.”

A rainha concordou, e a criada preparou o caldo, e botou dentro da xícara a joia que o príncipe lhe tinha dado na igreja. Quando ele meteu a colher e viu a joia, pulou da cama contente e dizendo que estava bom, e queria se casar com aquela moça que servia de criadeira de galinhas.

Mandaram-na chamar, e, quando ela veio, já foi pronta, como quando ia à festa. Houve muita alegria e muito banquete, e a princesa Maria se casou com o príncipe; mas se esqueceu de chamar pelo nome de Labismina, que não se desencantou, e, por isso, ainda hoje o mar dá urros e se enfurece às vezes.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

Estante de Livros (“Noites do Sertão”, de Guimarães Rosa)


Compõe-se de duas novelas ou “poemas”, como as chama Guimarães Rosa. O primeiro poema é “Dão-Lalalão (o devente)”, quase um conto, que surpreende pela intensidade do suspense. Terminado o primeiro poema, estamos com o espírito azeitado para a leitura de “Buriti”, certamente uma obra-prima da literatura mundial.

As duas novelas que formam estas Noites do sertão têm como traço comum a sensualidade como força arrebatadora que se sobrepõe a convenções e preconceitos, e pode levar homens e mulheres tanto à plenitude do prazer quanto ao encontro de si mesmos. A primeira, “Dão-Lalalão”, é a estória de Soropita, vaqueiro valentão, responsável por várias mortes, que se apaixona totalmente pela faceirice sensual de Doralda, mulher que é “o estado de um perfume. Respirar que forma uma alegria”. Surupita a tira de um bordel de Montes Claros para fazer dela sua esposa, mas, apesar da felicidade que experimenta ao seu lado, se ressente ainda de que algum de seus companheiros a reconheçam.


“Amigo é: poucos e com fé e escolha, um parente que se encontrava. Um bom amigo vale mais que uma boa carabina.”

“Um homem não é um homem se escapa de não pensar primeiro na mulher.”


A segunda, “Buriti”, narra o envolvimento de quatro pessoas que vivem numa fazenda, num clima de extrema sensualidade que os vai envolvendo pouco a pouco e provoca as mais inesperadas aproximações”.

No cenário da fazenda do Buriti Bom, onde acontece a maior parte da história:


“Triste é a água e alegre é. Como o rio continua, Mas o Buriti Bom era um belo poço parado. Ali nada podia acontecer, a não ser a lenda.”

Três personagens femininas muito marcantes vivem nessa fazenda, começando por Lalinha:

“Dona Lalinha, tem mulheres de lindeza assim, a gente sente a precisão de tomar um gole de bebida, antes de olhar outra vez.”

A figura central é Lalinha, mulher abandonada por Irvino e trazida pelo sogro, Liodoro, para a fazenda da família, chamada Buriti Bom. Na espera por alguém que não vai voltar, nesse meio estranho em que ela fica como forma de reparação do dano causado pelo marido, vivendo uma estranheza espacial e afetiva.

O contraponto de Lalinha é a feia e doentia Maria Behu. Behu personifica a noite em oposição à irmã solar, Glória:


“Ajoelhada no meio do quarto, Maria Behu rezava. O terço serpenteava preto entre suas mãos, e, à sétima ave-maria de cada mistério, ela beijava o chão, por orgulho de humildade.”

Ponto de conexão entre os dois polos é Glorinha:

“Maria da Glória é inocente, de uma inocência forte, herdada, que a vida ainda irá desmanchar e depois refazer.”

Glorinha encanta e se encanta por Miguel, que é descrito de forma igualmente vívida:

“Trabalhava atento, com afinco. Somente assim podia enfeixar suas forças no movimento pequeno do mundo. Como se estivesse comprando, aos poucos, o direito a uma definitiva alegria, por vir, e que ele carecia de não saber qual iria ser.”

Outros personagens marcantes como Iô Liodório, Nhô Gualberto, Dona-Dona. Outro personagem significativo para pensar a relevância da natureza é Chefe Zequiel. Insone, sofrendo dores de cabeça, é um personagem que se caracteriza pela vigília, sempre atento aos rumores do sertão. Zequiel conhece cada espécie que habita o sertão, com seus rumores típicos:

“O pior, é que todo dia tem sua noite, todo dia. (...) A noite é cheia de imundícies.”

A figura da palmeira, em especial o buriti-grande, árvore de beleza excepcional próxima à fazenda Buriti Bom, é um exemplo do valor que a paisagem acrescenta à obra.

A grandeza da Literatura de Guimarães Rosa é expressar em linguagem poderosa e bela algo que reverbera como cristalina verdade no âmago de nosso ser. Comparo sua prosa à poesia de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, que sabiam falar com muita beleza das verdades da alma. Como por exemplo:


Deus podia ter botado os cegos no mundo, para vigiarem os que enxergavam. Esses cegos, como os brabos arruaceiros: os valentões, que eram mandados permitido como castigo de todos, para destruir o sensível do bom sossego.”

Há ainda duas citações luminosas, em referência à tão comentada invenção de neologismos praticada por Guimarães Rosa. Note-se que as palavras inventadas (“tãomente” e “vãidade”) não estão ali por capricho, mas por altíssima exigência estética:

“O amor exigia mulheres e homens ávidos tãomente da essência do presente, donos de um perfeição espessa, o espírito que compreendesse o corpo.”

“Numa criatura humana, quase sempre há tão pouca coisa. Tanto se desperdiçam, incompletos, bulhentos, na vãidade de viver.”


Em “Buriti”, a paisagem é dinâmica, o ambiente nunca é apenas um cenário, pelo contrário, a antropomorfização nas descrições da natureza acaba abrindo novas camadas de significação na obra e contribui para o entendimento de características mais complexas dos personagens e do próprio imaginário que se desenvolve com a paisagem. Ao mesmo tempo em que permite discorrer sobre a região e a problemática sociocultural, o texto de Guimarães Rosa oferece um panorama que transcende a região como limite. O espaço do sertão na obra do escritor mineiro segue o inverso de uma delimitação regional, uma vez que é na vastidão que se constrói sua metáfora do sertão: “lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos”.

Guimarães Rosa, foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos. Foi também médico e diplomata. Os contos e romance escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falarem  de maneira popular e regional. É um clássico da literatura nacional, que deve ser lido e agraciado.

‘Noites do Sertão’ foi adaptado para o cinema em 1983, baseado na história ‘Buriti’ e teve em seu elenco Tony Ramos e Débora Bloch.


Fontes:
Alessandra Paula Rech. O sertão como representação dos personagens em “Buriti”, de Guimarães Rosa. Cad. Letras UFF, Niterói, v. 29, n. 58, p. 95-106, n. 1, 2019
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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Adega de Versos 71: Mifori (Maria Inês Fontes Rico)

 

Moacyr Scliar (Cobrança)

Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: “Aqui mora uma devedora inadimplente.”

– Você não pode fazer isso comigo! — protestou ela.

– Claro que posso! — replicou ele — Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.

– Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise…

– Já sei. — ironizou ele — Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.

– Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta…

– Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.

Neste momento começou a chuviscar.

– Você vai se molhar. — advertiu ela — Vai acabar ficando doente.

Ele riu, amargo:

– E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.

– Posso lhe dar um guarda-chuva…

– Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva.

Ela agora estava irritada:

– Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.

– Sou seu marido, — retrucou ele — e você é minha mulher, mas eu sou cobrador profissional e você é devedora. Eu a avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.

Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.


Fonte:
Moacyr Scliar. O imaginário cotidiano. SP: Global, 2001.
Livro enviado pelo autor.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXV

A criança, meiga e pura,
não se envolve na maldade,
ao crescer gera a ruptura
dos votos de lealdade.
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A pedra, quando atirada,
tem poder demolidor,
volta com força dobrada
contra o próprio atirador.
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A vida que nós levamos
pode até não ser aquela
que na vida mais sonhamos,
mas de todas é a mais bela.
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Como as nuvens, eu também,
procurei sombras levar
e ao campo que água não tem
chuvas quis precipitar.
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Da solidez pactual
entre as partes envolvidas,
depende o dom nupcial
para as relações vividas.
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Debruçado lendo um texto
mesmo não sendo exegeta,
devo obter do seu contexto,
a interpretação correta.
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Enfrentar ventos contrários
requer muita habilidade,
sopram sem itinerários
nos campos da falsidade.
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Labor, fonte do progresso,
sonho, motor de uma ação,
movendo a luta ao sucesso
transcende à imaginação.
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Mesmo em idade avançada
o idoso não quer ceder.
diz:  – Tem muita criançada
no esquife a me preceder.
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Mesmo que pareça estranho,
sem largura ou comprimento,
o mundo tem o tamanho
do nosso conhecimento.
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Nada vale a rebeldia
se faltar a solução,
escuro acabava o dia
sem o sol da inovação.
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Na escassez a fome cresce,
também sofre com o excesso,
perde a paz, de luz carece,
quando cai num insucesso.
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Não precisas de proezas
para externar a amizade,
se agires com gentilezas
ganharás a outra metade.
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Ninguém faça à tenra idade,
do inocente um sofredor
e do idoso, à sociedade,
um objeto sem valor.
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Numa chegada sofrida
é difícil não lembrar,
de quem ficou na partida
pelo retorno a esperar.
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Num pedido, nada espero,
além do solicitado,
é melhor um NÃO sincero
que um SIM falso, adocicado.
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O homem teme o semelhante,
mas de Deus não tem temor.
julga-se forte o bastante
pra vencer seu Criador.
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Quando o ser humano atinge
seus cem anos de existência,
embora cansado, finge,
reviver a adolescência.
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Quanto mais tiveres pressa
de o teu destino alcançares,
o próprio tempo começa
dar sinais falimentares.
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Se à noite luzem os campos
com pisca-piscas nos ares,
não passam de pirilampos
fazendo seus malabares.
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Se este mundo que vivemos
não reflete o que buscamos,
é porque nem conhecemos,
aquele aonde nós estamos.
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Sejam cristãos, de verdade,
ou verdadeiros ateus,
nada abala a humanidade
mais que desprezar a Deus.
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Se o seu sonho se perdeu
nas crateras abissais,
talvez, nem asas lhe deu,
pra chegar às siderais.
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Talvez, a maior barreira,
que o cego tem a enfrentar,
não seja a sua cegueira
mas seu tato aprimorar.
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Vive bem este momento.
outro igual podes não ter,
prudência e discernimento
sempre integrem o teu ser.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (100 anos de arte moderna)

No início do século 20 a arte era bem-comportada, parnasianamente certinha, em todas as suas formas de expressão. Inclusive, ou principalmente, a literatura, e primeiro que tudo a poesia, com as suas rimas ricas, sua metrificação matematicamente esmerada, seu vocabulário erudito, suas ousadas metáforas e o charme das suas belas musas.

De repente, porém, o coreto começou a balançar. Com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-18), uma alegre sensação de liberdade espalhara-se por todo o planeta, alvoroçando impulsos e costumes. Veio em seguida (1922) o início das comemorações pelo centenário da Independência do Brasil. Ingredientes bastantes para assanhar ideias de geral mudança.

Foi aí que apareceu uma rapaziada meio que topetuda pregando a aposentadoria do passado e a simultânea inauguração do futuro.

Até então o Brasil era visto como uma extensão de Portugal, a começar pelo idioma. Então os moços acharam que era hora de “desvairar a Pauliceia”, romper com o formalismo tradicional, abrasileirar a gramática, popularizar a estética, enfim deixar solta a inspiração para produzir uma arte mais viçosa, desamarrada de peias e cabrestos.

Para oficializar o agito, organizou-se a barulhosa Semana de Arte Moderna, sediada no Teatro Municipal de São Paulo, nos dias 13 a 18 de fevereiro de 1922. Ou seja, há exatos 100 anos. Poesia, música, pintura, escultura. No palco um time da pesada: Mário e Oswald de Andrade, Graça Aranha, Victor Brecheret, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Ronald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Heitor Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Guiomar Novaes.

A repercussão, porém, não foi nada boa. Vaias do auditório, críticas zangadas da imprensa. “Arrogantes”, “irreverentes”... de tudo foram chamados. O público não estava preparado para aceitar tão atrevidas experiências assim de uma hora para outra.

Os críticos diziam: 1. que eram riquinhos esnobes, filhos rebeldes da aristocracia rural; 2. que falavam em desatrelar de Lisboa a cultura brasileira, mas tentavam implantar aqui os modismos trazidos de Paris: futurismo, cubismo, dadaísmo, surrealismo; 3. que poderiam brincar de moderninhos mas sem debochar dos que preferiam o clássico. E por aí afora.

De fato a moçada cometeu alguns erros. Mas o mais grave foi a ideia de que seria preciso desconstruir o antigo para introduzir o novo. Algo assim como demolir Roma para no seu lugar erguer uma Dubai. Ou seja, faltou respeito à arte tradicional. Faltou pedir a bênção aos grandes gênios que brilharam antes. Deveriam saber que ninguém “mata” um Luís de Camões, um Gonçalves Dias, um Castro Alves, um Olavo Bilac.

Porém a “Semana” rendeu também muitos bons frutos. A partir dela ganhamos uma superestrelada geração de megacraques das artes: Portinari, Tarsila, Bandeira, Drummond, Cecília, Guimarães Rosa, Vinícius, Quintana...
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 10-2-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Daniel Maurício (Poética) 22

 

David J. Pollay (A lei do caminhão de lixo)

Este texto foi erroneamente atribuído na internet a Arnaldo Jabor.
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Um dia peguei um táxi e fomos direto para o aeroporto. Estávamos rodando na faixa certa quando de repente um carro preto saltou do estacionamento na nossa frente. O motorista do táxi pisou no freio, deslizou e escapou do outro carro por um triz!

O motorista do outro carro sacudiu a cabeça e começou a gritar para nós.O motorista do táxi apenas sorriu e acenou para o cara. E ele o fez bastante amigavelmente.

Assim eu perguntei: “Porque você fez isto? Este cara quase arruina o seu carro e nos manda para o hospital!”

Foi quando o motorista do táxi me ensinou o que eu agora chamo “A Lei do Caminhão de Lixo”.

Ele explicou que muitas pessoas são como caminhões de lixo. Andam por ai carregadas de lixo, cheias de frustrações, cheias de raiva, e de desapontamento. À medida que suas pilhas de lixo crescem, elas precisam de um lugar para descarregar, e às vezes descarregam sobre a gente. Não tome isso pessoalmente. Apenas sorria, acene, deseje-lhes bem, e vá em frente. Não pegue o lixo delas e espalhe sobre outras pessoas no trabalho, em casa, ou nas ruas.

O princípio disso é que pessoas bem sucedidas não deixam os seus caminhões de lixo estragar o seu dia.

A vida é muito curta para levantar cedo de manhã com remorso, assim…

Limpe os sentimentos ruins, aborrecimentos do trabalho, picuinhas pessoais, ódio e frustrações.

Ame as pessoas que lhe tratam bem. Ore pelas que não o fazem. E tenha um dia abençoado, livre de lixo!

Lembrem-se da sabedoria da água: “Ela nunca discute com seus obstáculos, simplesmente os contorna”.

Fonte:
David J. Pollay. The law of the garbage truck. 2010.

Angela Dondoni (Poemas Avulsos)

A JORNADA


A vida é constante
Movimento
Tudo nasce
Renasce
A vida é um constante
Construir e
Reconstruir
A vida é um constante
Chorar e sorrir
Um eterno
Comprometimento
Um eterno trilhar e
Agradecer.
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ALINHAVOS

Nas mãos da avó
um pedaço de pano
se tornava um vestido
calça ou casaco
Roupas especiais
Costuradas com as lembranças
De uma infância distante
Os retalhos unidos
Com tanta ternura
Se transformavam
nas mais belas costuras
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ARTÍSTICO

Colore meu rosto
De arco-íris
Borda meu coração
Com estrelas de felicidade
Desenhe nos meus olhos
A esperança
Toque uma música
Para minha alma
Pinte uma aurora Boreal
E me dê de presente
Com a sua companhia
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INFINITO

Olhe para o Alto
Olhe para cima
Preste atenção
O universo é imenso
O cosmos
Observe algo além…

Olhe o movimento das estrelas
O nascimento do sol e da lua
Nada é estável
No ventre da criação

É fantástico!
É milagre!
Observe
= = = = = = = = = = = = =

MIGRAÇÕES  

Reconcilie-se
com os seus sonhos
O céu nunca é o mesmo
Às vezes, a lua se mostra
Durante o dia
A primavera pode
Despertar mais cedo
E o vento sempre busca novas rotas
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Angela Dondoni nasceu em Cascavel, no Paraná, tem formação em Letras, é professora e mestre em Letras. Publica poemas e contos em algumas Coletâneas, também publica no Recanto das Letras e Instagram. É autora dos livros “Encontros com Poesia” e “O mundo precisa de poesia”. Membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira de Nova Iorque.

Fonte:
Enviado por Isabel Furini

Charles Perrault (Riquete do Topete)


Era uma vez uma rainha que deu à luz um filho tão feio e tão deformado que, durante muito tempo, se duvidou que tivesse forma humana. Uma fada que estava presente quando ele nasceu assegurou que, apesar do seu aspecto, seria amável e muito inteligente. Acrescentou ainda que, graças ao dom que ela lhe concedera, poderia dar à pessoa que mais amasse uma inteligência igual à sua. Estas palavras consolaram um pouco a pobre mãe que estava muito triste por ter posto no mundo uma criança tão feia. Com efeito, mal começou a falar, o menino disse logo coisas engraçadas e inteligentes, causando grande admiração entre quem o escutava.

Já me esquecia de dizer que o menino nasceu com um tufo de cabelo na cabeça, o que fez com que lhe chamassem Riquete do Topete, uma vez que Riquete era o seu nome de família.

Alguns anos mais tarde, a rainha de um reino vizinho deu à luz duas meninas. A primeira era mais bela do que o dia e a rainha ficou tão feliz que temeu que tanta alegria lhe fizesse mal. Estava presente a mesma fada que assistira ao nascimento do pequeno Riquete do Topete e, para moderar a alegria da mãe, disse-lhe que a princesa teria pouca inteligência e que seria tão estúpida quanto era bonita.

A rainha ficou muito triste mas, momentos depois, teve um desgosto ainda maior porque a segunda filha que deu à luz era muito feia.

- Não se aflija, Majestade, – disse a fada – a vossa filha será tão inteligente que a sua fealdade quase não será notada.

- Deus o queira, – respondeu a rainha – mas não haverá meio de conceder um pouco de inteligência à mais velha que é tão bela?

- Não posso fazer no que toca à inteligência, – disse a fada – mas posso fazer tudo em relação à beleza. E como não há nada que eu não faça para vos satisfazer, concedo-lhe o dom de poder tornar bonita a pessoa que ela quiser.

À medida que as duas princesas foram crescendo, cresceram também os seus dotes, e não se falava senão da beleza da mais velha e da inteligência da mais nova. Também é verdade que os seus defeitos aumentaram muito com a idade.

A mais nova estava cada vez mais feia e a estupidez da mais velha crescia de dia para dia: ou não respondia ao que se lhe perguntava ou então dizia uma bobagem qualquer. Além disso, era tão desajeitada que não conseguia pousar quatro xícaras na borda da chaminé sem partir uma, nem conseguia beber um copo de água sem entornar metade por cima do vestido.

Ainda que a beleza seja uma grande vantagem numa jovem, o certo é que a mais nova suplantava quase sempre a mais velha quanto a companhias durante os serões. A princípio, as pessoas rodeavam a mais velha para a verem e admirarem mas, pouco depois, iam para junto da mais inteligente escutar as mil e uma coisas espirituosas que ela dizia. Em menos de um quarto de hora a mais velha ficava sozinha, enquanto que mais nova tinha toda a gente em seu redor.

A mais velha, apesar de ser muito estúpida, apercebia-se do que se passava e teria dado de bom grado toda a sua beleza em troca de metade da inteligência da irmã. A rainha, ainda que ponderada, não conseguia deixar de a repreender pela sua estupidez, o que entristecia ainda mais esta pobre princesa.

Um dia, foi para o bosque para poder chorar à vontade. Nisto, aproximou-se dela um homenzinho muito feio e desajeitado, mas ricamente vestido. Era o jovem príncipe Riquete do Topete que tinha se apaixonado perdidamente por ela, depois de ver os seus retratos que circulavam por todo o mundo. Abandonara o reino do seu pai para ter o prazer de a ver e de falar com ela. Encantado por a ter encontrado sozinha, dirigiu-lhe a palavra com muita delicadeza. Notando a sua melancolia, disse-lhe:

- Senhora, não compreendo como é que uma pessoa tão bela como vós pode estar tão triste. Asseguro-vos que nunca vi beleza semelhante à vossa.

- Isso diz o senhor. – respondeu a princesa.

- A beleza constitui um tal privilégio que supera tudo o resto. Quando alguém a possui, não acredito que exista alguma coisa que a possa afligir muito. – acrescentou Riquete do Topete.

- Preferia ser feia como vós e ser inteligente, em vez de ser tão bela e estúpida como sou. – confessou a princesa.

- Se é só isso que vos aborrece, posso facilmente por fim à vossa dor.

- E como o farias? – Perguntou a princesa.

- Tenho o dom de dar inteligência à pessoa que mais amar. E, como vos amo, dar-vos-ei o que pretendes se aceitares casar comigo.

A princesa ficou sem palavras, tal foi o seu espanto.

- Vejo que este pedido vos desagrada, o que não me admira nada – continuou Riquete do Topete. – Contudo, dou-vos um ano para decidires.

A princesa era tão pouco inteligente e ao mesmo tempo desejava tanto sê-lo que pensou que um ano seria demasiado tempo para esperar. Por isso, aceitou logo a proposta que lhe fora feita.

Assim que ela prometeu que casaria com Riquete do Topete dentro de um ano naquele mesmo lugar, sentiu-se uma pessoa diferente, sem dificuldade em dizer tudo o que lhe apetecia, de uma maneira elegante, clara e natural. Iniciou logo um diálogo de tal forma espirituoso, que Riquete pensou ter-lhe dado mais inteligência do que a que ele próprio possuía.

Quando regressou ao palácio, a corte nem sabia o que pensar da sua extraordinária mudança. Em situações onde outrora ouviam uma quantidade de bobagens, ouviam agora pensamentos claros e muito espirituosos. A única pessoa que não ficou totalmente satisfeita com esta mudança foi a irmã mais nova, porque havia perdido a única vantagem que tinha em relação a ela. O rei passou a ouvir as suas opiniões e, por vezes, pedia-lhe conselhos. Os rumores sobre esta transformação espalharam-se pelo reino e os jovens príncipes dos reinos vizinhos esforçavam-se por conquistar a sua afeição. Muitos pediram-na em casamento, mas a princesa não os achou suficientemente inteligentes e recusou todos os pedidos.

Por fim, houve um príncipe tão poderoso, tão rico, tão inteligente e tão belo que a pediu em casamento, que a ela não pode deixar de pensar no seu pedido. O pai notou o seu interesse pelo príncipe e disse-lhe que podia ser ela a escolher o noivo que entendesse. Só teria que dizer de quem gostava.

Para poder decidir com calma, foi passear, por acaso, para o bosque onde tinha conhecido Riquete do Topete. Foi então que ouviu vozes em surdina, mesmo por baixo dos seus pés, como se aí estivessem muitas pessoas atarefadas, andando de um lado para o outro.

Prestou mais atenção e ouviu alguém pedir:

- Traz-me essa panela.

E logo a seguir:

- Dá-me aquele pote.

E outra pessoa:

- Põe lenha na fogueira!

Nesse preciso momento o chão abriu-se e ela viu lá embaixo um enorme espaço semelhante a uma cozinha cheia de cozinheiros, de criados e de todo o gênero de ingredientes que são necessários para se fazer um festim magnífico. Um grupo de vinte ou trinta cozinheiros dirigiu-se para uma alameda do bosque. Puseram-se à volta de uma mesa muito comprida e começaram a trabalhar ao ritmo de uma bela canção.

A princesa, espantada com o que via, perguntou-lhes para quem trabalhavam.

- O nosso amo é o príncipe Riquete do Topete que se casa amanhã. – respondeu-lhe o mais vistoso do grupo.

Foi então que a princesa se lembrou que tinha prometido casar-se com Riquete do Topete naquele mesmo dia. Quase desmaiou! Porém, havia uma razão para o seu esquecimento: naquela altura, era apenas uma tonta. Assim que recebeu do príncipe uma nova inteligência, esqueceu todas as tolices que dizia.

Ainda não dera trinta passos quando Riquete do Topete surgiu diante de si, em trajes magníficos, conforme convém a um príncipe que se vai casar.

- Aqui estou, Senhora, pronto a cumprir a minha palavra. Não duvido que também vieste cumprir a vossa e, assim, tornar-me o homem mais feliz do mundo.

- Confesso, com toda a franqueza, que ainda não me decidi e penso que nunca poderei tomar a decisão que deseja. – respondeu a princesa.

- Muito me admiro, Senhora! – Respondeu Riquete do Topete.

- Acredito que, se estivesse a falar com um homem grosseiro e bruto, estaria agora bastante embaraçada. «Uma princesa deve cumprir a sua palavra - dir-me-ia ele.» Mas como estou a falar com o homem mais inteligente do mundo, estou certa que me compreenderá. Sabe que, quando era tonta, nem ao menos pude decidir se queria casar consigo ou não. Se pretendia casar comigo não me devia ter livrado da minha estupidez. Agora vejo as coisas com mais clareza!

- Alteza, quereis que me contenha no momento em que a minha felicidade está em jogo? Será razoável que as pessoas inteligentes se encontrem em desvantagem em relação às que o não são? Mas vejamos os fatos, se o permitis. Além da minha fealdade há mais alguma coisa que não vos agrade? Desagrada-vos a minha origem, as minhas capacidades, o meu caráter ou as minhas maneiras?

- Não, pelo contrário, todas essas características me agradam. - respondeu a Princesa, sem hesitar.

- Então, serei feliz, – continuou Riquete do Topete – pois está na vossa mão tornar-me o mais atraente dos homens. Basta que me ames o suficiente. A mesma fada que me concedeu o dom de tornar inteligente a pessoa de quem mais gostasse, também vos concedeu, a vós, o dom de tornar bonito aquele a quem ames.

- Se o que dizes é verdade, desejo do fundo do coração que vos torneis o príncipe mais bonito do mundo. – declarou a princesa.

Ainda a princesa não tinha acabado de falar e já Riquete do Topete parecia, aos seus olhos, o homem mais bonito e fascinante que alguma vez vira.

Há quem diga que esta mudança do príncipe não aconteceu graças ao feitiço da Fada, mas que só por amor se pode obter uma metamorfose assim. Dizem que a Princesa, depois de pensar nas qualidades do seu namorado, deixou de ver o seu corpo deformado.

A Princesa prometeu que casaria com ele de imediato, desde que o seu pai concordasse. O Rei, quando soube que a filha sentia grande admiração por Riquete do Topete, príncipe muito conhecido pela sua grande sabedoria, aceitou-o com prazer como genro.

No dia seguinte, celebrou-se a boda, tal como Riquete tinha previsto e de acordo com as ordens que dera há já muito tempo.
 
Nenhuma beleza e nenhum talento tem poder sobre um encanto indefinido, só pelo amor percebido.

Fonte:
Charles Perrault. Contos de tempos passados. Publicado originalmente em 1697.