sexta-feira, 18 de março de 2022

Hans Christian Andersen (A Borboleta)


Era uma vez uma borboleta macho que buscava uma noiva. Como vocês podem imaginar, ele queria a mais bonita das flores. Com olhos clínicos, ele analisou todos os canteiros e percebeu que as flores estavam sentadas bem quietas e comportadas em seus caules, como as mocinhas devem se sentar. Mas eram muitas, e ele percebeu que chegar a uma decisão seria uma tarefa muito demorada. A borboleta não gostava de coisas trabalhosas, então partiu dali para visitar as margaridas.

Os franceses chamam a margarida de Marguerite e dizem que ela é capaz de fazer adivinhações. Os enamorados puxam as pétalas e, a cada puxada, fazem uma pergunta: “Ela ou ele me ama? Muito? Só um pouco? Profundamente? Nem um tiquinho?” e assim por diante. Cada um faz as perguntas no próprio idioma.

A borboleta também foi até a Marguerite para fazer uma pergunta, mas não arrancou nenhuma pétala; em lugar disso, deu um beijo em cada uma, pois acreditava que se consegue muito mais com gentileza.

– Querida senhorita Marguerite, você é a mulher mais sábia de todas. Por favor, diga qual das flores devo escolher como esposa. Qual deve ser minha noiva? Quando eu souber, voarei direto até ela e farei o pedido.

Mas a Marguerite não respondeu. Ela havia se ofendido por ele chamá-la de mulher quando ela era só uma menina, e a diferença é grande. Ele perguntou pela segunda vez e depois uma terceira, mas ela permaneceu muda, sem oferecer nenhuma resposta. Então ele decidiu que não iria esperar mais, e saiu voando para começar de uma vez a fazer seus cortejos. Era o começo da primavera, quando as flores de açafrão e de galanto estavam no auge da florescência.

“São encantadoras”, a borboleta pensou, “mas um pouco rígidas e formais demais”.

Então, como rapazes jovens costumam fazer, ele foi procurar meninas mais velhas. Voou para as anêmonas, mas as achou muito amargas para seu gosto. A violeta era exageradamente sentimental; as flores de lima eram muito pequenas e, além disso, a família delas era imensa. A flor da macieira, embora parecesse uma rosa, podia desabrochar em um dia e cair no outro, com o primeiro vento que soprasse, e a borboleta achou que um casamento assim poderia durar muito pouco. A flor da pera era a que mais o agradava; era branca e vermelha, delicada e esguia, e pertencia àquele grupo de senhoritas que, além de serem bonitas, podem ser aproveitadas na cozinha. Estava prestes a fazer a proposta quando, perto dela, ele viu uma vagem com uma flor murcha dependurada.

– Quem é ela?

– É a minha irmã – a flor de pera respondeu.

– Ah, sério? Então, um dia você vai ficar como ela – a borboleta macho exclamou e fugiu voando, chocado.

Uma madressilva totalmente desabrochada pendia de uma cerca viva. Ah, mas havia tantas garotas como aquela, com rostos compridos e pálidos! Não, ele não gostava dela. Mas de qual ele gostava?

A primavera passou e o verão se aproximava do fim. Veio o outono, e a borboleta ainda não tinha feito sua escolha. As flores se exibiam agora em seus mais lindos trajes, mas era tudo em vão; elas não mais possuíam o ar fresco e perfumado da juventude. O coração pede perfume mesmo quando já não é jovem, e há bem pouco perfume a ser encontrado nas dálias e nos crisântemos secos. Assim, a borboleta se voltou para o canto onde estava plantada a menta. Esta planta, como vocês sabem, não tem flores, mas é toda doçura: exala fragrância da cabeça aos pés, com perfume floral em cada folhinha.

– Vou ficar com ela – a borboleta disse, e logo fez o pedido.

Mas a menta permaneceu muda e rígida enquanto o escutava, até que por fim respondeu:

– Posso lhe oferecer amizade se você quiser, nada mais que isso. Eu sou velha e você é velho, mas podemos nos dedicar um ao outro mesmo assim. Quanto a casar, contudo, não! Seria ridículo na nossa idade.

E foi assim que a borboleta macho acabou sem esposa nenhuma. Passou tempo demais escolhendo, o que é sempre uma má ideia, e se tornou o que chamamos de solteirão.

O outono chegava ao fim, e o tempo estava nublado e chuvoso. O vento soprava nas costas encurvadas dos salgueiros, curvando-os ainda mais. Não era o clima ideal para se voar por aí em roupas de verão, mas a borboleta não estava ao ar livre. Por uma feliz coincidência, ele tinha conseguido um abrigo. Era uma sala aquecida por um forno, quentinha  como um dia de verão. Ele poderia viver ali muito bem.

– Mas simplesmente existir não basta. – ele concluiu. – Preciso de liberdade, dos raios de sol e de uma florzinha como companheira.

Ele então saiu voando, mas se chocou contra o vidro da janela, onde foi notado pelas pessoas que estavam na sala. Elas o capturaram e guardaram em uma caixa de curiosidades. Não poderiam ter feito nada melhor por ele.

– Agora estou espetado como uma flor. – ele disse. – Certamente não é muito agradável. Estou amarrado aqui, imagino que seja parecido com ser casado.

E com esse pensamento ele se consolou um pouco.

– Parece um consolo bem fraco. – disse uma das plantas da sala, que vivia em um vaso.

“Ah”, pensou a borboleta, “não se pode confiar muito nessas plantas que vivem em vaso, elas tiveram contato demais com os seres humanos”.

Fonte:
Hans Christian Andersen. Publicado originalmente em 1860.

Julia Martins e Grant Faulkner (Como Escrever uma História de Fantasia Convincente) Parte 3: Definindo os personagens


1. Crie criaturas não humanas para dar mais variedade ao enredo.

Essa variação dá um tom ainda mais fantástico à história — e a parte da criação em si é bastante divertida. Use criaturas míticas tradicionais, como elfos, fadas, ogros e vampiros, ou pense em algo completamente novo.

Se você usar criaturas míticas tradicionais, como vampiros ou sereias, descreva como eles são na sua história. Por exemplo: em Crepúsculo, os vampiros podem optar por não tomar sangue humano e brilham na luz do sol; em Buffy, por sua vez, a maioria deles não consegue controlar as tendências para o mal e morre quando é exposta à luz do dia.

Esse passo não é obrigatório em toda história fantástica. Pense bem no que faz sentido para você e o seu enredo. Você não precisa seguir à risca as convenções que já existem, afirma a escritora Julia Martins. "Os seus ogros são inteligentes? As fadas são criaturas perversas? O sol não afeta os seus vampiros?"

2. Pense nas motivações dos personagens.

Os personagens precisam de motivações próprias e pessoais para que o enredo tenha conflitos e resoluções: objetivos, influências de outras pessoas ou valores internos, por exemplo. O importante é dar pontos fortes e fracos que tornem essas pessoas (ou criaturas) tridimensionais.

Por exemplo: imagine que houve um tsunami no seu mundo fantástico e que o protagonista está em busca da família.

Pense no que o personagem quer. Por exemplo: talvez a protagonista Ramona tenha sido abandonada pela mãe e, agora, quer fazer parte de uma família. Por isso, ela acaba sendo apegada demais aos amigos — um defeito, mas que nesse caso é compreensível.

3. Conquiste os leitores com um herói que tenha uma motivação pura.

Toda história de fantasia tem um herói. Dê a ele traços únicos, bem como a determinação necessária para avançar o enredo. Coloque-o para lutar contra o antagonista e, assim, resolver o conflito central.

Geralmente, o herói não percebe que é especial logo de cara. Luke Skywalker não sabia que podia usar a força até conhecer Obi-Wan Kenobi; Harry Potter não sabia que era bruxo até conhecer Hagrid etc.

Use um personagem "comum" como herói. Os leitores vão se identificar mais com alguém que tenha uma vida relativamente normal (pelo menos no início).

Dê sinais de que o herói vai ser importante. Para isso, você pode contar a história da perspectiva dele.

4. Inclua um mentor para dar mais profundidade à história.

Muitas histórias fantásticas incluem a figura do mentor: ObiWan Kenobi em Star Wars, Hagrid e Dumbledore em Harry Potter e assim por diante. Use-o para orientar o progresso do herói.

No geral, o mentor é um personagem mais velho que o herói e está familiarizado com as regras e convenções da sociedade, além de saber desde o início que o herói é especial e importante.

Usar a figura do mentor é uma ótima forma de explicar as convenções do mundo de maneira que não pareça forçada. Pense só: não seria estranho se, em Star Wars, Luke explicasse como a força funciona diretamente para os telespectadores? O fato de que ObiWan fala do assunto deixa todo o roteiro mais crível.

5. Inclua um vilão memorável para tornar a história cativante.

O vilão é um dos principais elementos de toda história fantástica, já que funciona como um contraponto ao herói. Dê motivações claras ao personagem para torná-lo realista.

Por exemplo: em O Rei Leão, Scar quer governar o Reino e se sente menos importante que o irmão, Mufasa. Essa fome de poder guia todas as atitudes que ele toma ao longo do enredo.

Os leitores vão simpatizar mais com o vilão se entenderem a motivação dele. Por exemplo: pense em uma história trágica que explique por que ele se voltou para o lado do mal.
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continua... Parte 4: Escrevendo a história

Fonte:
Wikihow

quinta-feira, 17 de março de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 50) Serviço completo


O TELEFONE TOCA insistentemente e Carlos acorre atender:

— Bom dia, Carlos Mangueira falando!

— Oi, Seu Mangueira, digo, seu Carlos, tudo bem? Desculpe estar ligando a essa hora.

— Tudo bem. Quem é?

— Nossa! Já esqueceu?

— Desculpe. Tanta gente...

— O senhor ficou de passar aqui em casa...

— Na sua casa?

— Sim.

— Meu Deus. Quem está falando?

— Silvia.

— Silvia?

— Isso. O senhor tratou comigo de vir antes de ontem.

— Minha nossa. Estou ficando meio perdido.

— Meio?

— Eu diria inteiramente...

Risos.

— Tudo bem, diga lá dona Silvia, o que eu tratei exatamente com a sua pessoa?

— Não se recorda?

— Sinceramente? Não! E creia, estou sendo honesto.

— O senhor deve ser muito bom naquilo que faz.

— Modéstia à parte, sou mesmo...

— Por isso o belo sexo não lhe dá sossego?

— É uma pergunta? — Por certo. (Mais risos) Toda hora o telefone me faz voltar à realidade...

— Imagino. Por causa dessa sua popularidade acabei ficando na mão...

— Desculpe. Diga exatamente o que foi que marcamos?

— O senhor ficou de vir aqui em casa tapar um buraquinho.

— Um... um o quê? Buraquinho?!

— É. E não veio.

— Que descuido o meu. Me perdoa. Não foi por querer.

— Perdoado. Como lhe falei, esse buraquinho aberto está me tirando o sono. E pinga. Pinga desesperadamente. Não consigo dormir, não me concentro, sem contar que meu esposo, assim que se deita, pega no sono e ronca destrambelhadamente. Agora venho tendo graves seções de pesadelos...

— Ah, me lembrei! Espera ai: a senhora não disse que seu marido...? Pelo nosso papo, entendi que ele tomaria a frente da questão e acabaria com a sua dor de cabeça...

— Eu sei o que eu disse seu Carlos Mangueira. Todavia, meu ilustre companheiro não se incomoda. Não está nem ai para a coisa. Conclusão: o desgraçado do buraquinho continua desguarnecido... e vazando. Ao acordar, de manhã, o meu colchão... deixa claramente evidenciado o tamanho do desarranjo... sinceramente, seu Carlos? Vou acabar tendo um piripaque repentino. É muita coisa para se encaixar de uma vez só na minha mente conturbada.

— Que coisa!

— Não sei se o senhor sabe, mas uma mulher em meio a esse martírio noturno com um buraquinho porejando e precisando ser tapado, obstruído, entupido, sei lá, a coisa pega...

— Entendo. Desculpe mais uma vez ter lhe deixado a ver navios. Repete seu endereço, por gentileza.

— De novo? Já é a segunda vez que lhe passo.

— Não voltará a acontecer. Sairei agora, assim que desligar e cuidar desse buraquinho com o carinho que a senhora merece.

— Vou me beliscar. Ai, esse doeu! Virá mesmo, com certeza, cuidar do infeliz?

— Sem mais demora. E o material?

— O senhor ficou de trazer. Que euzinha não me preocupasse.

— Ok. Se eu disse. Manda por favor, seu endereço.

— Conjunto dos Prazeres, rua dos Aconchegos, número 89.

— Ummmmmm!... agora, dona Silvia, caiu a ficha. Lembrei. O buraquinho fica nos aposentos!

— Sim senhor...

— Sob a sua cama?

— Não, em cima dela.

— Em cima?

— Exatamente. Por isso a minha agonia. O treco me irrita. Veja o senhor. Assim que me recolho, garro a subir pelas paredes. Me assemelho a uma bêbada galopando uma mula. Imagine a cena...

— Bem hilária. Pois bem, dona Silvia. Estou indo.

— Agora?

— Só o tempo de pegar o material.

— O senhor me disse que possui uma maleta com toda a parafernália engatilhada?

— O homem esperto carece andar prevenido. Tenho sim. É só passar a mão...

— Posso esperar então?

—Tranquila. Se não for pedir muito...

— Diga?

— Um cafezinho depois do batente pegaria de bom tamanho.

— De pleno acordo, seu Mangueira. Porei a chaleira no fogo.

— Para seu governo, me pego saindo agora. Hoje cuido desse buraquinho, ou deixo de me chamar Carlos Mangueira.

— Leva quanto tempo?

— Para vedar o buraquinho?

— Não, para o senhor chegar aqui.

— Coisa de meia hora.

— Preciso fazer alguma coisa?

— Deixar a área limpa.

— Quanto a isso, limpíssima, desde que marcamos pela primeira vez...

— Perfeito, dona Silvia. Estou enroscado na sua proa. Pode dizer adeus ao buraquinho. Hoje eu entupo seu desconforto de massa e ponho fim à sua angústia.

Faz uma breve parada para se livrar de uma tosse repentina:

— Perdão. Como ia dizendo, usarei munição total dentro dessa fortaleza. Tenho certeza que a senhora gostará do meu serviço...

— O senhor também pinta?

— Sim.

— Meu marido — sabe-se lá por qual cargas d'água, justo hoje levou o pincel para o trabalho.

— Não se preocupe dona Silvia. Se precisar usar tinta para a caiação, eu tenho pincel preparado. E tinta também é o que não falta. Para onde vou executar algum procedimento, jamais deixo de de levar aquilo que preciso juntamente com os demais apetrechos necessários, tudo na caixa de ferramentas. Até daqui a pouco.

— Até.

O problema do tal buraquinho não ia além de uma minúscula e quase imperceptível rachadura no estuque do quarto, sob a cama do casal. Originava da boia da caixa d’água velha e desregulada. Sempre que esse reservatório ultrapassava o limite (notadamente a noite, pelo volume dispendido em torneiras e chuveiro) o mecanismo, não vedando o nível de resguardo, esborrava e descia pelo forro, pingoteando.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Daniel Maurício (Poética) 25

 

Dorothy Jansson Moretti (Antes Tarde)

Na infância tive algumas aspirações extravagantes que nunca foram realizadas. Hoje, quando me lembro delas, rio-me; mas naquele tempo eram para mim motivo de certa tristeza e frustração.

Para começar, meu nome não era absolutamente o que eu teria escolhido para mim. Meu grande desejo era chamar-me Adelina. Contribuía grandemente para isso o fato de eu ser admiradora fanática da "Adelina da Pernambucanas", como nós a chamávamos. Era irmã de Seu Nequinha e uma das moças mais elegantes que já conheci. Vestia-se rigorosamente na moda, e eu achava-a maravilhosa. Quando ela vinha ao ateliê para uma fotografia, eu ficava por ali, rodeando-a e admirando-a de perto.

Anos mais tarde, quando já adulta, tive o prazer de desfrutar de sua amizade e até ser sua professora de inglês. Foi uma das pessoas mais meigas e bondosas que tive o privilégio de conhecer. Nos meus guardados conservo um cartão postal de aniversário em que aparece uma linda menina em traje de festa, com um buquê de flores na mão. Eu achava que a menina era eu, e escrevi embaixo o meu querido nome de mentirinha: Adelina de Almeida. (Almeida era também o sobrenome de minha preferência.)

A minha irmã Linéa também não estava contente com o próprio nome, e vivia insistindo com mamãe para que o mudasse para Terezinha de Jesus…

Os rituais católicos nos fascinavam. As procissões com as belas imagens em andores enfeitados, as meninas vestidas de branco, com a tradicional faixa cor-de-rosa e o véu na cabeça... como eu as invejava! E os anjos, então! Que maravilha me parecia poder sair de anjo na procissão!

Esse desejo mais ou menos satisfazíamos em casa, brincando de religião. Célia, Odette e Norma nos ensinavam as rezas, e não raro fazíamos nossas procissões no quintal. Como não dispúnhamos de filó para o véu, servia uma camiseta velha de papai, de malha furadinha (que naquelas alturas estava mesmo era furadona). Linéa recortava as partes aproveitáveis e debruava artisticamente as pontas com linha torçal vermelha. Ficava um estouro! Que emoção colocar na cabeça um véu tão requintado e sair pelo quintal afora, cantando "Ave, ave, ave Maria"...

Agora, a capela é que era realmente original. Naquele tempo, apesar das casas possuírem banheiro completo dentro, todo mundo tinha, para eventuais emergências, uma instalação sanitária um tanto primitiva no fundo do quintal. Davam-lhe nomes diversos: escritório, telégrafo, gabinete, casinha... Pois era esse exatamente o recinto que nos servia de capela. Cravos-de—estudante, esporinhas, cravos-de-defunto e outras flores que tínhamos em profusão pelo quintal (além das mandiocas, milhos e hortaliças de mamãe), enfeitavam aquele exótico e profaníssimo altar.

Lá pelas tantas, Linéa, a mais velha e chefona da turminha, verdadeiro manda-chuva, já enjoada de brincar de católica, dava a palavra de ordem:

"Agora vamos brincar da minha religião!"

E a capela virava Escola Dominical, com professoras e alunas estudando catecismo e cantando os tradicionais hinos infantis protestantes: "Brilhando qual doce luz", "Deus dá às criancinhas", "Deitado em mangedoura"...

Na casa da Odette o gabinete também tinha uma função nobre: era a "diretoria de uma escola", cuja "diretora" era eu. Enfurnava-me lá dentro em meio a um montão de velhos livros de escrita da farmácia que Seu Victorino ali depositava. A Odette era "professora", e de vez em quando vinha perguntar-me alguma coisa sobre "problemas de classe". Eu, muito compenetrada, consultava os velhos livros para poder dar-lhe uma resposta adequada e criteriosa. (Na vida real nunca cheguei a ser diretora de escola: mas de ser professora confesso que já ando um tanto cheia...)

Houve, contudo, um desejo que de certo modo consegui realizar. Na escola, uma das coisas que eu achava mais interessante era quando aparecia um menino ou menina com o braço na tipóia, Ai que vontade que me dava de também quebrar o braço para botá-lo na tipóia! Apesar de todas as minhas molecagens e macaquices pelo alto das árvores, isso nunca me aconteceu.

Agora, porém, poucos anos atrás, em visita à Dona Rosinha de Dr. Oscar, na calçada da casa dela, enfiei o pé num buraco e torci-o para a frente. Em plena Lins de Vasconcelos e com todo o barulhão daquele trânsito infernal, ouvi o tremendo "crrroc" do osso se partindo. Foi uma dor horrorosa e o pé imediatamente ficou um "pão" de tão inchado. Não pude ficar nem cinco minutos na visita, e Dona Rosinha e uma neta, amparando-me de cada lado, levaram-me até o táxi para eu voltar para casa e ir a um hospital.

Fiquei dez dias com a perna engessada, sem poder levantar-me da cama, e depois de trocado o gesso, mais vinte dias andando de "saltinho". Não era exatamente o que eu queria, muito menos quando eu queria, mas... antes tarde que nunca! De alguma forma, depois de velha, eu finalmente realizava um sonho antigo, já quase esquecido, perdido entre as brumas das lembranças do meu tempo de menina,

(Tribuna de Itararé — 28/08/1986)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 16 –


A chuva em seu acalanto,
não causa ofensa ao sertão!
Mata a sede e acaba o pranto
dos olhos tristes do chão!
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Ainda espero o teu regresso,
se é que ainda esperas por mim;
pedir que voltes, não peço,
mas te espero até o fim!
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Andando não sei por onde,
nas asas da soledade,
toda tarde o sol se esconde
pintando o céu de saudade!
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Ao lembrar dos tempos idos,
na vida, quanta lembrança!...
Contando os sonhos perdidos,
vi meus sonhos de criança!
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A vida, com seus desvãos,
dá-me alguns sorrisos francos,
com os netos, passando as mãos
nestes meus cabelos brancos!
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Busco a esmo, mundo afora,
rastros de um velho andarilho,
que se fez raio de aurora
no coração de seu filho!
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Cercada de lenda e encanto,
teu poço nunca secou...
Meu Caicó canta o canto
que o Seridó lhe ensinou!
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Dentre as estrelas brilhantes,
no céu, repletas de luz...
Cinco estrelas faiscantes
lembram-me o sinal da cruz!
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Eis que esse gesto de amor,
comparo às forças do além:
Que a planta que oferta a flor
perfuma as mãos de outro alguém!
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Esses teus lábios, menina,
lembram-me os lábios da flor,
na cor rubra mais divina
da embriaguez de um terno amor!
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Grita poeta, e o medo vence-o,
que a tua voz, que é teu grito,
rompe os grilhões do silêncio
e abre as portas do infinito!
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Levem-me tudo, no entanto,
não levem minha viola;
que essa voz dela é meu canto
e esse canto me consola!
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Na solidão da clausura.
reza um monge solitário,
buscando a paz, na ternura
das contas do seu rosário!
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Não quero o bem que se alcança
com fama e falsos lauréis;
mas manter viva a esperança
ó Pai, que tenho aos teus pés!
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No sacrário dos meus dias,
cópias de antigas andanças,
são marcas das alegrias,
das verdadeiras lembranças!
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Num mosteiro, entre os aflitos,
que exemplo de gratidão...
Um monge pede em seus ritos
pelos sem teto e sem pão!
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Quando a lua arranca as vendas
e sobre as ondas vagueia,
ficam mais lindas as rendas
que as ondas bordam na areia!
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Quando escuto as tuas palmas
meus sonhos, são sonhos vãos,
por sentir que há duas almas
presas, às mãos de outras mãos!
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Quando o entardecer persiste
sem querer dizer adeus...
Deixa a tarde menos triste
no ocaso dos olhos teus!
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Reguei meu jardim com calma,
à espera que ele florisse,
para perfumar minha alma,
na solidão da velhice!
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Se a saudade é um mal sem cura
e, à solidão nos conduz...
Entre a saudade e a ternura,
há sinais de treva e luz!
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Se a velhice, é um bem sem dono,
não me sinto entre os sozinhos!...
Sei que os caminhos do outono,
são sempre os mesmos caminhos!
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Se o teu olhar, não me acalma,
nem prendo mais tua voz...
Sinto que há mãos em minha alma
puxando os laços dos nós!
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Velha fonte, o vosso canto,
desvenda bem quem sois vós;
Maestrina do acalanto
do pranto que há entre nós!
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Velhice, se não te importas,
permite-me outras saídas...
Um outono sem folhas mortas,
mas só com folhas caídas!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Samuel C. da Costa (São flores no asfalto)

De frente para a praia de São Miguel da Boa Vista, a poetisa olha com esplendor a vastidão oceânica como se fosse a última vez que a apreciava ou como se fosse pela primeira. De uns dois anos passados para até aquele momento, as coisas mudaram por completo na vida dela. A bem da verdade, tudo mudou de forma radical na vida das jovens artesãs das belas-letras. Um renascer depois de anos, de sobrevida, na pequena cidade interiorana e praieira. As correntes por fim se quebraram e mil pedaços, depois de há muito enferrujam. E aquela velha vida limitada, de marasmos não cabia mais nela. Um novo livro iniciado e, ainda com muitas páginas em brancos a serem preenchidas em negras linhas.

O olhar perdido de Clarisse Cristal, para a infinitude do oceano a faz ignorar o enorme estrago das ondas quebrando, com fúria titânica, na orla na praia e as aves marinhas que gorjeiam estridentemente a poucos metros acima da cabeça efervescente da jovem escritora.

— Vamos embora amor! Está passando da hora. — Antônio tinha colocado a mão no ombro esquerdo da namorada, com terno carinho, na vã esperança de trazê-la de volta para a realidade, em que ambos vivem, pois o tempo urge e ruge para o jovem casal.

— Mais um pouco amor, mais um pouquinho e já vamos embora! Pode ir, amorzinho! Eu te encontro lá em cima, não demoro. Vai ligar a moto que eu já vou indo.

O rapaz assim o fez, deixou a jovem namorada sozinha na orla da praia. A moça foi para mais próximo de onde as ondas quebram, se abaixa e pega um punhado de grãos de areia. Olha para a areia molhada, aperta bem forte e joga a areia de volta para o mar. Era hora de voltar para a realidade e enfrentar o mundo real na realidade liquefeita. Ao cruzar a areia morna da praia, naquele começo da manhã, subir o pequeno elevado e encontrar o namorado. Antônio a espera em cima da motocicleta e com os dois capacetes nas mãos esperando por ela com um sorriso nos lábios. E ela não pensou duas vezes ao ver cena e se adiantar e dar um beijo ardente no namorado para depois subir no veículo, mas Clarisse hesitou e desembarca lentamente da motocicleta importada último modelo.

— Toninho, quem vai pilotar a tua lata velha hoje vai ser eu mesmíssima da silva!

Antônio não gostava quando a namorada chamava a novíssima motocicleta dele de lata velha. Espantado, o jovem músico estranha o inusitado pedido da namorada, que aliás não se cansava das muitas surpresas que ela vinha trazendo em turbilhões para a monótona vida dele.

— Desde quando tu tens habilitação, para dirigir motos, minha querida lady Cristal?

— Desde a semana passada, tirei carteira de moto e carro, agora é oficial, tu não és mais o meu chofer pessoal, meu querido!

De fato, Antônio era o motorista oficial do jovem casal. Quando o jovem, branco e classe média alta apareceu na luz do dia com a namorada negra e pobre, foi um choque para ambas as alas da cidade. A elite, branca e teuta e para a empobrecida e negra ala, não isto já não tenha acontecido antes, não há luz do dia.

Jovens rebeldes faziam isso vez ou outra, para chocar a sociedade local, mas geralmente são breves enlaces, pequenos flertes que não sobreviviam mais poucas horas, ou um dia ou dois. Mas aquele encontro de jovens almas, livres e leves que romperam as barreiras das horas e dos dois dias, desfilavam pelas ruas da cidade como um casal, que apesar de ainda jovem, se comporta de forma madura, integrado e mais que interligado.

— Não me olhe assim, meu vampirão lindo, me dá logo a chave da lata velha e vamos correr as estradas, tenho fome de vida, temos muito o que fazer antes que o dia termine!

O jovem Toninho não teve alternativa, senão repassar a chave do veículo para a esfuziante Clarisse Cristal. Ele sai da posição de condutor da motocicleta para dar espaço para ela. Dali foram os dois a ganharem as estradas para ver as provas do livro Flores no asfalto, o mais novo Clarisse Cristal.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 16 de março de 2022

Solange Colombara (Portfólio de Spinas) 19

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 53, 54 E 55


ALMA PERDIDA


Sigefredo botou anúncio classificado, dizendo que perdera sua alma, com promessa de gratificar quem a encontrasse. Não explicou — nem podia — como a tinha perdido.

Apareceram algumas pessoas trazendo pacotes com almas, e nenhuma era a dele. Não se ajustavam a seu corpo, e mesmo que ele quisesse fazer experiência, era evidente que não combinavam com o jeito de Sigefredo. E ele era muito ocupado. Não tinha tempo a perder.

Já se resignara a viver mesmo sem alma, quando uma noite encontrou a desaparecida, à porta de um bar, com aparência de pobreza, mas tranquila.

Seu primeiro impulso foi recolhê-la, mas pensando melhor achou que não valia a pena. A alma de Sigefredo também não manifestou interesse em voltar para ele. Dir-se-ia que aprendera a viver por conta própria, e mesmo naquele estado era independente.

Sigefredo passou por sua alma sem cumprimentá-la, entrou no bar e pediu o drinque habitual. Ao sair, viu a alma, a pequena distância, dar alguns passos e lhe saírem dos ombros duas asas, com que ela se alteou, voando para a Zona Norte.
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A MESA FALANTE

Entre os móveis que pertenceram ao médium Aksakovo Feitosa, leiloados após o seu falecimento, estava a mesa falante que durante vinte anos serviu a seus trabalhos. Aparentemente não se distinguia de qualquer outra mesa, porém o longo hábito de prestar-se a experiências acabara por lhe conferir poderes independentes de iniciativa humana.

Convertida em mesa de jantar na casa do funcionário do Lloyd Brasileiro que a arrematara, começou a levitar quando a família festejava o aniversário da filha mais nova do casal, a menina Leonarda. O susto dos comensais foi imenso, e embargou-lhes a voz. Pálidos, ansiosos por fugir, e atados às cadeiras, todos acompanhavam os movimentos da mesa sem que pudessem detê-los.

Durou cinco minutos o fenômeno. A família voltou a mexer-se, mas os copos estavam trincados e o vinho escorria deles sobre a toalha. Junto ao prato de Leonarda, a mancha rubra formava uma cruz, que foi interpretada como presságio lúgubre.

O pai da menina desfez-se do móvel, doando-o a um asilo de velhos. A menina cresceu e casou-se com o nobre italiano Papavincini, cujo brasão encerrava uma cruz cor de sangue, e foram muito felizes. É a primeira vez em que uma história dessas acaba em casamento e felicidade.
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A ORQUESTRA ODIOSA

É uma orquestra desarmônica por excelência. O maestro faz o possível para lançar a discórdia entre os instrumentos, e extrai disso um belo efeito. A trompa e o fagote não se cumprimentam, e ambos vivem de implicância com o oboé, que por sua vez trata o clarinete com soberano desdém. A flauta doce desmente seu nome, recusando o diálogo com o corne inglês. E os violinos planejam sequestrar o contrabaixo. Trompas e tímbalos têm ar feroz. O mais, nessa mesma linha de agressividade.

Como pode uma orquestra assim povoada de desavenças alcançar tamanho êxito em suas audições? O público ouve-a em religioso silêncio. Sucedem-se as turnês pelos estados, e há convites do exterior, que ainda não puderam ser atendidos.

Devo afirmar, a bem da verdade, que a execução dos concertos é impecável, e como cada instrumento deseja não apenas suplantar, como até expulsar os demais do conjunto, há competição acirrada em torno de quem é capaz de tocar melhor. O rancor conduz a resultados sublimes, que a crítica não sabe como explicar. A orquestra apura cada vez mais suas ambições, e teme-se que no auge de seu esplendor ocorra um assassinato nas cordas.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXVII

DO MEIO DA RUA  


Do meio da rua
(Que é, aliás, o infinito)
Um pregão flutua,
Música num grito...

Como se no braço
Me tocasse alguém
Viro-me num espaço
Que o espaço não tem.

Outrora em criança
O mesmo pregão...
Não lembres... Descansa,
Dorme, coração !...
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DORME, CRIANÇA, DORME  

Dorme, criança, dorme,
Dorme que eu velarei;
A vida é vaga e informe,
O que não há é rei.
Dorme, criança, dorme,
Que também dormirei.

Bem sei que há grandes sombras
Sobre áleas de esquecer,
Que há passos sobre alfombras
De quem não quer viver;
Mas deixa tudo às sombras,
Vive de não querer.
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DORMIR! NÃO TER DESEJOS NEM 'SPERANÇAS  

Dormir! Não Ter desejos nem 'speranças
Flutua branca a única nuvem lenta
E na azul quiescência sonolenta
A deusa do não-ser tece ambas as tranças.

Maligno sopro de árdua quietude
Perene a fronte e os olhos aquecidos,
E uma floresta-sonho de ruídos
Ensombra os olhos mortos de virtude.

Ah, não ser nada conscientemente!
Prazer ou dor? Torpor o traz e alonga,
E a sombra conivente se prolonga
No chão interior, que à vida mente.

Desconheço-me. Embrenha-me futuro,
Nas veredas sombrias do que sonho.
E no ócio em que diverso me suponho,
Vejo-me errante, demorado e obscuro.

Minha vida fecha-se como um leque.
Meu pensamento seca como um vago
Ribeiro no verão . Regresso , e trago
Nas mão flores que a vida prontas seque.

Incompreendida vontade absorta
Em nada querer... Prolixo afastamento
Do escrúpulo e da vida no momento...
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DO SEU LONGÍNQUO REINO COR-DE-ROSA  

Do seu longínquo reino cor-de-rosa,
Voando pela noite silenciosa,
A fada das crianças vem, luzindo.
Papoulas a coroam, e , cobrindo
Seu  corpo todo, a tornam misteriosa.

À criança que dorme chega leve,
E, pondo-lhe na fronte a mão de neve,
Os seus cabelos de ouro acaricia  -
E sonhos lindos, como ninguém teve,
A sentir a criança principia.

E todos os brinquedos se transformam
Em coisas vivas, e um cortejo formam:
Cavalos e soldados e bonecas,
Ursos e pretos, que vêm, vão e tornam,
E palhaços que tocam em rabecas...

E há figuras pequenas e engraçadas
Que brincam e dão saltos e passadas...
Mas vem o dia, e, leve e graciosa,
Pé ante pé, volta a melhor das fadas
Ao seu longínquo reino cor-de-rosa.
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DOURA O DIA. SILENTE, O VENTO DURA

Doura o dia. Silente, o vento dura.
Verde as árvores, mole a terra escura,
Onde flores, vazia a álea e os bancos.
No pinal erva cresce nos barrancos.
Nuvens vagas no pérfido horizonte.
O moinho longínquo no ermo monte.
Eu alma, que contempla tudo isto,
Nada conhece e tudo reconhece.
Nestas sombras de me sentir existo,
E é falsa a teia que tecer me tece.  

Fonte:
Fernando Pessoa. Poesias Inéditas (1930 – 1935).

terça-feira, 15 de março de 2022

Versejando 104

 

A. A. de Assis (“Sou muito orgulhoso”)

Rico ele era, mas muito chato. Sabia disso. Herdara do pai algumas terras, uma rede de lojas e outras coisinhas e coisonas. Cheio de etiquetas à mesa. Habitualmente embrulhado em terno e gravata. Exigia ser chamado de doutor. Soberbo e arrogante eram adjetivos com que costumavam carimbá-lo os que a seu redor lidavam.

Certo dia – há coisa de uns vinte anos –, enquanto fazia sua caminhada domingueira no parque, num súbito acesso de autocrítica decidiu que precisava desabafar com alguém. Já não aguentava saber que era olhado com tanta antipatia. Parou, olhou em volta, viu sentado num tronco à beira do lago um homem com jeito de sábio, longas grisalhas barbas, cachimbão fumegando. Pediu licença, acomodou-se ao lado. O velhinho percebeu de pronto o clima. Perguntou sereno: “O que é que o aflige, filho? Brigou com a mulher? Está com alguma dificuldade financeira? Alguma complicação de saúde?

Não era nada disso, explicou o pancudo. A esposa era um anjo de paciência e bondade, os negócios iam de vento em popa, a saúde perfeita. “Meu problema, vô (posso chamá-lo de vô?...), meu problema é que sou muito orgulhoso, orgulhoso demais”.

– Ah, sim. Então talvez não seja coisa deveras grave. Se o amigo se sente tão orgulhoso, há de haver alguma justa razão. Quem sabe o guapo mancebo seja um grande empresário como o Ermírio de Morais, que além de bem-sucedido criou milhares de empregos e ajudou a manter diversas instituições assistenciais.

Não era. Só pensava nos próprios interesses e achava que não tinha nada a ver com os dramas sociais do mundo. O governo que cuidasse disso.

Quem sabe então ele fosse um físico como o César Lattes, um médico como o Dr. Zerbini, um político do porte de um Juscelino, um jurista como Nélson Hungria, um craque como Pelé ou Garrincha, um piloto como Ayrton Senna, um paisagista como Burle Marx, um pintor como Portinari...

– Que nada. O vô deve estar brincando.

– Mas para justificar tamanho orgulho há de haver, pelo menos, em sua família, alguém muito famoso e de especial valor: um músico como Pixinguinha, um cantor como Roberto Carlos, um compositor como Tom Jobim, um ator como Paulo Autran, um poeta como Bandeira ou Quintana...

Ou quem sabe alguma das suas tias ou irmãs ou primas teria o brilho de uma Tarsila do Amaral, de uma Raquel de Queiroz, de uma Cecília Meireles, de uma Tônia Carreiro, de uma Bibi Ferreira, de uma Eva Wilma, de uma Ruth de Souza, de uma Dalva de Oliveira, de uma Maria Esther Bueno...

Ou talvez seja você um grande líder religioso, um grande professor, um grande engenheiro, um grande orador, um grande estilista, um grande cozinheiro, um medalhista olímpico...

– Pare, vô. Não sou nada disso.

– Então, meu filho, fique tranquilo. Você não é orgulhoso coisa nenhuma... é apenas um rapaz bobinho. Sua doença tem cura fácil: basta um pouco de humildade. Baixe a crista e siga em paz.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 03.3,2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

I Concurso Nacional de Trovas da UBT Nossa Sra. Aparecida/SE 2021 (Trovas Premiadas)


VETERANOS

TEMA: ROMARIA (Lírica/Filosófica)

 
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VENCEDORES
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1º Lugar
Cezar Defilippo
Astolfo Dutra-MG

Garças brancas... fim de dia...
Aos ninhais em procissão,
chega o bando em romaria,
e enche os ingás de algodão.
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2º Lugar
Márcia Jaber
Juiz de Fora-MG  

Só lembranças na memória,
de passados tão presentes...
e a saudade é uma notória
romaria dos ausentes.
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3º Lugar
Professor Francisco Garcia
Caicó-RN

Romaria!... Cruz às costas!...
Da promessa, não se afasta...
E o beato busca as respostas,
nos braços da cruz que arrasta!
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4º Lugar
Jerson Lima de Brito
Porto Velho-RO

Na madrugada sombria,
quando a solidão tortura,
meus sonhos, em romaria,
seguem à tua procura.
– – – – – – – – – – – – – – – –
5º Lugar
Dionezine de Fátima Navarro
Ponta Grossa-PR

Refugiados sem lar,
em sofrida romaria,
seguem no afã de encontrar
acolhida e calmaria...

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MENÇÕES HONROSAS
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6º Lugar
Vânia Figueiredo
Sumaré-SP

Andando em busca do amor
numa eterna romaria,
o coração, qual andor,
leva a esperança arredia.
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7º Lugar
Juarez Francisco Moreira da Silva
Rio Das Ostras-RJ

Anda, assim, a humanidade
em constante romaria,
buscando a Deus, que em verdade,
segue em sua companhia...
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8º Lugar
Carolina Ramos
Santos-SP

Virgem Santa!  - Em romaria,
meus sonhos foram a ti...
E tu me deste, Maria,
muito mais do que eu pedi!!!
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9º Lugar
Mário Moura Marinho
Sorriso-MT

A romaria da vida
muito amedronta, nos cansa,
mas jamais ela intimida
quem segue com esperança.
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10º Lugar
Francisco Gabriel
Natal-RN

A romaria tem luz
quando, em busca de perdão,
o romeiro vê Jesus
na face de cada irmão.

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MENÇÕES ESPECIAIS
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11º Lugar
Edson de Paiva
Rafael Godeiro-RN

Na romaria da vida
os momentos enfadonhos
sempre são contrapartida
pela conquista dos sonhos
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12º Lugar
Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes-PR

Com meus versos no embornal,
sou poeta em romaria
e em meus passos, afinal,
deixo rastros de poesia!
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13º Lugar
Antonio Colavite Filho
Santos-SP

Dor  nos  pés,  suor  frequente,
flagelos  deste  romeiro...
É  a  romaria  da  gente
por  este  chão  brasileiro.
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14º Lugar
Luiz Antonio Cardoso
Taubaté-SP

Mil romarias não pagam
Maria, o aceno fecundo:
deste à luz as mãos que apagam
todo o pecado do mundo!
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15º Lugar
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora–MG

Nos rumos da liturgia
dos que vão seguindo a pé,
os passos da romaria
deixam pegadas de fé!
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NOVO TROVADOR

TEMA: FÉ (Lírica/Filosófica)

 
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 VENCEDORES
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1º Lugar
Magda Helena Gomes Teixeira  
Pouso  Alegre-MG

Fé, bela estrela brilhante,
que nos guia e nos conduz,
tem brilho contagiante:
feliz quem segue essa luz!
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2º Lugar
Ademar Rafael Ferreira
João Pessoa-PB

A fé é a força motriz
que energiza os passos meus,
gera a paz e a diretriz
que me aproximam de Deus.
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3º Lugar
Magda Helena Gomes Teixeira
Pouso  Alegre-MG

Vejo a fé no olhar da criança
e descubro a paz que acalma,
a fé que envolve confiança
traz a eternidade na alma.
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4º Lugar
Flávia Corrêa da Cunha
Jundiaí-SP

A fé, quando verdadeira,
é realmente sagrada,
permanece a vida inteira
e não se perde por nada!
– – – – – – – – – – – – – – – –
5º Lugar
Solange Colombara
São Paulo-SP

Nesta estrada em desalinho,
em paz, traço a minha sina.
A fé norteia o caminho
do amanhã que descortina.
 
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MENÇÕES HONROSAS
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6 º Lugar
Rosângela Caron Bastos
Curitiba–PR

Na batalha injusta e inglória
que travamos em segredo;
só teremos a vitória
ante a fé maior que o medo!
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7º Lugar
Davi Pereira  
Toledo-PR  

Há crença maior até
que a certeza da ciência;  
é a força da nossa fé
na Divina Providência.
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8º Lugar
Francisco Paulo da Silva Filho
São João do Jaguaribe-CE

Ser confiante, faz bem,
pois sei que Deus me acompanha;
não tenho medo do além,
porque a fé move montanha.
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9º Lugar
Sinclair Pozza Casemiro
Campo Mourão-PR

Trago a fé no coração,
pois tudo em Deus se encaminha.
E, por isso, em gratidão,
eu divido a fé...que é minha!
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10º Lugar
Ana Lúcia Cordeiro
Belo Horizonte-MG

A fé, carrego no peito.
Na mente, amor infinito...
Esse mundo ainda tem jeito,
quando se pensa bonito!
 
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MENÇÕES ESPECIAIS
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11º Lugar
Sinclair Pozza Casemiro
Campo Mourão-PR

Eu sinto que a fé me traz
a bondade do Senhor,
porque creio, ela me faz
ter em mim o Criador!
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12º Lugar
Flavia Corrêa da Cunha
Jundiaí-SP

Como me deixa encantada
a pessoa que tem fé!
Pedindo, sempre ajoelhada,
as bênçãos de São José.
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13º Lugar
Júlia Fernandes Heimann
Jundiaí-SP

Uma fé inabalável
tenho em Deus, Nosso Senhor;
de existência inquestionável
é meu grande protetor!
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14º Lugar
Cláudia Maria Guimarães Suheth
Campos Dos Goytacazes-RJ

Na difícil caminhada
tem sobe e desce da vida,
com minha fé bem fincada,
sou, por meu Deus, percebida!
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15º Lugar
Davi Pereira  
Toledo-PR  

Eu disponho de recurso
se quiser seguir a pé,
para guiar meu percurso
no meu santo eu boto fé.
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VETERANO E NOVO TROVADOR

TEMA: SANTO (A)

(Humorísticas)


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 VENCEDORES
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1º Lugar
Francisco de Assis Bento de Souza
Parnamirim-RN

Tem gente devendo tanto
que não consegue pagar,
nem as promessas do santo
se o mesmo não parcelar.
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2º Lugar
Élbea Priscila de Sousa e Silva
Caçapava-SP

Meu marido é quase um santo,
reza e reza toda hora...
– Para que ele reza tanto?
– Pra que minha mãe ... vá embora
– – – – – – – – – – – – – – – –
3º Lugar
Márcia Jaber
Juiz De Fora-MG

Tão briguento e aprontador,
armava tal confusão
que o seu santo protetor
só vivia de plantão.
– – – – – – – – – – – – – – – –
4º Lugar
Roberto Tchepelentyky
São Paulo-SP

Pra ter proteção e tanto...
Diz um caipira, no ponto,
que não dá mais pinga ao santo:
- "Imagina nóis dois tonto"!...
– – – – – – – – – – – – – – – –
5º Lugar
Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho
Juiz de Fora-MG

Minha dona xinga tanto,
que detestando querela,
vou pedir para o meu santo
amansar o santo dela.
 
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MENÇÕES HONROSAS
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6º Lugar
Renata Paccola
São Paulo-SP

- Meu time foi derrotado!
Não entendo, rezei tanto!
- É que o time do outro lado
rezou para o mesmo santo!
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7º Lugar
José Ouverney
Pindamonhangaba-SP

Mostra o orixá seu espanto
diante da cena careta:
a mulher, que é "mãe-de-santo",
tem um filho que é um "capeta"!
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8º Lugar
José Ouverney
Pindamonhangaba-SP

O mundo gira depressa,
tão depressa em seu girar
que, mal se fez a promessa,
o santo já vem cobrar!
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9º Lugar
Fernando Antônio Belino
Sete Lagoas-MG

Que cachaça especial!
Boa assim nunca vi tanto!
Penso até que não faz mal,
tomar a parte do santo!
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10º Lugar
Paulo Cezar Tórtora
Rio de Janeiro-RJ

- Como é que tu bebes tanto
e encara a volta sozinho?!...
- Deixo isso aí com meu santo,
ele já sabe o caminho...
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Milton Sebastião Souza (Chuva na vidraça)

Os pingos de chuva que brincaram de escorregar pela minha vidraça durante a semana inteira fizeram o meu pensamento se elevar bem acima da montanha de trabalhos que soterrava os meus dias para me fazer pensar em ti, pensar em ti, pensar em ti...

Isso acontece sempre quando está chovendo. Jamais esqueço que foi exatamente num dia como esse que o destino resolveu colocar um “algo mais” no meio daquela nossa amizade tão bonita.

Naquele dia chuvoso (que ficou guardado na minha lembrança) eu descobri, num segundo, que nos teus olhos brilhava precisamente aquela cor que eu mais gostava. Descobri mais ainda: que as tuas mãos, que tantas vezes me ampararam nos momentos difíceis também sabiam fazer os carinhos que eu estava precisando com tanta urgência. E o resto foi acontecendo naturalmente...

A nossa amizade se transformou no sonho mais lindo que alguém poderia sonhar. E nós dois aproveitamos aqueles dias chuvosos para fugir do mundo e descobrir, um no outro, tantas belezas e tantas afinidades. O tempo parou: esquecemos compromissos, deixamos os telefones ficarem roucos de tanto gritar e sumimos completamente do mapa das nossas ações costumeiras. Então saboreamos aqueles momentos sem pressa, sem perguntar até onde aquela magia nos levaria e quanto durariam aqueles momentos indescritíveis de felicidade e prazer...

Um ditado antigo já havia nos avisado que “tudo o que é bom dura pouco”. A realidade nos fez acordar daquele sonho. Aos poucos nós voltamos para a nossa rotina repleta de falta de tempo para os projetos pessoais. E, por causa das outras paixões menores que durante todos os tempos sempre dominaram os nossos sentimentos, terminamos adiando e readiando a continuidade daquela paixão fulminante. O sonho não terminou. Mas ficou perdido no meio da neblina de uma imensa saudade. E hoje só volta aos nossos corações quando uma chuvinha começa a tamborilar ritmada nas vidraças das nossas janelas...

Hoje já nem sei mais qual o sentimento que sinto por ti. Só sei que ele não deve ser chamado de “amizade”. Nas minhas horas de solidão, eu sinto vontade de esconder todos os meus medos nos caminhos iluminados do teu olhar. E sinto mais ainda a falta do contato macio das tuas mãos nos atalhos do meu corpo tão carente de carícias. Meus lábios, que anseiam pelos teus beijos, precisam provar as lágrimas amargas que descem licenciosas dos meus olhos, vidraças molhadas onde não tamborilam os pingos da chuva. O tempo vai passando e, com suas armadilhas, nos afastando cada vez mais. Quando os nossos olhos conseguem se encontrar, por alguns rápidos instantes, emitem aflitas mensagens que somente as nossas almas conseguem decodificar.

Nestas mensagens, nós falamos de dias chuvosos, de pingos na vidraça, de carícias plenas e desta saudade que sufoca as nossas almas...

Julia Martins e Grant Faulkner (Como Escrever uma História de Fantasia Convincente) Parte 2: Pensando em regras


 1. Crie convenções sociais se a história acontece em um lugar fantástico.

Se você quer criar um mundo próprio, descreva as classes e convenções sociais que regem a sociedade para torná-lo mais realista. Quais são os costumes e rituais cotidianos?

Muitos escritores de fantasia baseiam as convenções sociais em aspectos do mundo real. Por exemplo: quase toda sociedade tem rituais como aniversário, casamento, velório e data comemorativas específicas, como o Natal. Tente pensar em alguns para o seu mundo. O que os personagens fazem quando ficam mais velhos? E quando alguém morre?

Estude outras culturas para ter novas ideias. A maioria dos autores de fantasia se inspira em histórias e culturas do mundo real.

Familiarize-se com rituais antigos ou de lugares isolados. Escreva mais do que o necessário. A dica da escritora Julia Martins é: "Nem toda convenção social que você criar tem que entrar na versão final da história. Só o fato de você ter pensado nesses detalhes já deixa o mundo bem mais crível e realista".

2. Decida como os elementos sobrenaturais funcionam na história.

Toda história fantástica traz elementos sobrenaturais. Determine se o mundo é mágico, se existem fantasmas, se eles podem interagir com os vivos e fale das origens dos poderes mágicos dos personagens. Por exemplo: eles são concedidos pelos deuses, parte natural do mundo ou conseguidos por meio de certos rituais?

Decida também se os poderes dos personagens são secretos. Por exemplo: se o personagem principal consegue conversar com fantasmas, será que os outros sabem disso?

3. Crie regras específicas sobre o uso de armas e objetos sobrenaturais.

Geralmente, as histórias fantásticas incluem armas ou outros objetos de origem sobrenatural. Se você quer incorporar esses itens ao enredo, descreva como eles funcionam.

No universo Harry Potter, por exemplo, a varinha escolhe o bruxo. Use regras assim para dar mais verossimilhança à narrativa.

Se os personagens usam um tipo específico de arma para lutar uns contra os outros, pesquise um pouco sobre o assunto. Por exemplo: se o protagonista é arqueiro, estude os termos e a forma de operação básica do arco e das flechas.

A parte mecânica da pedra da ressurreição em Harry Potter é um bom exemplo de descrição. Para que ela funcione, a pessoa tem que virá-la na mão três vezes enquanto pensa em quem quer trazer de volta à vida.

4. Siga as regras sempre à risca.

Seja consistente com as regras que você criar para o mundo fantástico. Os leitores vão ficar confusos e frustrados se elas mudarem de acordo com a situação ou o conflito. Não mude nada que já está estabelecido.

Por exemplo: na série Buffy, a Caça-Vampiros, só é possível ressuscitar alguém quando essa pessoa morre por causas sobrenaturais. Sendo assim, quando Tara é morta por uma bala perdida, Willow não consegue salvar a namorada. É um enredo trágico, mas que não foge das regras criadas antes — e, assim, a série fica mais consistente e crível.

Anote as regras conforme você desenvolve mais do enredo para não quebrá-las sem querer no futuro.
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continua… 3: Definindo os personagens

Fonte:
Wikihow

segunda-feira, 14 de março de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 34: Walneide Fagundes Guedes

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 48


Ponta nordeste catarina. Águas agitadas. Rio e mar. Plena pororoca. Pulcras gaivotas. O céu por testemunha.

Chegaram os ventanejares setembrinos, cancioneiros da estação trazendo os odores marinhos e o inefável dos dias primaveris. E os céus, e as águas, e as areias.

Tempos de bons agouros, luzes, cores, encantamentos. Solfejos celestiais na barra.

São grandezas galopantes  
os céus, os tantos mares,  
mares em constantes avatares,  
os céus, realezas constantes.

Fonte:
Texto enviado pelo autor em 17.09.2021.

Contos e Lendas do Mundo (Irlanda: O campo do Leprechaun*)

No dia de Nossa Senhora da Colheita, como todos sabem ser um dos melhores feriados do ano, Tom Fitzpatrick estava passeando em um lado ensolarado de uma cerca viva quando, de repente, ouviu uma espécie de estalido soar perto dele, na sebe.

– Caramba, – disse Tom – não é nada comum ouvir sabiás cantando no fim da estação!

Então, Tom se aproximou na ponta dos pés para descobrir a origem daquele barulho e para saber se o seu palpite estava correto. O ruído parou, mas quando Tom olhou atentamente através dos arbustos, ele viu no canto da cerca um jarro marrom, que devia ter um galão e meio de bebida alcoólica. Ali, um velhinho bem pequenininho usando um pequeno chapéu tricórnio mosqueado e um aventalzinho de couro que cobria a frente do corpo puxou um banquinho de madeira e subiu nele, mergulhou uma caneca no jarro e a retirou cheia de bebida. Depois ele se sentou ao pé do jarro e começou a trabalhar, pregando o calcanhar de um sapato de couro feito sob medida para ele.

– Ora, por todos os poderes! – exclamou Tom consigo – Sempre ouvi falar dos leprechauns e, para dizer a verdade, nunca acreditei que existissem, mas sem sombra de dúvida aqui está um deles. Se eu agir com cautela, serei um homem feito! Dizem que nunca se deve tirar os olhos deles, senão escapam.

Tom se aproximou um pouco mais, com os olhos fixos no homenzinho, como um gato faz com um rato. Então, quando chegou bem perto, o cumprimentou:

– Deus abençoe o seu trabalho, vizinho!

O homenzinho levantou a cabeça e falou:

– Meu obrigado sincero.

– Estou surpreso que esteja trabalhando no feriado! – exclamou Tom.

– Isso é problema meu, e não seu! – foi a resposta.

– Bem, você faria a gentileza de me contar o que tem aí dentro do jarro? – perguntou Tom.

– Conto com muito prazer. – disse ele – É uma boa cerveja.

– Cerveja! – exclamou Tom – Pelo fogo e o trovão! Onde você conseguiu essa cerveja?

– Onde eu consegui a cerveja? Ué, fui eu que fiz. Vamos ver se adivinha do que é feita.

– Mas só o diabo pode saber! – reclamou Tom – Aposto que é de malte. Do que mais seria?

– Então errou. É cerveja de urzes.

– De urzes! – Tom desatou a rir. – Você me acha tão idiota a ponto de acreditar nisso?

– Acredite se quiser, – disse o leprechaun – mas é a verdade. Você nunca ouviu falar dos dinamarqueses?

– O que têm os dinamarqueses? – perguntou Tom.

– Ora, tudo o que se sabe é que, quando eles estiveram por aqui, nos ensinaram a fazer cerveja de urzes, e o segredo está na minha família desde então.

– E você vai me deixar experimentar essa cerveja? – perguntou Tom.

– Vou lhe dizer uma coisa, meu jovem, você faria melhor indo cuidar da propriedade de seu pai do que incomodar pessoas pacatas e decentes com suas perguntas tolas. Pois, veja bem, enquanto você está perdendo seu tempo aqui, suas vacas invadiram a plantação de aveia e estão pisoteando o milharal.

Tom ficou tão surpreso com isso que esteve a ponto de dar meia-volta e correr, mas se conteve.

Temendo que isso pudesse acontecer de novo, ele agarrou o leprechaun com a mão, no entanto o movimento brusco derrubou o jarro e derramou toda a cerveja, assim ele perdeu a chance de prová-la para saber de que tipo era. Então jurou ao leprechaun que o mataria se não mostrasse onde estava o dinheiro. Tom parecia tão perverso e obstinado que o homenzinho ficou bastante assustado.

O leprechaun falou:

– Venha comigo para os campos adiante que eu lhe mostrarei um pote de ouro lá.

Assim foram. Tom segurou o leprechaun com firmeza e não tirou os olhos de cima dele, embora tivessem que atravessar sebes, valas e um trecho tortuoso de brejo, até que finalmente chegaram a um grande campo coberto de tasneiras, e o leprechaun apontou para moita e disse:

– Cave debaixo dessa tasneira e você obterá um grande pote cheio de moedas de ouro.

Na sua pressa, Tom não pensara em trazer uma pá consigo, então decidiu correr para casa e buscar uma. Mas, para que pudesse reconhecer o lugar exato, tirou uma liga de suas meias vermelhas e amarrou ao redor da tasneira. Então, disse ao leprechaun:

– Prometa que não vai tirar essa liga daí.

E o leprechaun jurou imediatamente que não tocaria nela.

– Suponho – o leprechaum falou de um jeito muito civilizado – que você não precisa mais dos meus préstimos.

– Não. – respondeu Tom – Você pode ir embora agora, se quiser. Vá com Deus e que a sorte o acompanhe para onde for!

– Bem, adeus, Tom Fitzpatrick, – disse o leprechaun – e desejo que o dinheiro lhe seja muito útil quando você o encontrar.

Tom correu como se sua vida dependesse disso, voltou para casa, pegou uma pá, e então saiu com ela e correu o mais rápido que pôde de volta ao campo de tasneiras. Entretanto, quando ele chegou lá, vejam só! Não havia nem uma tasneira sequer ostentando uma liga vermelha como aquela que ele havia amarrado, e cavar o campo de tasneiras inteiro seria um disparate, pois o campo tinha mais de quarenta acres irlandeses (107 mil metros quadrados). Então Tom voltou para casa com a pá no ombro, um pouco mais desanimado, e foram raivosas e numerosas as maldições que ele rogou sobre o leprechaun toda vez que se lembrava de como ele havia lhe dado essa bela rasteira.
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*Com barba ruiva e vestido de verde, o Leprechaun é um duende que vive na floresta e encanta gerações com suas promessas de ouro. Considerados guardiões ou conhecedores da localização de vários tesouros escondidos, a lenda também diz que ele é o sapateiro do povo das fadas.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXVI

A água, das nuvens, caída,
faz germinar a semente,
transformando-a em nova vida
na vida de muita gente.
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A força da divergência
de gostos e posições,
tendem gerar com frequência
conflitos de gerações.
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Cheiro de terra molhada
pelas chuvas outonais,
na densa relva orvalhada
transitam os animais.
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Da nuvem, que chuva verte
e em pingos, à terra desce,
regando a planta, converte
em flor e o fruto aparece.
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Da vida e suas entranhas
brota a luz à descendência,
da infância muitas façanhas
deram forma à adolescência.
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Lenta, tépida e tão calma,
traz a noite com seu véu,
o acalento dentro da alma,
fora dela, a luz do céu.
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Nada amedronta, nem fere,
quem à frente a meta o inflama,
se alguém a oclusão prefere,
tudo se transforma em drama.
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Não deixes que a pedra fira
os pés com seus estilhaços
e tampouco ela interfira
na direção dos teus passos.
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Não temas o calendário
que faz crescer tua idade,
segue o tempo, o itinerário,
na mesma velocidade.
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Não tem densa escuridão
se na sala a lamparina
der seu brilho à vastidão,
que à noite se dissemina.
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Na vida, o verbo crescer,
equipara-se ao de amar
e o direito de aprender
com o dever de ensinar.
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Ninguém se atreva a impedir
que alguém cumpra seu papel
e assim, bem possa o cumprir,
mais solícito e fiel.
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Nunca mate um elefante
mesmo não tendo beleza,
mas por ser parte integrante
do mundo e da natureza.
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Nunca te assustes do grito,
nem do atroz olhar soslaio,
pois tem muito periquito
querendo ser papagaio.
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O homem chora inconsolado
vendo o seu sonho perdido,
por ter-se dele insulado,
ou por vê-lo interrompido.
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O homem não desaparece,
tampouco fica esquecido,
dele, nunca Deus esquece,
dando-lhe o pão merecido.
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O ser humano semeia,
somente o que n'alma tem,
são valores que o permeia
e o qualifica também.
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Pouco, um doce representa,
ou nada, se comparado,
à amizade que sustenta
um mundo desesperado.
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Quando o sol nos horizontes
parece não mais brilhar,
é ilusão pensar que os montes
o quiseram sufocar.
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Que a dor nunca seja enorme
ceifando a alma a navegar
e a face não se transforme
noutro barco a naufragar.
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Quem almeja ser estrela,
com seu brilho a entrar na sala,
deve antes de querer sê-la,
ter a luz para imitá-la.
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Que teu barco não colida
nas rochas da solidão,
mas o leme mostre à vida
seu norte na imensidão.
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Se um dia, na ingenuidade,
distante, a paz for buscar,
saiba que a felicidade
ao seu lado pode estar.
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Tomba com facilidade
toda a planta sem raízes,
queda sob a austeridade
das amargas cicatrizes.
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Tudo o que vem da plateia
frente a uma apresentação,
sejam aplausos na estreia
nos palcos da ostentação.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Lima Barreto (A matemática não falha)


Embora ainda não esteja aposentado de todo, já me julgo completamente desligado do emprego público que exerci, na Secretaria da Guerra, durante quinze anos.

A vida de cada um de nós, que é feita e guiada mais pelos outros do que por nós mesmos, mais pelos acontecimentos fortuitos do que por qualquer plano traçado de antemão, arrasta-nos, às vezes, nos seus pontapés e repelões, até onde nunca julgaríamos chegar.

Jamais imaginei, em dia algum da minha vida, ter de ir parar naquele casarão do Campo de Santana e testemunhar as sábias e pressurosas medidas que os presidentes da República e seus ministros da Guerra põem em prática para a eficaz defesa armada do Brasil.

Mas sucessos imprevistos da minha vida com dolorosas desgraças domésticas, num instante de necessidade e angústia, levaram-me até ali, fizeram-me ver bem profundamente, de excelente lugar na plateia, uma das partes mais curiosas da administração republicana.

Não me despedi ainda do lugar, mas, de qualquer modo, hei de fazê-lo; e, quando de todo o fizer, penso bem que o farei sem saudades.

E não é propriamente por ser ele; fosse outro, creio que se daria o mesmo. Neste como naquele, nesta ou naquela profissão, tenham-se as melhores ou piores aptidões, o que se nos pede nessa sociedade burguesa e burocrática é muita abdicação de nós mesmos, é um apagamento da nossa individualidade particular, é um enriquecimento de ideias e sentimentos comuns e vulgares, é um falso respeito pelos chamados superiores e uma ausência de escrúpulos próprios, de modo a fazer os tímidos e delicados de consciência não suportar sem os mais atrozes sofrimentos morais a dura obrigação de viver, respirar a atmosfera deletéria de covardia moral, de panurgismo, de bajulação, de pusilanimidade, de falsidade, que é a que envolve este ou aquele grupo social e traz o sossego dos seus fariseus e saduceus, um sossego de morte da consciência.

Os delicados de alma, nos nossos dias, mais do que em outros quaisquer, estão fatalmente condenados a errar por toda a parte. A grosseria dos processos, a “embromação” mútua, a hipocrisia e a bajulação, a dependência canina, é o que pede a nossa época para dar felicidade ao jeito burguês. É a época dos registros e dos tabeliães, mas é o tempo das maiores falsificações; é a época dos códigos, sendo também o tempo das mais vivas ladroeiras; é a época das polícias aperfeiçoadas, apesar de que é o tempo dos fiadores, endossantes etc., verificando-se nele os maiores calotes; é a época dos diplomas e das cartas, entretanto, sobretudo, entre nós — é o tempo da mediocridade triunfante, da ignorância arrogante escondida atrás de diplomas de saber; etc., etc.

Quem fez nas primeiras idades uma representação da vida cheia de justiça, de respeito religioso pelos direitos dos outros, de deveres morais, de supremacia do saber, de independência de pensar e agir — tudo isto de acordo com as lições dos mestres e dos livros; e choca-se com a brutalidade do nosso viver atual, não pode deixar de sofrer até o mais profundo do seu ser e ficar abalado com esse traumatismo para toda a vida, desconjuntado, desarticulado, vivendo aos trambolhões, sem norte, sem rumo e sem esperança.

Um espírito que criou para si um ideal de vida muito diferente do que a nossa atual de fato apresenta, conclui que tanto vale ter isto ou aquilo; que os homens são insuportáveis, tolos, injustos e que devemos vê-los, ricaços ou generais, doutores ou curandeiros, carvoeiros ou almirantes, ministros e os seus sábios secretários, na sua hipocrisia de tartufos, na sua miséria moral, na sua abjeção necessária, como atores de uma comédia que nos deve fazer rir, sem esquecer de ter pena deles, pois os seus esgares, as suas pinturas, as suas roupagens brilhantes de reis, de príncipes, de papas ou os trapos de mendigos que os vestem, a sua caracterização, enfim, tem por destino ganhar dinheiro, a fim de que não morram de fome.

Sem que me atribua qualidades excepcionais, detesto a hipocrisia e por isso digo que deixo o emprego sem saudades. Nunca o amei, jamais o prezei. No começo, se tivessem respeitado justamente a dignidade do meu juramento, o meu trabalho e as qualidades de burocrata que eu tinha como todos os outros, talvez mudasse de sentimento, e, mesmo, como tantos outros, me tivesse deixado anular comodamente no ramerrão burocrático.

Não quiseram assim, revoltei-me; e, desde essa revolta, sei que os meus desastres são devidos muito a mim e um pouco aos outros. Daí para cá, todo o meu esforço tem sido o livrar-me de tal lugar, que é para a minha consciência um foco de apreensões, transformando-se ele em um inquisitorial aparelho de torturas espirituais que me impede de pensar tão somente no esplendor do mistério e rir-me à vontade desses bonecos sarapintados de títulos e distinções que, não sem pena, me fazem gargalhar interiormente para mais perfeitamente gozar a bronca estultícia deles.

A minha sociedade agora não será mais a dos simuladores do talento, do trabalho, da honestidade, da temperança, será a dos défroqués, dos toqués, dos ratés de todas as profissões e situações, mas que sabem perfeitamente que falta confessada é “meia falta”, e também que Sardanapalos poderoso mandou pôr como seu epitáfio as seguintes e eloquentes palavras “Fundei Tarso e Anquíale, entretanto, aqui estou morto”.

Antes, porém, de esquecer totalmente os episódios desses meus quinze anos de vida que deviam ser os melhores dela, mas que me foram os de maiores angústias, quero registrar algumas passagens curiosas que observei, e também curiosas figuras que conheci, durante eles. Todo o mundo está disposto a acusar os burocratas desta ou daquela coisa feia. Mas poucos lembram das “partes” de certa espécie que são de pôr um cristão doido. Há algumas que são verdadeiramente importunas, insuportáveis e de desafiar a paciência de Jó.

No meu tempo de Secretaria, havia por lá muitos; e, de tão renitente espécie, eu me lembro de um senhor preto de quase setenta anos, forte ainda, que, em um mês, fez entrar mais de dez requerimentos, pedindo a mesma coisa.

Chamava-se Agostinho Petra de Bittencourt e tinha sido músico de um batalhão de voluntários da Pátria, que estivera no Paraguai.190 Dizia-se filho de um padre Petra que morrera há mais de cinquenta anos, deixando uma incalculável fortuna, em barras de ouro e pedras preciosas, em moedas de ouro e prata, que se achava depositada no Tesouro. Era seu herdeiro, como seu filho; e, quando bem interrogado, Agostinho dizia que o padre era branco. Entretanto, não seriam precisos grandes conhecimentos antropológicos para dizer-se, à primeira vista, que o herdeiro de fortuna tão grande não tinha nem uma gota de sangue caucasiano. Um jornal daqui chegou a tratar do caso; mas anos se passaram e só ele não deixou de falar na famosa herança...

A sua demanda com o Ministério da Guerra, porém, era de outra natureza e muito mais prosaica. Tendo vindo a lei que dava vitaliciamente aos voluntários da Pátria, sobreviventes, o soldo dos postos e graduações com que foram dispensados, ao terminar a guerra, Agostinho requereu-lhe fosse concedida semelhante pensão como mestre de música.

A Contabilidade da Guerra, consultando os documentos originais da época, as folhas de pagamento, denominadas na linguagem militar “relações de mostra”, só encontrou o nome de Petra como músico de 1a classe. O velho não se conformou e, daqui e dali, arranjou uma biblioteca de Ordens do Dia da guerra contra Lopes, que ele sobraçava dia e noite, onde o seu nome figurava como mestre de banda.

Armado contra elas, Agostinho foi a ministros, a secretários de Sua Excelência, a ajudantes de ordens de Sua Excelência, a todo o pessoal majestoso que recebe luz de Sua Excelência, queixar-se da imaginária injustiça de que vinha sendo vítima. Não havia nenhuma, mas Petra atribuía aos empregados da Contabilidade má-fé, dolo, falsidade administrativa, quando eles tinham cumprido seu dever.

Como, em geral, todos os requerentes, o pobre músico de batalhão só se queixava dos pequenos; e os grandes, ao receberem as suas queixas, aconselhavam que requeresse. E ele requeria sem dó nem piedade; anos e anos levou ele pelos corredores do Quartel General, sobraçando a sua biblioteca belicosa, requerendo, resmungando, reclamando e um mês até deu entrada a mais de dez requerimentos no sentido da sua modesta pretensão.

À vista desse exemplo e de outros mais significativos, talvez, mas pouco pitorescos, é de crer que o Império e a literatura patriótica da ocasião tenham posto no espírito dos voluntários do Paraguai grandiosas esperanças de toda ordem. É mesmo hábito de todos os governos, quando precisam de soldados para suas guerras, isso fazerem. O nosso não podia fugir da regra e, ao se ver a braços com El Supremo do Paraguai, se não disse francamente aos voluntários, se voltassem, não teriam mais que trabalhar para viver, prometeu com certeza grandes coisas, pois todos com que tratei estavam possuídos de uma forte convicção dos deveres do Estado para com eles.

Foi, naturalmente, esse sentimento multiplicado, quadruplicado, decuplicado, centuplicado e também deformado no espírito simples, primitivo e vaidoso de um ingênuo e ignorante preto que levou o major honorário do Exército, voluntário da Pátria, José Carlos Vital, ao mais completo dos desastres que se pode imaginar.

Vital foi há anos uma figura popular do Rio de Janeiro. Todos devem lembrar-se de um pretinho muito baixo, miúdo, feio, com feições de pequeno símio, malares salientes, lábios moles, sempre úmidos de saliva, babados mesmo, que era visto passar pelas ruas principais, fardado de major honorário, com uma banda obsoleta na cintura, um espadagão antediluviano, de colarinho extremamente justo e botas cambaias... Hão de se lembrar, por força! Pois essa figura pouco marcial era o major José Carlos Vital.

Para obedecer à justiça, diga-se que todos o olhavam com respeito. Aos poucos, envaideceu-se com isto e não perdoava continência, brados d’armas e outras cerimônias militares devidas a seu posto. Ficou irritante e cavava assim a sua ruína. A vaidade matou-o, como veremos.

Nos seus tempos áureos de “major”, era Vital um simples servente do Arsenal de Guerra; e, quando deixava as suas humildes funções, lá, no Cafofo, nas proximidades do atual mercado, envergando solenemente a farda e sobraçando com o braço esquerdo o espadagão, não era raro que, na primeira tasca, aceitasse o copo de parati e contasse, encostado ao balcão da venda, à gente humilde e tresmalhada daquelas paragens as suas proezas guerreiras. O arsenal era naquele tempo local escolhido quase sempre, para embarque ou desembarque de figurões de toda ordem e nacionalidade; e, quando isso se dava, o major julgava-se obrigado a comparecer com o seu fardão, o seu espadagão, o seu colarinho sujo, as suas botas cambaias e o seu charuto de tostão. Às vezes mesmo, com tal toilette, apresentava-se no Palácio do Catete, para cumprimentar o presidente da República, em dias festivos...

É fácil de imaginar como a presença de semelhante herói quebraria a harmonia de tão solenes e graves cerimônias por demais obedientes ao protocolo e às regras de precedência. Mas o major, “Voluntário da Pátria”, que era, nunca quis convencer-se de que o seu heroísmo ficava mal em tais lugares e devia somente brilhar no largo da Sé, no do Moura e em outras molduras dessa natureza que lhe eram adequadas e próprias. Um belo dia aparece um branco, e modestamente vivendo em Pernambuco, recebendo também etapa de asilado lá, como o seu homônimo preto recebia aqui Abre-se inquérito; cada um dos Josés Carlos Vitais apresenta as suas provas de identidade; a indagação da verdade é feita com o máximo critério e imparcialidade, acabando-se por concluir que o de Pernambuco é o autêntico, embora o daqui não tenha procedido de má-fé. O festejado herói do largo do Moura, do beco da Batalha, o orgulho das últimas pretas minas que conheceram o Príncipe Obá, perde as zonas, o emprego, a etapa de asilado, enviúva do fardão, para sumir-se dentro de um velho fraque de paisano vulgar.

E aquela satisfação de ser major, com as suas honras, privilégios, garantias e isenções, esvai-se, some-se, foge da sua triste vida de filho sem pai e que da mãe não tem a mais vaga lembrança; essa satisfação infantil que lhe resgatava os padecimentos de criança desvalida e levada em tenra idade, como se verificou, para os campos de batalha — essa satisfação se aniquila completamente como se o destino não lhe quisesse dar, nos seus últimos dias de vida essa vã e pueril consolação, como se não lhe quisesse dar a mínima ilusão de felicidade, a ele que passara toda a existência esmagado, humilhado, sem prazeres, sem alegrias, talvez, mesmo as mais vulgares!... Ah! a Vaidade...

Chamei de vã e pueril a consolação que podem dar as honras e que envaidecem o “major”. Será verdade? Vi tanta gente disputá-las, vi tantos homens, de condições de riqueza e instrução mais variadas, requestá-las que estou disposto a crer que errei quando assim as qualifiquei.

Não poderei citar muitos casos de pedidos delas, porque quase todos, por comuns de argumentação e motivos, me escaparam da memória; mas um, por ser sobremodo grotesco, viveu-me sempre na minha lembrança e, ainda hoje, quando dele me recordo, causa-me riso. Conto-o. Um voluntário da Pátria chamou em seu auxílio, ou tentou chamar, a aritmética para obter o justo honorário a que se julgava com direito. O senhor José Dias de Oliveira, porteiro adido do extinto Hospital do Andaraí, vivo ainda, como o são também os outros dois seus colegas a que aludi, era um velho pesadão, curto de membros e de corpo, com umas abundantes e longas barbas mosaicas, ventre proeminente e acentuado na sua redondeza, voz cava, que, de quando em quando, aparecia na secretaria, a fim de procurar com um seu amigo, funcionário dela, “o livro dos voluntários da Pátria”. Só ele conhecia esse livro e ele o pedia com a máxima insistência. A sua voz cava não permitia grandes gritos; mas, assim mesmo, nos dias de reclamação, conseguia encher os corredores e as salas com o seu rouco vozeiro. Quem o visse, nesse transe, poderia apreciar o gesticular desenfreado com que acompanhava a sua abafada gritaria e o cuidado constante que tinha, para não lhe caírem as calças perna abaixo. Movia todas as partes do corpo que permitiam movimento: os braços, as pernas, a cabeça, o pescoço; e falava, falava, semi gritando.

Queria o tal “livro” para resolver ou justificar os seus direitos, que tinham o apoio da matemática. Era, argumentava, tenente honorário e fora tenente da polícia do Paraná. Ora, 2 + 2 são quatro. Logo, ele possuía quatro galões, o que equivale a dizer que era major e, como tal, tinha direito à patente desse posto. De alguma forma, penso eu agora, o Senhor José Dias de Oliveira tem razão. Se o esoterismo positivista da geometria e do cálculo tanto concorreu para o 15 de Novembro, não é demais que a cabala da tabuada de somar auxiliasse a pretensão do porteiro adido do antigo hospital do Andaraí. 2 + 2 = 4; ele é, portanto, major. A matemática não falha…

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Publicado originalmente em 1920.